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Mentoria entre pares na transição para ciclo clínico na Famed/UFVJM: percepções dos estudantes participantes

Peer mentoring in the transition to clinical round at Famed/UFVJM: perceptions of participant students

RESUMO

Introdução:

Na educação médica, programas de mentoria entre pares fomentam que alunos mais experientes ajudem colegas iniciantes no seu desenvolvimento. Mentorear o indivíduo durante sua vida universitária é uma maneira de oferecer suporte especialmente em momentos de transição, possibilitando o debate de tópicos relevantes muitas vezes não contemplados no currículo formal, como desempenho acadêmico, saúde mental e soft skills.

Objetivo:

Este estudo teve como objetivo compreender as contribuições da mentoria entre pares na transição para o ciclo clínico desenvolvida em uma escola médica, a partir da percepção dos estudantes participantes.

Método:

Trata-se de estudo transversal, descritivo, com abordagem qualiquantitativa. Foram realizadas três jornadas de mentoria entre pares, com quatro a seis encontros semanais entre grupos de discentes mentores do sexto ao décimo período e mentorados do quarto. Houve atividades voltadas ao aprendizado de habilidades médicas, discussão de casos clínicos, treinamento de anamnese e comunicação médica, além do compartilhamento de vivências. Os alunos participantes foram convidados a responder, anonimamente, a questionários online autoaplicados antes do início e após o último encontro. Realizaram-se análises estatísticas simples, frequências absoluta e relativa das variáveis concernentes às questões fechadas, e análise temática das respostas às questões abertas.

Resultado:

Participaram das três jornadas 144 estudantes: 99 mentorados e 45 mentores. Destes, 66% dos mentorados e 86% dos mentores responderam aos questionários. Pela visão da ampla maioria, a mentoria se mostrou efetiva, trazendo benefícios para mentorados e mentores. Os mentorados mencionaram que se sentiram mais preparados para as próximas atividades envolvendo atendimento ambulatorial e mais satisfeitos com o próprio desenvolvimento acadêmico e com as atividades de capacitação em habilidades de comunicação médica ofertadas pelo curso. Os mentores relataram que seus mentorados também os prepararam para avançar no curso e que auxiliaram no desenvolvimento pessoal e acadêmico.

Conclusão:

A mentoria entre pares na transição para o ciclo clínico revelou-se estratégia promotora de desenvolvimento acadêmico e pessoal, na percepção dos participantes, estimulando o engajamento dos estudantes, tanto mentores quanto mentorados, no processo de ensino-aprendizagem. Mais estudos com metodologias diversas, como aplicação de escalas, acompanhamento prospectivo ou análise de indicadores de êxito, podem incrementar a compreensão das contribuições da mentoria entre pares para a formação dos futuros médicos.

Palavras-chave:
Mentoria; Mentoria entre Pares; Educação Médica

ABSTRACT

Introduction:

In medical education, peer mentoring programs encourage more experienced students to help beginner colleagues in their development. Mentoring the individual during university life is a way of offering support, especially during periods of transition, enabling the debate of relevant topics often not covered in the formal curriculum, such as academic performance, mental health and soft skills.

Objective:

To understand the contributions of peer mentoring in the transition to clinical rotations at a medical school, based on the views of the participating students.

Method:

Cross-sectional, descriptive study with quantitative and qualitative approach. There were 3 mentoring journeys between peers, with 4 to 6 weekly meetings between groups of student mentors from the third to fifth year and mentees from the second year. There were activities focused on learning medical skills, discussing clinical cases, training in anamnesis and medical communication, in addition to sharing experiences. Participants were invited to anonymously answer self-applied online questionnaires before the beginning and after the last meeting. Simple statistical analyses were performed, absolute and relative frequencies of the variables concerning the objective questions; and thematic analysis of responses to discursive questions.

Result:

144 students participated in the 3 journeys: 99 mentees, 45 mentors. 66% of mentees and 86% of mentors answered the questionnaires. The vast majority reported a view that showed mentoring to be effective, bringing benefits to mentees and mentors. The mentees expressed feeling more prepared for the next activities involving outpatient care, more satisfied with their own academic development and with the training activities in medical communication skills offered by the course. Mentors reported that their mentees also prepared them to advance in the course and that they helped with personal and academic development.

Conclusion:

According to the views of the participants, the peer mentoring in the transition to clinical rotations proved to promote academic and personal development, stimulating the engagement of students, both mentors and mentees, with the teaching-learning process. More studies with different methodologies, such as the application of scales, prospective follow-up or analysis of success indicators may enhance our understanding of the contributions of peer mentoring to the training of future physicians.

Keywords:
Mentoring; Peer mentoring; Medical education

INTRODUÇÃO

A mentoria tem sua origem na Antiguidade, sendo relatada pela primeira vez na Odisseia, de Homero11. Bellodi PL. Cartas a um jovem mentor - aprendendo mentoria com os clássicos. Rev Bras Educ Med. 2021;45(1):e120. doi: https://doi.org/10.1590/1981-5271v45.supl.1-20210142.
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
),(22. Homero. Odisseia. Tradução Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo: Nova Cultural; 2002., e é definida como uma relação em que alguém mais experiente oferece apoio e orientação a um jovem iniciante33. Bellodi PL, Martins MA. Mentoria na formação médica. 2a ed. Barueri: Manole; 2023.. Diferentes modalidades de mentoria têm sido cada vez mais utilizadas em cursos de graduação, dado que, em momentos de transição para e na vida universitária, surgem diversos conflitos para o estudante que geram uma alta carga de estresse. Pesquisas sobre mentoria têm relatado benefícios na adaptação ao ensino superior, no desenvolvimento acadêmico e na promoção de bem-estar e saúde mental, o que torna esse processo mais saudável33. Bellodi PL, Martins MA. Mentoria na formação médica. 2a ed. Barueri: Manole; 2023.)-(66. Akinla O, Hagan P, Atiomo W. A systematic review of the literature describing the outcomes of near-peer mentoring programs for first year medical students. BMC Med Educ. 2018;18(1):e98. doi: https://doi.org/10.1186/s12909-018-1195-1.
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.

O processo de acompanhar o indivíduo durante a vida universitária dele é uma maneira de oferecer suporte para seu desenvolvimento pessoal e acadêmico, e possibilitar o debate de tópicos relevantes para esses alunos, como desempenho acadêmico e pessoal e saúde mental77. Andre C, Deerin J, Leykum L. Students helping students: vertical peer mentoring to enhance the medical school experience. BMC Res Notes. 2017;10(1):1-7 [acesso em 4 jan 2023]. Disponível em: Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5414204/ .
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/article...
),(88. Singh S, Singh N, Dhaliwal U. Near-peer mentoring to complement faculty mentoring of first-year medical students in India. J Educ Eval Heal Prof. 2014;11(12):3-6 [acesso em 4 jan 2023]. Disponível em: Disponível em: https://pubmed. ncbi.nlm.nih.gov/24980428/ .
https://pubmed. ncbi.nlm.nih.gov/2498042...
. Dentre as diversas modalidades, a aplicação por pares é uma estratégia mais recente, principalmente na educação médica66. Akinla O, Hagan P, Atiomo W. A systematic review of the literature describing the outcomes of near-peer mentoring programs for first year medical students. BMC Med Educ. 2018;18(1):e98. doi: https://doi.org/10.1186/s12909-018-1195-1.
https://doi.org/https://doi.org/10.1186/...
, definida como um tipo de relação entre estudantes na qual aquele mais avançado e com maior domínio da área em questão auxilia o iniciante no seu desenvolvimento11. Bellodi PL. Cartas a um jovem mentor - aprendendo mentoria com os clássicos. Rev Bras Educ Med. 2021;45(1):e120. doi: https://doi.org/10.1590/1981-5271v45.supl.1-20210142.
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
),(99. Souza MG, Reato LFN, Bellodi PL. Ressignificando a relação entre calouros e veteranos: mentoria de pares na visão de alunos mentores. Rev Bras Educ Med . 2020;44(4):e174. doi: https://doi.org/10.1590/1981-5271v44.4-20200113.
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
. A mentoria entre pares (MEP) possibilita a criação de um ambiente seguro para o compartilhamento de experiências, sentimentos, dúvidas e angústias por meio de uma relação construída com confiança1010. Ribeiro MMF, Martins AF, Fidelis GTA, Goulart GC, Molinari LC, Tavares EC. Tutoria em escola médica: avaliação por discentes após seu término e ao final do curso. Rev Bras Educ Med . 2013;37(4):509-14. e da valorização de componentes que, muitas vezes, não são contemplados pelo currículo formal, como o desempenho acadêmico, a saúde mental1111. Moreira SNT, Albuquerque ICS, Pinto Jr FELP, Gomes AHB. Programa de Mentoria do curso de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Norte: atividades integrativas em foco. Rev Bras Educ Med . 2020;44(4):1-6. e o desenvolvimento de soft skills - competências associadas ao comportamento humano e ao desenvolvimento profissional, como comunicação, diálogo, cooperação, trabalho em equipe, resolução de problemas, adaptação, criatividade, iniciativa, entre outras33. Bellodi PL, Martins MA. Mentoria na formação médica. 2a ed. Barueri: Manole; 2023.),(1212. Swiatkiewicz O. Competências transversais, técnicas ou morais: um estudo exploratório sobre as competências dos trabalhadores que as organizações em Portugal mais valorizam. Cadernos EBAPE.BR. 2014;12(3)633-87. doi: https://doi.org/10.1590/1679-395112337.
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.

Nesse sentido, na educação médica, programas de MEP têm ganhado maior atenção1313. Frei E, Samm M, Buddeberg-Fischer B. Mentoring programs for medical students: a review of the PubMed literature 2000-2008. BMC Med Educ . 2010;10:e32. doi: https://doi:10.1186/1472-6920-10-32.
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, pois a maioria deles oferece suporte para a adaptação dos novos alunos ao ensino superior e à medicina55. Leite RV, Franzoi MAH. Diálogos entre dois programas de mentoria de pares em tempos de ensino remoto: desafios e possibilidades para cursos das ciências da saúde. Educação em Foco. 2022;25(45):110-29 [acesso em 3 jan 2023]. Disponível em: Disponível em: https://revista.uemg.br/index.php/educacaoemfoco/article/view/6412 .
https://revista.uemg.br/index.php/educac...
. No entanto, o início da vida universitária não é o único momento estressor para os graduandos. Na verdade, é apenas o primeiro deles. Durante o decorrer do curso, novas situações e momentos de transição se apresentam, demandando dos estudantes o manejo correto para a progressão no curso, com a aquisição de habilidades, competências e experiências cada vez mais complexas33. Bellodi PL, Martins MA. Mentoria na formação médica. 2a ed. Barueri: Manole; 2023.. Um desses momentos é a transição do ciclo básico para o ciclo clínico, em que os estudantes iniciam a prática de atendimentos supervisionados a pacientes reais - o primeiro contato semelhante com a rotina de sua futura profissão -, com uma diversidade de desafios e inseguranças vivenciados pelos alunos.

Nesse contexto, o Programa de Mentoria entre Pares da Faculdade Medicina do Campus Juscelino Kubitschek da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (Famed/UFVJM), de Diamantina, em Minas Gerais, trouxe uma nova abordagem ao propor que estudantes no final do ciclo básico pudessem ser mentorados por discentes que estivessem vivenciando ou que já haviam concluído o ciclo clínico. As trocas de experiências permitiram não somente o suporte inerente à construção da relação mentor-mentorado, benefício amplamente discutido por pesquisas que abordam a temática55. Leite RV, Franzoi MAH. Diálogos entre dois programas de mentoria de pares em tempos de ensino remoto: desafios e possibilidades para cursos das ciências da saúde. Educação em Foco. 2022;25(45):110-29 [acesso em 3 jan 2023]. Disponível em: Disponível em: https://revista.uemg.br/index.php/educacaoemfoco/article/view/6412 .
https://revista.uemg.br/index.php/educac...
)-(77. Andre C, Deerin J, Leykum L. Students helping students: vertical peer mentoring to enhance the medical school experience. BMC Res Notes. 2017;10(1):1-7 [acesso em 4 jan 2023]. Disponível em: Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5414204/ .
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),(1313. Frei E, Samm M, Buddeberg-Fischer B. Mentoring programs for medical students: a review of the PubMed literature 2000-2008. BMC Med Educ . 2010;10:e32. doi: https://doi:10.1186/1472-6920-10-32.
https://doi.org/https://doi:10.1186/1472...
, mas também a oportunidade de abordar competências diretamente relacionadas com o exercício da profissão que exercerão: discussão de casos clínicos, treinamento da anamnese e da comunicação médica.

O presente estudo teve como objetivo investigar a percepção dos estudantes envolvidos no Programa de Mentoria entre Pares desenvolvido na Famed/UFVJM sobre as contribuições dessa participação para seu desenvolvimento acadêmico e pessoal. O programa teve início em 2021, durante um período crítico da pandemia de Covid-19, em que a universidade autorizava apenas encontros virtuais. Em 2022, a mentoria passou a acontecer de forma híbrida. Neste trabalho, serão analisadas três jornadas de mentoria, cada uma realizada durante um semestre letivo diferente, envolvendo discentes mentores do sexto ao décimo período e discentes mentorados do quarto.

Ao investigar as percepções dos participantes dessas jornadas de mentoria, este artigo vislumbra mais incentivar e apoiar outros programas de mentoria, por meio da experiência vivenciada, do que propriamente ditar como percorrê-la. Como afirma Daloz (apud Bellodi e Martins33. Bellodi PL, Martins MA. Mentoria na formação médica. 2a ed. Barueri: Manole; 2023.): “os mapas jamais podem substituir a jornada em si: as pessoas são sempre maiores que nossas ideias sobre elas e há, ainda, muitos territórios a serem explorados” (p. xxxiii).

MÉTODO

Trata-se de estudo transversal, descritivo, com abordagem qualiquantitativa, realizado na Famed/UFVJM com alunos envolvidos no Programa de Mentoria entre Pares, que foi iniciado no ano de 2021. A pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética e aprovada - CAAE nº 47624621.9.0000.5108. Além disso, observaram-se todos os aspectos éticos previstos na Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde1414. Brasil. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial da União; 2012..

O curso de Medicina da Famed/UFVJM é modular, estruturado em 12 semestres, com turmas de aproximadamente 30 alunos. Com modelo espiral, os módulos do primeiro ao quarto período contemplam prioritariamente aspectos fisiológicos dos sistemas orgânicos, correspondendo ao que comumente se denomina ciclo básico nos cursos de Medicina. Os módulos do quinto ao oitavo período tratam da propedêutica médica e dos mecanismos de agressão e defesa, compondo o ciclo clínico. Já do nono ao 12º período ocorre o internato. A participação na pesquisa teve como critérios de inclusão: idade igual ou superior a 18 anos; matrícula ativa no curso; ter participado dos encontros de MEP; disponibilidade em participar da pesquisa, documentada na assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Os critérios de exclusão foram: estar afastado das atividades acadêmicas; não estar de acordo com os termos e procedimentos da pesquisa. Desse modo, a amostragem se constituiu por conveniência, de forma não probabilística e não aleatória.

O Programa de Mentoria entre Pares foi desenvolvido para atender alunos do quarto período, no contexto do módulo “Desenvolvimento pessoal IV: relação médico-paciente”, no qual são trabalhados, entre outros aspectos, comunicação médica e anamnese. Os alunos matriculados no módulo são convidados a participar da mentoria de forma voluntária. Os mentores são voluntários do sexto ao décimo período, captados por meio de convites enviados por e-mail e mensagens nas redes sociais, que têm participação certificada como membros da equipe executora do programa e/ou como monitores do módulo. O perfil de ambos os grupos será apresentado na seção “Resultados”.

De 2021 a 2022, realizaram-se três jornadas de MEP compostas por quatro a seis encontros, com duração aproximada de duas horas, que ocorreram de forma virtual, por meio da plataforma Google Meet®, ou presencial. A cada jornada, a docente foi responsável pela definição da composição dos grupos, que contavam com duplas ou trios de mentores e quatro a seis mentorados cada. Todos os participantes tiveram oportunidade de manifestar discordância em relação à composição dos grupos, mas não foi registrado nenhum pedido de alteração dos grupos inicialmente propostos.

A capacitação dos mentores foi realizada em oficinas virtuais com a equipe do programa formada por discentes e docentes, além de profissionais convidados envolvidos com mentoria em outras universidades. Abordaram-se os seguintes temas: definição de mentoria, habilidades esperadas do mentor, tarefas a serem desempenhadas durante o programa e experiências exitosas e desafiadoras.

Os mentores promoveram dinâmicas interativas, compartilharam experiências acadêmicas, discutiram casos clínicos e fizeram treinamento de anamnese e comunicação médica, bem como comentaram o funcionamento e as dinâmicas dos próximos períodos do curso, visando fornecer orientação e suporte ao desenvolvimento dos participantes, a partir de um ambiente seguro e acolhedor para a troca de sentimentos, experiências e expectativas. Além dos encontros dos grupos de mentoria, houve encontros maiores, com todos os participantes de cada jornada, bem como eventos com a participação de profissionais e representantes de programas de MEP de outras universidades.

A análise das percepções dos mentores e mentorados foi feita por meio de questionários online autoaplicados, elaborados pela equipe de pesquisa a partir do instrumento desenvolvido por Kosoko-Lasaki et al.15. Os participantes foram informados sobre a investigação no primeiro encontro de mentoria, quando se garantiu o anonimato, obtiveram esclarecimentos sobre a pesquisa e assinaram o TCLE antes de responderem ao questionário, que possui perguntas abertas e fechadas em escala Likert que buscam avaliar a percepção dos estudantes sobre contribuições da mentoria no desenvolvimento acadêmico e pessoal. Os mentorados foram orientados a escolher um pseudônimo para que pudessem responder aos questionários. Eles responderam ao questionário 1 antes do início da mentoria (pré-teste) e ao questionário 2 após o último encontro (pós-teste) do ciclo de mentoria de que participaram. Os mentores responderam ao questionário 3 após o último encontro do ciclo de mentoria de que participaram.

Após a coleta, gerou-se um banco de dados em uma planilha do Microsoft Excel®. As perguntas objetivas foram transpostas para o programa Statistical Package for Social Science (SPSS), versão 21.0, para a realização das análises estatísticas simples e das frequências absoluta e relativa das variáveis. Para mensurar o grau de concordância dos respondentes, utilizou-se o ranking médio da escala Likert, atribuindo valor de 1 a 5 a cada resposta e calculando a média ponderada para cada item, de modo que valores finais menores que 3 são considerados como discordantes e maiores que 3 como concordantes. As questões abertas foram examinadas segundo a análise temática1616. Braun V, Clark V. Using thematic analysis in psychology. Qualitative Research. 2006;3(2):77-101., buscando identificar e compreender padrões temáticos, por meio da organização e descrição do conjunto de dados de modo detalhado.

RESULTADOS

Nas três jornadas de mentoria, 99 alunos do quarto período participaram como mentorados, e 45 alunos do sexto ao décimo período, como mentores.

Dos questionários aplicados aos mentorados, houve 66 respostas tanto ao pré-teste quanto ao pós-teste, equivalente a 67% dos participantes. Do questionário aplicado aos mentores ao final dos encontros, houve 39 respostas, equivalente a 87% dos participantes. Dadas as especificidades de cada grupo, serão apresentados inicialmente todos os resultados relativos aos mentorados e, a seguir, os resultados relativos aos mentores.

A média de idade dos mentorados foi de 23,5 anos, sendo a idade mais comum 23 anos. Um aluno preferiu não informar a idade. A menor idade entre os mentorados foi de 19 anos, e a maior, 36 anos. Entre os participantes, 36 (54,5%) informaram ser do gênero feminino e 28 (42,4%) do gênero masculino. Dois mentorados (3%) preferiram não identificar o gênero.

Nos questionários de pré-teste e pós-teste dos mentorados, havia quatro assertivas idênticas: “Me sinto preparado para as próximas atividades práticas do curso que envolvem atendimento ambulatorial”; “Estou satisfeito com as atividades de capacitação em habilidades de comunicação médica propostas pelo curso até agora”; “Estou satisfeito com o meu desenvolvimento acadêmico”; “Estou satisfeito com o meu desenvolvimento pessoal neste momento”. Para cada uma delas, o respondente poderia assinalar “concordo totalmente”, “concordo”, “neutro”, “discordo” ou “discordo totalmente”. A Tabela 1 demonstra a distribuição total e relativa das respostas dos mentorados, enquanto a Tabela 2 sintetiza o ranking médio das respostas.

Tabela 1
Respostas dos mentorados às perguntas em comum no pré e pós-teste.
Tabela 2
Ranking médio das respostas no pré e pós-teste.

Os dados das tabelas 1 e 2 mostram um incremento na percepção do preparo para as práticas do curso envolvendo atendimento ambulatorial, como também na satisfação com as atividades de capacitação em habilidades médicas. Nessas duas perguntas, o ranking médio das respostas passou de discordante para concordante após a realização da mentoria. A satisfação com o próprio desenvolvimento acadêmico e pessoal já era em média positiva no pré-teste, e houve aumento nessas duas variáveis, embora a ampliação da satisfação com o desenvolvimento pessoal tenha sido menos expressiva.

Além das quatro assertivas idênticas aplicadas aos mentorados no pré e pós-teste, também foram incluídas no pós-teste questões relacionadas à percepção da satisfação dos alunos após a aplicação da mentoria e sobre a relação com seus mentores. A Tabela 3 demonstra a distribuição das respostas dos mentorados a essas perguntas, com seus respectivos rankings médios.

Tabela 3
Respostas dos mentorados às perguntas exclusivas do pós-teste.

A partir dos dados da Tabela 3, nota-se que todos os mentorados consideraram o programa de mentoria efetivo e se sentiram agradecidos por terem se juntado. Com ranking médio menos expressivo, mas ainda positivo, as perguntas sobre a manutenção do contato com pelo menos um mentor e a facilitação do contato com pessoas que podem ser úteis tiveram maioria de concordantes. Houve maciça concordância quanto à percepção de que os mentores dividiram informações valiosas (apenas uma resposta neutra), e todos afirmaram respeitar o nível de conhecimento dos mentores. Quanto a considerar pelo menos um mentor como amigo, a resposta mais utilizada foi a neutra, o que ficou bem expresso no ranking médio de 3,02. Sobre compartilhar informações pessoais e revelar problemas pessoais aos mentores, essas foram as duas únicas variáveis em que houve discreta prevalência de discordantes, com rankings médios de 2,98 e 2,65, respectivamente. Por fim, a ampla maioria se sente mais preparada para avançar no curso após a participação nos encontros de mentoria e percebe que os mentores ajudaram os discentes no próprio desenvolvimento pessoal.

No questionário final dos mentorados, incluíram-se quatro perguntas abertas sobre as percepções deles acerca da mentoria, visando alcançar subjetividades não tangenciadas pelas questões objetivas.

A primeira pergunta foi: “Você percebe que os encontros de mentoria impactaram suas habilidades de comunicação médica? Se sim, como?”. Das 55 respostas, 54 apontaram que isso ocorreu de forma positiva, e uma indicou neutralidade. As respostas positivas trouxeram observações de melhoria nas habilidades de comunicação médica dos mentorados, como fortalecer o conteúdo teórico-prático sobre comunicação, compartilhar técnicas para a conversa com pacientes, possibilitar treinamento individual e em grupo da anamnese, receber feedback imediato durante o treinamento, simular anamnese de forma verossímil, aprender sobre linguagem não verbal, reduzir estresse e fortalecer autoconfiança. Um mentorado afirmou:

Esses encontros, ainda que curtos, possibilitaram a melhoria da minha comunicação médica à medida que ações individuais foram atreladas a feedbacks pontuais com exemplificações e sugestões de melhoria, inclusive valendo-se da própria vivência acadêmica dos mentores.

Com relação à segunda pergunta - “Você percebe que os encontros de mentoria impactaram seu desenvolvimento acadêmico? Se sim, como?” -, houve 56 respostas, das quais 54 indicaram que isso ocorreu de forma positiva. Um mentorado avaliou que não houve impacto significativo no desenvolvimento acadêmico, enquanto um relatou que ainda não podia avaliar. As respostas positivas trouxeram observações sobre o fortalecimento do conteúdo teórico-prático do curso, a compreensão da sua posição como acadêmico e da função em cada momento do curso, o que se espera do estudante, a percepção do desenvolvimento acadêmico a partir do contato com mentores mais avançados no curso, a socialização com colegas, o incentivo ao estudo, o aprendizado da anamnese, a redução da angústia e o aumento da preparação, segurança e responsabilidade. Um aluno escreveu:

Os encontros da mentoria proporcionaram uma aproximação da realidade da relação médico-paciente de modo mais efetivo do que aqueles utilizados em aula, além das diversas contribuições com experiências pessoais relatadas pelos mentores. Assim, esses encontros possibilitaram uma ampliação da visão do processo de condução da anamnese, impactando positivamente no meu desenvolvimento acadêmico.

Na terceira pergunta - “Você percebe que os encontros de mentoria impactaram seu desenvolvimento pessoal? Se sim, como?” -, houve 53 respostas, sendo 50 positivas e três neutras. As respostas positivas trouxeram observações sobre a redução da timidez, a saída da zona de conforto, a promoção do aprendizado de forma humanizada e respeitosa, o trabalho de preconceitos, o incentivo a aceitar e trabalhar as próprias falhas, o estímulo ao treinamento da comunicação e do comportamento, o aumento da confiança, segurança e autoestima, o compartilhamento de vivências e o enfrentamento dos desafios do curso, o contato com diferentes pontos de vista e o trabalho em grupo. Um mentorado avaliou como positivo o “estabelecimento de uma relação saudável com futuros colegas profissionais médicos, com lapidação de sentimentos interiores enriquecidos com o contato com acadêmicos mais experientes”. Outra resposta citou que “ouvir dos alunos como é na realidade com o paciente me tirou da zona de conforto de esperar uma história fixa, de lidar com os demais problemas pessoais do paciente e como eu devo lidar primeiro com os meus problemas e meus preconceitos para conseguir ajudar aquela pessoa”.

Quanto à última pergunta - “Você tem sugestões para aprimorar o Programa de Mentoria entre Pares? Se sim, quais?” -, houve 31 respostas que sugeriram a continuidade do projeto, o aumento da carga horária de encontros, a expansão do treinamento de habilidades médicas para exame físico e prescrição médica, a inclusão de atividades práticas, o rodízio de mentores para que todos os grupos tivessem contato com todos os mentores, a expansão do projeto para outros períodos e os momentos específicos para que os mentores levassem mais vivências da prática para compartilhamento.

Passando à análise das respostas dos mentores, sua média de idade foi de 24,5 anos, sendo a idade mais comum 24 anos. Um aluno preferiu não informar a idade. A menor idade entre os mentores foi de 23 anos, e a maior, 29 anos. Entre os participantes, 26 (67%) informaram ser do gênero feminino e 13 (33%) do masculino.

A Tabela 4 mostra a distribuição e o ranking médio das respostas às perguntas fechadas e objetivas do questionário dos mentores, que abordaram a percepção desses participantes sobre a efetividade da mentoria e sua relação com mentorados.

Tabela 4
Respostas dos mentores às perguntas do questionário.

A expressiva maioria dos mentores expressou que a mentoria foi efetiva e que se sentia agradecida e feliz por ter se juntado ao projeto. A maioria afirmou manter contato com pelo menos um mentorado, que estes dividiram informações valiosas e ajudaram a manter contato com pessoas que podem ser úteis. Todos relataram respeitar o nível de conhecimento dos mentorados. Quanto a considerar pelo menos um mentorado como amigo e ter contado algum problema pessoal, as frequências absolutas e o ranking médio - 3,13 e 3,08, respectivamente - mostram que houve distribuição semelhante de respostas discordantes, neutras e concordantes, com discreta prevalência destas últimas. A expressiva maioria afirmou que as interações com os mentorados a preparou para avançar no curso e auxiliaram no próprio desenvolvimento pessoal. A maioria dos mentores se sente preparada para as práticas que envolvem atendimento ambulatorial e afirmou estar satisfeita com o desenvolvimento acadêmico e pessoal. Quanto à satisfação com as atividades de capacitação propostas pelo curso, embora o ranking médio seja concordante (3,67), essa variável teve maior percentual de discordantes se comparada às demais perguntas sobre satisfação.

Quatro perguntas abertas foram incluídas no questionário dos mentores, sendo a primeira: “Você percebe que os encontros de mentoria impactaram suas habilidades de comunicação médica? Se sim, como?”. Houve 38 respostas positivas e uma negativa, e as principais justificativas para o “sim” foram o treinamento das habilidades propostas para que elas pudessem ser repassadas aos mentorados, a revisão da matéria que já foi vista anteriormente, o compartilhamento de conhecimentos com mentorados e o treinamento de diversas situações envolvendo pacientes. Uma resposta destacou:

Os encontros de mentoria me ajudaram a desenvolver ainda mais minhas habilidades de comunicação médica através da prática com meus pares (tanto do mesmo período quanto do período anterior), da revisão da matéria para poder guiá-los melhor durante a mentoria e do exercício mental de responder às demandas e dúvidas dos mentorados. Além disso, o raciocínio sobre a temática da comunicação médica, com o intuito de proporcionar aos mentorados um encontro proveitoso e inovador, também se tornou proveitoso para nós, mentores, na medida em que o treinamento das habilidades de comunicação dos mentorados também treina e refina habilidades nossas [dos mentores].

Em relação à segunda pergunta - “Você percebe que os encontros de mentoria impactaram seu desenvolvimento acadêmico? Se sim, como?” -, houve 38 respostas “sim” e uma resposta “não”, sendo os principais motivos para o “sim”: a revisão do conhecimento adquirido nos períodos anteriores; o raciocínio clínico para responder às demandas dos mentorados; a troca de informações entre os dois lados dos participantes da mentoria; e a integração ao meio acadêmico que ensinar os mentorados proporcionou. Um mentor respondeu:

Os encontros de mentoria impactaram positivamente no meu desenvolvimento acadêmico através do meu estudo/revisão dos temas abordados durante os encontros da mentoria, exigindo um maior discernimento e visão crítica de cada tópico, com o intuito de proporcionar aos mentorados uma abordagem inovadora, prática e proveitosa. E também, através do raciocínio clínico exigido para suprir demandas e dúvidas que eventualmente surgiram durante nossos encontros.

No que concerne à terceira pergunta - “Você percebe que os encontros de mentoria impactaram seu desenvolvimento pessoal? Se sim, como?” -, houve uma resposta negativa, sem discorrer sobre a questão. Eis as justificativas para as 38 respostas positivas: a melhora da comunicação durante os encontros; a superação do medo e da ansiedade que ensinar uma matéria pode gerar; a possibilidade de reflexão sobre o desenvolvimento adquirido ao longo do curso; a aplicação de habilidades médicas que são importantes no desenvolvimento pessoal, como a comunicação; o aprimoramento da desenvoltura perante outras pessoas/grupos. Um mentor afirmou:

A mentoria me fez perceber como evoluí ao longo do curso. Nós alunos somos frequentemente invadidos por sentimentos de insegurança em relação à nossa formação, um sentimento que esquecemos todas as matérias, que não seremos capazes, o que é absolutamente normal. A mentoria veio justamente para me mostrar que amadureci muito ao longo do curso e que o processo de construção do conhecimento é algo lento, que precisamos ter calma e mais confiança em nós mesmos.

Quanto à última pergunta - “Você tem sugestões para aprimorar o Programa de Mentoria entre Pares? Se sim, quais?” -, as principais sugestões foram: abordar temas além da anamnese, como o exame físico; ampliar a mentoria para outros períodos, como na transição do ciclo clínico para o internato; aumentar a quantidade de encontros entre mentores e mentorados.

DISCUSSÃO

As respostas dos mentores e mentorados aos questionários aplicados demonstram o sucesso do Programa de Mentoria na percepção dos participantes. Os resultados obtidos revelam, pela visão da ampla maioria, que a mentoria se mostrou efetiva, trazendo benefícios tanto para mentorados como também para mentores: os participantes consideraram positivo participar do programa, e mentor e mentorado possuíram respeito mútuo pelo conhecimento do outro. Estudos sobre outros programas de mentoria4-13,17,18 revelam resultados congruentes com os obtidos nesta pesquisa, apesar de descreverem metodologias distintas ou formas de mentoria diferentes, como na pesquisa de Kosoko-Lasaki et al.15, em que a mentoria ocorreu com pessoas em diferentes níveis dentro do ensino em saúde (ensino médio, graduação, pós-graduação, residência, preceptoria e profissionais universitários).

Após as jornadas de mentoria, a maior parte dos mentorados se sentiu mais preparada para as próximas atividades do curso com atendimento ambulatorial e mais satisfeita com o desenvolvimento acadêmico e com as atividades de capacitação em habilidades de comunicação médica ofertadas pelo curso, assim como afirmado por Acherman et al.1717. Acherman ND, Ribeiro AP, Lima LM, Cavalcanti ACD, Miranda TK, Oliveira GL. Mentoria entre pares: percepções de suporte social e ambiente educacional de estudantes de medicina. Rev Bras Educ Med . 2021;45(1):e100. doi: https://doi.org/10.1590/1981-5271v45.supl.1-20210080.
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, que descrevem mentores como norteadores de mentorados pelo curso, levando a maior satisfação com o desenvolvimento acadêmico e as habilidades médicas adquiridas. Enquanto isso, a maior parte dos mentores relatou que as interações com seus mentorados também os prepararam para avançar no curso, auxiliaram no desenvolvimento pessoal e acadêmico e que se sentiam preparados para as atividades práticas do curso que envolviam atendimento ambulatorial. Dessa forma, pode-se notar que os benefícios da MEP não se limitam apenas aos que recebem, mas também aos que aplicam. Ainda, o impacto dessa relação pode ser extrapolado para além dos benefícios individuais para mentorados e mentores, como descrito por diversos estudos44. Melillo VT, Ferreira ACO, Aquino APM, Alves MB, Meireles Junior PL, Leite RV. Mentoria entre pares no treinamento da comunicação médica: a perspectiva dos mentorados [resumo]. 59º Congresso Brasileiro de Educação Médica, 2021. Brasília: Abem; 2021. p. 887. doi: https://doi.org/10.53692/Anais2021COBEM.
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)-(1313. Frei E, Samm M, Buddeberg-Fischer B. Mentoring programs for medical students: a review of the PubMed literature 2000-2008. BMC Med Educ . 2010;10:e32. doi: https://doi:10.1186/1472-6920-10-32.
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),(1515. Kosoko-Lasaki O, Sonnino RE, Voytko ML, Salem W. Mentoring for women and underrepresented minority faculty and students: experience at two institutions of higher education. J Nat Med Assoc. 2006;98(9):1449-59 [acesso em 15 dez 2022]. Disponível em: Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/6774991_Mentoring_for_women_and_underrepresented_minority_faculty_and_students_Experience_at_two_institutions_of_higher_education .
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),(1717. Acherman ND, Ribeiro AP, Lima LM, Cavalcanti ACD, Miranda TK, Oliveira GL. Mentoria entre pares: percepções de suporte social e ambiente educacional de estudantes de medicina. Rev Bras Educ Med . 2021;45(1):e100. doi: https://doi.org/10.1590/1981-5271v45.supl.1-20210080.
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),(1818. Martins PMD, Bosak VX, Oliveski DLC, Hoff BBR, Salvados RF, Massena JRH. Mentoria entre pares na escola médica: uma estratégia colaborativa durante a pandemia da Covid-19. Rev Bras Educ Med . 2021;45(1):e118. doi: https://doi.org/10.1590/1981-5271v45.supl.1-20210143.
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: o desenvolvimento de habilidades médicas, soft skills e a qualidade das trocas estabelecidas dentro desse contexto também atingem o produto da formação acadêmica: o atendimento médico1818. Martins PMD, Bosak VX, Oliveski DLC, Hoff BBR, Salvados RF, Massena JRH. Mentoria entre pares na escola médica: uma estratégia colaborativa durante a pandemia da Covid-19. Rev Bras Educ Med . 2021;45(1):e118. doi: https://doi.org/10.1590/1981-5271v45.supl.1-20210143.
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, beneficiando também futuros pacientes dos médicos em formação.

Destaca-se que, no que diz respeito à satisfação com o desenvolvimento pessoal por parte dos mentorados, embora o ranking médio tenha se elevado no pós-teste, esse incremento foi mais discreto, não seguindo os padrões de expressiva melhora observados nas demais esferas. Apesar de não ser possível esclarecer, por meio dos dados levantados, a razão para tal diferença, os pesquisadores observaram que o questionário pós-teste foi aplicado em época de final de período dos mentorados, em que havia diversas avaliações e a percepção da pressão acadêmica e autocobrança era maior nesse período. Esse pode ter sido um motivo pelo qual a satisfação com o desenvolvimento pessoal não ter sido tão impactada naquele momento. Na literatura pesquisada, não foram encontrados estudos que descrevem a percepção do impacto no desenvolvimento pessoal por parte dos estudantes participantes, o que chama a atenção para um campo ainda pouco explorado.

Outro ponto a ser discutido é a percepção sobre a formação de laços de amizade, a manutenção de contato após a mentoria e o compartilhamento de informações e problemas pessoais durante a jornada. Quando se analisam os resultados obtidos, as respostas dos mentorados tendem para uma discreta discordância, enquanto as dos mentores apresentam discreta concordância. Em ambos os grupos, o ranking médio relativo a essas variáveis é próximo de 3, enquanto nas demais perguntas a concordância se mostrou muito mais expressiva. Esses dados estão em consonância com outros programas de mentoria, como relatado na pesquisa de Kosoko-Lasaki et al.1515. Kosoko-Lasaki O, Sonnino RE, Voytko ML, Salem W. Mentoring for women and underrepresented minority faculty and students: experience at two institutions of higher education. J Nat Med Assoc. 2006;98(9):1449-59 [acesso em 15 dez 2022]. Disponível em: Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/6774991_Mentoring_for_women_and_underrepresented_minority_faculty_and_students_Experience_at_two_institutions_of_higher_education .
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. Isso pode mostrar que a mentoria não foi capaz de consolidar relacionamentos estreitos e duradouros, provavelmente porque o desenvolvimento de habilidades médicas foi o tópico que recebeu maior investimento durante os encontros. A MEP, portanto, adquiriu um caráter mais instrumental - que privilegia o desenvolvimento de competência e habilidades - em detrimento do caráter suportivo - que tem como foco a criação de relacionamentos e vínculos de apoio55. Leite RV, Franzoi MAH. Diálogos entre dois programas de mentoria de pares em tempos de ensino remoto: desafios e possibilidades para cursos das ciências da saúde. Educação em Foco. 2022;25(45):110-29 [acesso em 3 jan 2023]. Disponível em: Disponível em: https://revista.uemg.br/index.php/educacaoemfoco/article/view/6412 .
https://revista.uemg.br/index.php/educac...
. A dificuldade na constituição de laços de amizade pode também estar relacionada ao fato de ter sido realizado um número limitado de encontros, preestabelecidos, a maioria on-line. No entanto, não foram notadas diferenças nas respostas dos participantes da mentoria exclusivamente virtual em comparação com a realizada de forma híbrida.

Programas de MEP já são realizados em diversas instituições de ensino para alunos no primeiro ano do curso, como descrito por Akinla et al.66. Akinla O, Hagan P, Atiomo W. A systematic review of the literature describing the outcomes of near-peer mentoring programs for first year medical students. BMC Med Educ. 2018;18(1):e98. doi: https://doi.org/10.1186/s12909-018-1195-1.
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e Andre et al.77. Andre C, Deerin J, Leykum L. Students helping students: vertical peer mentoring to enhance the medical school experience. BMC Res Notes. 2017;10(1):1-7 [acesso em 4 jan 2023]. Disponível em: Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5414204/ .
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, que demonstraram uma melhora nas habilidades que a mentoria objetivava trabalhar, nos âmbitos pessoal e profissional dos entrevistados. Apesar da diferença do período dos mentorados no curso, esses resultados positivos se mostraram concordantes com o observado neste estudo.

Um fator limitante à análise dos dados foi a impossibilidade de parear os indivíduos no pré e pós-testes, já que vários não se recordavam do pseudônimo escolhido no momento de preencher o pós-teste. Assim, os resultados permitiram a análise grupal, porém não a avaliação da percepção individual ao início e ao final das jornadas.

Percebe-se na literatura disponível a escassez de dados sobre programas de MEP na educação médica que ocorram em momentos distintos daquele de inserção no curso, o que dificultou a revisão bibliográfica para a estruturação desse programa e também a análise comparativa dos resultados obtidos com mentorias semelhantes de outros lugares. Apesar disso, fica claro que a aplicação da mentoria é benéfica em diferentes momentos do curso.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A MEP na transição para o ciclo clínico revelou-se estratégia promotora de desenvolvimento acadêmico e pessoal, na percepção dos participantes, estimulando o engajamento dos estudantes no processo de ensino-aprendizagem. Isso é possível por meio da troca de experiências entre quem já percorreu o caminho e aquele que iniciará o percurso55. Leite RV, Franzoi MAH. Diálogos entre dois programas de mentoria de pares em tempos de ensino remoto: desafios e possibilidades para cursos das ciências da saúde. Educação em Foco. 2022;25(45):110-29 [acesso em 3 jan 2023]. Disponível em: Disponível em: https://revista.uemg.br/index.php/educacaoemfoco/article/view/6412 .
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),(1717. Acherman ND, Ribeiro AP, Lima LM, Cavalcanti ACD, Miranda TK, Oliveira GL. Mentoria entre pares: percepções de suporte social e ambiente educacional de estudantes de medicina. Rev Bras Educ Med . 2021;45(1):e100. doi: https://doi.org/10.1590/1981-5271v45.supl.1-20210080.
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
. Com base na percepção positiva dos participantes, houve contribuições para mentorados e mentores, sendo a mentoria benéfica para a formação acadêmica dos alunos e potencialmente para os usuários dos serviços prestados por eles como médicos em formação.

É relevante destacar que tanto esta quanto grande parte das pesquisas sobre MEP avaliam a percepção dos participantes sobre a atividade, sendo passível de vieses em seus resultados, dada a dificuldade de estabelecer outras formas de avaliação dos impactos da mentoria no desenvolvimento dos participantes. Mais estudos com metodologias diversas, como aplicação de escalas, acompanhamento prospectivo ou análise de indicadores de êxito, podem incrementar a compreensão das contribuições da MEP para a formação médica. Em particular, espera-se que o caráter inovador da experiência aqui investigada estimule mais escolas médicas a investir na implantação e na análise das contribuições de programas de MEP que não se limitem ao momento de ingresso na universidade, abarcando outros momentos importantes de transição no curso, como o início do ciclo clínico.

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  • FINANCIAMENTO

    Bolsa de iniciação científica concedida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq): Edital nº CICT 002/2022 Pibic/CNPq/2022. Bolsista: Vitória Teixeira Melillo.

Editado por

Editora-chefe: Rosiane Viana Zuza Diniz. Editora associada: Maria Helena Senger.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    29 Mar 2023
  • Aceito
    06 Jun 2024
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