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ENSINO DE HISTÓRIA DA MEDICINA NO CURSO MÉDICO: UMA PROPOSTA PROGRAMÁTICA

Resumo:

Propõe-se um programa de curso sobre história da Medicina para alunos de graduação de escolas médicas, centrado no estudo da evolução epistemológica da Medicina do final do século XVIII aos nossos dias.

Summary:

A program for a course on History of Medicine for undergraduates is proposed, wich is oriented towards a study of the epistemological evolution of Medicine from the end of the 18th century to the present days.

Introdução

Na década de 60, o debate acerca da inclusão da história da Medicina nos currículos médicos de graduação ultrapassou a mera declaração de intenções; criaram-se efetivamente cursos de história da Medicina em algumas escolas médicas brasileiras11. SANTOS FILHO, L. História geral da medicina brasileira. São Paulo, HUCITECIEDUSP, 1977, p.54.. Aquilo que parece natural - pois nas melhores universidades brasileiras ensina-se história das ciências para alunos de física, química, biologia, matemática22. UNIVERSIDADEDE SÃO PAULO. Catálogo dos cursos de graduação: área de humanidades. São Paulo, 1989, p.144. - nunca escapou à controvérsia e, encerrada a curta experiência prática de ensino de história da Medicina, não dispomos sequer de um balanço crítico.

Entre os defensores da introdução de história da Medicina, bem como das ciências humanas em geral, nos cursos médicos, está longe de haver consenso. Talvez predomine a ideia geral de que esta disciplina pudesse ''ampliar os horizontes culturais" dos alunos, proporcionando-lhes "formação humanística" - argumentos, aliá, muito lembrados em defesa do ensino de humanidades33. CHAUÍ M. Quem são os amigos da filosofia? São Paulo, Ciências Humanas, 1981. p.127-44 (Discurso, 12).. Não me parecem ser estes, no entanto, os motivos pelos quais seu ensino - em caráter optativo e experimental - devesse ser introduzido em algumas universidades; creio que a história da Medicina pode, inclusive, aprimorar a compreensão que os alunos têm sobre a própria Medicina, como conjunto de teorias e como prática.

Esta falta de consenso decorre da própria heterogeneidade do campo de estudos designado como história da Medicina. E, para ilustrar melhor esta diversidade de concepções, proponho adiante um programa de ensino de história da Medicina baseado nos seguintes pressupostos: a) A história da Medicina estrutura-se pela compreensão do desenvolvimento epistemológico da própria Medicina44. CANGUILHEM, G. O papel da epistemologia na historiografia científica contemporânea. In: Ideologia e racionalidade nas ciências da vida. Lisboa, Edições 70, s.d. e do conjunto de condições sociais e políticas que permitiram este desenvolvimento; b) Este desenvolvimento não é linear nem contínuo: inclui alguns "saltos" ou "revoluções científicas" de enorme repercussão55. KUHN, T. S. A estrutura das revoluções científicas. 2. ed. São Paulo, Perspectiva, 1987.; c) A Medicina que hoje praticamos não é decorrência natural e direta da arte hipocrática ou galênica, mas sim de uma importante revolução científica ocorrida no final do século XVIII, muitas vezes referida como ''nascimento da clínica"66. FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1977.; d) Estamos à beira de uma nova revolução científica na Medicina, a partir de transformações tecnológicas77. FERREIRA, M. U. A medicina no século XX: o novo olhar ao corpo doente. In: Anais do I Seminário Nacional sobre História da Ciência e Tecnologia. Rio de Janeiro, 1986. p.415-24. e de reformulações conceituais, por exemplo, no campo da imunologia. Acrescento ainda um quinto pressuposto que fundamenta os demais: o conceito de doença é a chave para a compreensão epistemológica da Medicina, além de dever ser objeto de permanente reflexão para aqueles que a ensinam, estudam e praticam. Por isso, o programa que se segue baseia-se no desenvolvimento do conceito moderno de doença, entre o final do século XVIII e o final do século XIX, discutindo a seguir algumas perspectivas atuais.

Programa

Compõem-se de seis temas, a que correspondem um texto-base e alguns textos de apoio. Sugere-se que sobre cada tema haja uma exposição teórica inicial e um seminário, individual ou em grupo. O texto-base proposto deverá ter sido estudado por toda a classe; os textos de apoio deverão ser utilizados pelo(s) expositor(es) dos seminários em sua preparação.

As indicações bibliográficas baseiam-se na disponibilidade das obras em bibliotecas universitárias e em sua capacidade de abranger um tema com razoável concisão. Dos textos-base, somente dois são em língua estrangeira (espanhol e inglês).

É previsto o desenvolvimento do curso em 12 a 15 períodos (por exemplo, um semestre letivo com 1 período semanal), atribuindo-se assim tempo adequado para que os seminários possam ser plenamente aproveitados.

Primeiro tema: O desafio da Medicina

As novas exigências colocadas à Medicina pela Revolução Francesa e Revolução Industrial: o controle científico das doenças no indivíduo e na sociedade; a constituição de uma terapêutica racional fundada na compreensão da natureza das doenças e do processo de adoecimento.

O nascimento da Medicina Social na Alemanha, França e Inglaterra.

Texto-base:

FOUCAULT. M. “A política de saúde no século XVIII”. Em Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1984, p.193-207.

Textos de apoio:

FOUCAULT. M. "O nascimento da medicina social". Em: Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1984, p.79-98.

ARRUDA, J. J. A. Revolução industrial e capitalismo. São Paulo, Brasiliense, 1984.

Segundo tema: o fim da Medicina dos sistemas

A Medicina no século XVIII: os sistemas nosológicos e as espécies mórbidas. A anatomia patológica: uma nova especialização do fenômeno patológico. O olhar; a doença e o visível (a lesão anatômica). A Medicina e a morte: as necrópsias.

A clínica: o médico substitui a pergunta inicial "o que você tem?" por "onde está doendo?".

Texto base

FOUCAULT, M. O nascimento da clínica, cap. VIII. Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1977, p.141-68.

Textos de apoio:

GUEDEZ, A. Foucault. São Paulo, Melhoramentos-EDUSP, 1977.

CANGUILHEM, G. "Introdução ao problema". Em: O normal e o patológico. 2.ed., Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1982. p.15-26.

Terceiro tema: Claude Bernarde a formação da Medicina experimental

Origens do conceito moderno de doença: a fisiologia patológica de Claude Bernard. Identidade e continuidade entre o normal e o patológico: a doença como simples variação quantitativa (e não qualitativa) do normal.

A terapêutica científica como produto da Medicina experimental.

Texto-base:

CANGUILHEM, G. "Lo normal y lo patológico". Em: El conocimiento de la vida. Barcelona, Anagrama, 197 6. p.183 -200.

Textos de apoio:

CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. 2.ed., Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1982 (Obra completa).

CANGUILHEM, G. "Regulação pelo exterior e regulação pelo interior (Auguste Comte e Claude Bernard)". Em: Ideologia e racionalidade nas ciências da vida. Lisboa, Edições 70, s.d., p.83-8.

Quarto tema: Virchow e a patologia celular

O desenvolvimento da anatomia patológica na obra de Virchow: a sede da doença não é o órgão nem o tecido, mas a célula. Anatomia e fisiologia patológicas da célula.

Os conceitos de doença em Virchow: a ideia de "reorganização do todo".

Texto-base:

VIRCHOW, R. "Cellularpathology (1855)". Em: Disease, life and man. Seleção, tradução e introdução de

L. J. Rather. Nova York , Collier Books, 1962, p.86-115.

Textos de apoio:

Na obra citada: "Standpoints in scientific medicine (1847)", p.39-53, e “Scientific method and therapeutic standpoints (1849)”, p.54-81.

PAGEL, W. The speculative basis of modem pathology. Bull Hist Med 18 (1), 1-43, 1945.

Quinto tema: Pasteur, a bacteriologia e seu impacto

O problema da etiologia das doenças. Experimentos iniciais: as vacinas. Pasteur e os microorganismos.

Claude Bernard: críticas à bacteriologia. Virchow e o problema da "causa única das doenças".

Texto-base:

CANGUILHEM, G. "O efeito da bacteriologia no fim das teorias médicas do século XIX". Em: Ideologia e racionalidade nas ciências da vida. Lisboa, Edições 70, s.d., p.51-70.

Textos de apoio:

VIRCHOW, R. "Recent progress in science and its influence on medicine and surgery (1898)". Em: Disease, lífe and man. Nova York, Collier Books, 1962, p.229-58.

Sexto tema: A Medicina contemporânea e os novos conceitos de doença

Origens do conceito contemporâneo de doença: anatomia e fisiologia patológicas e a teoria das doenças infecciosas; novos problemas: a genética e os erros de informação; a imunologia e as doenças autoimunes. A tecnologia e os novos olhares ao corpo doente. Problemas éticos na prática e pesquisa médicas suscitados pelo desenvolvimento da med1c1na.

Texto-base

VAZ, N. M. Ordem e desordem: uma abordagem imunológica. Ci e Cult, 40(5):452-77, 1988.

Texto de apoio:

CANGUILHEM, G. "La monstruosidad y lo monstruoso". Em: El conocimientode la vida. Barcelona, Anagrama, 1976, p.201-16.

Observações finais:

Ao docente habituado ao ensino das disciplinas curriculares, este programa provavelmente parecerá ''pesado", "filosófico" em excesso. Além disto, não inclui biografias nem informações sobre alguns grandes vultos da Medicina. Creio ter demonstrado, no entanto, nao ser esta a intenção deste programa. Concentro-me por isso somente nas contribuições essenciais de Claude Bernard, Virchow e Pasteur, procurando evidenciar a cada passo as consequências epistemológicas das novas teorias e descobertas.

Referências Bibliográficas

  • 1
    SANTOS FILHO, L. História geral da medicina brasileira São Paulo, HUCITECIEDUSP, 1977, p.54.
  • 2
    UNIVERSIDADEDE SÃO PAULO. Catálogo dos cursos de graduação: área de humanidades. São Paulo, 1989, p.144.
  • 3
    CHAUÍ M. Quem são os amigos da filosofia? São Paulo, Ciências Humanas, 1981. p.127-44 (Discurso, 12).
  • 4
    CANGUILHEM, G. O papel da epistemologia na historiografia científica contemporânea. In: Ideologia e racionalidade nas ciências da vida Lisboa, Edições 70, s.d.
  • 5
    KUHN, T. S. A estrutura das revoluções científicas 2. ed. São Paulo, Perspectiva, 1987.
  • 6
    FOUCAULT, M. O nascimento da clínica Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1977.
  • 7
    FERREIRA, M. U. A medicina no século XX: o novo olhar ao corpo doente. In: Anais do I Seminário Nacional sobre História da Ciência e Tecnologia Rio de Janeiro, 1986. p.415-24.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Dec 1990
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