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O direito à saúde: um problema de administração e de política

1 - INTRODUÇAO

O objetivo do presente trabalho é procurar esclarecer o que se entende por “direito à saúde”; avaliar até que ponto está sendo usufruído esse direito, e discutir os problemas de ordem administrativa e política que, na prática, decorrem do seu reconhecimento.

A discussão desse tema exige, para sua adequada compreensão, o esclarecimento de certas definições e o estabelecimento prévio de certas premissas. Dentre esses pontos a serem preliminarmente esclarecidos ou definidos destacamos: a distinção entre “direito à saúde” e “direito à assistência médica”; a sinonímia aparente entre “serviços médicos” e “serviços de saúde” e, finalmente, qual a contribuição dos referidos serviços para a manutenção ou elevação dos níveis de saúde de uma população. A expressão “direito à saúde” tem um nítido sentido de presumir que as pessoas desfrutem, daquele estado definido como “de saúde” independentemente, de uma parte, da definição deste estado e, de outra parte, de quais sejam os fatores determinantes do mesmo. Nesta acepção, uma vez aceita por uma sociedade uma dada definição de “saúde”, e estabelecidos cientificamente os fatores determinantes deste estado, o reconhecimento do “direito” à saúde implicaria por parte dos governos, na responsabilidade de agir sobre todos aqueles fatores capazes de influenciar o nível de saúde dos seus cidadãos.

Já a expressão “direito à assistência médica” (ou a serviços de saúde como discutiremos mais adiante) tem um sentido muito mais restrito. Ela traduz claramente o direito dos indivíduos a receber sem obstáculos, a assistência médica de que necessitam para manter ou recuperar a sua saúde. Todavia, na literatura médica corrente, e também nos textos de cientistas políticos e sociais, encontram-se essas expressões usadas como equivalentes. O estabelecimento tácito desta falsa correspondência deriva da falácia de considerar-se a assistência médica como o principal fator determinante do nível de saúde, assunto que discutiremos logo a seguir. Entretanto esta aparente correspondência está tão arraigada nos textos correntes que, paradoxalmente, não poderemos nos furtar de utilizá-la ao longo deste estudo desde que, na maioria das vezes, quando alguém afirma o “direito à saúde” está de fato querendo referir-se ao direito aos serviços que “produzem” a saúde e, na realidade, boa parte dos esforços organizados para a elevação do nível de saúde estão, certa ou t:rradamente, orientados para a provisão de serviços (médicos ou de outra natureza), supostamente responsáveis pela saúde.

A questão de usar-se “assistência médica” como expressão indicativa de toda a gama de serviços de saúde, englobando inclusive aqueles prestados por outros profissionais de nível superior, decorre de fatores de ordem sociológica. Por detrás desta suposta elipse encontram-se o predomínio do prestígio de uma profissão sobre outras, (chamadas para-médicas), e a estruturação de um sistema assistencial baseado, nos serviços especializados cm detrimento da atenção primária. Sempre que possível usaremos a expressão “serviços de saúde”, no sentido de health care, exceto quando nos referirmos de modo específico à atenção médica.

O problema do impacto limitado dos serviços de saúde e, particularmente, da assistência médica, sobre o nível de saúde é um tópico que hoje já não se pode mais considerar controverso. Sem desmerecer da contribuição da medicina cientifica para a solução de inúmeros problemas de saúde, sobretudo a partir da segunda metade do século XIX, há farta evidência de que uma parcela substancial (e talvez até a maior parcela) da elevação do nível de saúde das populações, observada ao longo deste último século, deve-se a modificações ambientais como o saneamento básico, às melhores condições de moradia, à melhor nutrição, em suma, a outros fatores determinantes de saúde que não a assistência médica11. Esta questão é amplamente discutida por Ivan ILLICH A Expropriação da Saúde, Nova Fronteira, 1976, p. 18-26. com excelentes referências bibliográficas.. Aliás, mesmo em nossos dias, e nas nações mais desenvolvidas, continuam a chegar demonstrações de que futuros aumentos na expectativa de vida, ou melhorias nos níveis de saúde já alcançados, estão mais na dependência de mudanças de hábitos pessoais (alimentação, exercício, fumo, bebida, etc.) do que de um aumento no consumo de serviços de saúde22. MORROW, J. H. & EDWARDS, B. - “U.S. Health Manpower policy: wil lhe benefits justify lhe costs?”, Journal of Medical Education, 51:791-805, 1976..

Diante do exposto, a abordagem do “direito à saúde”, sob uma ótica que enfatize o “direito aos serviços de saúde”, é limitada em sua compreensão, e somente se justifica diante de uma situação de fato que precisa ser submetida a crítica e sujeita a medidas de reorientação consentâneas com o conhecimento científico do fenômeno saúde-doença em suas múltiplas dimensões, não apenas a da medicina, mas, igualmente, como problema ecológico, social, comportamental e econômico.

2 - SAÚDE COMO UM DIREITO

2.1 - Uma perspectiva histórica e internacional

O primeiro passo para o reconhecimento a nível internacional de que a saúde é um direito fundamental dos indivíduos foi a autorização dada em 1945 na carta das Nações Unidas33. “CHARTER of the United Nations”, New York, N. Y., United Nations Publications, 1975. Ver também: “CONSTITUTION of the World Health Organization”, WHO Chronicle, 1:29, 1947. em seu artigo 62 para que o seu Conselho Econômico e Social fizesse “recomendações” relativas a tópicos como “educação, saúde e assuntos correlatos”. Como uma conseqüência imediata foi aprovada uma proposta conjunta das delegações do Brasil e da China na Conferência de São Francisco, para que se convocasse com urgência a I Conferência Internacional de Saúde a qual veio a reunir-se no ano seguinte na cidade de Nova Iorque e da qual resulta a criação da Organização Mundial da Saúde (OMS). A constituição da OMS foi aprovada em 22 de julho de 1946 e, no seu preâmbulo, afirmava que “o gozo do mais alto nível possível de saúde é um dos direitos fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de raça, religião, credo político e situação social e econômica”.

Uma simples definição de direitos como “aquilo que é devido a alguém em decorrência da lei, da tradição ou da natureza44. AMERICAN Heritage Dictionary of the English Language. New York, N. Y. Deli Publishing, Co. , 1970., ou como “regalia, privilégio, prerrogativa que alguém possui de exigir de outrem a prática ou abstenção de certos atos, ou o respeito a situações que lhe aproveitam”55. HOLANDA, Aurélio Buarque de - “Novo Dicionário da Língua Portuguesa”, Nova Fronteira, 1975. não transmite toda a extensão do significado real de direitos na sociedade moderna.

No mundo ocidental o conceito de direitos humanos surgiu desde o século XVII. Na obra de Locke66. LOCKE, J. - Two treatises on Government, 1690. In: Encyclopedia Britannica. London. William Benton Publisher, 1964. encontra-se a primeira afirmação explicita do direito do indivíduo à “liberdade de expressão” de “culto” e à “propriedade”. No século XVIII a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América do Norte consagrou os direitos do homem “à vida, à liberdade” e, num laivo de romantismo, “à busca da felicidade”. A idéia de que um dos principais objetivos de qualquer governo legalmente constituído seja proteger os direitos dos cidadãos, sofreu um rude golpe na primeira metade do século XX com o surgimento na Europa e na Ásia de governos ditatoriais, opressivos, que levaram o mundo à hecatombe da Segunda Guerra Mundial.

Como uma reação natural, quando a carta das Nações Unidas foi redigida, durante Conferência de São Francisco, mencionou-se no seu preâmbulo o objetivo específico de “promover e encorajar o respeito aos direitos humanos”. Criou-se uma comissão especial para redigir uma proposta de declaração dos direitos do homem e, em 10 de dezembro de 1948 a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou o texto da “Declaração Universal dos Direitos Humanos” como um paradigma para “as realizações de todos os povos e nações”. Esta declaração representa o conceito mais elevado de direitos e um testemunho das metas e dos valores que nossa sociedade declara defender. 77. “The Universal declararion of human rights”. New York, N. T., United Nations Publications, 1948.

A “Declaração” foi bastante explicita quanto à questão da saúde ao afirmar que “toda pessoa tem o direito a um padrão de vida adequado para a saúde e o bem estar de si mesmo e de sua família, incluindo . . . assistência médica”. Esta colocação da saúde como um direito humano fundamental, objetiva mostrar que este ponto de vista não é uma tomada de posição utópica, ociosa. Muito pelo contrário: é uma posição que se fundamenta em valores amplamente aceitos em nossa sociedade. Parece-nos que o ponto de vista oposto, ou seja, o do que a saúde não é um direito humano fundamental, contrapõe-se às crenças e valores que afirmamos professar. Não se pode contudo negar que costuma ser grande a distância entre declarar que saúde é direito e tornar este direito uma realidade.

Ainda de acordo com a Constituição da Organização Mundial da Saúde “os governos são responsáveis pela saúde do povo, a qual somente pode ser alcançada mediante a adoção de adequadas medidas sociais e sanitárias”. Na verdade a preocupação de governos modernos com a provisão de cuidados satisfatórios com a saúde dos seus cidadãos pode ser historicamente assinalada desde 1883 quando se resolve criar, na Alemanha, o seguro compulsório contra doenças para os trabalhadores daquele país. Três outros marcos historicamente importantes foram o “Código do Trabalho” que socializou a medicina na União Soviética em 1922, a “Lei Nacional de Saúde” (National Health Act), promulgada em 1946,88. O Gesetliche Krankenversicherung. (GKV) foi criado naquela época como um seguro de saúde reivindicado pelos trabalhadores alemães; hoje o GKV dá cobertura a 86% da população da República Federal Alemã. O sistema soviético e bem analisado por FIELD, MARK G. - Soviet Socialized Medicine. New York, Free Press, 1967. A medicina socializada na Inglaterra e apreciada por CURRAN, W. J. - Nationalized health services: The British experience, In: PENCHANSKY, R., ed. - Health services administration, policy cases and the case method”. Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1968. p. 332. que estabeleceu o “Serviço Nacional de Saúde” na Inglaterra e, nos Estados Unidos da América do Norte, as emendas feitas em 1965 à Lei da Previdência Social99. CHAPMAN, C. B. & TALMADGE, J. M. - Historical and political background of federal health care legislation. Law Contemp. Probl., 35:901, 1970. criando o MEDICARE, programa destinado a dar assistência médica gratuita às pessoas acima de 65 anos e o MEDICAID, destinado a assegurar assistência médica paga pelo governo rara as pessoas com renda dos Estados Americanos. Não pode deixar de chamar a atenção o fato de que mesmo na nação mais rica do mundo, os Estados Unidos, uma parcela considerável da população não tivesse acesso a assistência médica adequada e que as barreiras econômicas fossem a principal razão deste estado de coisas. Obviamente, muito mais dramática é a situação nas nações pobres e sub-desenvolvidas. Para o fim deste trabalho essa perspectiva internacional é necessária para melhor se entender a situação do problema do direito à saúde no Brasil.

Uma primeira questão a ser levantada é se a pobreza deveria constituir uma barreira à prestação de serviços de saúde a toda população. A simples resposta, que o próprio bom senso indica, de que “não deve”, não é suficiente. Razões mais profundas e fundamentais podem ser invocadas para apoiar a tese de que a pobreza não pode justificar a falta de atenção médica adequada.

Nos Estados Unidos, Cantor1010. CANTOR, N. L. - “The law and poor peoples access to health care”. Law Contemp. Probl. , 35:901, 1970. Ver também: MICHELMAN, F.- “Foreward: on protecting the poor throug the 14th amendment” apud “The Supreme Court, 1960 Term”, Harvard Law Rev., 7:83, 1969. examinou a questão do ponto de vista legal. Em sua opinião, o fato de que a pobreza cria uma dificuldade à obtenção de serviços de saúde adequados, constitui uma discriminação diante da cláusula de “igual proteção” da Constituição Americana. Outra abordagem legal é aquela de Michelman para quem a noção constitucional de “direito à vida” coloca o governo diante da “obrigação afirmativa de prover os cidadãos com as necessidades mínimas da vida: abrigo, recursos suficientes para adquirir alimentação, educação e assistência à saúde”.

Infelizmente, porém, o reconhecimento da tese de que, o fato do baixo nível econômico dificultar o acesso das pessoas aos serviços de saúde impõe aos governos obrigações afirmativas para remediar a discriminação contra os pobres que na prática ocorre, não produz por si só os serviços adequados, ou o acesso mais fácil aos mesmos, necessários para assegurar iguais cuidados com a saúde a todos os cidadãos.

A outra questão que precisamos responder é, até onde existem, dentro do sistema político e econômico de cada país, medidas e/ou mecanismos concretos que possam ser ativados para modificar a situação vigente. Isto pode transformar-se, de uma questão de fixar prioridades nacionais, em um ponto de conflito (real ou a parente) de direitos individuais: os dos consumidores versus os dos produtores de serviços de saúde.

2.2 - A situação do problema no Brasil

Comecemos por examinar qual a base legal para se discutir a questão do direito à saúde no Brasil. A Lei n° 2.312, de 3 de dezembro de 1954, que estabelece “Normas Gerais sobre Defesa e Proteção da Saúde” declara, em seu Artigo Primeiro que “É dever do Estado, bem como da família, defender e proteger a saúde do indivíduo” e, no Artigo Terceiro determina que “incumbe, ao órgão federal de Saúde,... traçar e executar planos de assistência médico-sanitária, hospitalar e medicamentosa ao homem brasileiro”. O Decreto ne 49.974-A, de 21 de janeiro de 1961, que sob a denominação de “Código Nacional de Saúde” regulamenta a Lei anteriormente citada, é ainda mais explícito ao definir as responsabilidades governamentais no que tange aos cuidados com a saúde da população, em dois parágrafos do seu artigo segundo:

§ l° - “Ao Estado precipuamente cabe a adoção de medidas preventivas, de caráter geral, para defesa e proteção da saúde da coletividade.

§ 2° - “O Estado deve prestar assistência médica gratuita aos que não disponham de meios ou recursos para provê-la”.

A Constituição da República Federativa do Brasil, com a emenda de 17 de outubro de 1969, no título III, ao tratar “da Ordem Política e Social”, em seu artigo165 assegura aos trabalhadores, entre outros, o direito à assistência sanitária hospitalar e médica.

A Lei 6.229 de 17 de julho de 1975, sobre a organização do “Sistema Nacional de Saúde” definido como, “o complexo de serviços do setor público e do setor privado voltado para as ações de interesse da saúde”, estabelece as responsabilidades dos Ministérios, dos Estados e dos Municípios, no que tange às atividades que visem a promoção, proteção e a recuperação da saúde”. A implementação desta Lei deve constituir uma das principais metas do Ministério da Saúde, a fim de que o Governo possa desincumbir-se das tarefas que lhe cabem na defesa da saúde da coletividade.

Há suficiente evidência, tanto na legis lação promulgada, como nos crescentes gastos públicos na área específica de assistência médica 1111. Em 1976 a despesa do INPS com assistência médica alcançou Cr$ 23 bilhões, quando a previsão estimada para aquele exercício era de apenas Cr$ 16,5 bilhões. Vide: “Previdência Social. “Planejamento e Desenvolvimento”, 5, (52):12-7, 1977. que o nosso governo coloca os cuidados com a saúde entre suas preocupações.

Parece haver, entretanto, uma distância entre os propósitos e a eficácia dos instrumentos utilizados para atingi-los. A assistência médica prestada predominantemente através da Previdência Social não só tem ficado longe do objetivo de prover serviços adequados a uma grande parcela da população pobre (estima-se que existem no Brasil cerca de 30 milhões de pessoas não atendidas pela Previdência Social) como tem contribuí do para o aumento dos custos da assistência médica. Ademais, em flagrante contradição com as metas colimadas, faltam ainda as propostas mais recentes do governo mecanismos que assegurem a prestação de serviços de saúde a todos os cidadãos.

Essa situação resulta, em parte, da dependência no sistema de mercado como principal mecanismo para prover a adequada produção e distribuição dos serviços de saúde, e da incapacidade do mercado exercer satisfatoriamente essas funções por motivos que já analisamos em trabalho anterior. 1212. ARAÚJO, J. Duarte de - As peculiaridades do mercado de serviços de saúde - Rev. Adm. Publ. 11 (3):97-109, 1977.

Embora sejam óbvias as imperfeições no mercado de serviços da saúde, levando-nos a duvidar que ele possa funcionar como um mercado livre, e embora muitos consumidores não disponham de renda suficiente para participar do mesmo devido à crescente inflação de custos, existem autores, estrangeiros e também nacionais, que ainda defendem a tese de que o livre mercado é a melhor maneira de melhorar a performance do sistema de serviços de saúde. O sucesso dessa tese depende todavia da problemática criação de um modelo de seguro de saúde qe proporcione ampla cobertura a todas as pessoas. 1313. HAVIGHURST, C. C. - Health maintenance organizations and the market for health services. Law Contemp. Probl. , 35:716, 1970. URIEL MAGALHÃES. Regulamentação no setor Saúde, ainda não publicado. também advoga o seguro de saúde.

Em nosso País, o seguro de saúde ainda é uma instituição incipiente e de futuro incerto. Mais desejável, embora talvez esteja ainda distante, é a universalização da Previdência Social, tema que voltaremos a abordar mais adiante.

A reorganização da indústria de serviços de saúde, em busca de maior eficiência, é uma possibilidade que poderia significar a transferência de seu comando das mãos dos médicos, para a de empresários, acarretando certamente, alterações nas formas tradicionais da relação médico-paciente, e no sistema da remuneração. Essas mudanças certamente iriam ser vistas como infringindo os “direitos” dos atuais produtores dos serviços de saúde, além de não corresponder aos interesses dos consumidores.

Outra abordagem possível seria o estabelecimento de um Serviço Nacional de Saúde, organizado nos padrões da experiência da Inglaterra. Essa hipótese, de cunho socializante, seria considerada como um golpe ainda mais severo nos “direitos” dos produtores, dentro do atual sistema de mercado de assistência à saúde.

Em resumo, parece que estamos lidando com um dilema de interesses e valores conflitantes: é que não é possível garantir plenamente os direitos dos consumidores de serviços de saúde sem, pelo menos, redefinir os direitos dos produtores desses serviços à luz dos valores mais altos de nossa sociedade.

3 - CONSEQÜENICAS ECONÔMICAS DO CONCEITO DE SERVIÇOS DE SAÚDE COMO UM DIREITO

A implementação da idéia (ou do ideal) de que o “acesso à assistência médica é um direito” terá muitas conseqüências e levantará muitas questões entre as quais consideramos as seguintes como mais importantes e merecedoras de discussão: financiamento, abrangência ou amplitude (“comprehensiveness”), acessibilidade e qualidade.

3.1 - Financiamento

Desde que os serviços de saúde não podem ser considerados como bens gratuitos (free goods) ou seja, eles têm um custo de produção, a primeira questão que temos de enfrentar é a adequada compensação financeira aos produtores ou fornecedores desses serviços. Todavia, ao lidar com está questão, teremos de partir da premissa que os serviços de saúde devem estar à disposição dos indivíduos que deles necessitam independen-temente da sua capacidade de pagar pelos mesmos. Vale dizer que devemos encontrar mecanismos apropriados para reconciliar o direito dos produtores ao justo pagamento, com o direito dos consumidores ao acesso aos serviços necessários à manutenção de sua saúde.

O seguro de saúde é freqüentemente apontado como a solução lógica para esse impasse. O Brasil ainda não tem uma experiência válida nesse particular mas, nos Estados Unidos, o sistema de seguro vem sendo aplicado para enfrentar este problema há muitos anos, com sucesso apenas parcial. As principais desvantagens do seguro de saúde voluntário ou privado têm sido:

a) Limitação da cobertura

Várias espécies de limitação podem ser apontadas. Uma é a dos seguros que cobrem separadamente serviços ambulatoriais (de “consultório”) e serviços hospitalares (internamentos), mais comumente estes últimos, encorajando dessa forma o uso indevido dos custosos serviços hospitalares. É comum, quando os pacientes são beneficiários de um seguro que cobre apenas as despesas hospitalares, ser solicitado o internamento para realizar procedimentos diagnósticos ou terapeuticos que poderiam ser feitos no ambulatório com custo mais baixo.

Outra limitação é a da quantidade de serviços cobertos e que pode ser expressa ou sob a forma de co-pagamentos, até atingir limite mínimo de custo (“franquias”), a ser pago pelo segurado, ou sob a forma de “tetos” para os reembolsos. Há também limitações ou restrições referentes aos tipos de serviços cobertos, tais como certas formas de tratamento, ou o cuidado de doenças mentais, ou outras enfermidades crônicas ou de longa duração. Como resultado dessas limitações a pessoa segurada está longe de encontrar-se livre do peso financeiro da doença ou de ficar financeiramente comprometido como resultado de uma enfermidade catastrófica.

b) Seguro incompleto da população

Isto resulta em parte do fato de que, por causa do seu baixo nível educacional, muitas pessoas não percebem a necessidade de proteger a si próprio e à sua família contra o risco dos custos da doença. Todavia, de longe, a causa mais importante da falta de seguro (mesmo nos Estados Unidos) é a falta de recursos para pagar os prêmios das apólices de seguros particulares. As estatísticas demonstraram 1414. UNITED STATES NATIONAL CENTER FOR HEALTH STATISTICS. “Medical care health status and family income”, Washington, D. C. US Department of Health, Education and Welfare, 1964. (Vital and Health Siatistics. Serie 10, n° 9). que a percentagem de indivíduos segurados diminui paralelamente com o nível de renda. Naturalmente, desde que os baixos níveis educacionais estão associados com baixa renda, fica difícil separar os efeitos da baixa educação, dos da falta de recursos financeiros para pagar o seguro de saúde. Nos níveis mais baixos de renda, onde a competição com outras necessidades mais prementes é maior (a exemplo do que ocorre com a população assalariada dos países em desenvolvimento), a dificuldade financeira é sem nenhuma dúvida o fator predominante em determinar o baixíssimo índice de pessoas seguradas.

Mais recentemente, planos de pré­pagamento para prestação de serviços de saúde a grupos de população surgiram como uma alternativa que se propõe a oferecer uma cobertura mais abrangente, mais eficiente e mais econômica do que as formas tradicionais de seguro.1515. O modelo desses planos é o da Kaiser-Permanente na Califórnia. Vide: SOMERS, A. R., ed. - “The Kaiser-Permanente medical core program: a symposium”. New York, N. Y., The Commonwealth Fund, 1971. Entretanto, mesmo estes planos, embora superem algumas das deficiências do seguro de saúde não resolvem o problema das pessoas de baixa renda que não podem comprar nem o seguro comum nem as formas de pré-pagamento.

Desde que o conceito de “medicina de caridade” foi superado, tanto por motivos econômicos (direito dos produtores a pagamento) corno de ordem moral (dignidade dos consumidores),1616. O direito à justa retribuição era tradicionalmente compensado pela transferência dos custos da assistência gratuita a clientela pagante, o que contribuía para inflacionar o mercado. o governo tem, em praticamente todos os países, assumido em grau crescente a responsabilidade de assegurar que os pobres recebam os serviços de saúde indispensáveis. Isto ocorre ou sob a forma de Previdência Social, ou através de hospitais públicos (federais, estaduais e municipais). Um caso particular que tem recebido muita atenção em nosso meio são os hospitais universitários (antigos “Hospitais de Clínicas”) tradicionalmente mantidos com recursos oriundos dos orçamentos das instituições de ensino superior e que hoje vem gradualmente se integrando no sistema de Previdência Social.1717. ENSINO médico e instituições de saúde. In: MEC - Documentos do ensino médico. Brasília, 1977. p. 63-93. SOUZA, Carlos A. Marcílio de - Aspectos atuais do ensino médico no Brasil. In: Documentos do ensino médico. Brasília, 1977. p. 123-50.

Como resultado dessa situação observamos hoje a existência de um duplo sistema, ou um duplo padrão de serviços médicos, com evidente desvantagem para os menos privilegiados que, ou não recebem a atenção médica necessária, ou recebem serviços inadequados a despeito dos crescentes gastos governamentais com saúde.

Diante das limitações que a experiência internacional de muitos anos aponta na eficiência do sistema de seguro particular de saúde, e mais ainda o considerável avanço já alcançado pela Previdência Social cm nosso país, a sua universalização representa a solução mais racional para o problema do financiamento de serviços de saúde que atendam à totalidade da população. Há aqui que considerar a carga financeira adicional a recair sobre o INAMPS e que buscar os mecanismos fiscais ou de outra natureza necessários à sua adequada compensação.

3.2 - Amplitude dos serviços

As implicações do “direito a serviços médicos”, de referência a que tipos de serviços deverão ser considerados como um “direito”, estão intimamente relacionadas com a questão financeira que acabamos de discutir, todavia, elas merecem alguns comentários específicos.

Cuidados adequados para a saúde pressupõem uma ampla faixa de serviços objetivando a promoção da saúde, a prevenção das doenças, o diagnóstico precoce, o pronto tratamento ambulatorial ou hospitalar, o atendimento de emergência e também a reabilitação. Para fazer face às necessidades lotais de um indivíduo no que tange à sua saúde é portanto essencial que a atenção médica inclua um elenco bastante diversificado de pessoal, de equipa mento, de instalações e de serviços.

Quando se assegura o direito apenas a um tipo ou a alguns tipos de serviços, negando ou dificultando o acesso a outros, igualmente essenciais, não se está de fato assegurando o direito pleno aos “serviços de saúde” mas apenas a alguns benefícios médicos isolados, pois os serviços de saúde não devem ser fragmentados. Esta fragmentação existe no presente sistema, com resultados negativos para os pacientes (consumidores) e também, como conseqüência, com um lamentável desperdício de recursos. Como superar esta tendência à fragmentção é um desafio a que não podemos nos furtar.

Para enfrentar esse problema são necessários dois tipos de medidas. Primeiramente, visando o financiamento dos serviços, para evitar as formas incompletas e fragmentadas de cobertura que são comuns em nossos dias. Em segundo lugar, medidas objetivando a reorganização do sistema de assistência à saúde de modo a promover uma prestação de serviços mais coordenada e mais racional. Desde que se deseja respeitar (ou preservar) os direitos (ou privilégios) dos produtores desses serviços, essas medidas poderiam tomar a forma indireta de incentivos financeiros a novos tipos de organização de sistemas de prestação de serviços de saúde. Convém todavia assinalar que, mesmo essas medidas indiretas de intervenção, irão certamente despertar a oposição das associações profissionais. Talvez com o tempo esta oposição venha a diminuir, porque as mudanças propostas eventualmente serão aceitas como “um mal menor” do que a estatização dos serviços de saúde, tão temida pelos órgãos de classe.

3.3 - Fácil acesso aos serviços

Nesta discussão o problema do acesso aos serviços será enfocado num sentido quase geográfico, significando a existência dos serviços necessários no momento e no local em que as pessoas deles careçam. Desde que os serviços de saúde organizados com objetivo de lucro tendem a concentrar-se nos locais onde o nível econômico da população é mais alto, a dificuldade que se deve enfrentar é a de como prover o acesso aos serviços da saúde às populações das zonas rurais, da periferia dos centros urbanos, ou das favelas. Mas precisamos também considerar os problemas relacionados com a fragmentação dos serviços que leva, mesmo aqueles com capacidade financeira de beneficiar-se do atual sistema, a serem forçados a deslocar-se de um local para outro por falta de abrangência no tipo de assistência prestada. Essas duas questões podem ser sintetizadas na necessidade de assegurar uma porta de entrada facilmente acessível ao sistema uma faixa satisfatória de serviços, e continuidade da atenção à saúde sem a inconveniência de deslocamentos geográficos desnecessários.

O problema de como tornar os serviços de saúde adequados, disponíveis nas áreas atualmente desassistidas, é dos mais difíceis de equacionar. É claro que a universalização da Previdência Social ou a criação de um Serviço Nacional de Saúde, no estilo da Inglaterra, removeria as barreiras de ordem econômica. Entretanto, permaneceria o problema de como realizar os consideráveis investimentos necessários para construir, instalar e equipar os serviços de saúde que faltam nas áreas atualmente mal assistidas e, sobretudo, como prover os recursos humanos indispensáveis ao seu bom funcionamento. Em outras palavras: a universalização do seguro de saúde ou da Previdência Social não fará os serviços de saúde aparecer como num passe de mágica nos locais onde eles são mais necessários. Aqui, mais uma vez, o Governo deve ser visto como a principal fonte não só dos incentivos financeiros como também da orientação técnica necessários à criação dos novos serviços. É evidente, a esta altura, que não se deverá depender apenas de recursos federais e que será necessária a participação dos outros níveis do governo e até mesmo da própria comunidade.

As áreas rurais, esparsamente habitadas, constituem um problema especial. Ali encontra-se uma concentração tão baixa de pessoas que se torna antieconómica a prestação de determinados serviços. Além do mais, há que considerar a delicada questão dos recursos humanos de qualificação mais alta. Como atrair profissionais de saúde de nível universitário para áreas carentes das amenidades dos grandes centros urbanos? Como assegurar nesses locais as condições necessárias à realização profissional e à satisfação individual? Aqui está uma faceta do problema na qual as causas subjacentes não são exclusivamente econômicas e onde as medidas financeiras não resolverão o impasse.

Alguns países procuraram resolver o problema criando um período de serviço em zona rural obrigatório para todos os médicos recém-formados. Em países onde a educação médica seja inteiramente gratuita e financiada pelo Governo, parece uma retribuição natural pela educação recebida, que os médicos dediquem um período limitado de sua carreira à assistência em zonas rurais. Todavia, em países onde a educação médica seja grande parte (ou na maior parte) custeada com recursos particulares não haveria fundamento para a interferência do Governo na liberdade do exercício profissional. Ademais há que considerar que seria um desperdício de recursos humanos enviar profissionais de nível universitário para localidades onde não existem condições mínimas para o exercício de suas funções. Não que esses profissionais só possam exercer essas funções em grandes centros; não é este o caso. O argumento a considerar é que, abaixo de certo nível de densidade demográfica e na ausência da infra-estrutura mínima adequada, os serviços de um médico, de um dentista ou de uma enfermeira, seriam fatalmente subutilizados.

Outra abordagem possível, e provavelmente mais promissora, é o uso nessas áreas de pessoal para-médico e com a participação de elementos da própria comunidade como a fonte principal de assistência primária à saúde, desde que esses serviços de primeira linha tivessem o indispensável suporte de uma equipe médica, numa distância razoável, com base num centro de saúde ou num hospital distrital (ou comunitário). Esta solução, para a qual no Brasil, parece ter-se inclinado o Ministério da Saúde 1818. Encontra-se em fase de implantação pelo Ministério da Saúde o “Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento-PIASS”. Vide “Documento Básico do Tema III da VI Conferência Nacional da Saúde”, Brasília, agosto de 1977., pode ter implicações sobre a qualidade dos serviços, assunto que discutiremos a seguir.

3.4 - Qualidade dos Serviços

O ponto de vista de que todas as pessoas deverão ter acesso à melhor assistência médica possível tem com freqüência, significado para muitos a ausência de qualquer tipo de assistência. Se nos apegarmos à noção de que somente são aceitáveis os padrões mais altos de assistência médica, decorrentes dos modernos avanços científicos e tecnológicos, então, uma conseqüência natural é que esse tipo de assistência não pode estar disponível para todas as pessoas em qualquer lugar, a todo momento, mesmo que fossem superadas as óbvias dificuldades financeiras.

Isto não significa que a qualidade dos serviços seja considerada de menor importância, mas que devem haver outros critérios para julgar a qualidade da assistência, diferentes da ênfase em tecnologia sofisticada e em pessoal superespecializado. Naturalmente, reconhecemos que se devem fazer esforços no sentido de tornar acessíveis ao maior número possível de pessoas os avanços da ciência médica moderna. Todavia, quando isto for materialmente impossível, o dilema de escolher entre “a melhor assistência”, ou “nenhuma assistência”, deve ser logicamente resolvido no sentido de prover o tipo de serviço que é possível e viável, ao invés de insistir no “melhor” e deixar a população desassistida.

Um outro ponto que precisa ser mencionado é que entre os critérios para julgar a qualidade de assistência à saúde está o da adequação dos serviços, de modo a torná-los aceitáveis pelos consumidores. Esta aceitação é freqüentemente determinada por fatores sócio-culturais, mais do que pela sofisticação tecnológica que escapa à capacidade de julgamento da média das pessoas, especialmente dos grupos sociais menos favorecidos.

A atenção para as necessidades emocionais dos indivíduos, o cuidado de evitar serviços “despersonalizados”, o respeito pelas diferenças culturais e até mesmo pelas barreiras de linguagem, deverão ser consideradas como medidas importantes da qualidade da assistência à saúde. Esses novos critérios para julgar a qualidade dos serviços serão aceitos com maior probabilidade se, nas novas formas de organização da assistência à saúde que estão em estudo em nosso País, forem criadas condições para a participação efetiva dos consumidores no planejamento e na gestão dos serviços de saúde. O “Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento-PIASS” do Ministério da Saúde, já mencionado, prevê cm suas diretrizes básicas o “estabelecimento de mecanismos formais que viabilizem um processo continuado de crescente coparticipação comunitária responsável na realização dos serviços de saúde”. Desta maneira se asseguraria uma maior valorização pela comunidade das atividades de proteção à saúde, muitas das quais destinam-se, como hoje se reconhece, a atender necessidades que não são espontaneamente percebidas pelas pessoas.

4 - A PREVIDÊNCIA SOCIAL E O DIREITO A SAÚDE

A possibilidade da universalização da Previdência Social em nosso país num futuro próximo (ou não muito remoto) levanta uma série de questões, algumas das quais já abordamos. Há contudo certos pontos que merecem uma indagação mais cuidadosa, os quais discutiremos a seguir.

4 .1 “Que tipo de serviços deverão ser cobertos pela Previdência Social?”

De acordo com o ponto de vista de que em nossa sociedade a assistência à saúde está entre os serviços básicos considerados essenciais para se alcançar uma vida satisfatória, nenhuma barreira económica deverá impedir o acesso aos serviços de saúde necessários à população. Mais ainda, esses serviços deverão ser abrangentes e não fragmentados. Isto equivale a dizer que o sistema de Previdência Social deverá buscar não apenas a remoção das barreiras financeiras como também deverá assegurar aos consumidores uma ampla faixa de assistência incluindo:

  • Serviços Preventivos, visando a promoção e a manutenção da saúde em todas as idades.

  • Serviços Curativos, abrangendo a assistência primária em ambulatório, o atendimento de emergência, os serviços especializados, a hospitalização para casos agudos e crônicos, acompanhamento domiciliar e a reabilitação.

A prestação de serviços preventivos, para os quais não há usualmente uma grande procura espontânea, objetiva incentivar a “manutenção da saúde” ao invés da “recuperação da saúde” que constitui a grande massa da demanda em nossos dias. Esta é uma medida que poderá potencialmente baixar o custo total da assistência à saúde, reduzindo a necessidade do uso dos serviços muito mais custosos para a recuperação da saúde.

A oferta de uma ampla faixa de serviços curativos é inegavelmente uma medida de custo muito elevado, porém a limitação no tipo dos serviços abrangidos pela Previdência Social será equivalente à manutenção da barreira financeira para uma parcela importante da população. Portanto, desde que estamos lidando com um problema que envolve a alocação de recursos escassos, não podemos simplesmente colocar de lado a questão dos custos.

É nosso ponto de vista que, embora não deva haver restrições ao uso necessário e adequado de serviços de saúde, deverão ser tomadas medidas, e adotados controles rigorosos para evitar o abuso desses serviços. Uma dessas medidas será a aplicação mais rigorosa dos métodos de supervisão do tipo auditoria médica, particularmente para a assistência hospitalar.

Uma abordagem que vem encontrando aceitação internacional, sobretudo nos Estados Unidos, é o encorajamento pelo Governo, através de incentivos financeiros, do desenvolvimento de organização de assistência médica orientadas no sentido da prestação de serviços integrados e abrangentes; exemplo desse tipo de organização entre nós, seria as áreas docente-assistenciais vinculadas a Faculdades de Medicina e os grupos de pré-pagamento, ambos mantidos em convênio com a Previdência Social.

Embora seja discutível se esse novo tipo de organização será realmente, per se, capaz de reduzir os custos da assistência à saúde, acredita-se que ele encorajará o uso mais racional dos serviços e conduzirá eventualmente à redução dos custos gerais.

4.2 - “Como serão os serviços financiados?”

É evidente que os recursos de que dispõe atualmente a Previdência Social para a assistência médica, apenas suficiente para fazer face à prestação de serviços aos seus segurados, não são suficientes para cobrir os gastos adicionais que resultariam da universalização da Previdência Social. Essa extensão dos serviços de atenção à saúde do atual INAMPS, a toda a população, representa um acréscimo estimado de cerca de 20 a 30 milhões de beneficiários, ou seja, um incremento aproximadamente de 30% sobre o atual contingente de usuários. Uma sobrecarga dessa monta, necessariamente, exigirá uma contrapartida equivalente de recursos. Como dificilmente poderia essa verba adicional ser retirada das contribuições previdenciárias, novas fontes teriam que ser buscadas. Idealmente, os recursos deveriam ser retirados de fontes já existentes de receita tributária da união, mediante mecanismos de redistribuição ou realocação, dispensando a criação de novos tributos para uma população já excessivamentente onerada de encargos fiscais, particularmente em sua classe média. É evidente que, em última instância, mesmo uma nova carga tributária, seria preferível à manutenção do estado atual em que uma parcela considerável da população está impedida de fruir o seu “direito à saúde” devido a obstáculos de ordem financeira.

4.3 - “Que parcela do PNB deve ser gasta em serviços de saúde?”

A discussão anterior, sobre como custear a universalização da Previdência Social, com o inevitável aumento de gastos que esta medida acarretaria, leva inevitavelmente à pergunta “qual o limite razoável para os gastos com serviços de saúde?”. Para fins de comparabilidade esse limite poderá, se possível, ser definido em termos de um percentual do Produto Nacional Bruto (PNB).

Os estudos internacionais sobre a evolução das despesas com serviços de saúde mostram duas tendências muito claras:

  1. no sentido de um aumento gradual na percentagem do PN8 gasto com serviços de saúde;

  2. no sentido do aumento da proporção representada pelos gastos públicos no total das despesas com saúde.

Para citar somente a experiência dos Estados Unidos, constata-se que, naquele país, os gastos com saúde elevaram-se de 4,6% do PNB em 1950 para 6,7% em 1969; já a percentagem dos gastos governamentais cresceu de 25,3% para 37,5% do total no mesmo período de tempo.1919. CHILDS, A. - “Introduction to Medical care Administration”, University of California Berkeley, 1970. Seis anos depois, em 1975, os gastos com saúde já alcançavam 8,3% do PNB norte-americano e se prevê, que essa cifra possa tornar-se ainda mais alta caso seja aprovada alguma legislação criando um seguro nacional de saúde.2020. MORROW, H. & EDWARDS, B. op. cit. No Brasil infelizmente faltam dados que nos permitam analisar uma série histórica de gastos com serviços de saúde em relação ao PNB. Em 19772121. MACEDO, Carlyle G. Recursos Humanos para a Saúde. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE HIGIENE, 19. e CONGRESSO PAULISTA DE SAÚDE PÚBLICA, 1. São Paulo, 10-14 de outubro de 1977. estimava-se que estivéssemos gastando pouco mais de 5%, sendo que 2/3 corresponderiam a despesas governamentais. A universalização da Previdência Social poderá elevar os gastos totais com serviços de saúde acima de 6% do PNB, e a participação das despesas do governo aproximadamente a 70% dos gastos totais.

A comparação com os percentuais gastos em outros países está aberta a crítica. O estudo mais abrangente feito sobre esse tema sob o patrocínio da Organização Mundial da Saúde, por Abel-Smith, não permite nenhuma conclusão definitiva sobre as relações existentes entre grau de desenvolvimento, tipo de governo e gastos com saúde.2222. ABEL - SMITH, B. - “Étude internacional des déspenses de Santé”. Cahiers de Santé. Publique, 32, Organ, Mond. Santé, Genéve, 1963.

Pareceria mais importante comparar os gastos per capita com serviços de saúde, pois uma mesma percentagem do PNB pode ser muito, ou pouco, conforme se trata de um país com um produto bruto alto ou baixo. Mais importante ainda parece-nos considerar a destinação dada a esses gastos: gastos excessivos com serviços assistenciais sofisticados e caros podem ter um impacto muito menor sobre a saúde da população do que gastos mais modestos em serviços mais simples porém, mais acessíveis e melhor distribuídos à maioria da população.

A resposta mais sensata à pergunta inicial parece ser a de que não há uma taxa “mágica” do PNB para ser gasta com serviços de saúde e que a adequação dos gastos deve ser medida não em termos de percentuais de PNB, e talvez nem mesmo em gastos per capita com serviços de saúde, A verdadeira medida seria a quantia julgada necessária a assegurar a toda a população o efetivo exercício do proclamado direito a serviços eficazes de saúde, sem carências, mas também sem desperdícios.

Até que o Governo esteja disposto a enfrentar os custos necessários, e eles talvez nem sejam tão altos se houver um uso mais racional dos recursos alocados, o “direito” à saúde continuará a ser não uma realidade e sim apenas mais um ideal a ser um dia atingido.

5 - COMENTÁRIOS FINAIS

Transparece da análise que acabamos de fazer, que as preocupações quanto ao direito à saúde, têm se concentrado primordialmente na questão do acesso aos serviços médicos. Ao se defender o direito dos indivíduos à saúde, quase sempre o que se destaca das recomendações é a ênfase no direito à assistência médica. Todavia, pelas razões que já apresentamos na introdução deste trabalho, a assistência médica não é a principal determinante do nível de saúde e portanto, se estamos de fato comprometidos em assegurar o direito dos nossos cidadãos, sem distinção de classes sociais, a um nível alto de saúde, temos de nos preocupar com os fatores sociais e ambientais que influem decisivamente sobre sua saúde. Destacam-se entre esses fatores particularmente a alimentação, a moradia, o nível de educação, e o saneamento do meio. São universalmente reconhecidos os estreitos vínculos que existem entre os padrões de alimentação e de moradia, e a renda individual e/ou familiar, fato aliás comprovado na “Pesquisa sobre Consumo Alimentar” promovida pelo Instituto Brasileiro de Economia em 1973. 2323. FGV - Pesquisa sobre Consumo Alimentar. Rio de Janeiro, 1975. 3 v. Está bem fundamentada a tese de que não é possível se prover melhoria no nível da alimentação, (e conseqüentemente no nível de saúde), sem elevar a renda per capita da população. As implicações deste fato para a política sócio-econômica do governo são complexas e foram bem analisadas no relatório da referida “Pesquisa sobre Consumo Alimentar” (vol. I, Págs. 11 a 1 3).

As medidas voltadas para a habitação e para o saneamento do meio ambiente, particularmente o abastecimento da água e o esgotamento sanitário, cujas repercussões sobre a mortalidade infantil são universalmente reconhecidas, estão inteiramente na dependência da ação do Governo, em um programa que requer vultosos investimentos. Da mesma forma, a elevação do nível de escolaridade das camadas economicamente menos favorecidas da população, somente pode ser obtida mediante enérgica ação governamental.

Do acima exposto se conclui que, para se assegurar o “direito à saúde” da nossa população é pelo menos tão importante quanto prestar-lhe boa assistência médica, promover a melhoria de suas condições sócio-econômicas, particularmente no que diz respeito à educação, à moradia e sobretudo à alimentação, o que é difícil de se alcançar sem a elevação da renda per capita, e sobretudo sem uma melhor distribuição da renda nacional.

Podemos pois concluir que a questão do “direito à saúde” quando corretamente enfocada, transforma-se, de um problema puramente administrativo, ligado às formas de financiamento e à organização da assistência médica, em um problema eminentemente político, ligado ao desenvolvimento e à justiça social.

Notas e Referências Bibliográficas

  • 1
    Esta questão é amplamente discutida por Ivan ILLICH A Expropriação da Saúde, Nova Fronteira, 1976, p. 18-26. com excelentes referências bibliográficas.
  • 2
    MORROW, J. H. & EDWARDS, B. - “U.S. Health Manpower policy: wil lhe benefits justify lhe costs?”, Journal of Medical Education, 51:791-805, 1976.
  • 3
    CHARTER of the United Nations”, New York, N. Y., United Nations Publications, 1975. Ver também: “CONSTITUTION of the World Health Organization”, WHO Chronicle, 1:29, 1947.
  • 4
    AMERICAN Heritage Dictionary of the English Language New York, N. Y. Deli Publishing, Co. , 1970.
  • 5
    HOLANDA, Aurélio Buarque de - “Novo Dicionário da Língua Portuguesa”, Nova Fronteira, 1975.
  • 6
    LOCKE, J. - Two treatises on Government, 1690. In: Encyclopedia Britannica London. William Benton Publisher, 1964.
  • 7
    “The Universal declararion of human rights”. New York, N. T., United Nations Publications, 1948.
  • 8
    O Gesetliche Krankenversicherung (GKV) foi criado naquela época como um seguro de saúde reivindicado pelos trabalhadores alemães; hoje o GKV dá cobertura a 86% da população da República Federal Alemã. O sistema soviético e bem analisado por FIELD, MARK G. - Soviet Socialized Medicine New York, Free Press, 1967. A medicina socializada na Inglaterra e apreciada por CURRAN, W. J. - Nationalized health services: The British experience, In: PENCHANSKY, R., ed. - Health services administration, policy cases and the case method”. Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1968. p. 332.
  • 9
    CHAPMAN, C. B. & TALMADGE, J. M. - Historical and political background of federal health care legislation. Law Contemp. Probl., 35:901, 1970.
  • 10
    CANTOR, N. L. - “The law and poor peoples access to health care”. Law Contemp. Probl. , 35:901, 1970. Ver também: MICHELMAN, F.- “Foreward: on protecting the poor throug the 14th amendment” apud “The Supreme Court, 1960 Term”, Harvard Law Rev., 7:83, 1969.
  • 11
    Em 1976 a despesa do INPS com assistência médica alcançou Cr$ 23 bilhões, quando a previsão estimada para aquele exercício era de apenas Cr$ 16,5 bilhões. Vide: “Previdência Social. “Planejamento e Desenvolvimento”, 5, (52):12-7, 1977.
  • 12
    ARAÚJO, J. Duarte de - As peculiaridades do mercado de serviços de saúde - Rev. Adm. Publ. 11 (3):97-109, 1977.
  • 13
    HAVIGHURST, C. C. - Health maintenance organizations and the market for health services. Law Contemp. Probl. , 35:716, 1970. URIEL MAGALHÃES. Regulamentação no setor Saúde, ainda não publicado. também advoga o seguro de saúde.
  • 14
    UNITED STATES NATIONAL CENTER FOR HEALTH STATISTICS. “Medical care health status and family income”, Washington, D. C. US Department of Health, Education and Welfare, 1964. (Vital and Health Siatistics. Serie 10, n° 9).
  • 15
    O modelo desses planos é o da Kaiser-Permanente na Califórnia. Vide: SOMERS, A. R., ed. - “The Kaiser-Permanente medical core program: a symposium”. New York, N. Y., The Commonwealth Fund, 1971.
  • 16
    O direito à justa retribuição era tradicionalmente compensado pela transferência dos custos da assistência gratuita a clientela pagante, o que contribuía para inflacionar o mercado.
  • 17
    ENSINO médico e instituições de saúde. In: MEC - Documentos do ensino médico. Brasília, 1977. p. 63-93. SOUZA, Carlos A. Marcílio de - Aspectos atuais do ensino médico no Brasil. In: Documentos do ensino médico. Brasília, 1977. p. 123-50.
  • 18
    Encontra-se em fase de implantação pelo Ministério da Saúde o “Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento-PIASS”. Vide “Documento Básico do Tema III da VI Conferência Nacional da Saúde”, Brasília, agosto de 1977.
  • 19
    CHILDS, A. - “Introduction to Medical care Administration”, University of California Berkeley, 1970.
  • 20
    MORROW, H. & EDWARDS, B. op. cit.
  • 21
    MACEDO, Carlyle G. Recursos Humanos para a Saúde. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE HIGIENE, 19. e CONGRESSO PAULISTA DE SAÚDE PÚBLICA, 1. São Paulo, 10-14 de outubro de 1977.
  • 22
    ABEL - SMITH, B. - “Étude internacional des déspenses de Santé”. Cahiers de Santé. Publique, 32, Organ, Mond. Santé, Genéve, 1963.
  • 23
    FGV - Pesquisa sobre Consumo Alimentar Rio de Janeiro, 1975. 3 v.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 1979
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