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Efeito de grupos de apoio entre pares na saúde mental de estudantes da saúde

Peer support’s effects in health students’ mental health

RESUMO

Introdução:

Os grupos de apoio entre pares se valem do construto do apoio social e são formados por membros que apresentam características comuns. Os grupos podem ser utilizados em diversos contextos para a manutenção da saúde mental de seus participantes. Em 2020, criaram-se os grupos de apoio entre pares da FCM/Unicamp, nos quais, para avaliar os efeitos na saúde mental de seus participantes, foi realizada a pesquisa apresentada neste artigo.

Objetivo:

Este estudo teve como objetivo avaliar o efeito dos grupos de apoio entre pares na saúde mental de estudantes universitários da área da saúde, visando compreender as percepções deles, assim como comparar o apoio social percebido pelos participantes e não participantes dos grupos.

Método:

Para análise qualitativa, realizaram-se entrevistas em profundidade com os participantes dos grupos, que posteriormente foram submetidas à análise temática.

Resultado:

Observou-se que a criação de uma identidade grupal e a identificação de problemas comuns aos participantes auxiliaram na construção do vínculo que, por sua vez, foi essencial para o exercício da função de apoio social dos grupos.

Conclusão:

Tem-se reforçado o efeito benéfico e protetivo dos grupos para a saúde mental de seus participantes. Assim, concluímos que os grupos de apoio entre pares são uma estratégia de apoio social versátil e viável de se aplicar em ambientes universitários, podendo auxiliar na manutenção do bem-estar psicológico de seus participantes.

Palavras-chave:
Estudantes de Medicina; Processos Grupais; Saúde Mental; Apoio Social; Apoio de Pares

ABSTRACT

Introduction:

Peer support draws on social support and is formed by members who share common characteristics; the group can be used in different contexts to maintain the participants’ mental health. FCM/Unicamp peer support groups were created in 2020. This research was conducted to assess the effects of these groups on the participants’ mental health.

Objective:

To evaluate the effects of peer support groups on the mental health of health students; to understand the views of those students and compare the view of participants and non-participants regarding social support.

Method:

For qualitative analysis, in-depth interviews were carried out with participants and subsequently subjected to thematic analysis.

Results:

It was observed that the creation of a group identity and identification of common problems helped to build bonds which, in turn, were essential for the groups’ social support function.

Conclusion:

Qualitative analysis reinforced the beneficial and protective effect of the groups on the participants’ mental health. Thus, we conclude that peer support is a versatile and viable social support strategy to be applied in university environments, helping to maintain the participants’ psychological well-being.

Keywords:
Group Processes; Mental Health; Social Support; Medical Students; Peer Support

INTRODUÇÃO

Conforme se reforça o debate sobre saúde mental, evidencia-se a necessidade de adoção de estratégias que sirvam para a manutenção do bem-estar psicológico. O apoio social é uma dessas estratégias e pode ser entendido como um construto que se insere nas relações interpessoais, incrementando a qualidade funcional destas, de forma a permitir a percepção pelo indivíduo de informações e assistência ofertadas por outras pessoas (ou grupos), promovendo assim emoções e comportamentos positivos. Ainda, o apoio social permite o reconhecimento da dimensão da reciprocidade dessas relações, de forma que existam benefícios tanto para aquele a quem é oferecido suporte quanto para aquele que o oferta11. Goņçalves TR, Pawlowski J, Bandeira DR, Piccinini CA. Avaliação de apoio social em estudos brasileiros: aspectos conceituais e instrumentos. Ciênc Saúde Colet. 2011;16(3):1755-69.. Os grupos de apoio entre pares (peer support) são uma das bases desse construto22. Byrom N. An evaluation of a peer support intervention for student mental health. J Ment Health. 2018;27(3):240-6. doi: https://doi.org/10.1080/09638237.2018.1437605.
https://doi.org/https://doi.org/10.1080/...
. Esses grupos são compostos por indivíduos que apresentam uma característica ou uma experiência comuns marcadoras dos pares. Essa marcação, por sua vez, pode se dar da forma mais diversa possível e basear-se em uma mesma identidade de gênero, estudo em mesma instituição de ensino, determinada condição de saúde ou sofrimento psíquico semelhante. A partir da percepção dessa marcação pelos participantes que se enxergam enquanto pares, os objetivos dos grupos podem ser atingidos33. Bridson TL, Jenkins K, Allen KG, McDermott BM. PPE for your mind: a peer support initiative for health care workers. Med J Aust. 2021;214(1):8-11.e1.. É importante que se adotem como alicerce de seu funcionamento princípios que visam ao respeito, aos acordos comuns e à responsabilidade compartilhada44. Mead S, Sw M, Hilton DW, In H, Cord CON, Curtis L, et al. Peer support: A theoretical perspectiva. Psychiatr Rehabil J. 2001;25(2):134-41.. A estratégia de grupos já é empregada em serviços de saúde mental, cujos resultados são apontados como positivos55. Campos FAL, Sousa ARP de, Rodrigues VP da C, Marques AJP da S, Dores AAM da R, Queirós CML. Peer support for people with mental illness. Rev Psiquiatr Clín. 2014;41(2):49-55. pelos próprios participantes e pelos membros de equipes de saúde66. Mulvale G, Wilson F, Jones S, Green J, Johansen KJ, Arnold I, et al. Integrating mental health peer support in clinical settings: lessons from Canada and Norway. Healthc Manage Forum. 2019;32(2):68-72..

Uma vez que podem se basear nas mais diversas formas de marcação de pares, os grupos de apoio apresentam-se como interessante estratégia para a manutenção do bem-estar psicológico de seus participantes, possibilitando que se realize qualquer recorte grupal que se deseje. Um grupo que pode se beneficiar desse modelo é o de estudantes universitários, que apresentam sofrimento mental que, com frequência, se associa - ou é agravado pela - à sobrecarga letiva, ao distanciamento familiar e à sociabilidade universitária. Os estudantes da área da saúde são apontados como mais vulneráveis, com a elevada carga emocional a que são submetidos, quando se consideram o contato com processos patológicos, a impotência diante de alguns desses processos e o receio de cometer erros77. Gaiotto EMG, Trapé CA, Campos CMS, Fujimori E, Carrer FC de A, Nichiata LYI, et al. Resposta a necessidades em saúde mental de estudantes universitários: uma revisão rápida. Rev Saúde Pública. 2021;55:114.. No Brasil, os estudantes de Medicina tendem a manifestar ansiedade, além de níveis mais elevados de depressão e burnout que a população geral88. Pacheco JPG, Giacomin HT, Tam WW, Ribeiro TB, Arab C, Bezerra IM, et al. Mental health problems among medical students in Brazil: a systematic review and meta-analysis. Rev Bras Psiquiatr. 2017;39(4):369-78..

Com o objetivo de avaliar os efeitos de grupos de apoio entre pares na saúde mental de seus participantes, foi realizada uma pesquisa qualitativa com grupos de apoio entre pares da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), visando à compreensão das percepções dos participantes dos grupos e à comparação do apoio social percebido por estudantes que participaram dos grupos e estudantes que não participaram.

MÉTODO

Os grupos de apoio entre pares da FCM/Unicamp, objeto de estudo da pesquisa, foram criados em 2020, num contexto de sofrimento, sobretudo no que tange a saúde mental, advindo da pandemia de Covid-19 e de seus desdobramentos, tendo como objetivo aproximar os discentes nesse momento de isolamento e, também, acolher os anseios deles. O modelo adotado para a operação dos grupos foi o proposto por Vasconcelos et al.99. Vasconcelos EM, Lotfi G, Braz R, Lorenzo R di, Reis TR. Manual [de] ajuda e suporte mútuos em saúde mental: para facilitadores, trabalhadores e profissionais de saúde e saúde mental. Rio de Janeiro: Escolada do Serviço Social da UFRJ; 2013. 231 p., no qual dois membros de cada grupo são indicados para atuar na função de “facilitadores”: um responsável pelo cumprimento de um conjunto de regras preestabelecidas pelo grupo (que constituem o contrato do grupo) e pela garantia de que a fala circule entre todos os participantes; e outro responsável pelo incentivo da participação de todos, seja a partir da introdução de assuntos a serem discutidos ou do compartilhamento de experiências e mecanismos empregados para enfrentamento de problemas comuns partilhados pelo grupo. Nessa configuração, a facilitação foi composta sempre por um aluno residente do programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental da FCM e um discente do curso de Medicina. Para melhor capacitação da equipe de facilitadores, realizaram-se supervisões inicialmente semanais e, depois, quinzenais, nas quais eram discutidos eventos relevantes aos grupos e, para além disso, textos referentes ao funcionamento de grupos de pares e ao processo subjetivo grupal.

Ao longo do primeiro ano de operação dos grupos, formaram-se cinco grupos diferentes, apenas com participantes estudantes do curso de Medicina da FCM, com frequência semanal de encontros, com duração média de 60 a 90 minutos, realizados pela plataforma Google Meet, serviço de comunicação por videochamadas. Em 2021 e 2022, o projeto continuou mantendo moldes semelhantes e se expandiu, contando com participantes dos cursos de Fonoaudiologia (também da FCM) e de Enfermagem (da Faculdade de Enfermagem da Unicamp). Em 2021, o projeto contava com quatro grupos, com 17 alunos no total: um de Fonoaudiologia, um de Enfermagem e 15 de Medicina.

Ao final de 2021, deu-se início à pesquisa para análise dos efeitos desses grupos na saúde mental de seus participantes.

Para análise qualitativa, foram realizadas 15 entrevistas qualitativas em profundidade1010. Pope C, Mays N, editors. Qualitative research in health care. 3rd ed. Massachusetts: BMJ, Blackwell; 2006. v. 320,1729 p.) com participantes e facilitadores dos grupos que participaram ao longo do ano de 2021. No início da entrevista, era feita a seguinte pergunta disparadora:

  • Se você precisasse descrever como foi sua experiência no grupo de apoio entre pares, considerando os pontos positivos e negativos, o que possa ter beneficiado você ou seus colegas de grupo, e o que possa ter prejudicado você ou seus colegas, o que diria?

Após, eram feitas perguntas pertinentes à resposta do entrevistado com o objetivo de melhor explorar a percepção dele sobre a participação nos grupos. As entrevistas foram realizadas de forma remota, por meio de videochamadas, e gravadas para que fosse possível efetuar as transcrições. Quando os entrevistados haviam participado do grupo sob facilitação de um dos autores desta pesquisa, outro colaborador foi indicado para realizar as entrevistas, de maneira a evitar constrangimentos dos entrevistados. Em seguida, as informações obtidas foram submetidas à análise temática, na qual há agrupamento dos trechos das entrevistas em temas comuns que, depois, são agrupados em categorias específicas.

RESULTADOS

No Quadro 1, apresentamos o agrupamento de trechos das entrevistas e de suas respectivas categorizações na análise temática, bem como indexadores referentes a gênero, idade e curso do participante. Em seguida, as nove categorias de análise são descritas.

Quadro 1
Exemplos de falas pertinentes a cada categoria de análise.

Motivação/expectativa para participar dos grupos

O contexto de pandemia e isolamento social motivou os discentes a participar dos grupos de apoio entre pares. Muitos deles, em especial aqueles que estavam no primeiro ano da graduação, relataram um sentimento de solidão, de forma que enxergaram os grupos como meio para que tivessem maior contato com colegas de curso e, em uma dimensão simbólica, com a própria faculdade. Ainda, os participantes esperavam encontrar nos grupos uma rede de apoio que fosse capaz de trabalhar as angústias deles.

Os facilitadores, por sua vez, apresentaram como principal motivação de assumir esse papel a vontade de fornecer apoio a seus colegas de curso.

Uma expectativa não concretizada consistiu em encontrar nos grupos um espaço no qual fosse possível dividir toda e qualquer questão de vida. Isso evidencia a tendência que alguns grupos possuíram de se tornar espaço reservado apenas para algumas temáticas específicas, como problemas relacionados à faculdade, e que, quando algo não correspondia ao tema pré-delimitado, o participante optava por não compartilhar sua questão com o grupo, para não romper a dinâmica grupal estabelecida.

Foi apontado, também, o receio que alguns participantes tinham de se inserir em uma dinâmica grupal com pessoas que ainda não conheciam, mas isso foi superado à medida que se estabeleceu um vínculo grupal. Um facilitador associou o receio da dinâmica grupal ao medo de não conseguir acolher de forma eficiente seus colegas de grupo, uma vez que havia o pressuposto de possuir uma maior responsabilidade pelo acolhimento dos pares por parte dos facilitadores.

Grupos, pandemia e isolamento social

Os grupos foram apontados como espaço de interação, principalmente no contexto de pandemia, de modo a suprir a privação de contato a que os estudantes estavam submetidos, o que corrobora uma das principais motivações que os participantes tiveram para iniciar suas atividades nos grupos. Dessa forma, os grupos propiciaram uma aproximação entre seus participantes, o que auxiliou na construção de vínculo e na sensação de pertencimento à universidade.

A dinâmica dos grupos foi afetada com o processo de reabertura da faculdade no segundo semestre de 2021, com a adoção do ensino híbrido, talvez por inicialmente terem adquirido função de espaço de sociabilidade num momento de isolamento social, que pode ter sido apagada justamente pelo contato social mais próximo proporcionado por atividades presenciais, afrouxando o vínculo grupal. Ainda assim, outros participantes relataram que os grupos se mantinham como um espaço único na faculdade, no qual havia a possibilidade de elaboração e partilha de problemas comuns, o que é reforçado quando analisada a percepção da função do grupo pelos participantes.

Pertencimento e vínculo

Havia entre os entrevistados uma sensação de pertencimento não apenas ao grupo, mas também à faculdade, motivada pela percepção de angústias e problemas comuns entre seus pares. Dessa forma, eles tinham reforçada e validada sua identidade enquanto estudantes.

Em relação à percepção do vínculo estabelecido no grupo, observaram-se duas tendências: em uma, o vínculo era percebido como algo que extrapolava a estrutura formal do grupo, e, na outra, o vínculo se restringia aos espaços em que ocorriam as dinâmicas grupais. A primeira se traduziu na percepção de alguns participantes do vínculo estabelecido num sentido de amizade, possibilitando interações com seus pares em ambientes diferentes daqueles reservados às atividades do grupo. A segunda, por sua vez, foi revelada nas falas de entrevistados que concebiam o vínculo como intrínseco ao processo grupal, visando a um trabalho conjunto dos componentes do grupo para que se atingisse a tarefa grupal, em especial, de acolhimento e compartilhamento.

Percepções sobre pares

Percebeu-se que a identificação de pares como estudantes da área da saúde facilitava o compartilhamento de problemas referentes à faculdade pelos participantes, ao mesmo tempo que validava problemas e sentimentos compartilhados. Esses problemas partilhados não se restringiam apenas à característica inicial definidora dos pares, o que permitiu que os grupos identificassem outros pontos comuns entre seus participantes, como questões familiares.

Considerando o reconhecimento de diferenças entre os participantes, destacam-se o pertencimento a anos diferentes da graduação, os cursos diferentes ou os momentos diferentes da formação profissional (em especial, participantes estudantes da graduação e facilitadores residentes em saúde mental). O principal problema relacionado a essas diferenças foi a necessidade de explicar determinados assuntos que exigiam conhecimentos implícitos à vivência enquanto estudante de determinado curso. Ainda assim, houve valorização positiva das diferenças, como a participação de pares de anos diferentes do mesmo curso, uma vez que aqueles de anos mais iniciais viam no grupo a possibilidade de sanar dúvidas referentes ao curso com aqueles de anos mais à frente, ao mesmo tempo que os participantes de anos mais avançados expressaram gratificação em poder auxiliar seus colegas e também se sentiam validados em suas experiências prévias e sentimentos.

Uma vez que a maioria dos participantes era composta por estudantes do curso de Medicina, havia a necessidade de que o grupo se esforçasse para que fosse possível incluir todos nas discussões que se restringiam a esse curso. A maioria dos participantes percebeu a diferença de curso como algo positivo para o processo grupal, permitindo a identificação de problemas comuns aos cursos da área da saúde e o entendimento da diferença entre eles. Ainda, no espaço dos grupos, alguns participantes cristalizaram em si a importância da multidisciplinaridade na área da saúde e da comunicação entre as diversas profissões que a compõem.

Percepções sobre suporte

Foi reforçada a importância do reconhecimento da marcação dos pares para que os grupos atingissem sua função. O reconhecimento do suporte recebido se relacionava com a percepção da semelhança entre os problemas enfrentados pelos participantes: com a troca de experiências comuns e mecanismos de enfrentamento, os entrevistados podiam perceber que recebiam suporte de seu grupo. Esse reconhecimento era reforçado quando o participante identificava seus pares como pessoas que se dispunham a ouvir o que era compartilhado.

No que tange ao reconhecimento de oferta de suporte pelos entrevistados, havia duas tendências semelhantes ao que foi observado na categoria de “pertencimento e vínculo”: a identificação do suporte como restrito ao espaço grupal formal, e outra na qual o suporte podia extrapolar esses espaços, ocorrendo por exemplo em conversas informais, fora do grupo, entre os participantes. Quando percebiam que auxiliaram na oferta de suporte, alguns participantes relataram sentimento de gratificação.

Havia receios relacionados à oferta de suporte a outros participantes. Um entrevistado, de ano de curso mais à frente que seus colegas, revelou que sentia medo de que, ao compartilhar seus problemas, pudesse desencorajar seus colegas na progressão do curso. Outro participante partilhou que receava não conseguir mobilizar acolhimento adequado ao grupo.

É interessante notar que os entrevistados, na maioria das vezes, percebiam o suporte ofertado e recebido tendo origem na estrutura e nos processos grupais, e não de apenas em um participante específico, o que denota a percepção de uma identidade grupal bem estabelecida, voltada para o cumprimento da tarefa à qual o grupo se propunha.

Grupos como espaços para desabafos

Observou-se maior dificuldade por parte dos entrevistados para compartilhar problemas com seus grupos no momento em que os encontros foram iniciados. O estabelecimento do vínculo grupal e a percepção do grupo como espaço de compartilhamento foram importantes para que os participantes passassem a se sentir confortáveis para isso. Outros fatores que contribuíram para esse conforto foram a existência do contrato dos grupos, que garantia o comprometimento de todos os participantes com o sigilo daquilo que era partilhado nos encontros, e a identificação de problemas comuns e percepção da marcação dos outros participantes enquanto pares, o que ajudava na construção de maior confiança nos colegas de grupo.

Outra dificuldade foi a percepção de que os grupos serviam para trabalhar apenas determinadas temáticas, de forma que um entrevistado relatou que optava por não compartilhar questões diferentes daquilo que era usualmente discutido por receio de romper com algum combinado implícito entre os participantes. Para além disso, havia o receio da quebra do sigilo do contrato do grupo, aliado ao medo de alguma reação negativa de seus pares perante determinado desabafo.

Percepção de mudanças e aprendizados

A maior mudança percebida pelos entrevistados foi a adoção de diferentes formas de se portar em outras situações sociais. Alguns dos relatos traziam aprendizados referentes a se atentar melhor para aquilo que o outro dizia, acolher melhor o desabafo do outro, atentar-se mais às nuances das dinâmicas sociais que antes passavam despercebidas e, ainda, sentir maior conforto para compartilhar seus problemas com outras pessoas.

Alguns participantes perceberam um auxílio dos grupos para a diminuição de suas cobranças pessoais no que tangia ao seu desempenho acadêmico. Ainda, a partir da percepção de problemas que eram comuns a todos os estudantes dos grupos, alguns dos entrevistados concluíram que determinados problemas não eram apenas da ordem individual, mas sim estruturais.

Foi possível ainda delinear semelhanças entre a participação nos grupos e a futura atuação como profissionais da saúde dos participantes. Notou-se, por exemplo, como a habilidade de acolhimento e suporte, essencial à prática em saúde, pode ser refinada nos encontros dos grupos. Essa compreensão, ainda, evidencia uma percepção clara da dimensão de cuidado e suporte presente na estrutura grupal.

Problemas e dificuldades encontrados

Problemas referentes à dinâmica do grupo e dos encontros se relacionavam principalmente a situações nas quais havia a ocorrência (ou receio da ocorrência) da quebra do contrato do grupo. A falta de alguns participantes nos encontros se relacionou a desconfortos quanto à necessidade de retomar assuntos discutidos anteriormente para contextualizar a pessoa que havia faltado.

Outro problema que se enquadra no contexto da quebra de contrato é o relacionado ao sigilo que, quando era ameaçado (por exemplo, quando um dos pares participava da reunião em um local com outras pessoas no mesmo ambiente), desencorajava o livre compartilhamento das questões dos participantes. Havia também o receio de o sigilo ser rompido em vista de conflitos entre participantes do mesmo grupo, o que acabava por comprometer a confiança antes estabelecida entre eles.

Ainda, a compreensão do grupo não mais como espaço de acolhimento, mas sim como uma obrigação que deveria ser cumprida, foi um problema apontado nas entrevistas. Essa compreensão se deu em parte pela perda da percepção do propósito do grupo pelo entrevistado, que sentia um esvaziamento em sua função, interpretando a maioria dos assuntos discutidos como amenidades, que não mais mobilizavam seus sentimentos. Dessa forma, pode-se perceber que uma fonte de incômodo entre os entrevistados foi o sentimento de perda da função inicial do grupo.

Percepções sobre a estrutura formal do grupo

Quanto à composição dos grupos, a entrada e a saída de membros de um grupo mobilizavam uma dinâmica grupal diferente. Observou-se uma maior preocupação de acolher novos participantes, o que marca uma preocupação de se criar um espaço de acolhimento capaz de ofertar suporte a todos.

Quando se analisa o que os grupos significavam para os entrevistados, o padrão mais frequente observado foi o que colocava os grupos como espaço para acolhimento, que se construía pela percepção do suporte ofertado pelo grupo, que, por sua vez, auxiliava no entendimento dos grupos como espaço de pertencimento e, também, como uma espécie de rede de apoio. Nesse sentido, os entrevistados atribuíam aos grupos as funções principalmente de acolhimento e apoio mútuo. Este último era entendido a partir da concepção de que os grupos permitiam que os participantes recebessem e ofertassem apoio em um contexto grupal.

Ainda, outras funções atribuídas aos grupos foram a possibilidade de construção de vínculos com outros estudantes, o auxílio na saúde mental, o reconhecimento e o enfrentamento de problemas comuns.

DISCUSSÃO

A criação dos grupos analisados em um momento de pandemia e isolamento social, que funciona como fator estressor generalizado1111. Filgueiras A, Stults-Kolehmainen M. The relationship between behavioural and psychosocial factors among Brazilians in quarantine due to Covid-19. SSRN Electronic Journal 3566245, 2020: 1-17., como reforçado nas entrevistas, foi oportuna para atrair participantes e manter seu funcionamento. Esse espaço permitiu que os alunos tivessem sua identidade reforçada, indo ao encontro da identidade grupal construída, sustentada pela identificação de características marcadoras dos pares, que era essencial para que se estabelecesse um vínculo grupal e, assim, os grupos atingissem seus objetivos33. Bridson TL, Jenkins K, Allen KG, McDermott BM. PPE for your mind: a peer support initiative for health care workers. Med J Aust. 2021;214(1):8-11.e1.. Logo, a identificação dessas características e de problemas partilhados entre os pares foi ponto fundamental para a atividade dos grupos, uma vez que permitia a sensação de pertencimento de seus participantes (tanto ao grupo quanto à universidade).

Para além disso, uma vez que os grupos permitiram o compartilhamento de angústias típicas à vivência acadêmica entre estudantes da saúde1212. Graner KM, Cerqueira ATDAR. Integrative review: psychological distress among university students and correlated factors. Ciênc Saúde Colet . 2019;24(4):1327-46, foi possível a importante reflexão acerca de processos de ensino-aprendizado e seus impactos1313. Facundes VLD, Ludermir AB. Common mental disorders among health care students. Rev Bras Psiquiatr . 2005;27(3):194-200, com a percepção de problemas de ordem estrutural dos próprios cursos, que auxiliou na elaboração subjetiva de tais angústias. Ainda no que tange ao fato de o recorte grupal ter tido como base estudantes da área da saúde, é interessante notar como os grupos também serviram de espaço para refinamento da habilidade de oferta de suporte e acolhimento, cristalizando em seus membros noções, mesmo que informais, sobre o apoio social, que também se insere na prática de profissionais da área da saúde.

Percebeu-se também que a função de apoio social dos grupos era sentida pelos participantes (como já observado anteriormente na literatura66. Mulvale G, Wilson F, Jones S, Green J, Johansen KJ, Arnold I, et al. Integrating mental health peer support in clinical settings: lessons from Canada and Norway. Healthc Manage Forum. 2019;32(2):68-72.) que demonstravam interesse em buscar e fornecer suporte nos encontros, delineando a dimensão de reciprocidade do apoio social11. Goņçalves TR, Pawlowski J, Bandeira DR, Piccinini CA. Avaliação de apoio social em estudos brasileiros: aspectos conceituais e instrumentos. Ciênc Saúde Colet. 2011;16(3):1755-69.. Com isso, reforça-se que a estratégia de grupos de apoio entre pares é uma ferramenta capaz de se autossustentar em sua função, como organismo vivo, com identidade grupal própria e voltada para a manutenção do bem-estar psicológico de seus membros. Assim, resultados positivos da aplicação desses grupos55. Campos FAL, Sousa ARP de, Rodrigues VP da C, Marques AJP da S, Dores AAM da R, Queirós CML. Peer support for people with mental illness. Rev Psiquiatr Clín. 2014;41(2):49-55., como o auxílio de seus pares no enfrentamento de problemas, bem como a elaboração das angústias próprias dos participantes que ofertam suporte, são reforçados. Com tudo isso em vista, após a análise qualitativa, temos que os grupos exerceram efeito benéfico e protetivo na saúde mental de seus participantes.

A pesquisa se enriqueceria com entrevistas em profundidade estruturadas para avaliação da satisfação com o suporte social de estudantes que não participaram dos grupos, para que se analisassem outros mecanismos de enfrentamento para problemas partilhados entre estudantes da área da saúde e, assim, compará-los com o dispositivo grupal e seu real impacto diferencial entre seus participantes.

CONCLUSÕES

Os grupos de apoio entre pares foram percebidos de forma positiva por seus participantes, que perceberam a dimensão do apoio social. Assim, reforça-se a validade dos grupos de apoio entre pares como importante ferramenta de apoio social e, consequentemente, como estratégia para a manutenção do bem-estar psicológico de seus participantes.

Considerando a prevalência de sofrimento psíquico entre estudantes universitários, em especial os da área da saúde, tem-se hoje a necessidade de implementação de programas que auxiliem na manutenção da saúde mental. Uma vez que contam com uma versatilidade e baixo custo de aplicação, os grupos mostraram viabilidade para serem empregados em ambientes universitários. Para que eles atinjam seu potencial, é essencial a existência de supervisão e aprofundamento na literatura entre facilitadores.

Outro ganho que os grupos podem trazer é o melhor preparo e desenvolvimento de habilidades sociais e relacionais de seus participantes, como percebido pelos participantes, características extremamente desejáveis e esperadas em profissionais da área da saúde.

REFERÊNCIAS

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  • FINANCIAMENTO

    A pesquisa descrita foi realizada com financiamento do programa PIBIC/CNPq.

Editado por

Editora-chefe: Rosiane Viana Zuza Diniz. Editora associada: Daniela Chiesa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    22 Mar 2023
  • Aceito
    08 Jul 2024
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