Acessibilidade / Reportar erro

Reflexão na Aprendizagem: Analise dos Estudantes de um Curso de Medicina

Reflection in Learning: a Study of Students win a Medical School

Resumo:

O propósito deste trabalho foi averiguar o perfil de reflexão na aprendizagem dos alunos do curso de medicina da Universidade de Brasília e descobrir suas relações com características dos aprendizes e do contexto do curso. O estudo envolveu 226 participantes, representando o alunado do curso, que responderam ao questionário Escala de Reflexão na Aprendizagem (ERA) em inquérito transversal. Os resultados mostram associações positivas e significantes entre a ERA e os índices de auto regulação, motivação para aprender, autoconfiança como aprendiz e valorização dos desfechos de aprendizado. Uma análise de regressão múltipla identificou cinco fatores de predição da pontuação da ERA: nível de auto regulação, valorização de desfechos do aprendizado, semestre de ingresso, etapa no curso e motivação para aprender. Participantes com disposição mais robusta para reflexão revelaram níveis significativamente mais elevados de rendimento acadêmico. Os achados realçam algumas condições de variação da disposição para reflexão em conexão com seus determinantes e efeitos no contexto da formação profissional.

Palavra-chave:
Educação Médica; Avaliação Educacional; Escolas Médicas; Questionários-utilização; Aprendizagem

Abstract:

The purpose of this work was to appraise the students´ patterns of reflection-in-learning in a medical school and to find their relationships to measures of the learners´ characteristics and context. The cross-sectional inquiry involved 226 students representative of the target population, who completed the Scale of Reflection in Learning (RLS). The relationship between the students´ RLS score were identified by multiple regression analysis; level of self-regulation, course-outcome valuing, admission term, stage in the medical program and motivation to learn. Students showing enhanced reflection in learning revealed higher levels of academic achievement. In conclusion, the findings highlight some conditions for variation of the reflection -in-learning drive among medical students and suggest a useful role for the RLS tool in appraising the learners´ reflection patterns in relation to their causes and effects within the context of professional training.

Key-words:
Education Medical; Educational measurement; Schools, Medical; Questionnaires - utilization; Learning

INTRODUÇÃO

A reflexão sobre a situação de aprendizagem, é uma operação mental que ilumina experiências do aprendiz, sejam essas de natureza formal ou informal. Esse processo cognitivo tem algum propósito e/ou desfecho e envolve mutação de significados, aplicando-se geralmente a problemas que não têm solução óbvia, ou idéias relativamente complicadas ou sem estrutura (Moon, 1999)11. Moon J. Reflection in Learning and Professional Development. London: Kogan Page, 1999. Três aspectos da concepção de reflexão na aprendizagem pertinentes ao presente estudo são resumidos a seguir.

Na reflexão, o aprendiz se concentra sobre o que aprendeu (isto é, o aprendizado como produto) e, também, sobre como aprendeu (a aprendizagem como processo) e pode, eventualmente, antecipar desdobramentos futuros. Segundo Bound, Keogh e Walker (1985),22. Boud D, Keogh R, Walker D. Promoting reflection in learning: o model. In: Boud D, Keogh R, Walker D. org. Reflection: Turning Experience into Learning. London: Koga n Page, 1985. o foco da atividade reflexiva pode abranger idéias, sentimentos e condutas ou procedimentos, relativos ao processo ou ao produto da aprendizagem. Esses autores realçaram o papel da reflexão na transformação da experiência em aprendizado, mediante um esquema de duas fases: retrospecto da experiência e prospecto das ilações. A perspectiva de processamento reflexivo da experiência exposta no esquema tem relação com a noção do ciclo vivencial de aprendizagem, elaborada por Kolb (1984)33. Kolb D. Experiential Learning. Englewood Cliffs: Prentice- Hall, 1984., e com o conceito de reflexão sobre a ação no desempenho profissional (Schon, 1992)44. Schon D. The crisis of professional knowledge and the pursuit of an epidemiology of practice. Journal of interprofessional Care, 1992; 6: 49 -63..

Para Gibbs (1992)55. Gibbs G. Improving the Quality of Student Learning. Bristol: Technical and Educational Services, 1992., o processo de reflexão é um dos elementos críticos no favorecimento do enfoque profundo aprendido. O conceito de enfoque ou orientação de aprendizado deriva de estudos realizados por diversos investigadores, que levaram à caracterização de duas principais estratégias de processamento de informação: o enfoque profundo e o enfoque superficial de aprendizado (Entwistle, 1981; Richardson, 1995)66. Entwistle N. Styles of Learning and Teaching. London: David Fulton, 1988.),(77. Richardson JTE. Using questionnaires to evaluate student learning. In: Gibbs G. org. lmproving Student Learning Through Assessment and Evaluation. Oxford: Oxford Centre for Staff Development 1995.. O enfoque profundo tende a produzir desfechos que representam um entendimento mais substancial da tarefa de aprendizagem, em razão do envolvimento pessoal e da busca do significado e da integração do novo conhecimento ao conhecimento já adquirido. O enfoque superficial, diversamente, tende a produzir desfechos que representam baixo entendimento e tem caráter reprodutivo, em razão de memorização desconexa de fatos e conceitos, visando a uma representação imediata, especialmente em situações de prova.

Ertmer e Newby (1996)88. Ertmer PA, Newby TJ. The expert learner: strategic, self-regulated, and reflective. Instructional Science. 1996: 24:1-24. postularam que a reflexão no processo de aprendizagem é um elemento essencial no desenvolvimento da expertise dos aprendizes. No seu modelo, a auto-reflexão medeia a translação de habilidades metacognitivas do aprendiz na regulação do processo de aprendizagem. Observa-se que a capacidade de auto-regulação o aprendizagem envolve, além de metacognição,percepções de eficiência pessoal e autodeterminação99. Zimmerman BJ, Bandura A, Martinez-Pons M. Self-regulation involves more than metacognition - a social cognitive perspective. Educational Psychologist. 1995:30: 217-221.. Vale acrescentar que, na visão de Barrow e Pickell (1991), a capacidade de metacognição é uma característica central no desenvolvimento do processo de resolução de problemas clínicos1010. Barrows HS, Pickcll GC. Developing Clinical Problem-Solving Skills. New York, W. W. Norton, 1991.

Presume-se no presente estudo, que o processo de reflexão possa ser representado por um repertório de condutas cognitivas, considerando-se a perspectiva da reflexão como uma estratégia de regulação cognitiva. Essa idéia foi posta em prática por Mitchell (1994)1111. Mitchell R. The development of the cognitive behavior survey to assess medical trident learning. Teaching And Learning Medicine. 1994: 6:161-167.) no desenvolvimento empírico ele uma escala de reflexão, como parte de um inquérito sobre o enfoque cognitivo de estudantes de medicina, entre outros achados significativos, aquele autor mostrou uma correlação positiva entre a pontuação da escala de reflexão e uma medida da percepção do valor da experiência da aprendizagem no ciclo básico do curso.

Outro instrumento, denominado Escala de Reflexão na Aprendizagem (ERA), contempla um repertório mais amplo de condutas cognitivas. O desenvolvimento da estrutura de itens deste questionário foi gerado a partir de múltiplas fontes de informação - incluindo as linhas de inquirição resumidas acima - e realçou aspectos de conteúdo e processo. Evidências obtidas no estudo inicial de validação apontaram consistência interna satisfatória, estabilidade temporal razoável e qualidade de construto, indicando a utilidade potencial do instrumento no averiguação do processo da aprendizagem (Sobral, 1998)1212. Sobral DT. Desenvolvimento e validação de escala de reflexão na aprendizagem. Psicologia: Teoria e Pesquisa. 1998;14: 1731- 77..

O que caracteriza o processo de reflexão na aprendizagem de estudantes de medicina? O presente estudo examina o perfil de reflexão aferido pela ERA em conexão com características dos aprendizes e de seu contexto educativo na iniciação ao curso A matriz da pesquisa agregou dois componentes: o inquérito transversal e a correlação com dados retrospectivos, tendo corno população-alvo os estudantes do curso de medicina da Universidade de Brasília.

Neste artigo os seguintes três objetivos de análise são enfocados:

  1. Determinar o perfil de escores da CRA na amostra transversal de estudantes;

  2. Identificar características do aprendiz e do contexto associadas ao padrão de reflexão na aprendizagem aferido pelo instrumento;

  3. Determinar fatores preditores dos escores do instrumento, especialmente quanto à influência relativa de características de aprendizagem dos estudantes e do tempo de experiência no curso.

MÉTODOS

Delineamento

A matriz da pesquisa sobre reflexão na aprendizagem agregou um componente de inquérito transversal do alunado do curso de medicina, com elementos descritivos e analíticos, a um componente de correlação com dados retrospectivos às características dos mesmos estudantes na situação inicial de aprendizado no curso.

Sujeitos

A população-alvo do estudo era constituída pelos 389 alunos do curso de medicina da Universidade de Brasília, em exercício regular do primeiro semestre de 1997. O ingresso neste curso ocorre por concurso vestibular no primeiro e no segundo semestre de cada ano. São estudantes oriundos de diferentes partes do país, sendo 16,5%por transferência de outras instituições de caráter obrigatório. Na época do inquérito, o tamanho das turmas se estendia de 24 a 41, com mediana de 33, por conta da variação do número de transferências e de evasões e do aumento de vagas ocorrido dois anos antes.

Os 226 participantes do inquérito representavam turmas do primeiro ao sexto ano do curso. A média de idade dos participantes era 22,1 anos, e o gênero predominante masculino (55,6%).

Medidas e procedimentos

Os dados sobre as variáveis utilizadas no estudo foram obtidos de três fontes: (a) registro acadêmico com informações do histórico escolar dos alunos; (b) inventário de condições e expectativas dos aprendizes, preenchido consecutivamente por todos os alunos (com três exceções) ao término do primeiro ano do curso; (c) inquérito específico sobre reflexão na aprendizagem, do qual participaram 58,1% dos alunos em exercício no curso.

Registro acadêmico. O registro acadêmico forneceu dados sobre as turmas do curso e sobre o semestre de ingresso, a posição no fluxo curricular e o índice de rendimento acadêmico (no período letivo do inquérito) de cada aluno do curso.

Inventário de condições e expectativas. O inventário forneceu elementos sobre as seguintes quatro características dos estudantes, na iniciação ao curso: (a) estilo de aprendizagem; (b) autoconfiança como aprendiz; (c) motivação para aprender; (d) valorização dos desfechos do aprendizado.

O estilo de aprendizagem foi aferido mediante o Inventário de Estilo de Aprendizagem (Kolb 1984)33. Kolb D. Experiential Learning. Englewood Cliffs: Prentice- Hall, 1984. Esse instrumento permite classificar o estilo do aprendiz em dois grupos, segundo a tônica do ciclo vivência de aprendizagem, os ativos (adaptativos e convergentes) e os meditativos (divergentes e assimiladores).

Os níveis de autoconfiança como aprendiz e de motivação para aprender foram aferidos por escalas analógicas visuais de 100 mm (Sobral. 1993)1313. Sobral DT. Motivação para aprender e resultados da aprendizagem baseada em problemas. Psicologia, Teoria e Pesquisa.·1993, 9:555-562. Para efeito da análise subsequente, os aprendizes foram agrupados em dois subgrupos de pontuação (superior ou inferior) definidos pela mediana na respectiva escala.

O inventário de Valorização do Curso ou IVC, desenvolvido por Nehari e Brender (1978)1414. Nehari M, Bender H. Meaningfulness Of a learning experience: a measure for educational outcomes in higher education. Higher Education. 1978, 7:1-11. foi utilizado para aferir as percepções dos alunos sobre o significado e valor do aprendizado no primeiro ano do curso. O IVC tem 36 itens e uma faixa de pontuação de 36 a 144. Esse inventário abarca múltiplos aspectos de apreciação estudantil dos desfechos de aprendizado na vivência acadêmica, em termos tanto de conteúdo quanto de desenvolvimento pessoal.

Inquérito sobre reflexão. O instrumento utilizado foi a versão B da Escala de Reflexo na Aprendizagem, constituída de 14 itens. Cada item do questionário, de 10 a 18 palavras, tem uma escala de resposta de sete pontos, ancorados nos extremos pelos termos 'nunca' e 'sempre'. A pontuação da ERA abrange a faixa de 14 a 98. O índice alfa de confiabilidade na amostra (0,86) confirmou a consistência interna adequada do instrumento. A análise de fatores revelou três dimensões fatoriais inter-relacionadas respondendo por 52% da variância total: integração (e.g, item 4: Tenho buscado inter-relações entre tópicos para construir noções mais amplas sobre um assunto); monitoração (e.g., item 14: Tenho feito autocrítica construtiva do meu trabalho como aprendiz de medicina); e adaptação reflexiva (e.g., Item 10: Tenho refletido cuidadosamente sobre como estudava e aprendia em diferentes circunstâncias).

Na aplicação da ERA, incluiu-se adicionalmente, uma questão expressa em escala global de quatro pontos para aferir a percepção de auto regulação ou eficácia pessoal no processo de reflexão. A auto-regulação, nessa escala, se estendia de mínima (ciente do valor, mas capaz apenas de lidar/interagir com quem domina o processo de reflexão construtiva), até máxima (capaz de reflexão eficaz mesmo em condições adversas de tempo e contexto de desempenho). Variantes dessa escala global têm relação estreita com índices de auto-eficácia no desempenho acadêmico (dados não publicados). O conjunto do instrumento é reproduzido em Apêndice APÊNDICE ESCALA DE REFLEXÃO NA APRENDIZAGEM Responda, por favor, aos itens abaixo conforme suas vivências do curso de medicina. Para cada item: faça um círculo em torno do número na escala que mais se aproxima da frequência de sua conduta habitual. REFLEXÃO CONSTRUTIVA - Com que frequência eu tenho: [1 = Nunca 7 = Sempre] 1. Planejado cuidadosamente minhas atividades de aprendizagem nas disciplinas e estágios do curso 1 2 3 4 5 6 7 2. Conversado com meus colegas sobre aprendizagem e métodos de estudo 1 2 3 4 5 6 7 3. Feito revisão, durante cada semestre, de assuntos estudados anteriormente 1 2 3 4 5 6 7 4. Integrado os tópicos de uma disciplina entre si, bem como com outras disciplinas ou estágios 1 2 3 4 5 6 7 5. Processado mentalmente o que já sabia e o que precisava saber sobre tópicos ou procedimentos 1 2 3 4 5 6 7 6. Conscientizado-me sobre o que estava aprendendo e com que propósito 1 2 3 4 5 6 7 7. Buscando inter-relações entre tópicos para construir noções mais amplas sobre um assunto 1 2 3 4 5 6 7 8. Ponderado sobre o significado das coisas que estudava e aprendia, em função da experiência pessoal 1 2 3 4 5 6 7 9. Procurado criteriosamente adaptar-me às diferentes demandas das diversas disciplinas e estágios 1 2 3 4 5 6 7 10. Refletir cuidadosamente sobre como estudava e aprendia em diferentes circunstâncias 1 2 3 4 5 6 7 11. Resumido mentalmente o que aprendia no dia a dia da minha formação médica 1 2 3 4 5 6 7 12. Exercitado a capacidade de refletir durante uma vivência de aprendizagem 1 2 3 4 5 6 7 13. Removido, voluntariamente, sentimentos negativos em relação a objetos, condutas. tópicos ou problemas relacionados à minha formação médica 1 2 3 4 5 6 7 14. Feito autocrítica construtiva do meu trabalho como aprendiz de medicina 1 2 3 4 5 6 7 - Considero que minha eficácia pessoal na capacidade de efetuar o processo de reflexão construtiva situa-se no nível indicado abaixo . ( ) Mínimo. Ciente do valor, mas capaz apenas de lidar/interagir com quem domina o processo de reflexão construtiva. ( ) Restrito. Necessito extensa preparação adicional (incentivo, orientação, maturação, prática e feedback). ( ) Parcial. Preciso ainda de apoio e oportunidades estruturadas. ( ) Amplo. Tenho autonomia em condições favoráveis. ( ) Máximo. Tenho plena autonomia mesmo sob pressão negativa (ambiente adverso ou falta de tempo). .

No procedimento do inquérito, o instrumento de estudo (ERA - como acréscimo da questão sobre a percepção global da auto-regulação na reflexão) foi remetido pelo correria, acompanhado de uma carta com instruções, a todos os 389 alunos do curso de medicina ao término do primeiro período letivo de 1997. Houve retorno de 58,1% das remessas, no prazo de 12 semanas. A limitação do relativizado retorno pode ser atribuída a dois fatores: perda postal na remessa ou na devolução do material e insuficiência de interesse ou de incentivo para atendimento da solicitação no prazo estabelecido.

ANÁLISE

Os trabalhos de Andrews, Klem, Davidson, O'Malley e Rogers (1981)1515. Andrews FM, Klem L, Davidson TN, O'Malley PM, Rogers WL. A Guide for Selecting Statistical Techniques for Analyzing Social Science Data. Ann Arbor: ISR, University of Michigan, 1981., Cohen e Manion (1994)1616. Cohen L, Manion L. Research Methods in Education. London: Routledge, 1994. Norman e Streiner(1994)1717. Norman GR, Streiner DL. Biostatistics: the bare essentials. St. Louis, Mosby, 1994. e Glantz Slinker (1990)1818. Clanlz A, Slinker BK. Primer of Applied Regression and Analysis of Variance. New York: McCraw-Hill, 1990. orientaram os planos e procedimentos de análise. Quatro procedimentos estatísticos principais foram utilizados: (a) coeficientes de correlação para medir a associação entre pares de variáveis; (b) testes t, ou análises de variância, para aferir diferenças entre médias de grupos; (c) testes de qui-quadrado, para determinar diferenças entre grupos; (d) análise de regressão múltipla para verificar a associação entre fatores explanatórios e a variável de desfecho, quando outros fatores são controlados.

O programa SPSS, versão 10.0, foi utilizado na análise estatística.

Tabela 1
Comparação de distribuição de características entre alunos de medicina agrupados segundo participação ou não no inquérito sobre reflexão na aprendizagem

RESULTADOS

População-alvo e variação histórica

Não foram observadas diferenças significantes entre os grupos de participantes e de não-participantes do inquérito, em termos da distribuição de múltiplas características (gênero, estilo de aprendizagem, autoconfiança como aprendiz e motivação para aprender, semestre de ingresso e posição no fluxo do curso). A Tabela 1 resume esses dados. Os dois grupos da população-alvo não diferiam, também, em termos das médias de idade (t=0,54; p = 0,58), do índice de rendimento acadêmico (t= 1,6; p = 0,10) e da pontuação do inventário de Valorização do curso (t=0,50; p = 0,26).

Para efeito da análise de variação histórica, os alunos foram agrupados por etapas do fluxo curricular do curso: inicial (1° e 2° anos), intermediária (3° e 4° anos) ou final (5° e 6° anos). Não houve diferenças significantes entre as médias desses grupos para nenhuma das variáveis analisadas, exceto duas: nível de autoconfiança como aprendiz (F= 4,9 p = 0,008) e tamanho médio das turma s(teste da mediana: p = 0,000). Observou-se, principalmente, que a proporção de alunos com nível superior de autoconfiança como aprendiz era maior nas turmas mais recentes do que nas turmas da etapa final do curso.

Dados do inquérito transversal

A média do escore total da ERA na amostra transversal de 226 participantes foi 71,42 com desvio padrão de 9,93. Os escores máximo e mínimo foram 96 e 27, respectivamente. Não foram observadas diferenças significantes entre as médias dos participantes agrupados por gênero, faixa etária ou pela etapa (inicial, intermediária, final) do curso. Em contraposição, uma análise de variância revelou diferenças significantes entre os escores médios dos estudantes agrupados segundo a extensão de auto-regulação ou eficácia percebida na reflexão. Os escores de reflexão na aprendizagem aumentam em relação direta com a extensão de auto-regulação ou eficácia pessoal no processo reflexivo (Tabela 2).

Todos os 14 itens da ERA apresentaram correlação positiva e significante com a percepção de auto-regulação no processo reflexivo. Os seis itens com relação mais forte foram os seguintes;

Tabela 2
Comparação de médias e desvios-padrões da Escala de Reflexão na Aprendizagem (ERA) entre alunos de medicina agrupados pela extensão de auto-regulação da reflexão (Anova, oneway)

Item 1.2 - Exercitado a capacidade de refletir durante uma vivência de aprendizagem (r=0, 4 7);

Item 6 - Conscientizado-me sobre o que estava aprendendo e com que propósito (r=0,44);

Item 3 - Efetuado revisto, durante cada semestre, de assuntos estudados anteriormente (r = 0,39):

Item 7 - Buscado inter-relações entre tópicos para construir noções mais amplas sobre um assunto (r = 0,36);

Item 5 - Integrado os tópicos de uma disciplina entre si, bem como com outras disciplinas ou estágios (r = 0,35);

Item 8 - Ponderado sobre o significado das coisas que estudava e aprendia, em função da experiência pessoal (r = 0,32).

Para efeito da comparação subsequente, foi realizada uma análise de classificação hierárquica (cluster analysis), utilizando como variáveis os escores dos fatores da ERA e o nível de auto regulação da reação. Dois subgrupos mais homogêneos foram identificados, com 144 (63,7%) e 81 (36,3%) participantes, que diferiam em médias de pontuação da ERA e de nível de auto-regulação. O subgrupo menor englobava os estudantes com índices de reflexão na aprendizagem e de auto regulação mais elevados.

Análises de comparação e correlação

A Tabela 3 mostra comparações entre médias da ERA em função de diferentes características dos estudantes: o semestre de ingresso no curso (primeiro ou segundo), o estilo (ativo ou meditativo) de aprendizagem, os níveis (superior ou inferior) de motivação para aprender e de autoconfiança como aprendiz. Índices significativamente mais elevados de reflexão foram encontrados nos grupos caracterizados respectivamente por ingresso no primeiro semestre, elevada motivação para aprender e elevada autoconfiança como aprendiz.

Observou-se, também, uma correlação muito significante entre os escores da ERA e do inventário de Valorização do Curso (r= 0,32 p < 0,001).

Tabela 3
Comparação de médias e desvios-padrões (dp) da Escala de Reflexão na Aprendizagem (ERA) entre alunos de medicina agrupados por características do aprendiz (teste t)

Para apurar os efeitos relativos dos diversos fatores, obteve-se uma análise de regressão múltipla em que o escore total da ERA é a variável de desfecho, e as variáveis preditores são as diferentes características ou fatores referentes ao aprendiz ao contexto de aprendizado: gênero, faixa etária, extensão de autodeterminação na reflexão, níveis de motivação para aprender e de autoconfiança como aprendiz, pontuação do IVC (valorização do aprendizado no curso), semestre de ingresso no curso, tamanho da turma e etapa do curso. Foram identificados cinco fatores explanatórios: nível de autodeterminação, pontuação do IVC, semestre de ingresso, etapa do curso e motivação para aprender. O coeficiente R de correlação múltipla foi 0,65. Isso significa que essas cinco variáveis respondem por 43% da variância do escore da ERA. A Tabela 4 mostra os diferentes coeficientes da análise de regressão. Todos os fatores têm coeficientes de correlação positivos, exceto a etapa do curso. No caso do semestre de ingresso, a correlação positiva significa que o acesso no primeiro semestre está associado a maior escore de reflexão na aprendizagem, quando outros fatores são mantidos constantes.

Tabela 4
Predição do escore total da ERA por fatores do contexto e características do aprendiz e do contexto ( análise de regressão múltipla, stepwise)a

A Tabela 5 mostra diferenças entre os dois subgrupos identificados na análise de classificação, em termos de pontuação da ERA e dos índices de motivá-lo para aprender, autoconfiança como aprendiz, valorização do aprendizado no curso e rendimento acadêmico. Observa-se que o subgrupo de participantes mais reflexivos revelou índices significativamente mais elevados de autoconfiança, motivação para aprender e rendimento acadêmico.

TABELA 5
Comparação de médias e desvios-padrões (dp) dos índices de autoconfiança como aprendiz, motivação para aprender, valorização do aprendizado no curso e rendimento acadêmica , entre subgrupos de classificação da ERA( teste t)*

DISCUSSÃO

Os múltiplos elementos de comparação entre participantes e não participantes do Inquérito não revelaram qualquer diferença significativa. A equivalência entre os grupos indica que os achados da amostra de participantes, quanto ao perfil de reflexão e suas relações, representam a população-alvo do estudo.

Os resultados das análises sugerem que três vertentes subjacentes às características do aprendiz e ao contexto de aprendizado se relacionam à variação de intensidade ou freqüência da reflexão na aprendizagem: aspectos de eficácia pessoal e auto confiança, aspectos de motivação e valorização dos desfechos do aprendizado e aspectos da situação no curso. As características de gênero, de idade e de estilo de aprendizagem dos estudantes não foram associadas a diferenças significativas nos indicadores do perfil de reflexão.

A vertente principal de variação, aferida particularmente pela extensão de auto-regulação da reflexão, envolve concepções de autoconfiança e de eficácia pessoal. A extensão de auto-regulação mostrou-se diretamente associada à intensidade de reflexão na aprendizagem, em suas três dimensões cognitivas: monitoração (e.g,, item 12: Tenho exercitado a capacidade de refletir durante uma vivência de aprendizagem); integração (e.g Item 7: Tenho buscado inter-relações entre tópicos para construir noções mais amplas sobre um assunto) e adaptação reflexiva (c.g., item 8: Tenho ponderado sobre o significado das coisas que estudava e aprendia, em função da experiência pessoal). Essas relações sugerem que o instrumento capta aspectos importantes da auto-regulação da aprendizagem.

Uma segunda vertente significativa de variação deriva da apreciação do valor e significado dos desfechos do aprendizado e da própria motivação intrínseca do estudante para aprender, na iniciação ao curso. A Disposição para reflexão na aprendizagem, captada pelo instrumento, está associada a uma visão positiva e motivada do aprendizado pessoal. Esse fator parece mais importante para os participantes antes que ingressaram no curso no primeiro semestre, por motivos incertos. Acrescente-se, entretanto, que estudantes que ingressaram no curso no primeiro semestre apresentavam níveis médios de motivação para aprender e de valorização do aprendizado significativamente superiores aos níveis dos que ingressaram no segundo semestre (dados não referidos),

A situação do estudante no contexto do curso foi a vertente de variação menos expressiva, Observou-se fraca associação negativa entre o escore de reflexão na aprendizagem e a progressão no curso, mas essa relação, possivelmente, não se relaciona com o efeito da experiência do curso em si. Participantes que cursaram a etapa final do curso diferiam dos colegas das outras etapas em termos do nível de autoconfiança como aprendiz, do tamanho médio das turmas e, por certo, da própria carga de trabalho no atendimento aos pacientes, De qualquer forma, a tendência negativa sugere que a experiência acumulada no curso não intensificou consolida o processo de reflexão na aprendizagem aferido pelo instrumento usado.

Em conjunto, os resultados indicam que uma disposição robusta para reflexão na aprendizagem está associada à percepção de auto-regulação nesse processo e pode ser influenciada pela visão pessoal do significado e do valor do aprendizado anterior e da motivação preponderante do aprendiz. Subgrupos de estudantes, com rendimento acadêmico maior ou menor, podem ser diferenciados por tais indicadores da reflexão na aprendizagem. Os achados insinuam, também, que as condições iniciais do aprendiz têm um impacto duradouro mesmo que débil.

Estudos em andamento sugerem que as dimensões cognitivas incorporadas no instrumento (integração de conteúdo, monitoração e adaptação reflexiva) têm conexão com a progressão de etapas da aprendizagem, no mapa conceitual de Moon11. Moon J. Reflection in Learning and Professional Development. London: Kogan Page, 1999., e com o refinamento da expertise do aprendiz88. Ertmer PA, Newby TJ. The expert learner: strategic, self-regulated, and reflective. Instructional Science. 1996: 24:1-24.. Nessa perspectiva, os padrões de reflexão na aprendizagem podem representar facetas de variação do processo de construção pessoal do conhecimento que não se refletem diretamente no rendimento escolar. Essa interpretação é corroborada por dados recentes que revelam correlação mais positiva e significante entre medidas da ERA e de orientação profunda de aprendizagem do que entre medidas da ERA e de rendimento acadêmico1919. Sobral DT. Medical students' reflection in learning in relation to approaches to study and academic achievement. Medical Teacher. 2001; 23: 508-513..

Embora esteja em aberto a possibilidade de generalizar os achados para os estudantes de medicina em geral, os resultados deste estudo têm implicações potenciais para o ensino médico. Primeiro, o reconhecimento de diferentes padrões de reflexão na aprendizagem entre estudantes e sua relação com fatores do aprendizado e do contexto do curso tem importância para a busca de qualidade no processo de formação, em concordância com concepções contemporâneas (Lima-Gonçalve, 2001)2020. Lima-Gonçalves E. Pedagogia e didática: relações e aplicações no ensino médico. Rev. Bras. Educ. Med. 2001; 25: 20-26.. As indicações obtidas, aliás, têm sido aplicadas em programa de fortalecimento das habilidades de aprendizagem dos estudantes, na instituição. Segundo, a identificação desses padrões pode ser utilizada para aferir os efeitos de diferentes estratégias educativa no processo de reflexão na aprendizagem .Por exemplo, a estratégia da aprendizagem baseada em problemas tem o potencial de desenvolver habilidades metacognitivas nos estudantes, para tanto contribuindo o próprio tipo de processo tutorial, conforme exposto por Barrows (1988)2121. Barrows HS. The Tutorial Process. Springfield: SIU School of Medicine,1988. Nesse sentido, o grau de aceitação e de sucesso dos estudantes em relação ao processo de aprendizagem baseada em problemas pode estar relacionado à predisposição ou à indução de capacidade de reflexão na aprendizagem, entre outros fatores.

Os resultados do estudo, em suma, mostram a utilidade do instrumento empregado no delineamento do perfil de variação da reflexão na aprendizagem de estudantes de medicina. Foram identificados na população alvo do estudo cinco fatores determinantes do perfil de variação, associados às características do aprendiz e ao contexto de aprendizado no curso.

AGRADECIMENTOS

O autor agradece a todos os estudantes pela disposição de participação e genuína cooperação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • 1
    Moon J. Reflection in Learning and Professional Development. London: Kogan Page, 1999.
  • 2
    Boud D, Keogh R, Walker D. Promoting reflection in learning: o model. In: Boud D, Keogh R, Walker D. org. Reflection: Turning Experience into Learning. London: Koga n Page, 1985.
  • 3
    Kolb D. Experiential Learning. Englewood Cliffs: Prentice- Hall, 1984.
  • 4
    Schon D. The crisis of professional knowledge and the pursuit of an epidemiology of practice. Journal of interprofessional Care, 1992; 6: 49 -63.
  • 5
    Gibbs G. Improving the Quality of Student Learning. Bristol: Technical and Educational Services, 1992.
  • 6
    Entwistle N. Styles of Learning and Teaching. London: David Fulton, 1988.
  • 7
    Richardson JTE. Using questionnaires to evaluate student learning. In: Gibbs G. org. lmproving Student Learning Through Assessment and Evaluation. Oxford: Oxford Centre for Staff Development 1995.
  • 8
    Ertmer PA, Newby TJ. The expert learner: strategic, self-regulated, and reflective. Instructional Science. 1996: 24:1-24.
  • 9
    Zimmerman BJ, Bandura A, Martinez-Pons M. Self-regulation involves more than metacognition - a social cognitive perspective. Educational Psychologist. 1995:30: 217-221.
  • 10
    Barrows HS, Pickcll GC. Developing Clinical Problem-Solving Skills. New York, W. W. Norton, 1991
  • 11
    Mitchell R. The development of the cognitive behavior survey to assess medical trident learning. Teaching And Learning Medicine. 1994: 6:161-167.
  • 12
    Sobral DT. Desenvolvimento e validação de escala de reflexão na aprendizagem. Psicologia: Teoria e Pesquisa. 1998;14: 1731- 77.
  • 13
    Sobral DT. Motivação para aprender e resultados da aprendizagem baseada em problemas. Psicologia, Teoria e Pesquisa.·1993, 9:555-562
  • 14
    Nehari M, Bender H. Meaningfulness Of a learning experience: a measure for educational outcomes in higher education. Higher Education. 1978, 7:1-11.
  • 15
    Andrews FM, Klem L, Davidson TN, O'Malley PM, Rogers WL. A Guide for Selecting Statistical Techniques for Analyzing Social Science Data. Ann Arbor: ISR, University of Michigan, 1981.
  • 16
    Cohen L, Manion L. Research Methods in Education. London: Routledge, 1994.
  • 17
    Norman GR, Streiner DL. Biostatistics: the bare essentials. St. Louis, Mosby, 1994.
  • 18
    Clanlz A, Slinker BK. Primer of Applied Regression and Analysis of Variance. New York: McCraw-Hill, 1990.
  • 19
    Sobral DT. Medical students' reflection in learning in relation to approaches to study and academic achievement. Medical Teacher. 2001; 23: 508-513.
  • 20
    Lima-Gonçalves E. Pedagogia e didática: relações e aplicações no ensino médico. Rev. Bras. Educ. Med. 2001; 25: 20-26.
  • 21
    Barrows HS. The Tutorial Process. Springfield: SIU School of Medicine,1988.

APÊNDICE

ESCALA DE REFLEXÃO NA APRENDIZAGEM

Responda, por favor, aos itens abaixo conforme suas vivências do curso de medicina. Para cada item: faça um círculo em torno do número na escala que mais se aproxima da frequência de sua conduta habitual.

REFLEXÃO CONSTRUTIVA

- Com que frequência eu tenho:

[1 = Nunca 7 = Sempre]

1. Planejado cuidadosamente minhas atividades de aprendizagem nas disciplinas e estágios do curso 1 2 3 4 5 6 7

2. Conversado com meus colegas sobre aprendizagem e métodos de estudo 1 2 3 4 5 6 7

3. Feito revisão, durante cada semestre, de assuntos estudados anteriormente 1 2 3 4 5 6 7

4. Integrado os tópicos de uma disciplina entre si, bem como com outras disciplinas ou estágios 1 2 3 4 5 6 7

5. Processado mentalmente o que já sabia e o que precisava saber sobre tópicos ou procedimentos 1 2 3 4 5 6 7

6. Conscientizado-me sobre o que estava aprendendo e com que propósito 1 2 3 4 5 6 7

7. Buscando inter-relações entre tópicos para construir noções mais amplas sobre um assunto 1 2 3 4 5 6 7

8. Ponderado sobre o significado das coisas que estudava e aprendia, em função da experiência pessoal 1 2 3 4 5 6 7

9. Procurado criteriosamente adaptar-me às diferentes demandas das diversas disciplinas e estágios 1 2 3 4 5 6 7

10. Refletir cuidadosamente sobre como estudava e aprendia em diferentes circunstâncias 1 2 3 4 5 6 7

11. Resumido mentalmente o que aprendia no dia a dia da minha formação médica 1 2 3 4 5 6 7

12. Exercitado a capacidade de refletir durante uma vivência de aprendizagem 1 2 3 4 5 6 7

13. Removido, voluntariamente, sentimentos negativos em relação a objetos, condutas. tópicos ou problemas relacionados à minha formação médica 1 2 3 4 5 6 7

14. Feito autocrítica construtiva do meu trabalho como aprendiz de medicina 1 2 3 4 5 6 7

- Considero que minha eficácia pessoal na capacidade de efetuar o processo de reflexão construtiva situa-se no nível indicado abaixo .

( ) Mínimo. Ciente do valor, mas capaz apenas de lidar/interagir com quem domina o processo de reflexão construtiva.

( ) Restrito. Necessito extensa preparação adicional (incentivo, orientação, maturação, prática e feedback).

( ) Parcial. Preciso ainda de apoio e oportunidades estruturadas.

( ) Amplo. Tenho autonomia em condições favoráveis.

( ) Máximo. Tenho plena autonomia mesmo sob pressão negativa (ambiente adverso ou falta de tempo).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2002

Histórico

  • Recebido
    30 Ago 2001
  • Aceito
    11 Nov 2001
Associação Brasileira de Educação Médica SCN - QD 02 - BL D - Torre A - Salas 1021 e 1023 , Asa Norte | CEP: 70712-903, Brasília | DF | Brasil, Tel.: (55 61) 3024-9978 / 3024-8013 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: rbem.abem@gmail.com