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Trancamentos de Matrícula no Curso de Medicina da UFMG: Sintomas de Sofrimento Psíquico

Canceled Enrollments on the UFMG Medical Course: Symptoms of Psychological Distress

RESUMO

O objetivo deste estudo foi investigar o sofrimento psíquico apresentado nas justificativas dos trancamentos semestrais de matrícula informados pelos estudantes de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais e identificar fatores e contextos associados. Estudo retrospectivo e transversal, qualitativo e quantitativo, dos 141 requerimentos de trancamentos ocorridos entre julho de 2007 e julho de 2013, solicitados por 97 estudantes do primeiro ao 12º período do curso. Verificou-se predominância de requerimentos no ciclo básico (55,3%) e como motivação prevalente (59,6%) o sofrimento psíquico. Os trancamentos podem se revelar como sintomas do sofrimento psíquico dos estudantes, associados a fatores como adoecimento psíquico, reprovações, dúvida na escolha do curso, desentendimentos familiares e uso considerado abusivo de drogas. As motivações apresentadas nos pedidos de trancamentos alertam para a necessidade e importância de investimento institucional nos serviços de cuidado e atenção ao aluno de Medicina.

Estresse Psicológico; Estudantes de Medicina; Acolhimento; Educação Médica

ABSTRACT

The objective of the study was to investigate psychological distress given as justification by students to have canceled their enrollment on semesters of the Federal University of Minas Gerais medical course, and to identify associated factors and contexts. A retrospective, cross-sectional, qualitative and quantitative study was performed on the 141 claims made during the period of July 2007 to July 2013 by 97 students from the 1st to the 12th period of the course. Cancellations predominated in the Basic Cycle (55.3%) with psychological distress the main motivation (59.6%). The cancellations may prove to be symptoms of student psychological distress, associated with factors such as mental illness, failures, doubts over course selection, family disagreements, and what may be deemed as drug abuse. The reasons given for such cancellations warn of the need and importance of institutional investment into welfare services for medical students.

Psychological Distress; Medical Students; Hosting; –Medical Education

INTRODUÇÃO

Os trancamentos semestrais de matrícula indicam um limite para o aluno, com a interrupção do curso, e apontam a importância de acolhida e cuidado institucionais com o estudante em situações de sofrimento psíquico.

Neste estudo, o sofrimento psíquico é percebido como a apresentação de questões subjetivas que causam desconforto emocional; mal-estar psíquico; insatisfação e tristeza persistentes; desmotivação; desesperança e dificuldades emocionais em lidar com o cotidiano da vida. Essa percepção e sentimentos foram expressos pelos alunos quando solicitaram trancamento, com ou sem a apresentação de relatórios psiquiátricos ou psicológicos.

Pesquisadores assinalam que muitos alunos de Medicina negligenciam o próprio adoecimento ou se envergonham de procurar ajuda11. Aquino MT, Ferreira RA, Duarte MA. Prevalência de transtornos mentais entre estudantes de medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte; 2012. Mestrado [Dissertação] - Universidade Federal de Minas Gerais.

2. Baldassin S, Martins LC, Andrade AG. Traços de ansiedade entre estudantes de medicina. Arquivos médicos do ABC 2006; 31(1):27-31.

3. Baldassin S. Disciplinas e áreas mais estressantes durante o curso de medicina. In: Baldassin S, coordenador. Atendimento psicológico aos estudantes de medicina. Técnica e ética. São Paulo: Edipro; 2012. p.65-70.
-44. Nogueira-Martins LA, Fagnani Neto R, Macedo PCM, Cítero VA, Mari JJ. The mental health of graduate students at the Federal University of São Paulo: a preliminary report. Braz J Med Biol Res [on line]. 2004.37(10)[Capturado em 22 set. 2013)]; 1519-1524. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-879X2004001000011&lng=en. http://dx.doi.org/10.1590/S0100-879X2004001000011.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
. Revelam também uma alta prevalência de adoecimento psíquico entre os estudantes de Medicina e reforçam que seu desencadeamento é favorecido por especificidades do curso55. Castaldelli-Maia JM, Machado MP, Baldassin S, Alves TCTF. Fatores ambientais da Faculdade de Medicina e sintomas depressivos nos estudantes. In: Baldassin S, coordenador. Atendimento psicológico aos estudantes de medicina. Técnica e ética. São Paulo: Edipro; 2012. p. 71-80.

6. Tempski PZ, Martins MA. A responsabilidade da Escola Médica na manutenção da saúde e da qualidade de vida do estudante. In: Baldassin S, coordenador. Atendimento psicológico aos estudantes de medicina. Técnica e ética. São Paulo: Edipro; 2012. p. 51-8.
-77. Gallassi AD, Malbergier A, Andrade AG. Cuidados no atendimento de estudantes que usam substância. In: Baldassin S, coordenador. Atendimento psicológico aos estudantes de medicina. Técnica e ética. São Paulo: Edipro; 2012. p. 93-100..

Estudos constatam que os serviços de acolhida e escuta valorizam e oferecem apoio aos estudantes, dando-lhes voz e oportunidade de buscar, junto com a instituição, saídas para os impasses experimentados no encontro da adolescência/juventude com a escolha profissional11. Aquino MT, Ferreira RA, Duarte MA. Prevalência de transtornos mentais entre estudantes de medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte; 2012. Mestrado [Dissertação] - Universidade Federal de Minas Gerais.,88. Baldassin S. Quem atende os estudantes de Medicina no Brasil? In: Baldassin S, coordenador. Atendimento psicológico aos estudantes de medicina. Técnica e ética. São Paulo: Edipro; 2012. p.17-22.

9. Bellodi PL. Tragédias, violência e trauma no curso médico – ecos nos serviços de apoio ao estudante de Medicina. In: Baldassin S, coordenador. Atendimento psicológico aos estudantes de medicina. Técnica e ética. São Paulo: Edipro; 2012b. p. 81-90.

10. De Marco OLN. Como e por que entrevistar os alunos do primeiro ano. In: Baldassin S, coordenador. Atendimento psicológico aos estudantes de medicina. Técnica e ética. São Paulo: Edipro; 2012. p. 123-8.

11. Millan LR, De Marco OLN, Rossi E, Millan MPB, Arruda PCV. Alguns aspectos psicológicos ligados à formação médica. In: Millan LR, De Marco OLN, Rossi E, Arruda PCV. O universo psicológico do futuro médico: vocação, vicissitudes e perspectivas. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1999. p.75-82.
-1212. Millan LR, Rossi E, De Marco OLN. A psicopatologia do estudante de medicina. In: Millan LR, De Marco OLN, Rossi E, Arruda PCV. O universo psicológico do futuro médico: vocação, vicissitudes e perspectivas. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1999. p. 83-102.. Encontro este que, mais marcadamente no curso de Medicina, ainda se soma à expectativa do lugar ocupado na família e na sociedade diante de ser aprovado no vestibular, ao desafio de lidar com a quantidade de conteúdos a estudar e à competitividade existente nessa formação. Além dessas adversidades, é possível encontrar alta prevalência de envolvimento com uso considerado abusivo de álcool e drogas ilícitas que alcança o dobro da taxa identificada para a população brasileira1313. Azevedo RCS. Uso de drogas por universitários. Rev Ens Sup Unicamp. [on line]. 2013 (11)[Capturado em 10 abr. 2014];35-37. Disponível em: http://www.revistaensinosuperior.gr.unicamp.br/artigos/uso-de-drogas-por-universitarios.
http://www.revistaensinosuperior.gr.unic...
.

A Assessoria de Escuta Acadêmica do Centro de Graduação da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), um serviço de acolhida para os estudantes, recebe todas as solicitações de trancamento de matrícula, criando a oportunidade de dialogar com os alunos sobre suas dificuldades. Esse serviço buscou conhecer as justificativas apresentadas por eles nas solicitações de trancamento de matrícula e investigar a presença de sofrimento nesse momento. Buscou também identificar os fatores e contextos associados a tais situações para pensar ações e possibilidades de cuidado institucional para os que vivenciam algum sofrimento psíquico.

MÉTODO

O estudo é retrospectivo e utilizou o modelo transversal. Possui natureza aplicada, objetivando gerar conhecimentos para a prática. Por meio de análise qualitativa1414. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12.ed. São Paulo: Hucitec; 2010. 407 p.-1515. Turato ER. Tratado da metodologia da pesquisa clínico-qualitativa: construção teórico-epistemológica, discussão comparada e aplicação nas áreas da saúde e humanas. 5ª ed. Petropólis, RJ: Vozes; 2011. 685 p. e quantitativa, avaliou os 141 requerimentos de trancamentos semestrais de matrícula feitos entre julho de 2007 e julho de 2013 por 97 estudantes do primeiro ao 12º períodos de Medicina da UFMG. Quatro desses requerimentos foram indeferidos por estarem fora das normas acadêmicas.

O trabalho foi desenvolvido com análise das justificativas fornecidas pelos alunos para os trancamentos semestrais de matrícula. Além da informação escrita por eles nos formulários (em papel), foram analisados registros feitos em banco de dados digitalizado (justificativas faladas, mas não escritas pelo aluno no formulário). Salienta-se que o material não foi recolhido, a princípio, com o objetivo de pesquisa, mas, sim, para acompanhamento dos casos e organização do trabalho na Assessoria de Escuta Acadêmica.

Foi realizada análise estatística por meio de medidas descritivas, frequências percentuais e cruzadas. Foi utilizada a análise de conteúdo1414. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12.ed. São Paulo: Hucitec; 2010. 407 p. para o tratamento e discussão dos dados, elegendo o tema sofrimento psíquico. Foram realizadas leituras das justificativas dos trancamentos em busca das categorias que emergiram do conteúdo central informado pelo aluno. Para encontrar unidade na diversidade dos dados e produzir explicações e generalizações, quatro categorias despontaram: sofrimento psíquico; trabalho; viagem ao exterior; outros. O foco deste estudo foi a categoria sofrimento psíquico.

Os dados fazem parte de um projeto de pesquisa submetido à avaliação do Comitê de Ética em Pesquisa (Coep) da UFMG, no qual foi também solicitada a dispensa do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, tendo-se obtido parecer favorável a sua execução. CAAE: 16365113.0.0000.5149.

RESULTADOS

Os trancamentos semestrais de matrícula revelam dados importantes sobre os estudantes de Medicina da UFMG. Embora em baixo percentual (0,6%), considerando-se o número de pedidos entre as matrículas efetivadas nos seis anos pesquisados (23.313 matrículas), para os 97 alunos que solicitaram trancamentos, o significado da interrupção do curso, na maioria das vezes, foi relacionado a situações de sofrimento psíquico. As justificativas que apresentaram essa motivação estiveram presentes em 59,6% (84) dos 141 requerimentos. Por impedimentos relacionados a falta de tempo devido ao aluno ter um emprego (trabalho) foram 8,5%; por viagens ao exterior com motivos diversos foram 12,8%, e na categoria outros motivos, relacionada a motivos citados apenas uma vez no tempo da pesquisa, identificaram-se 19,1% dos requerimentos (Tabela 1).

TABELA 1
Trancamentos totais de matrícula e seus motivos, por período, no curso de Medicina da UFMG entre o segundo semestre de 2007 e o primeiro semestre de 2013

Entre os 84 requerimentos justificados pelo sofrimento psíquico, encontraram-se 25 (29,8%) em que são relatadas dúvidas na escolha do curso. Estes se distribuíram majoritariamente no ciclo básico (primeiro ao quarto períodos), com 14 justificativas (16,7%), seguido pelo ciclo ambulatorial com 10 (11,9%) e um pedido (1,2%) no ciclo dos estágios.

Não sei por que escolhi medicina, tenho muita dificuldade em atender o paciente, acho que não tenho jeito para isso... A ideia da área da saúde antes de entrar na medicina é outra, aqui é tudo diferente do imaginado: muitas pessoas apalpando um paciente! Saio para o banheiro para não ter que fazer também! (fala de aluna do ciclo ambulatorial)

Foi também no ciclo básico que se concentrou a maior parte de todos os trancamentos, 78 deles (55,3%), dos quais 49 pedidos (62,8%) foram por sofrimento psíquico. Esse motivo foi a justificativa apresentada em 52% dos 50 trancamentos (35% do total) do ciclo ambulatorial. Já no ciclo dos estágios, que teve apenas 13 solicitações, nove delas (69,2%) seguiram a mesma motivação.

Considerando-se todos os períodos do curso, foi observado que nove deles possuem 50% ou mais dos motivos justificados pelos alunos para os trancamentos relacionados a sofrimento psíquico, sendo que no 12º período essa foi a motivação para 100% dos casos. Exceções ocorreram no oitavo período, com 42,9% dos pedidos com essa justificativa; no nono período, em que se destacou o motivo de viagens ao exterior, e no décimo período, em que não houve nenhuma justificativa com a motivação de sofrimento psíquico. A Tabela 1 e a Figura 1 informam a quantidade de trancamentos por período e por motivo.

FIGURA 1
Trancamentos totais de matrícula e seus motivos, por período, no curso de Medicina da UFMG entre o segundo semestre de 2007 e o primeiro semestre de 2013

Os períodos do curso que mais solicitaram trancamentos foram o primeiro e o segundo. Nesses períodos e no terceiro, quinto, 11º e 12º, encontraram-se os maiores percentuais de pedidos com motivações de sofrimento psíquico (entre 63,6% e 100%). Este dado reforça informações da literatura sobre a importância do investimento em conhecer e abrir espaço para escuta junto aos alunos do início do curso22. Baldassin S, Martins LC, Andrade AG. Traços de ansiedade entre estudantes de medicina. Arquivos médicos do ABC 2006; 31(1):27-31.,1010. De Marco OLN. Como e por que entrevistar os alunos do primeiro ano. In: Baldassin S, coordenador. Atendimento psicológico aos estudantes de medicina. Técnica e ética. São Paulo: Edipro; 2012. p. 123-8..

Ao avaliar o número de alunos que solicitaram trancamentos por motivos variados (97), encontrou-se maior quantidade de alunos entre o primeiro e o terceiro e no sexto períodos. Destacam-se as justificativas de sofrimento psíquico no primeiro período, que teve nove alunos com 21 pedidos nos seis anos; no quinto período, com quatro alunos que solicitaram oito trancamentos; e no 12º período, em que dois alunos solicitaram sete trancamentos. Verificou-se que, na maior parte dos trancamentos motivados por sofrimento psíquico, os estudantes ainda não estavam em tratamento. A Tabela 2 apresenta os dados dos trancamentos a partir do número de alunos solicitantes.

TABELA 2
Alunos com trancamentos totais de matrícula e seus motivos, por período, no curso de Medicina da UFMG, entre o segundo semestre de 2007 e o primeiro semestre de 2013

Considerando os 75 alunos (77,3% do total) que trancaram apenas uma vez, 32 (42,7%) tiveram o sofrimento psíquico como motivo, sendo a motivação prevalente nos três ciclos do curso médico também para estes, novamente com ênfase no ciclo básico. Contudo, nesse grupo, as situações de sofrimento psíquico parecem ser mais pontuais em algum momento do curso, sendo possível retornar às atividades acadêmicas sem novos trancamentos. Tal situação difere daquela dos alunos que trancam mais de uma vez.

A repetição de pedidos indicou maior índice de motivação por sofrimento psíquico e maior gravidade deste. Entre os 22 alunos (22,7% do total) que trancaram mais de uma vez, gerando 66 pedidos de trancamentos, 18 (81,8%) tiveram sofrimento psíquico como motivo principal em pelo menos um dos trancamentos. Esse foi o motivo de 100% dos alunos do ciclo dos estágios, de 91,7% dos alunos do ciclo básico e de 70% dos alunos do ciclo ambulatorial. A Tabela 3 mostra a comparação dos percentuais de trancamentos motivados por sofrimento psíquico nesses dois grupos de alunos.

TABELA 3
Alunos do curso de Medicina da UFMG com trancamentos totais de matrícula, tendo ou não como motivo principal o sofrimento psíquico, entre o segundo semestre de 2007 e o primeiro semestre de 2013

Entre as solicitações, alguns exemplos ilustram momentos difíceis vivenciados, como relata uma aluna do ciclo básico com seis trancamentos seguidos, manifestação de dúvida na escolha do curso e histórico de desamparo social e familiar, somando-se a adoecimento psíquico de gravidade:

Não sei por que não estou conseguindo... não sei se deveria desistir do curso... acho que não vou dar certo em curso nenhum! Sinto medo de voltar a frequentar as aulas... não consigo me concentrar nos estudos, os colegas são muito mais capazes do que eu...

Outro exemplo sinaliza o importante papel da instituição: uma aluna, na décima solicitação de trancamento por motivo de adoecimento psíquico, teve seu pedido negado pelo Colegiado, já que não havia relatório de tratamento continuado, e a história se repetia, com cinco anos em trancamentos:

Mas o pedido sempre foi aceito! Pode negar? Eu não dou conta de ir às aulas!

Foi a partir desse corte, que indicava a possibilidade de exclusão do curso, que se tornou possível investir em um tratamento com melhor adesão, não sem dificuldades, mas com maior implicação. Assim também ocorreu com uma aluna que estava em tratamento e indecisa sobre a escolha do curso. Relatava medo de enfrentar os comentários dos colegas por estar repetindo a disciplina pela terceira vez, dificuldades de tomar decisões e conflitos nas relações familiares, os quais acreditava terem contribuído para sua escolha profissional no sentido de mostrar que seria capaz. Ao ouvir o comentário sobre ter escrito a lápis a justificativa do seu terceiro requerimento de trancamento, surpreendeu-se e refletiu:

É para não rasurar, não errar!... Tenho medo de errar na escolha! A lápis pode estar indicando que dei pouca importância para o que escrevi, para o que estou pedindo... Já pensei que se passar no vestibular ‘X’ e não gostar, depois faço outro vestibular para Medicina e será como passar uma borracha em cima do que já aconteceu, pois terei dispensa das disciplinas cursadas e não aparecerão trancamentos e reprovações.

Após esse trancamento, não retornou ao curso. Foi aprovada em outro vestibular.

Momentos de muita angústia foram verificados com os trancamentos ocorridos nos últimos períodos do curso. Houve dois pedidos com justificativa de sofrimento psíquico no 11º período. Um deles se referia a adoecimento psíquico, e o outro a dúvida na escolha profissional, ambos prolongados durante todo o curso e agravados com a proximidade da formatura e o que essa etapa representa. A proximidade da formatura e, por questões pessoais diversas, a dificuldade psíquica de se assumir profissionalmente foram a base motivacional dos trancamentos dos dois estudantes do 12º período, que geraram sete pedidos. Ambos concluíram o curso após certo tempo de tratamento.

[...] tenho medo, insegurança, acho que não serei capaz...

Sinto-me incapaz, não consigo atender pacientes, não posso exercer a profissão, não sirvo para isso...

É importante ressaltar que houve duas situações em que os alunos argumentaram sobre uso considerado abusivo de drogas na justificativa do trancamento. Observou-se dificuldade na abordagem e no auxílio a esses estudantes, que comumente possuem laços quebrados com a família, não desejam e não aderem a tratamentos, representando situações de maior gravidade:

Estudar é minha vida, não posso perder o curso! Preciso ficar “limpo”! Não falei disso antes porque tenho medo do julgamento moral das pessoas.

DISCUSSÃO

Os primeiros períodos do curso exigem maior atenção da instituição no que se refere ao cuidado e à acolhida dos alunos33. Baldassin S. Disciplinas e áreas mais estressantes durante o curso de medicina. In: Baldassin S, coordenador. Atendimento psicológico aos estudantes de medicina. Técnica e ética. São Paulo: Edipro; 2012. p.65-70., visando à detecção precoce de dificuldades psíquicas e à implantação de medidas profiláticas. Uma série de razões pode compor esse quadro: a novidade da entrada na universidade, dificuldades próprias da graduação (aprendizado de novas matérias, estudo mais autônomo, quantidade de conteúdo), dificuldade de se estabelecer longe da família, de se inserir em grupos, dúvida na escolha profissional e alta frequência de situações de sofrimento psíquico nessa fase.

Fico decepcionada comigo porque sempre tive notas boas e agora não estou conseguindo! (aluna do primeiro período)

No início da graduação, o jovem estudante se depara com seu Olimpo ou com seu martírio, já que, apesar de atraente, a carreira médica é carregada de desafios e sofrimento, que se somam às características próprias da idade e de cada sujeito1616. Casseb AR. Adolescência e escolha profissional. In: Guimarães KBS (Org.). Saúde mental do médico e do estudante de medicina. Casa do Psicólogo [on line]. 2007 [Capturado em 29 set. 2011]; 25-40. Disponível em: http://books.google.com.br/books?id=-2hNLcNhRyEC&printsec=frontcover#v=onepage&q&f=false.
http://books.google.com.br/books?id=-2hN...
-1717. Cruz EMTN. Nossa experiência em tutoria/mentoring na Famerp (2001 a 2008). In: Baldassin S, coordenador. Atendimento psicológico aos estudantes de medicina. Técnica e ética. São Paulo: Edipro; 2012. p.143-8.. Os primeiros períodos do curso, assim como o início do ciclo ambulatorial, podem representar um momento de grande realização, mas também de muitas angústias e fonte de dificuldades para alguns alunos.

Com base nas mudanças de hábito e nas necessidades de adaptação é que se marca a importância da abordagem aos alunos do primeiro ano do curso, pensando em prevenção e conscientização das dificuldades que essa formação pode acarretar22. Baldassin S, Martins LC, Andrade AG. Traços de ansiedade entre estudantes de medicina. Arquivos médicos do ABC 2006; 31(1):27-31.. É uma faixa etária em que podem ocorrer desamparo e desesperança, sendo um momento em que o jovem se defronta com a necessidade de autoafirmação e de conquistas1818. Miranda PSC, Queiroz EA. Pensamento suicida e tentativa de suicídio entre estudantes de medicina. Rev ABP-APAL. 1991;13(4):157-160..

O quinto período também requer atenção especial, pois é quando os alunos vivenciam a entrada no ciclo profissional, começando a atender os primeiros pacientes. É comum ouvir dos estudantes que esse atendimento traz sofrimento e angústia, sendo esta uma motivação para o trancamento, momento em que alguns são levados a questionar seu desejo pela medicina:

[...] muitos pacientes graves, a maioria psiquiátricos, que não melhoram... descobri que a maioria dos pacientes são psiquiátricos, tenho raiva deles, quero me defender deles [...]. (justificativa de aluno para aquilo que o poderia estar adoecendo)

[...] ele teria a vida toda pela frente, é jovem, cheio de planos, não consigo ficar vendo isso! (fala de estudante sobre um paciente)

Percebe-se que a perda, a morte e a sexualidade reveladas por meio da doença não são bem digeridas, mas delas procura-se defender. Assim, para o jovem estudante, o encontro com o paciente pode tornar-se um encontro consigo mesmo1919. Ansermet F. Prólogo. In: Ansermet F. Clínica da origem: a criança entre a medicina e a psicanálise. Rio de Janeiro: Contra Capa; 2003. p. 7-18..

É importante observar que o nono, o décimo e o 11º períodos foram os que tiveram o menor número de pedidos de trancamentos. Já para o 12º período, encontrou-se que todos os requerimentos se referem a adoecimento psíquico. No tempo pesquisado, percebeu-se que a interrupção na reta final do curso indicou impossibilidade psíquica temporária do aluno em continuar/encerrar a formação acadêmica. É o momento que traz toda a carga emocional e prática do final do curso, é o tempo da formatura, tempo de pensar no emprego, na residência médica para muitos. É o tempo de assumir-se médico. A fala de um recém-formado, em aula inaugural para o primeiro período, revelou bem essa angústia:

Não pensem que após a colação de grau a gente passa por uma porta mágica que nos torna médicos! Isso dá um desespero! A gente não “vira” médico nesse dia, a escalada continua, é preciso agora arrumar um emprego e ir tornando-se médico.

Verifica-se que na etapa dos internatos é comum o surgimento de sentimentos de impotência e culpa, que podem levar o estudante a estados depressivos que dependerão, em grande parte, dos recursos internos para lidar com os próprios sofrimentos e limites1111. Millan LR, De Marco OLN, Rossi E, Millan MPB, Arruda PCV. Alguns aspectos psicológicos ligados à formação médica. In: Millan LR, De Marco OLN, Rossi E, Arruda PCV. O universo psicológico do futuro médico: vocação, vicissitudes e perspectivas. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1999. p.75-82..

Uma pesquisa recente com estudantes do último ano do curso de Medicina da UFMG levantou dados alarmantes de alta frequência de alunos (83,96%) que preencheram critérios para transtornos psiquiátricos na fase final do curso. Essa prevalência encontrada é preocupante e se mostrou muito maior, em todas as categorias diagnósticas avaliadas, que a estimada para a população geral brasileira (17,2%)11. Aquino MT, Ferreira RA, Duarte MA. Prevalência de transtornos mentais entre estudantes de medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte; 2012. Mestrado [Dissertação] - Universidade Federal de Minas Gerais.. Esses dados remetem à inferência de que as comorbidades psiquiátricas que acometem os estudantes do último ano do curso nessa faculdade não se refletem nos pedidos de trancamentos de matrícula motivados por sofrimento psíquico. O número de alunos que trancou nesses períodos por esse motivo foi baixo, dois em cada período, número que se revela pequeno diante da alta prevalência identificada de transtornos psiquiátricos. Pode-se inferir ainda que, embora certamente acarrete prejuízos acadêmicos e pessoais, essa prevalência não impede que a maioria dos estudantes continue sua jornada de estudos.

O trancamento da matrícula é o limite para o aluno que está com dúvida na escolha do curso. Para muitos, essa dúvida é conciliável com a continuidade dos estudos, que às vezes é desejável para apontar o caminho ao jovem estudante ou às vezes é imposta pela família. Mas, para alguns, é insustentável continuar as atividades acadêmicas devido ao intenso sofrimento que isto lhes traz:

Acho que não quero medicina! Esse desejo é dos meus pais, ficar aqui me deixa infeliz. (aluno do ciclo básico com várias reprovações, trancamentos e também esquecimento de fazer a matrícula. Estava em tratamento psicológico. Deixou o curso posteriormente)

Tive um pequeno surto, estou me sentindo muito mal, estranho, não quero ficar aqui, não tenho certeza se quero medicina... Acho que houve pressão indireta da minha família, do status do curso... Sou muito perfeccionista e penso que posso ter feito a escolha no vestibular para provar para mim mesmo que conseguia. (aluno do Ciclo Básico, em tratamento psiquiátrico. Família do interior. Não tinha reprovações. Deixou o curso posteriormente)

Não consigo estudar direito, fico desinteressado. Não sei se quero a medicina... (aluno do Ciclo Ambulatorial que solicita trancamento total porque será reprovado em todas as disciplinas)

Um tema pontual, que aparece muitas vezes na literatura e poucas no serviço, é o uso considerado abusivo de álcool e drogas. No cotidiano da Escuta Acadêmica, percebe-se que os alunos se esquivam de falar do assunto, omitindo ou mentindo com relação a ele. É mais frequente professores e colegas interessados no cuidado procurarem o serviço para falar sobre algum aluno. É um desafio para a universidade a criação de formas de abordagem preventiva e terapêutica para o uso de substâncias psicoativas1313. Azevedo RCS. Uso de drogas por universitários. Rev Ens Sup Unicamp. [on line]. 2013 (11)[Capturado em 10 abr. 2014];35-37. Disponível em: http://www.revistaensinosuperior.gr.unicamp.br/artigos/uso-de-drogas-por-universitarios.
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.

De modo geral, os relatos encontrados nesta pesquisa revelam situações graves, com indicação para tratamento psíquico e que geralmente sofrem influência da família. Pode-se compreender, e pesquisas2020. Arruda PCV. As relações entre alunos, professores e pacientes. In: Millan LR, De Marco OLN, Rossi E, Arruda PCV. O universo psicológico do futuro médico: vocação, vicissitudes e perspectivas. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1999. p. 43-73. o demonstram, que a família tem grande influência no bem-estar do estudante diante das dificuldades enfrentadas na faculdade. As crises de tristeza e de sofrimento psíquico podem ser atenuadas com uma boa relação familiar e também entre professor e aluno, favorecendo as condições de bem-estar. Contudo, em fragilidades nas quais o foco principal não desponta como sendo o início da graduação, esse fato parece exacerbar as dificuldades e desvelar motivos e conflitos antes evitados.

As justificativas dos trancamentos remetem à reflexão de que a escolha profissional não é um ato inteiramente consciente, sendo entrelaçada por processos de identificação primária com os pais e vivenciada por muitos como a primeira possibilidade de entrada no mundo adulto1616. Casseb AR. Adolescência e escolha profissional. In: Guimarães KBS (Org.). Saúde mental do médico e do estudante de medicina. Casa do Psicólogo [on line]. 2007 [Capturado em 29 set. 2011]; 25-40. Disponível em: http://books.google.com.br/books?id=-2hNLcNhRyEC&printsec=frontcover#v=onepage&q&f=false.
http://books.google.com.br/books?id=-2hN...
. É um momento de angústia, que pode estar sendo experimentado em meio a conflitos nas relações familiares e pessoais, e que se evidencia muito nos pedidos de trancamento.

O curso médico é entendido na literatura como um agente estressor que pode levar muitos estudantes a desenvolver doenças2121. Guimarães KBS. Disforia ou burnout subdiagnosticados? In: Baldassin S, coordenador. Atendimento psicológico aos estudantes de medicina. Técnica e ética. São Paulo: Edipro; 2012. p.101-6.. A morbidade psicológica é responsável por interrupções na formação e conta com a preocupante realidade de que poucos alunos adoecidos procuram serviços de tratamento psíquico2121. Guimarães KBS. Disforia ou burnout subdiagnosticados? In: Baldassin S, coordenador. Atendimento psicológico aos estudantes de medicina. Técnica e ética. São Paulo: Edipro; 2012. p.101-6.-2222. Dyrbye LN, Thomas MR, Shanafelt TD. Systematic review of depression, anxiety, and other indicators of psychological distress among U.S. and Canadian medical students. Acad. Med. 2006; 81:354-73..

Semestres seguidos de trancamentos estão sempre relacionados a uma gravidade maior de adoecimento, de sofrimento. É imprescindível uma acolhida da instituição, que parece surtir um efeito de cuidado e também de barrar situações de continuidade sintomática de trancamentos sem busca por tratamento e implicação na responsabilização pelos fatos. Nas entrevistas, é possível perceber que, muitas vezes, um ponto de limite precipita a tomada de decisões, seja com o enfrentamento do curso, com a busca por tratamento, com a desistência formal, seja com o diálogo com a família.

CONCLUSÕES

A motivação mais apresentada pelos alunos para os trancamentos de matrícula foi sofrimento psíquico, com relevante enfoque para dúvida e insatisfação com a escolha do curso. Identificou-se que os trancamentos de matrícula despontam como sintomas, respostas subjetivas, revelando o sofrimento psíquico entre os estudantes de Medicina. Nesses pedidos, há fatores e contextos associados às dificuldades emocionais que são entendidos como expressão de um mal-estar do estudante, que lhe causa sofrimento: adoecimento psíquico, reprovações, dúvida na escolha do curso, desentendimentos familiares e uso considerado abusivo de drogas.

Os dados indicam necessidade de maior atenção institucional prioritariamente a alunos do ciclo básico e alunos que repetem trancamentos com justificativa relacionada a sofrimento psíquico, geralmente indicando falta de tratamento e de apoio familiar. Um investimento da instituição nos serviços de cuidado e atenção com seu aluno pode favorecer a orientação e o alerta para questões de sofrimento e de interrupção do curso. Também o conhecimento mais precoce de dificuldades pessoais aumenta as possibilidades de amenizá-las e de sensibilizar para a existência delas.

Algumas demandas são relacionadas a questões anteriores ao ingresso no curso. Contudo, a pressão do excesso de conteúdo a estudar, as novas relações estabelecidas na faculdade, o lugar socialmente ocupado, a especificidade de lidar com a doença, a morte e o paciente são fatores que também propiciam o agravamento de situações de sofrimento. Assim, o sofrimento é multifatorial e carrega consigo a delicadeza da subjetividade, singular para cada estudante.

É importante salientar que a análise feita neste estudo apresenta como limitação o fato de os registros terem sido catalogados com base na leitura da pesquisadora sobre as falas dos alunos, o que carrega um viés de interpretação. Novas pesquisas podem indicar relações interessantes entre os motivos dos trancamentos de matrículas nos outros cursos de graduação da UFMG.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    05 Fev 2015
  • Aceito
    19 Abr 2015
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