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HÁ EXCESSO DE MÉDICOS NO BRASIL?

I recall the conclusions drawn during the 1960s by experts serving on four distinguished national commitees, who advised us that we needed more physicians and medical schools. These efforts culminated in federal legislation that gave monies to establish more schools and to educate more doctors. We are now told, by equally qualified forecasters, that we need fewer physicians and fewer medical schools.
PAPPER, S. - The Future of the General Internist.

As críticas à formação de médicos, em nosso País, giram em torno de dois pontos fundamentais: a quantidade, considerada excessiva e a qualidade, considerada deficiente. Tendo em conta o que se tem dito na discussão dos aspectos médicos da crise que estamos atravessando, parece oportuno que nos detenhamos na análise do primeiro desses dois tópicos.

A determinação do número de médicos de que um país necessita em determinada etapa de sua evolução, exige o atendimento de vários requisitos básicos. Dados significativos, obtidos em investigações apropriadas; familiaridade com a metodologia e os critérios dos estudos de população; isenção de ânimo e o mínimo de envolvimento emocional dos autores, e razoável balanço entre médicos e peritos nos aspectos econômicos e sociais do problema, são condições fundamentais para que se possa formular uma política idônea de recursos humanos relativos à Saúde.

Em tais pesquisas, é habitual o uso de indicadores. Alguns deles são relevantes, como a prevalência das diferentes doenças; o papel cabe aos médicos, entre os demais profissionais de saúde, no atendimento das mesmas; a carga de trabalho que cabe a cada tipo de médico; os padrões estabelecidos realisticamente para um tratamento tão eficiente quanto possível, etc. Outros indicadores contribuem muito pouco e de modo muito incerto para o equacionamento do problema, entre estes, figura a relação médico/população. Com razão afirmam Bloom e Peterson: “This static by itself is useless for manpower decisions although it is of some interest in comparing regional supply differences in diverse areas or organizations, after population adjustments." E mais adiante: "The ratio may be useful if it can be supported by other statistics, which is, of course, another way of saying that by itself it is valueless. Yet, it remains the most common evidence used by manpower study groups."

Uma razão poderosa para o uso reiterado desse tipo de indicadores é sua simplicidade, já que basta relacionar duas quantidades: seja o número de médicos e uma certa parcela fixa da população (por exemplo: número de médicos para 10.000 habitantes), seja o número de habitantes que corresponde a cada médico. É lamentável que a discussão do assunto, entre nós, gire exclusivamente em torno desses indicadores, muito embora haja outros dados, ainda que parciais ou insuficientes, que permitiriam melhores aproximações do objetivo. Para não ficarmos restritos à preliminar de que a metodologia é inadequada, vejamos o que, ainda assim, pode ser obtido com as relações mencionadas.

O censo de 1980 verificou que, na noite de 31 de agosto para 1° de setembro daquele ano, nossa população ultrapassava ligeiramente 119 milhões de habitantes. Nosso crescimento populacional na década dos 70, baixou para 2,48% ao ano. Admitindo que esse coeficiente demográfico permaneça estável nesta década (a tendência é que diminua um pouco mais), pode dizer-se que a população do País aumenta de 1 milhão a cada 4 meses e que, nesta data, gira em torno de 130 milhões de habitantes. O número de médicos em atividade é estimado em 120 mil, cifra que se modifica, a cada ano, pelo acréscimo de 8 mil novos formados e pela aposentadoria ou morte de 2 mil profissionais. Podemos deduzir disso que temos 9,23 médicos/10.000 habitantes ou 1.083 habitantes por médico. Com base nesses números, fala-se em um "crescimento explosivo" do número de médicos e atribui-se ao fato uma parcela significativa das dificuldades que recaem sobre a classe neste momento.

Em 1957, quando os Estados Unidos tinham 13 médicos por 10.000 habitantes e nós não chegávamos a ter 5, dizia-se que o ideal seria chegarmos àquele número e supunha-se que, ao atingir tal densidade, o padrão de nosso atendimento médico ficaria próximo do norte-americano da época e, mais ainda, que a pressão da concorrência obrigaria os médicos a se dirigirem para o interior, levando a Medicina aos mais remotos rincões do país. Atualmente, a razão médicos/ habitantes é, como vimos, inferior a 10, e já se fala em catástrofe, rebaixamento dos padrões éticos e mercantilização da Medicina! E, para estancar a suposta "explosão", há quem proponha fechamento de faculdades de medicina e restrição de matrículas nas que sobrarem.

Em 1950, a relação médicos/10.000habitantes era, no Brasil, 4,25; passou a 4,36 em 1960, a 5,05 em 1970 e a 8,52 em 1980, atingindo 9,23 agora. Houve um crescimento acelerado, motivado pela demanda educacional e não por intenções concretas de melhorar o atendimento da saúde, o mesmo sucedeu com os demais cursos de nível superior. Proibida a criação de novas faculdades e estabilizado o número de matrículas, chegamos aos números mencionados mais acima. Se nos é permitida uma extrapolação, a partir deles, seremos, em 31/12/90, 153 milhões de brasileiros, atendidos por 162 mil médicos, o que dará uma relação de 10,59 médicos por 10.000 habitantes, ou sejam, 954 habitantes por médico. Basta cotejar esses números com os mencionados para o momento atual e se verifica que a diferença não é, de forma nenhuma, assustadora. Continuaremos girando em torno da relação de 1 médico para 1.000 habitantes, que a Organização Mundial de Saúde alvitrou como uma aproximação, e não como um teto. Ao mesmo tempo os Estados Unidos, trazidos tantas vezes como exemplo, dos 13 médicos por 10.000 habitantes que tinham em 1957, já passaram a 17,1 em 1978 e se estima que chegarão a 22 em 1990. É verdade que, lá também, começam a levantar-se vozes sobre excesso de médicos, mas os números são bem diversos e a realidade médico-social é outra, seguramente prejudicada agora com a restrição governamental aos programas de saúde.

Não é verdade que, no Brasil, tenhamos excesso de médicos. Temos é excesso de doentes: os habituais em todas as áreas, mais os milhões atingidos pelas endemias rurais, mais as dezenas de milhões, vítimas da miséria. E, com ela e por ela, vítimas da desnutrição, da mortalidade infantil, e do despreparo e importância em face das enfermidades. Corrigidas as distorções da estrutura sócio-econômica que gera esse quadro, e da crise conjuntural que o agrava, e decididos os poderes públicos a destinar à saúde o mesmo volume de recursos e a atenção que são hoje canalizados para outras áreas, os médicos que temos serão poucos para o muito que deles se necessita.

Isso não importa em negar que nossa classe esteja atravessando a mais séria das crises que já enfrentou. Mas tal situação não se deve ao excesso de médicos e sim ao empobrecimento que o País, e em especial a classe média e o operariado (e nós com eles) estão sofrendo. E a solução para tanto não é fechar escolas e diminuir matrículas; é remover as causas da crise, retomar o crescimento e reformular o sistema nacional de assistência à Saúde, dando atendimento aos pacientes e trabalho aos profissionais do setor.

Rubens Maciel
Membro Titular da Academia Nacional de Medicina

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Set 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 1984
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