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O ensino de cuidados paliativos nas faculdades de Medicina de Salvador, Brasil: análise documental

The teaching of palliative care in Medical schools in Salvador, Brazil: document analysis

RESUMO

Introdução:

Cuidados paliativos são práticas multidisciplinares que visam promover qualidade de vida em condições de saúde crônicas, degenerativas e que ameacem a vida. A homologação do Parecer nº 265/2022 incluiu cuidados paliativos nas Diretrizes Curriculares Nacionais da graduação em Medicina. No entanto, muitas faculdades ainda não adaptaram seus currículos para contemplar essas competências. Diante desse contexto, questiona-se como é realizado o ensino de cuidados paliativos nas escolas de Medicina de Salvador, na Bahia.

Objetivo:

Este estudo teve como objetivo analisar evidências documentais do ensino de cuidados paliativos nas escolas de Medicina de Salvador.

Método:

Trata-se de um estudo qualitativo, exploratório, por análise documental. O corpus é composto pelas matrizes curriculares, pelas ementas das disciplinas e pelo currículo do corpo docente das seis escolas de Medicina de Salvador. A coleta de dados foi realizada entre dezembro de 2022 e maio de 2023. Nas matrizes curriculares, foi investigada a presença de componente curricular específico para cuidados paliativos, sua carga horária e metodologia. No corpo docente, analisou-se a presença de profissionais qualificados na área. Nas ementas, verificou-se a presença de temas centrais dos cuidados paliativos, estabelecidos por categorias a priori e sua carga horária.

Resultado:

Apenas um dos seis cursos de Medicina apresenta um componente curricular específico para o ensino de cuidados paliativos, de metodologia teórica e carga horária de 30 horas. Foi obtida informação do corpo docente de três escolas, das quais somente duas possuem profissionais especializados em cuidados paliativos. Nas ementas, “habilidades de comunicação” foi a categoria com mais unidades de registro (UR), “Conceitos em cuidados paliativos” teve o terceiro maior número de UR e “Avaliação e manejo de sintomas dolorosos” teve o menor número de UR.

Conclusão:

Podem-se perceber lacunas importantes no ensino médico em Salvador, com a ausência de componente curricular específico sobre cuidados paliativos na maioria das escolas. Foram percebidas deficiências na exposição de temas como manejo de sintomas dolorosos, critérios de elegibilidade para cuidados paliativos, áreas de atuação e comunicação de más notícias. Entretanto, a valorização do debate dos conceitos e princípios dos cuidados paliativos é uma boa oportunidade para adaptar o currículo às novas Diretrizes Curriculares Nacionais.

Palavras-chave:
Cuidados Paliativos; Educação Médica; Pesquisa Qualitativa

ABSTRACT

Introduction:

Palliative care is a multidisciplinary practice that aims to promote quality of life in chronic, degenerative, and life-threatening health conditions. The approval of report no. 265/2022 included palliative care in the National Curriculum Guidelines for undergraduate medicine. However, many colleges have not yet adapted their curricula to address these competencies. In this context, it is questioned how the teaching of palliative care is carried out in medical schools in Salvador-BA.

Objective:

To analyze documentary evidence of the teaching of palliative care in medical schools in Salvador.

Methodology:

This is a qualitative, exploratory study, based on document analysis. The corpus is composed of the curricular matrices, syllabi of the disciplines and curricula of the teaching staff at the 6 medical schools of Salvador-BA. Data was collected between December 2022 and May 2023. In the curricular matrices, the presence of a specific palliative care module, its class hours and methodology were investigated. For the teaching staff, the presence of qualified professionals in the area was investigated. For the syllabus, the presence of central themes of palliative care was verified, established by a priori categories and the respective class hours.

Results:

Only 1 of the 6 medical courses has a specific curricular module for the teaching of palliative care, with a theoretical methodology and 30 hours of class hours. Information was obtained from the teaching staff of three schools, of which only two have specialized palliative care professionals. In terms of the syllabus, “communication skills” was the category with the most Registration Units (RU), “Concepts in palliative care” had the third highest number of RU and “Assessment and management of painful symptoms” had the lowest number of RU.

Conclusion:

Important gaps in medical education in Salvador can be perceived, with the absence of a specific curricular component on palliative care in most schools. Deficiencies were found in the teaching of topics such as management of painful symptoms, eligibility criteria for palliative care, areas of activity and communication of bad news. However, valuing the debate on the concepts and principles of palliative care is a good opportunity to adapt the curriculum to the new National Curriculum Guidelines.

Keywords:
Palliative Care; Medical Education; Qualitative Research

INTRODUÇÃO

Os cuidados paliativos são um conjunto de práticas multidisciplinares que visam promover qualidade de vida para os pacientes e seus familiares em condições de saúde crônicas, degenerativas e que ameacem a vida, sejam elas doenças crônicas, doenças terminais, câncer, falência orgânica, prematuridade extrema, fragilidade extrema do idoso ou tuberculose resistente. Para isso, os profissionais procuram prevenir e aliviar a dor e o sofrimento, sejam eles físicos, psicossociais ou espirituais. Dessa forma, os cuidados paliativos reconhecem a morte como um processo natural, procurando não a adiar ou antecipá-la, mas dispondo de todos os recursos para garantir uma vida plena e de qualidade para os pacientes11. Pereira LM, Andrade SMO de, Theobald MR. Cuidados paliativos: desafios para o ensino em saúde. Rev Bioét. 2022;30(1):149-61.),(22. Carvalho RT de, Rocha JA, Franck EM, Crispim DH, Jales SMCP SM . Manual da Residência de cuidados paliativos: abordagem multidisciplinar. 2a ed. Editora Manole; 2002..

Trata-se, portanto, de uma prática pautada na medicina humanizada e de grande demanda, apesar de nem sempre ter essa necessidade suprida. Dados indicam que cerca de 40 milhões de pessoas precisam de cuidados paliativos anualmente no mundo, no entanto somente 14% os recebem33. World Health Organization. Cuidados paliativos. WHO; 2020 [acesso em 15 jun 2022]. Disponível em: Disponível em: https://www.who.int/es/news-room/fact-sheets/detail/palliative-care .
https://www.who.int/es/news-room/fact-sh...
. No Brasil, a maior parte das mortes ocorrem por doenças crônicas, e 57,2% dos pacientes nesse cenário seriam elegíveis para a realização de cuidados paliativos44. Santos CE dos, Campos LS, Barros N, Serafim JA, Klug D, Cruz RP. Palliative care in Brasil: present and future. Rev Assoc Med Bras. 2019;65(6):796-800.. Com o envelhecimento populacional e o consequente aumento da prevalência de doenças crônicas, a tendência é que a demanda por esse tipo de assistência aumente cada vez mais55. Castro AA, Taquette SR, Pereira CAR, Marques NI. Cuidados paliativos na formação médica: percepção dos estudantes. Rev Bras Educ Med. 2022;46(1):1-8.),(66. Castro AA, Taquette SR, Marques NI. Cuidados paliativos: inserção do ensino nas escolas médicas do Brasil. Rev Bras Educ Med . 2021;45(2):1-7..

O início dos cuidados paliativos data da década de 1960. Ao longo dos anos, cada vez mais serviços foram criados, o que garantiu a primeira definição da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre cuidados paliativos, em 1986, difundindo a prática em todo o mundo77. Macêdo JAL de J. Cuidados paliativos no Brasil: revisão sistemática [trabalho de conclusão de curso]. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2015. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/bitstream/ri/18581/1/Jefferson%20Ant%c3%83%c2%b4nio%20Lima%20de%20Jesus%20Mac%c3%83%c2%aado.pdf
https://repositorio.ufba.br/bitstream/ri...
. No Brasil, iniciativas isoladas existem desde a década de 1970, mas sua adoção como rotina nos serviços médicos públicos e privados tem sido vagarosa. A predominância do modelo biomédico e a associação equivocada com a eutanásia contribuíram para que a prática nem sempre fosse aceita por médicos e pacientes66. Castro AA, Taquette SR, Marques NI. Cuidados paliativos: inserção do ensino nas escolas médicas do Brasil. Rev Bras Educ Med . 2021;45(2):1-7.)-(88. Academia Nacional de Cuidados Paliativos. ANCP e cuidados paliativos no Brasil [acesso em 15 jun 2022]. Disponível em: Disponível em: https://paliativo.org.br/cuidados-paliativos/cuidados-paliativos-no-brasil/ .
https://paliativo.org.br/cuidados-paliat...
. No entanto, a difusão do conhecimento, o estímulo à prática da medicina humanizada e o reconhecimento de órgãos oficiais contribuíram para o crescimento da área nos últimos anos, como a inclusão dos cuidados paliativos na Política Nacional de Saúde, por meio da Resolução nº 41/2018, emitida pela Comissão Intergestores Tripartite do Ministério da Saúde77. Macêdo JAL de J. Cuidados paliativos no Brasil: revisão sistemática [trabalho de conclusão de curso]. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2015. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/bitstream/ri/18581/1/Jefferson%20Ant%c3%83%c2%b4nio%20Lima%20de%20Jesus%20Mac%c3%83%c2%aado.pdf
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),(99. Brasil. Resolução nº 41, de 31 de outubro de 2018. Diário Oficial da União; 2018. p. 276..

Em novembro de 2022, a homologação do Parecer nº 265/20221010. Brasil. Parecer CES/CNE no 265/2022. Resolução CES/CNE no3. Brasilia: CES/CNE; 2022. da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação (CES/CNE), que insere temas centrais de cuidados paliativos na graduação em Medicina, foi inovadora, colocando o Brasil entre os países que incluem essa área na educação médica. Devido à história recente no país, muitas faculdades de Medicina ainda não adaptaram seus currículos para contemplar o desenvolvimento dessas competências na formação dos estudantes do curso. Essa desatualização pode contribuir para uma formação deficitária de profissionais, impactando a qualidade do atendimento aos pacientes elegíveis para os cuidados paliativos. Diante desse contexto, surge o questionamento:

  • Com que frequência e distribuição é realizado o ensino de cuidados paliativos nas escolas de Medicina da cidade de Salvador?

Para responder a essa pergunta, o atual estudo analisou o currículo das escolas de Medicina de Salvador, por meio dos projetos pedagógicos dos cursos (PPC), verificando se há, de fato, o ensino do componente de cuidados paliativos ou de seus temas centrais. Com a análise documental das matrizes curriculares, das ementas das aulas, do corpo docente, dos cenários de prática e da carga horária empregada, procurou-se identificar a existência, distribuição e frequência do ensino desse componente da medicina, verificando sua implementação nos cursos de graduação.

MÉTODO

Trata-se de um estudo qualitativo, do tipo exploratório, por análise documental. O estudo segue os critérios de qualidade preconizados em Standards for Reporting Qualitative Researchs (SRQR)1111. O’Brien BC, Harris IB, Beckman TJ, Reed DA, Cook DA. Standards for reporting qualitative research: a synthesis of recommendations. Acad Med. 2014;89(9):1245-51. e JBI Manual for Evidence Synthesis do Joanna Briggs Institute1212. Aromataris E, Munn Z, editors. JBI manual for evidence synthesis. Joanna Briggs Insitute; 2021..

Amostra

O corpus deste estudo é composto pelas matrizes curriculares, pelas ementas das disciplinas e pelo currículo do corpo docente das escolas de Medicina de Salvador. Analisamos os documentos de seis cursos de graduação em Medicina pertencentes a duas instituições públicas (uma federal e uma estadual) e quatro particulares. Para preservar informações comerciais, as escolas particulares serão referidas como A, B, C e D.

Coleta de dados

A coleta de dados foi realizada no período de dezembro de 2022 até maio de 2023. Os documentos analisados (matrizes curriculares, ementas das aulas e currículos do corpo docente) foram obtidos por meio do acesso a esses materiais, quando disponíveis, nos websites oficiais das escolas de Medicina. Os documentos não disponibilizados nos websites para acesso do público foram requisitados por meio dos canais de comunicação oficiais das escolas. Excluíram-se as instituições que não disponibilizaram os documentos.

Análise de dados

O método de análise de dados utilizado foi a análise de conteúdo com a técnica preconizada por Bardin1313. Bardin L. Análise de conteúdo. 1a ed. São Paulo. Edições 70. 2016.. Esse tipo de análise possui como etapas a pré-análise (organização do conteúdo), a exploração do material (codificação e categorização), o tratamento dos resultados, as inferências e a interpretação.

Desse modo, iniciou-se a pré-análise com uma leitura flutuante dos documentos do corpus fazendo uma compreensão ampla do conteúdo. Já na fase de exploração, determinaram-se as unidades de registro - UR (palavras-chave e frases pertinentes ao nosso estudo). Nas matrizes curriculares, foram buscadas a presença e frequência de componentes curriculares descritos como “cuidados paliativos”, “medicina paliativa” ou “paliativismo”. Quando presente, analisou-se a carga horária destinada, bem como sua metodologia (teórica, prática ou teórico-prática). Os termos “cuidados paliativos”, “medicina paliativa” e “paliativismo” também foram utilizados na análise dos currículos do corpo docente das escolas. Nas ementas das aulas, verificaram-se a presença e frequência de temas centrais dos cuidados paliativos, bem como o componente curricular envolvido, sua carga horária e sua metodologia.

Apesar de existirem vários modelos nacionais e internacionais, não há um consenso curricular brasileiro para o ensino de medicina paliativa na graduação. Portanto, para definir esses temas centrais, utilizou-se como base o Parecer nº 265/2022 da CES/CNE, que altera as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) do curso de graduação em Medicina1010. Brasil. Parecer CES/CNE no 265/2022. Resolução CES/CNE no3. Brasilia: CES/CNE; 2022., incluindo os temas essenciais da prática paliativista no ensino dos graduandos. Dessa forma, foram definidas a partir dos temas centrais, por critério semântico, categorias a priori para a análise, dispostas no Quadro 1.

Quadro 1
Categorias a priori dos temas centrais de medicina paliativa.

As UR foram incluídas em uma planilha do programa Microsoft Excel 365 e organizadas por categoria. Após o registro, fez-se o tratamento dos dados obtidos por meio de operações estatísticas simples, com contagem das UR por categoria e subcategoria, porcentagem de UR por categoria e soma das cargas horárias dos componentes curriculares que possuíam UR pertinentes ao estudo. Essas operações permitiram a realização de inferências e interpretações para alcançar os objetivos da pesquisa.

RESULTADOS

Matrizes curriculares e corpo docente

A análise das matrizes curriculares foi composta pelos documentos de todos os seis cursos de graduação em medicina de Salvador. A leitura do material revelou que apenas um dos seis cursos de Medicina apresenta um componente curricular específico para o ensino de cuidados paliativos aos seus discentes. O componente, lecionado no oitavo período da universidade estadual, é descrito como “Tanatologia e Cuidados Paliativos”. Sua metodologia é exclusivamente teórica, com uma carga horária de 30 horas.

Com relação ao corpo docente, obtivemos informações das escolas A, B e da universidade estadual. Essa última indica a presença de um profissional especializado que leciona o componente. A escola A, apesar de não possuir componente curricular, informou que possui três profissionais especializados na área. Já a escola B informou não possuir profissionais especializados. Não foram obtidas respostas quanto ao corpo docente da universidade federal e das escolas C e D.

Categorias

As ementas dos cursos de Medicina das universidades estadual, federal e das escolas particulares A e B foram obtidas por meio do site oficial das instituições. A escola B informou que o PPC está passando por alterações. Dessa forma, os documentos de matriz curricular e os planos de ensino podem estar desatualizados. A escola C não disponibilizou as ementas para inclusão na análise, de forma que utilizamos a descrição do componente curricular, disponibilizado no site oficial, como fonte de informação. A escola D não retornou o contato; as ementas não foram disponibilizadas para análise.

A análise dos documentos das cinco escolas nos permitiu identificar 144 UR pertinentes às categorias preestabelecidas e às suas subcategorias, cuja distribuição consta no Gráfico 1. Dessas, 61 (42%) eram pertinentes à categoria de “habilidades de comunicação”, envolvendo, portanto, o ensino de comunicação de más notícias e comunicação médico-paciente. A segunda categoria com mais UR foi “terminalidade de vida” com 27 (19%). “Aspectos éticos e legais na medicina paliativa” obteve 18 unidades (13%), “conceitos em cuidados paliativos” contabilizou 17 (12%), “avaliação e manejo de sintomas não dolorosos” 12 (8%), e a categoria com menos UR registradas foi “avaliação e manejo de sintomas dolorosos” com nove (6%).

Gráfico 1
Distribuição das unidades de registro por categoria - Salvador, 2023.

A partir das UR identificadas nos ementários, registramos também as cargas horárias reservadas para o ensino dos respectivos componentes curriculares. Elas foram somadas para obter a carga horária total dos temas centrais de cuidados paliativos por escola. Do total da carga horária registrada, 61% corresponderam ao ensino de categorias de cuidados paliativos nas universidades públicas (federal e estadual), sendo a universidade estadual a que mais dedicou carga horária (34%). Outrossim, as três escolas particulares (A, B e C) foram responsáveis por 39% da carga horária para o ensino desses temas.

Destacam-se os resultados encontrados nas UR da categoria “conceitos em cuidados paliativos”, dispostas no Quadro 2. A universidade estadual é a única que apresenta UR para todas as três subcategorias. Dessas, as subcategorias “critérios de elegibilidade” e “áreas de atuação” para cuidados paliativos só tiveram unidades registradas em duas das cinco escolas.

Quadro 2
Unidades de registro da categoria “conceitos de cuidados paliativos” - Salvador, 2023.

A categoria “habilidades de comunicação” possui resultados expressivos com UR da subcategoria “relação médico-paciente” presente em todas as escolas, como registrado no Quadro 3. Já a subcategoria “comunicação em más notícias” foi mencionada em duas das cinco escolas de Salvador.

Quadro 3
Unidades de registro da categoria “habilidades de comunicação” - Salvador, 2023

A categoria “avaliação e manejo de sintomas dolorosos” apresentou lacunas relacionadas ao ensino, as quais podem ser verificadas nas subcategorias ilustradas no Quadro 4; a categoria “manejo não farmacológico da dor” não possui nenhuma UR.

Quadro 4
Unidades de registro da categoria “avaliação e manejo de sintomas dolorosos” - Salvador, 2023.

DISCUSSÃO

Componente curricular

Apesar de a mera presença de um componente curricular inferir um pioneirismo no ensino de cuidados paliativos, a presença em somente uma das seis escolas corrobora o cenário de lenta implantação dessa área na saúde pública brasileira. Ademais, a carga horária para o componente curricular de cuidados paliativos demonstra uma inferioridade se comparada com estudos anteriores. Esses indicam que as experiências de escolas brasileiras de Medicina possuem uma mediana de carga horária de 46,9 horas no ensino dessa área, embora existam variações nos formatos modulares66. Castro AA, Taquette SR, Marques NI. Cuidados paliativos: inserção do ensino nas escolas médicas do Brasil. Rev Bras Educ Med . 2021;45(2):1-7.. É notável também a distribuição de carga horária para o ensino das categorias de cuidados paliativos por escola, que demonstraram um maior tempo dedicado ao ensino dos temas pelas universidades públicas se comparadas às escolas particulares incluídas no estudo. Esse resultado infere uma desigualdade na oferta de instrução sobre o tema entre as escolas e uma lacuna importante na formação dos estudantes.

Outrossim, é notável a importância da metodologia teórica para a construção do conhecimento dos alunos acerca do tema, capacitando-os para a vivência prática. No entanto, a ausência de um cenário de prática com profissionais qualificados, como identificado na presente análise documental, pode prejudicar o desenvolvimento de competências e habilidades. O contato com a medicina paliativa somente na carreira profissional pode causar insegurança e gerar condutas equivocadas pelos profissionais, como demonstrado em outros estudos1414. Ferri C, Lemos P de. Avaliação do conhecimento em cuidados paliativos em estudantes durante o curso de medicina. Rev Bras Educ Med . 2017;41(2):278-82.)-(1616. Souza NCR de, Oliveira JYML de, Campanholo L de O, Fernandes VLS. Conhecimento dos acadêmicos de Medicina e médicos sobre cuidados paliativos: aplicação do questionário BPW. Rev Bras Educ Med . 2022;46(4):1-9.. Em um estudo transversal feito com médicos, Brugugnolli et al.1717. Brugugnolli ID, Gonsaga RAT, Silva EM da. Ética e cuidados paliativos: o que os médicos sabem sobre o assunto? Rev Bioét . 2013;21(3):477-85. verificaram que, apesar de 47,4% admitirem um conhecimento bom no âmbito dos cuidados paliativos, apenas 2,6% conseguiram conceituá-los corretamente. Costa et al.1818. Costa NS, Fonseca NM, Santos IA, Paulino GM, Carvalho JO, Vieira ADFP. Cuidados paliativos: conhecimento dos formandos de Medicina de uma instituição de ensino superior de Goiás. Rev Bras Educ Med . 2021;45(4):1-8. também constataram esse fato em uma escola de Goiás, em que 86,5% dos recém-formados consideravam seus conhecimentos inapropriados para atuação. Cenário semelhante pode ocorrer com os estudantes soteropolitanos, devido a essa metodologia.

Conceitos em cuidados paliativos

Pelos resultados, é perceptível que há uma maior preocupação das escolas de Medicina soteropolitanas no ensino dos conceitos de cuidados paliativos, corroborada pela presença da abordagem dos princípios dessa prática médica em quatro das cinco escolas. Isso demonstra uma concordância com o novo Parecer nº 265/2022 da CES/CNE, que acrescenta às DCN dos cursos de graduação em Medicina, no artigo 23, inciso VII, a exigência do ensino em: “Conhecimento da abordagem, dos conceitos e da filosofia dos cuidados paliativos e hospice”. Apesar de apresentar uma relativa valorização desse tema, ainda existem lacunas. Enquanto a maioria das escolas aborda os princípios de cuidados paliativos, poucas se aprofundam na aplicabilidade deles, tais como seus critérios de elegibilidade e áreas de atuação, mencionadas em somente duas das cinco escolas. Esse fato limita o conhecimento adquirido pelos estudantes e fere as novas DCN que demandam em seu artigo 6º, inciso III, que o graduando seja capaz de atuar “de acordo com princípios e a filosofia dos cuidados paliativos, bem como identificar os critérios de indicação para cuidados paliativos precoces”1010. Brasil. Parecer CES/CNE no 265/2022. Resolução CES/CNE no3. Brasilia: CES/CNE; 2022..

Outrossim, o presente estudo investiga a evidência documental do ensino, que pode não corresponder à percepção dos estudantes do seu próprio conhecimento. Estudos realizados em outras escolas de Medicina do Brasil identificaram essas deficiências. Em uma escola de Santa Catarina, mais da metade dos estudantes negou ter conhecimentos suficientes para cuidar de pacientes terminais1919. Orth LC, Haragushiku EY, Freitas ICS, Hintz MC, Marcon CEM, Teixeira JF. Conhecimento do acadêmico de medicina sobre cuidados paliativos. Rev Bras Educ Med . 2019;43(1)286-95.. Outro estudo, com estudantes de São Paulo, identificou que a maioria dos alunos não conhece a definição de cuidados paliativos da OMS (61%) e não se sente à vontade para comunicar más notícias aos pacientes e familiares, o que está associado também à ausência de experiências práticas para consolidar o conhecimento teórico2020. Pinheiro TRSP. Avaliação do grau de conhecimento sobre cuidados paliativos e dor dos estudantes de medicina do quinto e sexto anos. Mundo Saúde. 2010;34(3):320-6., cenário que pode se repetir nas escolas soteropolitanas.

Habilidades de comunicação

A categoria mais contemplada em UR foi a de habilidades de comunicação. Isso revela uma valorização positiva das escolas médicas de Salvador, com uma formação mais humanística, pautada em uma boa interação médico-paciente e na cooperação entre eles. No entanto, enquanto a abordagem de uma melhor relação médico-paciente ganha cada vez mais espaço nas escolas de Medicina, o ensino da comunicação de más notícias ainda é insuficiente. Das 61 UR dessa categoria, somente 12 estão relacionadas com a comunicação de más notícias.

Esse fato revela uma deficiência que já foi percebida em outros estudos, que ainda revelam a ansiedade e o despreparo de médicos diante dessas situações, bem como a necessidade de contato prático na formação para que possam ter maior segurança na atuação2121. Souza TIM e, Assis LC de, Silva LO da, Souza THOM e, Tadeu H de AC, Campos MEC, et al. Sentimentos dos estudantes de Medicina e médicos residentes ante a morte: uma revisão sistemática. Rev Bras Educ Med . 2020;44(4):1-8.)-(2323. Malta R, Rodrigues B, Priolli DG. Paradigma na formação médica: atitudes e conhecimentos de acadêmicos sobre morte e cuidados paliativos. Rev Bras Educ Med . 2018;42(2):34-44.. Slort et al.2424. Slort W, Blankenstein AH, Deliens L, Van Der Horst HE. Facilitators and barriers for GP-patient communication in palliative care: a qualitative study among GPs, patients, and end-of-life consultants. Br J Gen Pract. 2011;61(585):167-72. identificaram que, na opinião de pacientes em cuidados paliativos, a maior dificuldade na comunicação com o médico é a falta de iniciativa dele para abordar assuntos de terminalidade da vida e prognósticos desfavoráveis. Por sua vez, especialistas identificaram a dificuldade de lidar com emoções e clareza insuficiente na explicação ao paciente como principais obstáculos. Esses achados demonstram que somente a capacidade de se comunicar não é suficiente diante dessas situações de difícil manejo, inerentes a muitos cenários da prática paliativista.

Avaliação e manejo de sintomas dolorosos

Um resultado que chama a atenção é a desvalorização do manejo da dor nas escolas de Medicina, cuja categoria aparece com menos UR. A análise documental revelou ausências preocupantes nas subcategorias de ensino da fisiopatologia da dor, uso de opioides e manejo não farmacológico. Ainda em 1982, já se identificava que o alívio do sofrimento era considerado um dos objetivos primários da medicina por pacientes e leigos, mas pouca atenção era dada ao ensino, à pesquisa e à prática médica. Em situações elegíveis para cuidados paliativos, como em doenças crônicas e terminais, a dor é percebida não somente como um sintoma físico, mas também como uma ameaça à vida e à integridade do paciente como pessoa, gerando ainda mais sofrimento2525. Cassel EJ. The nature of suffering and the goals of medicine. The New England Journal of Medicine. 1982;306(11): 639-45., o que torna imperativo o conhecimento dos médicos em seu manejo.

Um outro estudo demonstrou que cerca de 40% dos estudantes acreditam ter recebido informação suficiente sobre o manejo de pacientes com dor, e metade acredita ter recebido informação suficiente sobre o controle de sintomas em pacientes terminais. Entretanto, 66% não conheciam a “escada” de manejo da dor, preconizada pela OMS, não se sentem seguros para iniciar o tratamento analgésico para um paciente oncológico, bem como não sabem qual a medicação e a dose adequada de opioide para início do tratamento2020. Pinheiro TRSP. Avaliação do grau de conhecimento sobre cuidados paliativos e dor dos estudantes de medicina do quinto e sexto anos. Mundo Saúde. 2010;34(3):320-6.. Esse resultado é preocupante, no sentido que demonstra uma lacuna importante no ensino de um aspecto crucial na prática médica e nos cuidados paliativos.

O presente estudo traz uma análise do ensino médico na cidade de Salvador, no tocante à abrangência da abordagem de cuidados paliativos para os discentes, que ainda não havia sido realizada. Dessa forma, puderam-se apontar avanços no ensino dessa área da medicina, suas lacunas e possibilidades de crescimento. Neste estudo, estão ausentes documentos e informações que não foram disponibilizados, seja pela negativa de compartilhamento ou por impossibilidade de contatar as instituições. Destaca-se que a presente análise consiste no estudo documental de informações, de forma que a percepção, seja de estudantes ou docentes sobre o tema, não foi contemplada, o que possibilita que novos estudos sejam feitos para complementar os presentes achados.

CONCLUSÃO

Este estudo se propôs a investigar a evidência documental do ensino de cuidados paliativos nas escolas médicas de Salvador, incluindo componente curricular específico, seus temas centrais, carga horária, cenário de prática e presença de docentes especializados. A partir dos dados obtidos, pode-se perceber que existem lacunas importantes no ensino médico em Salvador, com a ausência de um componente curricular específico sobre cuidados paliativos na maioria das escolas, além de deficiências na exposição de temas pertinentes a área, como manejo de sintomas dolorosos, critérios de elegibilidade para esses cuidados, áreas de atuação e comunicação de más notícias. Além disso, a carga horária para o ensino desses temas também se mostrou desigual entre as escolas públicas e privadas. Com a aprovação das novas DCN para o curso em 2022, a tendência é que maior foco seja dado a esse tema pelas escolas médicas, de forma que as propostas pedagógicas dos cursos podem mudar em breve.

Apesar dessas ausências, foi percebida uma valorização do debate sobre os conceitos e princípios dos cuidados paliativos, a terminalidade da vida e os aspectos éticos e legais da medicina paliativa, ainda que diluídos ao longo do curso de Medicina. Nesse quesito, as universidades públicas se destacam com uma maior carga horária registrada para o ensino de temas de cuidados paliativos. Destarte, algumas escolas soteropolitanas apresentam uma boa iniciativa em abordar o tema e possuem uma boa oportunidade para adaptar seus currículos às novas demandas educacionais, visto que algumas instituições já possuem profissionais qualificados na área de cuidados paliativos. Ainda que em um cenário incipiente, o pioneirismo de algumas escolas, como a universidade estadual, é exemplar, devendo incentivar as demais instituições a se dedicar mais aos temas e sanar suas deficiências.

REFERÊNCIAS

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  • FINANCIAMENTO

    Declaramos não haver financiamento.

Editado por

Editora-chefe: Rosiane Viana Zuza Diniz. Editor associado: Roberto Esteves.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    05 Jan 2024
  • Aceito
    12 Maio 2024
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