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Compreensão de médicas sobre gênero e a influência na formação acadêmica: um estudo qualitativo

How women physicians understand gender and its influence on academic training: a qualitative study

RESUMO

Introdução:

A “feminização” da medicina é uma tendência nacional e mundial. Cada vez mais mulheres têm escolhido essa área como profissão, mudando a demografia médica brasileira e internacional. No entanto, ainda há algumas barreiras na formação e atuação em medicina, como a manutenção de estereótipos de gênero, o que pode ser observado na sub-representação de mulheres em áreas cirúrgicas. Ademais, desigualdade salarial, assédio, machismo, preconceito e discriminação de gênero são outros desafios enfrentados pelas médicas.

Objetivo:

O artigo analisou a compreensão de mulheres médicas sobre as relações de gênero e a possível influência na sua formação acadêmica.

Método:

Consistiu em um estudo qualitativo, sendo realizadas entrevistas semiestruturadas, no período de novembro a dezembro de 2022, com 13 médicas que atuam profissionalmente no município de Marabá, no Pará. A amostra foi obtida por meio do método bola de neve, e, para a abordagem dos dados, utilizou-se a análise temática de conteúdo proposta por Laurence Bardin.

Resultado:

As entrevistas apontaram uma diversidade de compreensões acerca do conceito de gênero e demonstraram, de variadas formas, a interferência das relações de gênero na formação médica. As participantes narraram situações misóginas e machistas vivenciadas por elas, as quais, em sua maioria, evidenciavam a minimização das qualificações profissionais das mulheres. Além disso, o assédio foi algo bem evidenciado pelas colaboradoras, nove das 13 entrevistadas relataram episódios que envolviam comentários sobre aparência, convites, favores e contatos físicos, principalmente provenientes de professores e preceptores. Também foi pontuado que os estereótipos relacionados à escolha da especialidade são evidentes no meio médico, pois observam-se a predominância de mulheres em áreas da clínica médica, como dermatologia e pediatria, e o afastamento das especialidades cirúrgicas.

Conclusão:

Por meio dos relatos das participantes, foi observado o que médicas compreendem sobre o conceito de gênero, e revelou-se um contraste entre as suas percepções. Ademais, este trabalho abordou como, do ponto de vista de médicas, o gênero influencia na formação acadêmica das mais variadas formas, sendo retratada a qualidade de situações apresentadas pelas entrevistadas que evidenciam essa interferência.

Palavras-chave:
Educação Médica; Mulheres; Sexismo; Médicas; Identidade de Gênero

ABSTRACT

Introduction:

The “feminization” of medicine is a national and worldwide phenomenon. Women have been increasingly choosing this field as a profession, changing the demographics of Brazilian and international medicine. However, there are still some barriers in medical education and practice, such as perpetual gender stereotypes, which can be observed in the underrepresentation of women in surgical fields. Furthermore, wage inequality, harassment, sexism, prejudice, and gender discrimination are other challenges faced by female physicians.

Objective:

The article analyzed the understanding of female physicians regarding gender relations and their potential influence on their academic formation.

Method:

This is a qualitative study that involved semi-structured interviews that were conducted from November to December 2022 with thirteen female physicians practicing professionally in the city of Marabá, in the state of Pará. The sample was obtained using the snowball method and the Thematic Content Analysis proposed by Laurence Bardin was used to process the data.

Result:

The interviews pointed to a diversity of understandings about the concept of gender and demonstrated, in various regards, the interference of gender relations in medical education. The participants narrated misogynistic and sexist situations they had experienced, most of which evidenced the belittling of women’s professional qualifications. Additionally, harassment was clearly evident among the contributors, as nine out of the thirteen interviewees reported episodes involving comments about their appearance, invitations, favors, and physical contact, mainly from professors and preceptors. It was also noted that stereotypes related to specialty choice are evident in the medical field, as there is a predominance of women in clinical areas such as dermatology and pediatrics and a distancing from surgical specialties.

Conclusion:

The participants’ reports revealed the physicians’ understanding of the concept of gender, with contrasting views. In addition, this work addressed how, from the perspective of female physicians, gender influences academic training in various aspects, depicting the quality of situations presented by the interviewees that highlight this interference.

Keywords:
Medical Education; Women; Sexism; Women Physicians; Gender Identity

INTRODUÇÃO

A “feminização” da medicina é uma tendência nacional e mundial11. Ávila RC. Formação das mulheres nas escolas de Medicina. Rev Bras Educ Med. 2014;38(1):142-9.),(22. Quadros FP, Santos TV. Feminização da medicina x dominação masculina nas áreas cirúrgicas [dissertação]. Manhuaçu, Minas Gerais: Centro Universitário UniFACIG; 2022.. O ano de 2009 foi um marco, pois, nesse momento, o sexo feminino representava a maioria dos novos ingressos no mercado médico brasileiro pela primeira vez33. Alves EM. Breve história da mulher na medicina. Sociedade Brasileira de Anatomia: Webinar: Dia Mundial do Anatomista; 15 de outubro de 2020; ResearchGate, 2020. p.1-18.. E esse achado repetiu-se nos anos subsequentes, sendo que a última demografia médica brasileira de 2024 revelou que, entre os médicos com 39 anos ou menos, as mulheres são a maioria, representando 58%, e, dentre o total de médicos até 80 anos, as médicas constituem 49,91%44. Scheffer MC, Guilloux AG, Miotto BA, Almeida CJ, Cassenote AJ, Brandão AP, et al. Demografia médica no Brasil 2023. São Paulo: FMUSP, AMB; 2023. 344 p.),(55. Observatorio.cfm.org.br/demografia [Internet]. Brasil: Conselho Federal de Medicina; 2024 [consultado em 24 de maio de 2024]. Disponível em: Disponível em: https://observatorio.cfm.org.br/demografia/ .
https://observatorio.cfm.org.br/demograf...
. Essa realidade não é somente brasileira, estudos de outros países, como Estados Unidos, Reino Unido e Áustria, também retratam que as mulheres têm escolhido cada vez mais a medicina como profissão, sendo as maiores representantes entre os estudantes e os recém-formados66. Steiner-Hofbauer V, Katz HW, Grundnig JS, Holzinger A. Female participation or “feminization” of medicine. Wien Med Wochenschr. 2023;173(5-6):125-30.),(77. Roberts LW. Women and academic medicine, 2020. Acad Med. 2020;95(10):1459-64..

No entanto, embora as mulheres tenham superado alguns obstáculos quanto ao acesso ao curso, ainda há algumas barreiras na formação e atuação médica. Por exemplo, há a permanência de padrões de estereótipos de gênero que podem ser observados na sub-representação de médicas em área “masculinas”, como a cirurgia. No censo brasileiro de 2023, as mulheres foram a minoria em todas as especialidades cirúrgicas, enquanto dominaram áreas como dermatologia e pediatria44. Scheffer MC, Guilloux AG, Miotto BA, Almeida CJ, Cassenote AJ, Brandão AP, et al. Demografia médica no Brasil 2023. São Paulo: FMUSP, AMB; 2023. 344 p.. Isso acontece por diversos fatores, como a estrutura rígida das especialidades cirúrgicas que favorece a dominância masculina, a tendência à relação conflituosa entre família e trabalho que coloca pressão sobre as mulheres que são questionadas se serão eficientes, entre outros aspectos88. Almeida AH, de Paula AC, Pereira BF, Sasso LM, Uchôa JP, Ferreira LJ, et al. Representatividade feminina em especialidades médicas cirúrgicas. Rev Iberoam Hum Ciênc Educ. 2023;9(8):1147-53.. Esse cenário leva à reflexão se há uma superestimação da representação de mulheres na medicina devido à sub-representação feminina em várias áreas99. Begeny CT, Grossman RC, Ryan MK. Overestimating women’s representation in medicine: a survey of medical professionals’ estimates and their (un)willingness to support gender equality initiatives. BMJ Open. 2022;12(3): e054769..

Além disso, existem outras dificuldades relacionadas ao gênero que mulheres médicas continuam a enfrentar. Por exemplo, há a desigualdade salarial. De acordo com dados de declarações na Receita federal, as médicas brasileiras têm o rendimento médio anual 36,6% inferior que os profissionais do sexo masculino44. Scheffer MC, Guilloux AG, Miotto BA, Almeida CJ, Cassenote AJ, Brandão AP, et al. Demografia médica no Brasil 2023. São Paulo: FMUSP, AMB; 2023. 344 p., mesmo que tenham as mesmas especialidades. Ademais, assédio, machismo, preconceito e discriminação de gênero são outros desafios que médicas nos contextos nacional e internacional enfrentam cotidianamente durante suas formações na faculdade, nas especializações e nas suas atuações como profissionais11. Ávila RC. Formação das mulheres nas escolas de Medicina. Rev Bras Educ Med. 2014;38(1):142-9.),(1010. Joseph MM, Ahasic AM, Clark J, Templeton K. State of women in medicine: history, challenges, and the benefits of a diverse workforce. Pediatrics. 2021;148(Suppl 2): e2021051440C.)-(1212. Lyons NB, Bernardi K, Olavarria OA, Shah P, Dhanani N, Loor M, et al. Gender disparity among American medicine and surgery physicians: a systematic review. Am J Med Sci. 2021;361(2):151-68..

Diante desse cenário que evidencia a discriminação de gênero, surgiu o questionamento acerca da compreensão de médicas atuantes no município de Marabá, no Pará, sobre o conceito de gênero e a respeito de como essas mulheres observaram a influência do gênero no contexto de sua formação acadêmica.

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa qualitativa aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado do Pará (Uepa) com Parecer n° 5.715.907, que teve como critérios de inclusão: mulheres médicas, com mais de cinco anos de atuação profissional e atuantes no município de Marabá. Os critérios de exclusão considerados foram: médicas não atuantes no município de escolha, com menos de cinco anos de atuação, profissionais contactadas que não estavam na cidade no período de coleta de dados, que não aceitaram o convite ou desistiram da participação no estudo e participantes que não assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Neste estudo, a prática de amostragem da pesquisa foi em snowball (bola de neve), a qual consiste em uma forma de amostra não probabilística que utiliza cadeias de referência1313. Vinuto J. A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: um debate em aberto. Temáticas. 2014;22(44):203-20.. As pesquisadoras recorreram às docentes médicas de uma universidade pública situada no município de Marabá para serem as colaboradoras iniciais da pesquisa. Foram contactadas duas professoras que indicaram nomes com o perfil solicitado a partir de sua rede pessoal. Então, as indicações receberam convites para participar da pesquisa, e, após a entrevista, foi solicitada a indicação de novos contatos, conforme os critérios de inclusão. Assim ocorreu, sucessivamente, até a saturação do quadro de amostragem, quando as respostas das entrevistadas começaram a se repetir.

Ao fim, chegou-se a uma amostra de 24 médicas. Desse total, duas não estavam na cidade de Marabá no período da coleta de dados, oito não responderam ao convite de participação e originalmente 14 aceitaram ser entrevistadas. Contudo, posteriormente uma participante solicitou a desistência e, assim, foi excluída do estudo. Dessa forma, chegou-se à amostra final de 13 médicas de diversas especialidades, um fenômeno facilitado pela técnica de amostragem em bola de neve, que permitiu essa variedade observada na pesquisa.

A coleta ocorreu de novembro a dezembro de 2022, e as entrevistas - com duração média de 23 minutos - foram mediadas pelas pesquisadoras. Ademais, a coleta foi realizada de maneira presencial, conforme a disponibilidade das entrevistadas e sugestão de local, que, em geral, consistiu no consultório particular ou público (ambiente de trabalho), em horários de intervalo da profissional.

Utilizou-se, para a coleta de dados, a entrevista semiestruturada, com um roteiro de perguntas abertas e fechadas, a qual foi dividida em dois momentos. Primeiramente, a entrevista tinha como objetivo a coleta de dados socioeconômicos, como idade, raça/cor, estado civil, número de filhos e tempo de formada. No segundo momento, havia as seguintes questões:

  • O que você compreende sobre gênero?

  • Você acredita que o gênero e as relações de gênero influenciaram de alguma maneira sua experiência durante a formação médica? Se sim, poderia falar sobre isso?”

  • Você acredita que sua formação médica seria diferente se você fosse do sexo masculino? Se sim, por que você acredita nisso e de que maneira poderia ser diferente?

Por fim, foi interrogado se a participante desejava acrescentar algo que não lhe foi perguntado.

Para a análise de dados, utilizou-se a análise de conteúdo, metodologia de interpretação proposta por Laurence Bardin1414. Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2016.. Para isso, primeiramente as entrevistas foram transcritas, sendo realizada uma leitura “flutuante”. Depois se delimitou o corpus deste estudo levando em consideração as regras de exaustividade, representatividade, homogeneidade e pertinência1414. Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2016.),(1515. Franco M. Análise de conteúdo. 5a ed. Campinas: Autores Associados; 2018.. Na segunda fase, delimitaram-se as unidades de registro, sendo feita uma análise temática para tal. Por fim, os dados foram tratados para estabelecer as categorias de análise da pesquisa.

Dessa forma, emergiram as seguintes categorias e subcategorias: 1. Compreensão sobre o conceito de gênero, 2. Influência do gênero na formação médica, 2.1. Misoginia e machismo no contexto da formação médica, 2.2. Assédio na formação médica e 2.3. Estereótipos de gênero e especialidades médicas.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Perfil das participantes

Para a preservação do anonimato, foram atribuídos nomes fictícios às colaboradoras. A idade das participantes variou de 29 a 62 anos, com média de 41,6 anos, e o tempo de conclusão da graduação variou de 6 a 36 anos, com média de 17,3 anos. Das 13 médicas, oito autodeclararam-se como brancas e cinco como pardas. Quanto ao estado civil, uma participante era solteira, outra estava em união estável, e as demais eram casadas. O número de filhos variou de zero a dois, e dois filhos foi a resposta que mais se repetiu.

A maioria das colaboradoras tinha a formação em nível de especialização. Três eram pediatras, duas eram anestesiologistas e três fizeram clínica médica com subespecialização em áreas diferentes, como nefrologia, reumatologia e geriatria. As demais tinham especialidades que não se repetiram, tais como: cirurgia vascular, cirurgia de cabeça e pescoço, neurocirurgia, neurologia, otorrinolaringologia, medicina da família e comunidade, e cuidados paliativos.

Compreensão sobre o conceito de gênero

O conjunto de relatos revela que, para a maioria das médicas, a categoria gênero é definida como uma identificação pessoal do indivíduo e como a pessoa manifesta-se diante da sociedade. Tais declarações são evidenciadas, por exemplo, nos seguintes trechos:

Gênero é como a pessoa se identifica. É como ela se manifesta para o mundo. É como ela quer que as pessoas entendam, né? (Maria, 35 anos, médica da família e comunidade).

Hoje em dia é como a pessoa se ver, né!? Não é como ela nasceu nem o que está no papel, é como ela se enxerga (Luciana, 39 anos, anestesiologista).

Para mim, gênero é um conceito mais comportamental, né?, social, assim. Do que você declara, digamos assim, né? (Paula, 37 anos, reumatologista).

Somente uma médica relatou o conceito gênero em uma perspectiva de opção sexual: “Acho que é uma definição de opção sexual, vamos colocar assim (Fernanda, 55 anos, pediatra).

Entretanto, para algumas médicas, gênero é um conceito binário, há apenas o feminino e o masculino: “Eu não tenho muito a questão da diversidade não, para mim é masculino e feminino, gênero” (Carla, 38 anos, geriatra).

Apenas uma das médicas afirmou não existir gênero e declarou que há somente o sexo feminino e o masculino: “Bom, eu acho que não existe gênero. Eu acho que existe sexo. Masculino e feminino” (Fabrícia, 37 anos, cirurgiã de cabeça e pescoço).

A princípio, é importante abordar que, quando se analisa a história do conceito de gênero na sociedade, percebe-se que é uma definição que está em constante transformação e sofre influências ideológicas, sociais, culturais e políticas. Além disso, é um termo de amplas e significativas discussões nas ciências sociais, porém não se observam definições únicas e concretas acerca do assunto1616. Heilborn ML, Rodrigues C. Gênero: breve história de um conceito. Aprender - Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação. 2018; 20:9-21.. E esse contexto foi relatado pelas próprias participantes do estudo:

É porque esse conceito vem mudando, né? (Laís, 29 anos, otorrinolaringologista).

Gênero hoje em dia é um conceito que está em transformação (Ana, 38 anos, nefrologista).

Assim, é possível constatar que há diversidade de compreensões a respeito do conceito, e tal realidade foi verificada nos depoimentos das participantes. Dentre as 13, nove médicas conceitualizaram como uma perspectiva de identidade de gênero, assim como definida por Jesus1717. Jesus, JG de. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos. Brasília: autor, 2012. (acesso em 14 jan. 2023). Disponível em: Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/87846526/Orientacoes-sobre-Identidade-de-Genero-Conceitos-e-Termos .
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: “gênero com o qual uma pessoa se identifica, que pode ou não concordar com o gênero que lhe foi atribuído quando de seu nascimento” (p. 14).

Observa-se que, para ocorrer essa identificação, é necessário que existam papéis e atribuições de gênero na sociedade com os quais os indivíduos se identifiquem. A filósofa Butler1818. Butler J. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York: Routledge; 1990. expõe a característica performativa do gênero: ao nascer, o ser humano é designado a determinado sexo/gênero de acordo com sua anatomia genital, e, dessa forma, são impostas ao indivíduo expectativas sociais em relação à família, ao trabalho, à maneira de portar-se e vestir-se.

Além disso, para Oliveira-Júnior et al.1919. Oliveira-Júnior IB, Maio ER. Opção ou orientação sexual: onde reside a homossexualidade? III Simpósio Internacional de Educação Sexual. Maringá: Universidade Estadual de Maringá, 2013. p. 1-12., gênero é um conceito de complexo entendimento para todos os indivíduos, incluindo pessoas com elevado grau de escolaridade. Esse cenário elucida a confusão, observada no discurso de uma das médicas, entre os conceitos de gênero e orientação sexual. De acordo com Jesus1717. Jesus, JG de. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos. Brasília: autor, 2012. (acesso em 14 jan. 2023). Disponível em: Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/87846526/Orientacoes-sobre-Identidade-de-Genero-Conceitos-e-Termos .
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, trata-se de ideias distintas: “diferente da sexualidade da pessoa, identidade de gênero e orientação sexual são dimensões diferentes e que não se confundem” (p. 14).

É necessário destacar também que essa médica usou a expressão “opção sexual” em vez de “orientação sexual”. Tanto os ativistas da causa LGBTQIAPN+ quanto os pesquisadores manifestam, de modo quase unânime, que o uso mais adequado seria o termo orientação, pois a palavra “opção” exprime uma noção de escolha2020. Carvalho ME, Rabay G. Usos e incompreensões do conceito de gênero no discurso educacional no Brasil. Estudos Feministas. 2015; 23(1):119-36.. Assim, a expressão torna-se contraproducente em relação ao movimento de defesa da liberdade de manifestação da sexualidade, e esse cenário reforça a complexidade do tema.

A partir do século XIX, surge a ideia de diferenças sexuais de maneira binária - há o masculino e o feminino - sustentada por comportamentos e funções sociais exigidos pela sociedade burguesa da época2121. Souza EM, Carrieri AP. A analítica queer e seu rompimento com a concepção binária de gênero. Revista de Administração Mackenzie. 2010;11(3):46-70.. Esse pensamento foi também expresso por duas médicas nas entrevistas, um modelo que define apenas uma bipolarização do gênero em masculino e feminino.

Ademais, uma das entrevistadas manifestou a inexistência da categoria gênero: para ela, existe apenas a designação biológica do sexo feminino e do masculino. Essa definição vai ao encontro da categorização relacionada às ciências biológicas, que admite características apenas anatômicas, rejeita-se e nega-se toda significação e conjuntura evidenciada anteriormente na discussão, e, assim, assume-se que a designação do sexo ao nascimento não sofre influências sociais, culturais e políticas a fim de designar o gênero, ao contrário do que definido por Butler1818. Butler J. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York: Routledge; 1990..

Por fim, foi observado que a participante que conceituou gênero como opção sexual tinha 55 anos, sendo uma das de maior idade do grupo. Sua definição apresentou uma imprecisão sobre o tema e destoou da maioria das entrevistadas, que tinham uma média de 38 anos. Diante disso, cabe refletir que esse contraste pode ter acontecido devido às diferenças etárias e geracionais, tendo em vista que a discussão acerca de gênero e orientação sexual tem sido mais pautada atualmente e tem adentrado somente recentemente nas faculdades de Medicina. Esse contexto contribui para a tendência de que pessoas com uma faixa etária maior, que tiveram sua formação acadêmica no modelo tradicional de ensino, estejam menos familiarizadas sobre a temática em comparação aos médicos mais jovens2222. Raimondi GA, Moreira C, Barros NF de. Gêneros e sexualidades na educação médica: entre o currículo oculto e a integralidade do cuidado. Saúde Soc. 2019;28(3):198-209.),(2323. Couto MT, Machin R, Costa MRM, Rocha ALS, Modesto AA, Germani ACC. A (in)visibilidade gênero no currículo e na prática de duas especialidades médicas. Rev Bras Educ Med . 2021; 45(1):e040..

Influência do gênero na formação médica

Misoginia e machismo no contexto da formação médica

Durante os relatos das participantes, observou-se a ocorrência de situações misóginas e machistas vivenciadas por elas no ambiente médico acadêmico. No conteúdo androcêntrico, foi perceptível o desmerecimento das conquistas do gênero feminino:

Ouvir coisas do tipo: “Quem que vingou na neurocirurgia, vingou fulana, vingou, mas fulana é amante do fulano, por isso que ela foi, e hoje em dia ela não opera nada. A X é boa, mas também encalhou, tinha que fazer alguma coisa que prestasse”. E o tempo todo eu tendo que ouvir isso (Juliana, 62 anos, neurologista e neurocirurgiã).

[...] eu fiz residência, e aí tinha um comentário das pessoas do estágio, de falar: “Fulana não tinha competência técnica, mas passou porque era bonita” (Amália, 36 anos, neuropediatra).

Outras situações misóginas apontadas evidenciam a desvalorização da figura feminina, sendo destacada a minimização das qualificações profissionais das mulheres:

Na neuropediatria, às vezes, alguns chefes assim misóginos de comentários: “Ah, vai fazer um corte de cérebro, e aí é um cérebro com uma atrofia, vai falar que isso é de uma mulher”. Tinha esses comentários (Amália, 36 anos, neuropediatra).

A cirurgia era minha. Aí o chefe virou e falou assim: “Não, quem vai fazer a cirurgia é o [nome do colega], porque não pode ter nenhum erro”. (Laís, 29 anos, otorrinolaringologista).

No meu último mês de residência, eu escutei [do chefe] que, se eu estivesse precisando de emprego, que eu podia ir lá dar faxina na casa dele que ele estava precisando (Sofia, 37 anos, anestesiologista).

Aí ele [chefe] falou que: “A Gabriela foi convidada, ela não vai ficar” - porque eu já ia embora - “e a gente nunca esperava que ela se destacasse por ser uma mulher, por ser nordestina” (Gabriela, 45 anos, cirurgiã vascular).

Ademais, a misoginia e o machismo também são revelados nas diferenças de tratamento por parte dos preceptores e colegas:

Comigo eles [preceptores] gritavam [na hora de dar broncas mediante a erros] por que eles sabiam que eu ia fazer o quê? Então, comigo eles gritavam, enquanto com os homens eles não gritavam (Sofia, 37 anos, anestesiologista).

Então, assim, eu já tive problema também com o R+, que ele brigava muito comigo, acho que pelo fato dele ser homem e eu ser mulher, porque ele já não brigava com o outro (Fabrícia, 37 anos, cirurgiã de cabeça e pescoço).

É interessante de ser abordado que, logo quando questionadas se as relações de gênero influenciaram em sua formação, algumas médicas pontuavam que não. Entretanto, ao longo da entrevista, as mesmas participantes citavam situações, principalmente misóginas, que haviam vivenciado, mas que não percebiam como questões de gênero e sim como algo natural e comum. Essas situações foram observadas principalmente nas entrevistas com médicas com maior idade, a exemplo de Fernanda, de 55 anos, que afirmou que não teve nenhuma influência do gênero ao longo de sua formação, contudo depois mencionou que na sua entrevista de residência foi questionada se tinha filhos, afirmando que, se tivesse, com certeza não passaria. Sendo assim, é possível observar que essas situações são tão reproduzidas ao ponto de serem vistas como natural de o sexo feminino vivenciá-las2424. Guilherme A, Costa JM, Alves CA, Santos CS. Expressões do machismo entre universitários de uma instituição do Sul do Brasil. Avaliação (Campinas). 2023;28:e023024..

Segundo Moterani et al.2525. Moterani GM, Carvalho FM de. Misoginia: a violência contra a mulher numa visão histórica e psicanalítica. Revista de Educação e Cultura. 2016;14(14):167-78., a misoginia apresenta-se como ódio ou aversão às mulheres que se exterioriza das mais diversas formas, pela discriminação de gênero, por violência física, verbal, sexual ou psicológica contra mulheres, pela objetificação do corpo feminino, pela desqualificação da mulher, entre outras. Já o machismo é visto como uma construção social de superioridade masculina, o que inferioriza as mulheres e coloca suas vontades, direitos e intelecto em segundo plano, a fim de cumprir uma função em prol do homem2626. Duarte D da S, Paulino PRV. O machismo e sua influência nas crenças centrais femininas. Cad Psicol. 2021; 2(4): 463- 481..

De acordo com Bertagnolli et al.2727. Bertagnolli GB, Silva DR da, Taschetto LR, Torman R. Misoginia em redes sociais: uma forma de violência contra mulheres. Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales. 2020; 1(3):1-21., atitudes misóginas aparecem desde a mitologia antiga, como pode ser observado no seguinte trecho: “A fêmea é fêmea em virtude de uma certa falta de qualidades [...] pois a fêmea é, por assim dizer, um macho mutilado [...] (Aristóteles, século IV a.C.)” (p. 4). Esse fragmento da obra de Aristóteles revela a concepção do que era uma mulher para a sociedade antiga, sendo essa figura caracterizada como sem qualificações. Contudo, essa concepção é, ainda hoje, difundida, não ficou na sociedade antiga. Nesse sentido, a depreciação do feminino é algo enraizado, que se perpetua de geração para geração, graças às relações de gênero impostas pela sociedade patriarcal, nas quais o feminino é o sexo subordinado e fraco2828. Diotto N, Souto RB. Desigualdade de gênero e misoginia: a violência invisível. Cidadania, Democracia e Direitos Humanos. 2018;1:49-66..

Estudos como os de Barnes et al.2929. Barnes KL, Dunivan G, Sussman AL, McGuire L, McKee R. Behind the mask: an exploratory assessment of female surgeons’ experiences of gender bias. Acad Med. 2020 Oct 1º;95(10):1529-38. e Hiemstra et al.3030. Hiemstra LA, Kerslake S, Clark M, Temple-Oberle C, Boynton E. Experiences of Canadian female orthopaedic surgeons in the workplace: defining the barriers to gender equity. J Bone Jt Surg. 2022 Aug 17;104(16):1455-61. vão ao encontro dos relatos das colaboradoras ao problematizarem uma tendência à desvalorização de mulheres médicas, acompanhada de padrões desiguais de tratamento, já que mulheres são normalmente excluídas e sofrem microagressões de inferioridade.

O estudo de Lewiss et al.3131. Lewiss RE, Jagsi R. Gender bias: another rising curve to flatten? Acad Med . 2021; 96:792-4.) aborda o fato de as mulheres médicas terem suas qualificações profissionais minimizadas e suas especialidades inviabilizadas. Isso revela que mulheres, ainda que sejam excelentes profissionais e/ou estudantes, são menosprezadas puramente por serem mulheres. Outrossim, por mais que um homem e uma mulher tenham tido a mesma formação e sejam ambos qualificados, o homem ainda é a escolha.

Além disso, o estudo de Brewer et al.3232. Brewer A, Osborne M, Mueller AS, O’Connor DM, Dayal A, Arora VM. Who gets the benefit of the doubt? Performance evaluations, medical errors, and the production of gender inequality in emergency medical education. Am Sociol Rev. 2020 Apr 1º;85(2):247-70. traz o viés da diferença de gênero na avaliação por parte de preceptores. Nessa pesquisa, também foi observada uma diferença de tratamento entre homens e mulheres, que se manifestou, por exemplo, pelo fato de mulheres terem recebido críticas mais duras, em comparação com os homens, em casos de erros médicos3232. Brewer A, Osborne M, Mueller AS, O’Connor DM, Dayal A, Arora VM. Who gets the benefit of the doubt? Performance evaluations, medical errors, and the production of gender inequality in emergency medical education. Am Sociol Rev. 2020 Apr 1º;85(2):247-70.. Desse modo, é perceptível que o relato de Sofia sobre os chefes gritarem mais com ela do que com os homens quando erravam não é algo isolado. À vista disso, a misoginia e o machismo parecem que são práticas constantes na formação de mulheres médicas.

Assédio na formação médica

As entrevistas revelam que o assédio é algo bastante recorrente durante a formação médica. Nove das 13 médicas relataram que já vivenciaram e/ou presenciaram uma situação de assédio.

Com certeza teve muita coisa de assédio. Só que antes a gente não via como assédio, né? [...] A piada sexual sempre. De “brincadeira” do tipo “tá gostosa essa calça” (Gabriela, 45 anos, cirurgiã vascular).

Tipo, eu estava observando a cirurgia, o campo, né?, ali, e eu estava numa escadinha em pé atrás do professor. E aí, tipo, ele “Ah, põe a mão, chega mais perto”, falou uma coisinha assim, sabe? E aí todo mundo riu e tal (Maria, 35 anos, médica da família e comunidade).

Professores e preceptores do sexo masculino foram os mais citados como assediadores. Conforme os relatos, o assédio dava-se, geralmente, de forma verbal (comentários sobre roupas, aparência, perguntas inapropriadas) e em forma de convites, favores e contatos físicos indesejáveis:

[...] médico querer colocar a toca, e escovar a mão, e querer dar carona depois da cirurgia (Amália, 36 anos, neuropediatra).

Um dia eu fui assediada, nós tínhamos ido para um congresso, e nós estávamos dentro de um táxi, saindo de lá e indo para um jantar, quando um chefe de serviço enfiou a mão na minha perna (Juliana, 62 anos, neurologista e neurocirurgiã).

Eu estava no centro cirúrgico e um anestesista, do nada [...] perguntou para mim se “os meus pelos pubianos eram ruivos” (Fabrícia, 37 anos, cirurgiã de cabeça e pescoço).

O assédio também se apresentou em forma de benefícios e favorecimento dos preceptores para as mulheres, com a finalidade de obterem alguma recompensa em troca.

Os preceptores tratavam bem melhor mulheres. [...] Ah, tem um acesso muito bom, quem vai fazer é uma menina. [...] E eu acho que tinha um pouco de assédio nisso, né? [...] Na minha época, era minha residência de clínica, teve denúncia de assédio moral, de chefes, entendeu? No sentido de chefes meio que tentar beneficiar por algum proveito (Carla, 38 anos, geriatra).

Chefe tinha uma certa fama, né?, de que preferia selecionar mulheres do que homens e que selecionava mulheres que ele gostava da aparência (Amália, 36 anos, neuropediatra).

Ademais, alguns relatos evidenciaram que as questões de assédio vão para além da formação acadêmica, estando também presentes na atuação médica das participantes. Por exemplo, uma entrevistada mencionou ter sofrido assédio por parte de um paciente homem por meio de olhares para suas partes íntimas, já outra revelou já ter observado alguns colegas médicos assediando outras colegas de trabalho. No entanto, a maior parte dos exemplos dados pelas colaboradoras diz respeito a situações de assédio durante sua formação, especialmente quando realizavam suas especializações.

Os relatos das entrevistadas demonstraram compatibilidade com os exemplos de assédio sexual, que, segundo a Lei nº 10.224/2001, artigo 216-A3333. Brasil. Lei no 10.224, de 15 de maio de 2001. Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para dispor sobre o crime de assédio sexual e dá outras providências. Diário Oficial da União; 16 maio 2001. Seção 1., significa: “constranger alguém com intuito de levar vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente de sua forma de superior hierárquico, ou ascendência inerentes a exercício de emprego, cargo ou função”.

Entretanto, o assédio sexual é algo mais amplo do que aquilo conceitualizado pela lei brasileira. Para Pamplona Filho3434. Pamplona Filho R. Assédio sexual: questões conceituais. Revista do CEPEJ. 2020; 10:23-45., é tudo aquilo de natureza sexual que é indesejado e que, mesmo repelido pelo assediado, continua sendo praticado. São situações em que o indivíduo costuma ser abordado com uma investida sexual indesejável por superiores ou colegas, podendo ser no trabalho, no meio acadêmico, no hospitalar, entre outros. A pessoa sente-se constrangida e tem seu corpo, liberdade e intimidade violados seja verbal ou fisicamente.

Ademais, algumas narrativas das médicas exemplificam um dos tipos de assédio sexual apresentado pela cartilha do Ministério do Trabalho e Emprego3535. Ministério do Trabalho e Emprego. Assédio moral e sexual no trabalho. Brasília: MTE; 2013. quando há a oferta de vantagens no ambiente de trabalho por atitudes de cunho sexual, sendo caracterizado por chantagem e insistência. Nessas situações, são oferecidos benefícios em troca de favores sexuais, e, por mais que a pessoa não aceite, essas vantagens são, às vezes, realizadas e ocorre a importunação do indivíduo assediado para que ele retribua, de alguma forma, os privilégios dados.

Essa abordagem sobre assédio sexual na formação médica feita pelas diferentes médicas entrevistadas também foi observada em alguns outros estudos, como o de Oertelt-Prigione et al.3636. Oertelt-Prigione S, Jenner S, Djermester P, Prügl J, Kurmeyer C. Prevalence of sexual harassment in academic medicine. JAMA Intern Med. 2019; 179:108-11.. Nesse estudo, constatou-se que o assédio sexual afeta médicos homens e mulheres no ambiente acadêmico, mas que médicas são as mais afetadas. As formas de assédio relatadas na pesquisa coincidem com a deste trabalho, sendo elas, principalmente, assédio verbal (discurso sexualizado e linguagem obscena) e contato físico indesejado. Além disso, os principais perpetradores citados também foram os superiores3636. Oertelt-Prigione S, Jenner S, Djermester P, Prügl J, Kurmeyer C. Prevalence of sexual harassment in academic medicine. JAMA Intern Med. 2019; 179:108-11..

Esses dados e os relatos das entrevistadas desta pesquisa mostram que o assédio sexual na formação médica é algo mais recorrente e mais grave para o sexo feminino. Assim, essa violência sexual representa uma das formas de como o gênero e as relações de gênero influenciam no contexto da formação médica, sendo evidenciada uma diferença ostensiva entre homens e mulheres3737. Schoenefeld E, Marschall B, Paul B, Ahrens H, Sensmeier J, Coles J, et al. Medical education too: sexual harassment within the educational context of medicine - insights of undergraduates. BMC Med Educ. 2021 Dec 1º;21(1): 1-6.. Nesse contexto, as mulheres, além de vivenciarem praticamente as mesmas experiências estressantes que a faculdade e residência/especialidade impõem aos homens, têm que conviver recorrentemente com situações de violação de seus corpos e de suas liberdades sexuais, e essas importunações são feitas, geralmente, por quem deveria ensiná-las3636. Oertelt-Prigione S, Jenner S, Djermester P, Prügl J, Kurmeyer C. Prevalence of sexual harassment in academic medicine. JAMA Intern Med. 2019; 179:108-11.),(3838. Tauber S, Loyens K, Oertelt-Prigione S, Kubbe I. Harassment as a consequence and cause of inequality in academia: a narrative review. EClinicalMedicine. 2022;49: 1-9..

Estereótipos de gênero e especialidades médicas

As entrevistadas revelaram que os estereótipos de gênero estão, de forma velada, associados à escolha das especialidades médicas. Elas destacaram a predominância de mulheres em áreas da clínica médica e os estereótipos sexuais em áreas da cirurgia.

Eles falavam explicitamente que não era uma área para mulher, que era uma área para homem, que a mulher tinha que escolher uma área que fosse mais... que clinicava! (Sofia, 37 anos, anestesiologista).

Eu tive muitas experiências negativas quando eu quis entrar para neurocirurgia, né?! Falavam assim: “Nossa, mas é um terreno só de homens”. Eu tive que brigar muito para entrar (Juliana, 62 anos, neurologista e neurocirurgiã).

Até às vezes na escolha ou na faculdade a gente vê que já tem aquele negócio já né?! Que tipo ortopedia, cirurgia mais para os homens, né?! E a mulher é mais pediatria, dermatologia, clínica médica etc., né?! (Roberta, 53 anos, pediatra).

Os relatos das entrevistadas são compatíveis com o que a literatura prevê. A área da clínica médica possui mais mulheres quando comparada à área da cirurgia em que homens são a maioria3939. Kramer M, Heyligers IC, Könings KD. Implicit gender-career bias in postgraduate medical training still exists, mainly in residents and in females. BMC Med Educ . 2021 Dec 1º;21(1) 1-9.. A predominância das mulheres nas especialidades da clínica médica deve-se a diversos fatores, como o significativo preconceito na área cirúrgica, a falta de cirurgiãs mentoras que sejam modelo de referência e a associação de mulheres às especialidades preestabelecidas socialmente, como dermatologia, pediatria, ginecologia e obstetrícia4040. Paulo D, Assis MS, Kreuger MR. Análise dos fatores que levam mulheres médicas a não optarem por especialidades cirúrgicas. Rev Med (Rio J). 2020;99(3):230-5..

Dessa maneira, apesar de haver uma crescente feminização da medicina, ainda se encontra uma discrepância no crescimento do número de mulheres na área cirúrgica, principalmente na neurocirurgia e ortopedia4141. Diniz D. Educação médica: também uma questão de gênero. Rev Bras Educ Med . 2003;27(3) 169-70.. Por consequência, a mulher, para conseguir adentrar e permanecer em áreas cirúrgicas, precisa enfrentar diversas barreiras historicamente estabelecidas, e, muitas vezes, quando colocadas na balança, elas optam por áreas clínicas em vez de enfrentarem mais obstáculos na sua futura atuação4242. Franco T, Santos EG dos. Mulheres e cirurgiãs. Rev Col Bras Cir. 2010;37(1) 72-7..

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A compreensão de mulheres médicas sobre o conceito de gênero apresenta-se de diversas maneiras, prevalecendo a ideia de que gênero é um conceito em constante mudança que tem relação com a identidade pessoal de cada um. Quanto à influência das relações de gênero na formação médica, as mulheres entrevistadas evidenciaram que o gênero influenciou significativamente em suas formações, sendo destacadas situações de assédio e misoginia vivenciadas pelas colaboradoras, perpetradas, na maioria das vezes, pelos professores e preceptores. Além do mais, os estereótipos relacionados às especialidades médicas foram também apontados, sendo evidenciado o distanciamento do sexo feminino de áreas cirúrgicas.

Posto isso, a contribuição significativa deste trabalho refere-se à qualidade de situações apresentadas por mulheres médicas de como o gênero influencia na formação. É necessário pensar em estratégias acadêmicas e sociais para que essa influência seja desconstruída e, principalmente, seja incentivada a equidade nas relações de gênero no meio acadêmico. É imprescindível que haja o desenvolvimento de redes de apoio em ambientes educacionais. Além disso, as denúncias de assédio devem ser estimuladas, e discussões sobre o tema precisam ser abordadas na grade curricular do curso de Medicina e em ambientes profissionais médicos.

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    Avaliado pelo processo de double blind review.
  • FINANCIAMENTO

    Declaramos não haver financiamento.

Editado por

Editora-chefe: Rosiane Viana Zuza Diniz. Editor associado: Gustavo Antonio Raimondi.

Disponibilidade de dados

Citações de dados

Scheffer MC, Guilloux AG, Miotto BA, Almeida CJ, Cassenote AJ, Brandão AP, et al. Demografia médica no Brasil 2023. São Paulo: FMUSP, AMB; 2023. 344 p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    03 Ago 2023
  • Aceito
    24 Abr 2024
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