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Conhecimento dos acadêmicos de Medicina da Amazônia acerca das línguas indígenas e da Libras

RESUMO

Introdução:

A qualidade da comunicação entre o profissional de saúde e o paciente é um importante pilar para uma atenção em saúde eficiente. O estado de Roraima caracteriza-se por possuir um alto percentual de indígenas, além de outros grupos que demandam linguagens de comunicação específicas.

Objetivo:

Este estudo teve como objetivo avaliar comparativamente os níveis de conhecimento dos estudantes do curso de Medicina e dos profissionais médicos recém-formados pela Universidade Federal de Roraima (UFRR) e dos discentes de outros cursos de graduação da UFRR, que não pertencem à área de saúde, acerca da Língua Brasileira de Sinais (Libras) e das línguas indígenas Macuxi, Yanomami e Wapichana.

Método:

Trata-se de um estudo de corte transversal, observacional e descritivo, com caráter quantitativo, envolvendo 202 participantes, o qual utilizou como ferramenta de coleta de dados um questionário estruturado aplicado de forma virtual.

Resultado:

O presente estudo envolveu 80 estudantes ou profissionais recém-formados em Medicina (39,6%), 47 estudantes ou profissionais recém-formados de Engenharia (23,3%) e 75 estudantes ou profissionais recém-formados de Direito (37,1%). Dentre a totalidade dos participantes, 100 eram homens (49,5%) e 102 mulheres (50,5%). Houve associação entre cursar Medicina e saber falar pelo menos uma língua indígena (p = 0,0004). Essa relação não foi evidenciada nos cursos de Direito e Engenharia Civil. Também foi identificada a associação entre estar cursando ou ter cursado Medicina e ter interesse em aprender Libras (p = 0,0159) ou ter interesse em aprender uma língua indígena (p = 0,0054). Essa associação não foi identificada entre os alunos que cursaram ou estavam cursando Direito ou Engenharia Civil.

Conclusão:

Apesar de os participantes de Medicina possuírem um maior nível de conhecimento a respeito de línguas indígenas e Libras, quando comparados aos outros cursos, isso não garante uma atenção em saúde efetiva em sua integralidade, uma vez que se evidenciou uma grande dificuldade no processo de comunicação entre eles com indígenas e pessoas surdas.

Palavras-chave:
Educação Médica; Libras; Línguas Indígenas; Pessoas Surdas; Indígenas

ABSTRACT

Introduction:

The quality of communication between the health professional and the patient is an important pillar for efficient health care. The state of Roraima is characterized by having a high percentage of indigenous individuals, in addition to other groups that demand specific communication languages.

Objective:

This study aimed to comparatively evaluate the levels of knowledge of Medical students and newly graduated medical professionals from Universidade Federal de Roraima (UFRR) and students from other undergraduate courses at UFRR, who do not belong to the health area, of the Brazilian Sign Language (LIBRAS, Língua Brasileira de Sinais) and the Macuxi, Yanomami and Wapichana indigenous languages.

Method:

This is a cross-sectional, observational and descriptive study, with a quantitative approach, involving 202 participants, which used a structured questionnaire applied virtually as the data collection tool.

Results:

The present study assessed 80 students or newly graduated doctors (39.6%), 47 engineering students or newly graduated ones (23.3%) and 75 Law students or newly graduated ones (37.1%). Of all participants, 100 were men (49.5%) and 102 were women (50.5%). There was an association between studying medicine and knowing how to speak at least one indigenous language (p = 0.0004). This relationship was not demonstrated for the Law and Civil engineering courses. An association was also identified between studying or having studied Medicine and being interested in learning LIBRAS (p = 0.0159) or being interested in learning an indigenous language (p = 0.0054). This association was not identified in students who studied or were studying Law or Civil engineering.

Conclusion:

Although medical participants have a higher level of knowledge about indigenous languages and LIBRAS when compared to the other courses, this does not guarantee effective health care in its entirety, since there was great difficulty related to the process of communication between them and indigenous and deaf individuals.

Keywords:
Medical Education; LIBRAS; Indigenous Languages; Deaf People; Indigenous

INTRODUÇÃO

A Constituição Federal brasileira define a atenção à saúde como um dever do Estado e direito de todos, incluindo minorias sociais. Dessa forma, para assegurar tal direito, foi regulamentado em 1990 o Sistema Único de Saúde (SUS), cujos princípios e diretrizes consistem na universalidade de acesso, integralidade e igualdade da assistência à saúde, participação, descentralização, direito à informação e preservação da autonomia do usuário sem preconceitos ou privilégios11. Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988.),(22. Brasil. Lei n° 8.080, de 19 de setembro de 1990. Diário Oficial da União; 19 set 1990 [acesso em 8 ago 2023]. Disponível em: Disponível em: https://legis.senado.leg.br .
https://legis.senado.leg.br...
.

A Língua Brasileira de Sinais (Libras) estabeleceu-se como forma de comunicação e expressão das pessoas com deficiência auditiva, por meio da Lei nº 10.436, de 2002, estabelecida pela Política Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência22. Brasil. Lei n° 8.080, de 19 de setembro de 1990. Diário Oficial da União; 19 set 1990 [acesso em 8 ago 2023]. Disponível em: Disponível em: https://legis.senado.leg.br .
https://legis.senado.leg.br...
. Tal lei foi regulamentada e reconhecida oficialmente em 2005 pelo Decreto nº 5.626, de forma a determinar sua obrigatoriedade nos cursos de educação profissional e superior33. Santos WR dos, Neves AGA, Floriano LKL, Gusmão CMP, Oliveira MM de. Inclusão do paciente surdo nos serviços de saúde no âmbito da atenção primária e suas interfaces com o cuidado de enfermagem. Cad Grad Ciênc Hum Soc Unit. 2020; 6(2):73-86..

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem mais de dois milhões de pessoas com algum grau de surdez no Brasil44. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Brasileiro 2010. Rio de Janeiro: IBGE; 2012.. Mais de um bilhão de pessoas possuem algum grau de deficiência auditiva (surdez) hoje no mundo. A surdez é definida como a perda parcial ou total da habilidade e detecção de sons, podendo ser atribuída a causas genéticas ou lesões no aparelho auditivo55. Bornholdt L, Pauli E, Hildebrant LM, Kinalski SS, Van der Sand ICP, Leite MT. Cuidados de enfermagem a indivíduos com surdez e/ou mudez em instituição hospitalar. Rev Enferm Atual In Derme. 2019;89(27):1-7.. Roraima caracteriza-se por possuir uma densidade demográfica de 2,01 hab./km, com aproximadamente 19.095 pessoas que possuem algum grau de deficiência auditiva44. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Brasileiro 2010. Rio de Janeiro: IBGE; 2012..

Estudos apontam a insatisfação das pessoas surdas com a assistência em saúde, uma vez que elas não conseguem transmitir o que estão sentindo, vivenciando medo, ansiedade, receio, além de se sentirem discriminadas. A redução na autonomia durante a realização da consulta e o fato de os surdos não serem compreendidos os deixam, normalmente, angustiados, fazendo com que a consulta se torne ainda menos proveitosa66. Silva MAM, Benito LAO. The knowledge of nursing students about Brazilian Sign Language (BSL). Universitas: Ciências da Saúde. 2016;14(1):23-30.),(77. Costa LSM, Almeida RCN, Mayworn MC, Alves PTF, Bulhões PAM, Pinheiro VM. O atendimento em saúde através do olhar da pessoa surda: avaliação e propostas. Rev Soc Bras Clín Méd. 2009;48:731-8..

Além disso, Roraima é o estado brasileiro que detém proporcionalmente o maior percentual de indígenas, possuindo 32 terras indígenas, equivalente a 10.33.32° hectares, 46,2% do território, com uma população estimada de 55 mil indígenas, distribuídas em 413 comunidades e oito povos indígenas (Ingarikó, Macuxi, Wapixana, Wai Wai, Yanomami, Patamona, Sapará e Taurepang)88. Santos NCS. Conhecer a história e o modo de vida dos povos indígenas de Roraima: etnias Macuxi e Wapichana. Revista Eletrônica Casa de Makunaima. 2019;2(3):91-103..

Tendo em vista a realidade de Roraima e considerando que a comunicação de qualidade entre médico e paciente é um dos pilares para a resolutividade na atenção em saúde, conclui-se que a existência de falhas nesse processo pode resultar em diagnósticos equivocados, tratamentos inadequados e uso não direcionado dos recursos66. Silva MAM, Benito LAO. The knowledge of nursing students about Brazilian Sign Language (BSL). Universitas: Ciências da Saúde. 2016;14(1):23-30.),(99. Porto CC. Semiologia médica. 8a ed. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan; 2019..

A comunicação adequada entre médico e paciente é um instrumento de qualidade e segurança, sendo necessário que os profissionais estejam preparados e capacitados para estabelecer uma relação na qual as informações trocadas propiciem diminuição de riscos e qualidade na atenção em saúde, sem gerar danos aos envolvidos. Dessa forma, este estudo objetiva avaliar comparativamente os níveis de conhecimento dos estudantes do curso de Medicina e dos profissionais médicos recém-formados pela Universidade Federal de Roraima (UFRR) e dos estudantes e profissionais recém-formados de outros cursos de graduação da UFRR (Direito e Engenharia Civil) que não pertencem à área de saúde acerca da Libras e das línguas indígenas Macuxi, Yanomami e Wapichana.

MÉTODO

Trata-se de um estudo de corte transversal, observacional e descritivo, de caráter quantitativo, envolvendo 202 participantes. Incluíram-se no presente estudo estudantes e profissionais recém-formados dos cursos de Medicina, Direito e Engenharia Civil da UFRR, maiores de 18 anos. Excluíram-se do estudo todos os participantes que não se enquadraram nos critérios de inclusão e também aqueles que se autodeclararam indígenas ou com ascendência indígena, uma vez que isso poderia caracterizar um viés de pesquisa quanto ao conhecimento das línguas indígenas.

A coleta de dados ocorreu entre os anos de 2020 e 2021, sendo realizada por meio da aplicação virtual de um questionário semiestruturado. Os participantes foram convidados a ingressar no estudo e, somente após assinarem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), responderam ao instrumento de coleta de dados.

Os resultados foram avaliados por meio de análise estatística descritiva (frequências relativa e absoluta) e análise inferencial (teste qui-quadrado de Pearson). Para isto, utilizaram-se os softwares Microsoft Excel e R 4.1.0. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFRR com o Parecer nº 5.049.028.

RESULTADO

Este estudo envolveu 202 participantes, graduandos e recém-graduados de três cursos da UFRR: Direito, Engenharia Civil e Medicina. Dessa forma, participaram 80 estudantes ou profissionais de Medicina (39,6%), 47 estudantes ou profissionais de Engenharia (23,3%) e 75 estudantes ou profissionais de Direito (37,1%). Dentre a totalidade dos participantes, 100 eram homens (49,5%) e 102 mulheres (50,5%).

Quando questionados se teriam interesse em aprender Libras, 61 (81,3%) participantes do curso de Direito responderam que sim, enquanto 14 (18,7%) responderam não ter interesse. Na Engenharia Civil, 32 (68,1%) participantes responderam que sim e 15 (31,9%) que não. Já entre os participantes do curso de Medicina, 71 (88,7%) afirmaram ter interesse em aprender, enquanto nove (11,3%) responderam não ter interesse. Dessa forma, dentre a totalidade da amostra, 81,2% afirmaram ter interesse em aprender Libras e 18,8% não.

Ao responderem sobre seus conhecimentos e capacidades para se comunicarem em Libras, nenhum participante do curso de Direito considerou que teria uma comunicação ótima, três relataram possuir uma boa comunicação, sete teriam uma comunicação com qualidade regular, 39 teriam uma comunicação considerada ruim e 26 afirmaram que não conseguiriam se comunicar. Já entre os participantes do curso de Engenharia Civil, ninguém afirmou que teria uma comunicação considerada ótima ou boa, dois afirmaram que a comunicação seria de qualidade regular, 26 ruim e 19 não conseguiriam se comunicar. Por fim, no curso de Medicina, um participante referiu que teria uma ótima comunicação, um boa, 19 com qualidade regular, 44 ruim e 15 não conseguiriam se comunicar (Gráfico 1).

Gráfico 1
Qualidade da comunicação em Libras dos estudantes e profissionais recém-formados dos cursos de Medicina, Direito e Engenharia Civil da UFRR.

Observa-se que 29,7% dos pesquisados não conseguiriam se comunicar em Libras, 53,9% teriam uma comunicação ruim, 13,8% uma comunicação regular, 1,9% uma comunicação boa e apenas 0,5% uma comunicação ótima em Libras.

Quando questionados se a Libras seria uma uma disciplina importante para a matriz curricular do seu curso de graduação, 56 participantes do curso de Direito responderam que sim e 19 que não, 16 participantes da Engenharia Civil afirmaram que sim e 31 que não, enquanto, entre os participantes do curso de Medicina, 59 responderam sim e 21 não. Observa-se que 64,8% dos pesquisados acreditam que o conhecimento de Libras é necessário para sua profissão, destes 45,0% pertencem ao curso de Medicina, 12,2% ao curso de Engenharia Civil e 42,7% ao curso de Direito. Contudo, 35,6% afirmaram que tal conhecimento não seria importante para o seu exercício profisisonal, dos quais 29,6% pertencem ao curso de Medicina, 43,6% ao curso de Engenharia Eivil e 26,76% ao curso de Direito.

Ao serem questionados se haviam cursado alguma disciplina durante sua graduação voltada para o ensino de Libras, 59 participantes do curso de Direito responderam que não e 16 que sim, 44 de Engenharia Civil afirmaram que não e três que sim, e 72 participantes do curso de Medicina responderam não e oito sim. O presente estudo demonstrou que 175 pessoas (86,6%) não cursaram nenhuma disciplina voltada ao ensino de Libras durante a graduação e apenas 27 (13,3%) cursaram. Dos participantes que nunca cursaram nenhuma disciplina relacionada à Libras, 41,1% são do curso de Medicina, 24,1% são do curso de Engenharia Civil e 33,7% pertencem ao curso de Direito. Em uma análise isolada de cada curso, observa-se que 90,0% dos graduandos e graduados do curso de Medicina não cursaram Libras durante a formação, e os dados são semelhantes nos demais cursos, com 93,62% em Engenharia Civil e 78,6% em Direito.

Ao serem questionados se possuíam interesse em aprender a língua indígena Macuxi, 26 participantes do curso de Direito responderam que sim e 49 que não, e nove participantes da Engenharia afirmaram que sim e 38 que não. Já no âmbito da medicina, 38 responderam ter interesse e 42 mencionaram não tinham interesse. Logo, 63,8% dos pesquisados não possuem interesse em aprender a língua Macuxi. Dentre os acadêmicos que demonstraram interesse, 52,0% pertencem ao curso de Medicina, 35,6% ao curso de Direito e 12,3% ao curso de Engenharia Civil.

Quanto ao questionamento “Tem interesse em aprender a língua indígena Yanomami?”, 27 participantes do Direito afirmaram que sim e 48 que não, seis participantes da Engenharia informaram que sim e 41 que não, enquanto na Medicina 37 responderam sim e 43 não. Totalizando assim 132 respostas negativas (65,3%) e 70 respostas afirmativas (34,6%). O desinteresse em aprender a língua indígena Yanomami foi predominante em todos os cursos. Dentre os acadêmicos que possuem interesse em aprendê-la, 52,8% pertencem ao curso de Medicina, 8,5% são do curso de Direito e 38,5% pertencem ao curso de Engenharia Civil.

Ainda focados no interesse dos participantes em aprender alguma língua indígena, foi perguntado se eles teriam interesse em aprender a língua indígena Wapixana. Para esse questionamento, 28 participantes do Direito responderam que sim e 47 que não, nove da Engenharia Civil responderam sim e 38 não, e 48 da Medicina responderam que tinham interesse e 32 que não tinham. Totalizando 133 respostas negativas (65,84%) e 69 respostas afirmativas (34,16%). O desinteresse em aprender a língua indígena Wapixana também foi predominante em todos os cursos. Dos acadêmicos que possuíam interesse, 46,3% pertencem ao curso de Medicina, 40,5% ao curso de Direito e 13,0% ao curso de Engenharia Civil.

Quando questionados se julgavam necessário que na matriz curricular do seu curso existisse alguma disciplina que ensinasse línguas indígenas, quanto à língua Macuxi, 15 participantes do curso de Direito responderam sim e 60 não, apenas um participante da Engenharia Civil respondeu sim e 46 não, enquanto na Medicina 35 responderam sim e 45 não. Dessa forma, 151 pessoas (74,5%) não julgam necessário que a língua indígena Macuxi conste na matriz curricular do seu curso. Entretanto, dentre os acadêmicos que acreditam ser necessário, 68,63% são do curso de Medicina, 29,41% do curso de Direito e 1,96% do curso de Engenharia Civil.

No tocante à necessidade de uma disciplina que ensinasse a língua indígena Yanomami na matriz curricular, 17 participantes do curso de Direito responderam que sim e 58 que não. Já na Engenharia Civil, dois participantes responderam sim e 45 não, e no âmbito da Medicina 41 responderam que sim e 39 que não. De maneira geral, 142 participantes (70,30%) acreditam que a língua indígena Yanomami não é necessária na grade curricular dos seus cursos, enquanto 60 (29,70%) acreditam que seja necessária. Por fim, ao responderem sobre a língua Wapixana, 18 participantes do curso de Direito responderam que sim e 57 que não, um da engenharia civil respondeu sim e 46 não, e 32 do curso de Medicina que responderam que sim e 48 que não. Dos participantes do estudo, 151 (74,75%) acreditam que a língua indígena Wapixana não é necessária na matriz curricular dos seus cursos, enquanto 51 (25,25%) acreditam que seja necessária.

Ao serem questionados se haviam cursado alguma disciplina na universidade voltada para o ensino de línguas indígenas, no curso de Direito cinco participantes relataram que sim e 70 que não, e a totalidade dos participantes da Engenharia Civil (47) respondeu que não, e na Medicina cinco responderam que sim e 75 que não. Sendo assim, apenas 4,95% dos participantes cursaram alguma disciplina voltada para o ensino de línguas indígenas durante sua graduação na UFRR.

Conforme o Gráfico 2, pode-se avaliar a habilidade dos 202 participantes em se comunicar nas três línguas indígenas incluídas no estudo (Macuxi, Yanomami e Wapichana). Como respostas, obtiveram-se os seguintes resultado: 55 = “não conseguiria me comunicar” e 20 = “ruim”, referentes ao curso de Direito; 39 = “não conseguiria me comunicar”, um = “regular” e sete = “ruim”, referentes ao curso de Engenharia Civil; e um = “boa”, 29 = “não conseguiria me comunicar”, 11 = “regular” e 39 = “ruim”, referentes ao curso de Medicina. Observa-se que 60,89% dos pesquisados não conseguiriam se comunicar em nenhuma língua indígena abordada neste estudo, 32,67% teriam uma comunicação ruim; 5,94%, uma comunicação regular; 0,5%, uma comunicação boa; e nenhum pesquisado teria uma comunicação considerada ótima.

Gráfico 2
Habilidade dos estudantes e profissionais recém-formados dos cursos de Medicina, Direito e Engenharia Civil da UFRR para se comunicarem com indígenas não falantes da língua portuguesa.

Ao serem perguntados se sabiam falar alguma das três línguas indígenas do estudo, dentre os participantes do curso de Direito 73 disseram que não, um afirmou que sabia falar Macuxi e um mencionou que sabia falar Wapichana. No curso de Engenharia Civil, a totalidade dos participantes (47) afirmou não saber falar nenhuma língua indígena, e, por fim, no curso de Medicina 67 responderam que não sabiam falar nenhuma língua indígena, três sabiam falar Macuxi, um sabia falar Wapichana e nove Yanomami. Destaca-se que a opção não conheço nenhuma língua indígena é predominante em todos os três cursos, correspondendo a 92,57% dos entrevistados, em sequência 4,45% são falantes da língua Yanomami, 1,98% de Macuxi e 1% dos entrevistados são falantes da língua Wapixana.

A última questão do instrumento de coleta de dados foi: “Você já se comunicou com alguma pessoa indígena que não falava a língua portuguesa?”. No curso de Direito, 64 disseram que não e 11 que sim; no curso de Engenharia Civil, 44 mecnionaram que não e três que sim; e, no curso de Medicina, 15 afirmaram que não e 65 que sim. Observa-se que dos entrevistados 39,11% já se comunicaram com algum indígena não falante da língua portuguesa e 60,89% não tiveram tal experiência. Das pessoas que vivenciaram essa experiência, 82,28% pertencem ao curso de Medicina, 3,80% são da Engenharia Civil e 13,92% cursam Direito.

Quando se realizou a análise estatística inferencial univariada, utilizando o teste qui-quadrado, com intervalo de confiança de 95% e possibilidade de erro amostral de 5% (valor de p igual ou inferior a 0,05), evidenciou-se associação estatisticamente significativa entre o curso de graduação e saber uma língua indígena, de forma que cursar Medicina está associado a saber falar pelo menos uma língua indígena (p = 0,0004). Essa relação não foi evidenciada nos cursos de Direito e Engenharia Civil. Também foi identificada a associação estatisticamente significativa entre estar cursando ou ter cursado Medicina e ter interesse em aprender Libras (p = 0,0159) ou ter interesse em aprender uma língua indígena (p = 0,0054). Essa associação não foi identificada entre os alunos que cursaram ou estavam cursando Direito ou Engenhari Civil (Tabela 1).

Tabela 1
Teste do qui-quadrado entre as variáveis e os desfechos.

DISCUSSÃO

Avaliaram-se o nível de conhecimento e a qualidade da comunicação dos acadêmicos e recém-graduados do curso de Medicina da UFRR em Libras e nas línguas indígenas mais predominantes no estado de Roraima (Macuxi, Yanomami e Wapichana), e, como parâmetro de comparação, aplicou-se o mesmo instrumento de coleta de dados para acadêmicos e profissionais recém-formados dos cursos de Direito (ciências sociais) e Engenharia Civil (ciências exatas). Semelhante a outros estudos1010. Oliveira ASR, Oliveira CV de, Jesus RF de, Quintanilha LF, Avena K de M. Ensino da Língua Brasileira de Sinais durante a graduação em Medicina: a percepção dos futuros médicos. Audiol Commun Res. 2022;27:1-7.),(1111. Kung MS, Lozano A, Covas VJ, Rivera-González L, HernándezBlanco YY, Diaz-Algorri Y, et al. Assessing Medical students’ knowledge of the deaf culture and community in Puerto Rico: a descriptive study. J Med Educ Curric Dev. 2021;8:1-5., foi demonstrado que mais de 90% dos acadêmicos dos três cursos de graduação não se comunicam adequadamente com pessoas surdas, dos quais 39,59% são discente de Medicina. Contudo, mais de 80% dos pesquisados apresentam interesse em aprender, e a maioria disposta em obter tais conhecimentos acadêmicos pertence ao curso de Medicina.

Silva et al.66. Silva MAM, Benito LAO. The knowledge of nursing students about Brazilian Sign Language (BSL). Universitas: Ciências da Saúde. 2016;14(1):23-30., ao avaliarem os acadêmicos de Enfermagem de Brasília, constataram que 90% dos participantes não conseguiriam se comunicar com pessoas surdas. Já o estudo de Oliveira et al.1010. Oliveira ASR, Oliveira CV de, Jesus RF de, Quintanilha LF, Avena K de M. Ensino da Língua Brasileira de Sinais durante a graduação em Medicina: a percepção dos futuros médicos. Audiol Commun Res. 2022;27:1-7., que envolveu acadêmicos de Medicina, evidenciou que esse percentual seria de 82,9%. Portanto, os resultados foram bastante similares aos do presente estudo.

Quando se analisou a habilidade de comunicação em Libras dos participantes deste estudo, constatou-se que as opções “não conseguiria me comunicar”, “ruim” e “regular” foram predominantes nos três cursos. Quanto às opções “boa” e “ótima”, apesar de estarem presentes apenas no curso de Medicina, correspondem somente a 1,25% da amostra, ou seja, um percentual muito baixo. Umas das explicações para tal dificuldade é a própria falta de conhecimento da língua ou a falta de um intérprete1212. Levino DA, Souza EB, Cardoso PC, Silva AC, Carvalho AETM. Libras na graduação médica: o despertar para uma nova língua. Rev Bras Educ Med. 2013;37(2):291-7.)-(1414. Rezende RF, Guerra LB, Carvalho SA da S. The perspective of deaf patients on health care. Rev CEFAC. 2021;23(2):1-10..

Apesar de os participantes deste estudo citarem a falta de um intérprete de Libras como um fator impeditivo para a comunicação, a profissão de tradutor e intérprete de Libras é regulamentada pela Lei nº 12.319 desde 2010, e tal regulamentaçãp se deu a partir das lutas das comunidades surdas brasileiras voltadas ao reconhecimento cultural e linguístico e/ou das estratégias utilizadas pelos próprios tradutores e intérpretes para ter reconhecido e valorizado o seu trabalho1515. Goulart DSM, Bonin IT. Tradutores e intérpretes de Língua Brasileira de Sinais: uma perspectiva histórica da profissão. Rev Educ Espec. 2021;34:1-21..

Uma justficativa para a falta de conhecimento dos participantes em Libras seria a inexistência de interesse deles em obter tal conhecimento, entretanto este estudo apontou que, apesar da expressiva falta de conhecimento, a maioria dos participantes demonstrou interesse em aprender. Mais de 60% dos entrevistados acreditam que a Libras deveria ser incluída na grade curricular dos cursos de graduação. Apesar disso, sabe-se que hoje o fator que contribui para muitos alunos de graduação não adquirirem conhecimento, mesmo possuindo interesse, é o fato de que a disciplina muitas vezes não é ofertada de maneira adequada voltada ao curso, nem com a carga horária compatível1616. Mendes VC, Lima GBPQR, Bomfim AMA, Barros MLNL, Lins MAT. Medicina e Libras: os desafios de uma formação humanizada. Cad Grad Ciênc Hum Soc Unit . 2020;6(2):23-30.. Defende-se a ideia de que as escolas médicas deveriam formar profissionais que conhecessem as necessidades de saúde das pessoas, bem como as formas de comunicação não verbal e os riscos que o não conhecimento pode promover1717. Brasil. Resolução nº 3, de 20 de Junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Diário Oficial da União ; 21 jun 2014 [acesso em 5 jul 2013]. Disponível em: Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/pnsp/legislacao/ resolucoes/rces003_14.pdf/view .
https://www.gov.br/saude/pt-br/acesso-a-...
. Todavia, percebe-se que as Diretrizes Curriculares Nacionais para cursos de Medicina não dispõem de orientações detalhadas quanto aos objetivos, aos conteúdos, à metodologia e à carga horária da disciplina de Libras, ficando a cargo de cada instituição de ensino tal organização.

Observou-se que 64,8% dos pesquisados acreditam que o conhecimento de Libras é necessário para sua profissão, devendo estar presente na matriz curricular do curso; destes 45,0% pertencem ao curso de Medicina. Esse resultado foi inferior ao evidenciado em outro estudo, o qual aponta que 95,8% dos estudantes acreditavam parcial ou totalmente que a oferta da disciplina de Libras é necessária no currículo médico. Dos 230 participantes que responderam acreditar (parcial ou totalmente) na necessidade de oferta dessa disciplina, 55,2% assinalaram preferir a oferta como obrigatória, e 75,7%, na modalidade presencial1010. Oliveira ASR, Oliveira CV de, Jesus RF de, Quintanilha LF, Avena K de M. Ensino da Língua Brasileira de Sinais durante a graduação em Medicina: a percepção dos futuros médicos. Audiol Commun Res. 2022;27:1-7.. Em consonância com o resultados obtidos, 92% do entrevistados reconhecem que a comunicação seria uma das ferramentas para uma assistência em saúde de qualidade, durante uma consulta ou realização de um procedimento. Foi observado, ainda, que, para 82% dos participantes, uma pessoa surda, ao dar entrada em uma unidade ou instituição saúde, não conseguiria se comunicar com os profissionais, e, para 67% dos entrevistados, um intérprete tiraria a privacidade do paciente ao ser requisitado para traduzir a mensagem66. Silva MAM, Benito LAO. The knowledge of nursing students about Brazilian Sign Language (BSL). Universitas: Ciências da Saúde. 2016;14(1):23-30..

Apesar do cenário apontado, um estudo que avaliou a matriz curricular de cursos de Medicina no Brasil relatou que, de 5.317 cursos identificados, somente 2.293 (43,1%) ofereciam disciplina de Libras, sendo 16,7% como disciplina obrigatória e a maioria (83,3%) como optativa1818. Nascimento TM, Melo DG, Evangelista DN, Silva TV, Afonso MG, Cabello J, et al. Fragility in the training of health professionals regarding the Brazilian Sign Language: a reflection on the health care of the deaf. Audiol Commun Res . 2020;25:1-9..

Apenas 13,3% dos participantes deste estudo cursaram alguma disciplina voltada para o estudo de Libras na UFRR, e, dos 175 acadêmicos que não cursaram, 41,1% pertencem ao curso de Medicina Para minimizar a dificuldade de comunicação entre o profissional de saúde e o paciente surdo, em 2005 foi sancionado o Decreto nº 5.626, que regulamenta a Lei nº 10.436, reconhecendo oficialmente a Libras como meio legal de comunicação e expressão, além de determinar a sua obrigatoriedade nos cursos de educação profissional1919. Brasil. Portaria Normativa nº 20, de 21 de dezembro de 2017. Dispõe sobre os procedimentos e o padrão decisório dos processos de credenciamento, recredenciamento, autorização, reconhecimento e renovação de reconhecimento de cursos superiores. Diário Oficial da União ; 21 dez 2017 [acesso em 22 jul 2023 ]. Disponível em: Disponível em: https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/39380053/do1-2018-09- 03-portaria-normativa-n-20-de-21-de-dezembro-de-2017-39379833 .
https://www.in.gov.br/materia/-/asset_pu...
. Apesar disso, ainda se notam inconformidades na comunicação entre médicos e pacientes surdos, refletindo em um possível prejuízo na qualidade do atendimento .

Vale ressaltar que as pessoas surdas, muitas vezes, deixam de procurar serviços de saúde devido à dificuldade de comunicação com os profissionais da área, além da percepção de preconceito por parte da equipe de saúde e de outros usuários do sistema. A lacuna existente entre os profissionais de saúde e as pessoas surdas pode afetar diretamente o estado de saúde desses indivíduos e a efetividade da assistência, impactando a prevenção de agravos e a promoção de saúde2020. Karsten RML, Vianna NG, Silva EM. Comunicação do surdo com profissionais de saúde na busca da integralidade. Saúde Pesqui. 2017;10(2):213-21.),(2121. Jardim DS, Maciel FJ, Lemos SMA. Perda auditiva incapacitante: análise de fatores associados. Audiol Commun Res . 2017;22:1-9.. Apesar disso, não foi evidenciada, neste estudo, a associação entre saber se comunicar em Libras e o curso de graduação cursado (p = 0,6250), ou seja, cursar Medicina não se mostrou associado ao conhecimento de Libras, sendo identificada apenas a associação estatisticamente significativa entre estar cursando ou ter cursado Medicina e ter interesse em aprender Libras (p = 0,0159). Tal interesse pode representar um bom estímulo para os cursos fomentarem mais o estudo dessa linguagem.

O fato de Roraima ser o estado brasileiro com maior percentual proporcional de indígenas não muda a realidade nacional de uma má comunicação dos alunos e profissionais dos cursos de saúde com os indígenas não falantes da língua portuguesa2222. Silva EC, Silva NCDL, Café LA, Almeida PMO, Souza LN, Silva AD. Dificuldades vivenciadas pelos profissionais de saúde no atendimento à população indígena. Revista Eletrônica Acervo Saúde. 2021:13(1):1-10.. Observa-se neste estudo que a maioria dos pesquisados não consegue estabelecer uma comunicação adequada em nenhuma das línguas indígenas pesquisadas, e, mesmo que a Medicina seja o único curso que tenha participantes que conseguem ter uma boa comunicação, eles são a minoria (1,25%) dentro do curso, o que colabora para uma relação médico-paciente inadequada2323. Moreira G de O, Motta LB. Competência cultural na graduação de Medicina e de Enfermagem. Rev Bras Educ Med . 2016;40(2):164-71.)-(2626. Marinelli NP, Nascimento DF, Costa AIP, Posso MBS, Araújo LP. Assistência à população indígena: dificuldades encontradas por enfermeiros. Revista Univap. 2012;18(32):52-65..

Tal dificuldade na comunicação justifica-se sobretudo pela falta de conhecimento acerca das línguas indígenas (78,21%) tanto no curso de Medicina quanto nos demais, como evidenciado no estudo realizado por Sandes et al.2727. Sandes LFF, Freitas DA, Souza MFNS, Leite KBS. Atenção primária à saúde de indígenas sul-americanos: revisão integrativa da literatura. Rev Panam Salud Pública. 2018;42:1-9., que identificaram os seguintes problemas: a dificuldade de comunicação e o choque de culturas. Dessa forma, pode-se atribuir essa falta de conhecimento a diversos fatores, como o próprio desinteresse em aprender alguma língua indígena. Neste estudo, foi possível perceber que há um grau de desinteresse predominante e similar, independentemente do curso, acerca do aprendizado de qualquer uma das línguas indígenas abordadas, apesar de os acadêmicos e profissionais de Medicina vivenciarem comumente situações em que têm que prestar assistência a indígenas não falantes da língua portuguesa e relatarem extrema dificuldade de comunicação.

Além da falta de interesse em aprender, outro fato que contribui para a dificuldade de comunicação é que, em contraste com o preconizado pelas políticas de revitalização das línguas indígenas1818. Nascimento TM, Melo DG, Evangelista DN, Silva TV, Afonso MG, Cabello J, et al. Fragility in the training of health professionals regarding the Brazilian Sign Language: a reflection on the health care of the deaf. Audiol Commun Res . 2020;25:1-9.),(1919. Brasil. Portaria Normativa nº 20, de 21 de dezembro de 2017. Dispõe sobre os procedimentos e o padrão decisório dos processos de credenciamento, recredenciamento, autorização, reconhecimento e renovação de reconhecimento de cursos superiores. Diário Oficial da União ; 21 dez 2017 [acesso em 22 jul 2023 ]. Disponível em: Disponível em: https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/39380053/do1-2018-09- 03-portaria-normativa-n-20-de-21-de-dezembro-de-2017-39379833 .
https://www.in.gov.br/materia/-/asset_pu...
, os participantes deste estudo não acreditam que incluir línguas indígenas em suas matrizes curriculares seja algo necessário. Tal fator torna-se extremamente preocupante quando se entende que a saúde dos povos indígenas não pode ser vista apenas do ponto de vista técnico-administrativo, devendo ser tratada considerando todas as suas especificidades e realidades88. Santos NCS. Conhecer a história e o modo de vida dos povos indígenas de Roraima: etnias Macuxi e Wapichana. Revista Eletrônica Casa de Makunaima. 2019;2(3):91-103.),(2828. Melo AV, Sant’Ana GR, Bastos PRHO, Antônio L. Bioethics and interculturality in indigenous health care. Rev Bioét . 2021;29(3):487-98..

Foi evidenciado no presente estudo que uma significativa parcela dos participantes (39,1%) já teve que tentar se comunicar com indígenas não falantes da língua portuguesa, sendo a maioria deles do curso de Medicina (81,3%). Apesar das dificuldades geográficas, tendo em vista que as atividades dos cursos ocorrem majoritariamente na capital do estado e a maior concentração de povos indígenas se localiza no interior do estado em áreas de difícil acesso2222. Silva EC, Silva NCDL, Café LA, Almeida PMO, Souza LN, Silva AD. Dificuldades vivenciadas pelos profissionais de saúde no atendimento à população indígena. Revista Eletrônica Acervo Saúde. 2021:13(1):1-10., quando o quadro de saúde do paciente indígena agrava, ele é transferido para as unidades hospitalares da capital do estado, no município de Boa Vista.

A partir do contexto retratado, em que o contato entre indígenas e profissionais de saúde em Roraima é rotineiro, esperava-se que os acadêmicos conhecessem mais as línguas dos povos originários, entretanto a realidade encontrada neste estudo é que apenas 16,25% dos acadâmicos ou profissionais de Medicina conhecem alguma das línguas abordadas. Esse fato pode gerar dificuldades na comunicação e integração entre o médico e o paciente, ocasionar equívocos frequentes, interferir na confiabilidade entre o profissional e o paciente indígena, e culminar na insatisfação de ambos2222. Silva EC, Silva NCDL, Café LA, Almeida PMO, Souza LN, Silva AD. Dificuldades vivenciadas pelos profissionais de saúde no atendimento à população indígena. Revista Eletrônica Acervo Saúde. 2021:13(1):1-10.),(2727. Sandes LFF, Freitas DA, Souza MFNS, Leite KBS. Atenção primária à saúde de indígenas sul-americanos: revisão integrativa da literatura. Rev Panam Salud Pública. 2018;42:1-9..

Devido à baixa oferta de ensino das línguas indígenas, os estudantes não possuem os meios adequados para se aperfeiçoar e adquirir habilidades linguísticas a fim de que possam se comunicar de forma efetiva com indígenas. Segundo os resultados obtidos, apenas 4,95% dos participantes da pesquisa realizaram alguma disciplina voltada para o ensino de línguas indígenas. Tal fato muitas vezes se dá pela falta de corpo docente com formação e perfil linguístico acadêmico suficientemente adequado para essa tarefa. Além disso, a maioria das universidades carece de material didático necessário em linguagem acadêmica indígena. A existência de ampla variedade regional de línguas indígenas e dialetos também dificulta a dominação de comunicação linguística realmente efetiva2222. Silva EC, Silva NCDL, Café LA, Almeida PMO, Souza LN, Silva AD. Dificuldades vivenciadas pelos profissionais de saúde no atendimento à população indígena. Revista Eletrônica Acervo Saúde. 2021:13(1):1-10.),(2727. Sandes LFF, Freitas DA, Souza MFNS, Leite KBS. Atenção primária à saúde de indígenas sul-americanos: revisão integrativa da literatura. Rev Panam Salud Pública. 2018;42:1-9.),(2929. Dietz G, Cortés LSM. Towards a higher education system for indigenous students? Intercultural universities in Mexico. Educação & Realidade. 2021;46(4):1-25..

Foi evidenciado neste estudo que cursar Medicina está associado a saber falar pelo menos uma língua indígena (p = 0,0004), apesar de somente 16,25% dos participantes do curso saberem falar uma das línguas e que estar cursando ou ter cursado Medicina está associado a ter interesse em aprender uma língua indígena (p = 0,0054). Percebe-se assim que, apesar de ainda ínfima, existe uma maior disposição dos acadêmicos de Medicina de falar e aprender línguas indígenas. A comunicação eficiente entre médico e paciente é essencial para a garantia da autonomia deste, uma vez que se entende por autonomia o direito inerente de decidir ativamente sobre o diagnóstico e os procedimentos terapêuticos aos quais os indivíduos irão eventualmente ser submetidos. Indivíduos autônomos são capazes de decidir sobre a própria vida com base em seus conceitos, critérios e liberdade. Assim, eles podem assumir a responsabilidade por suas escolhas3030. Honorato MM, Oliveira NP, Domingues JS, Cremaschi RMC, Coelho FMS, da Silva JAC. The bioethical principle of autonomy in caring for the health of Indigenous peoples. Rev Bioét . 2022; 30(2):373-81..

Uma comunicação efetiva implica a construção de vínculos concretos, o que se caracteriza como um dos principais elementos da acessibilidade. Além disso, a promoção da acessibilidade, no âmbito da saúde, deve funcionar como um fator multiplicador dessa consciência, o que ampliará as possibilidades de construção de sociedades inclusivas3131. Neves DB, Felipe IMA, Nunes SPH. Atendimento aos surdos nos serviços de saúde: acessibilidade e obstáculos. Infarma. 2016;28(3):157-65.. O curso de Medicina deve, portanto, formar profissionais que promovam a equidade no cuidado adequado e eficiente dos seus pacientes. Sendo assim, a capacitação para o atendimento dessas pessoas previne a violação dos seus direitos e proporciona o pleno conhecimento do seu diagnóstico e do tratamento a ser realizado.

Ressaltam-se dois fatores limitantes deste estudo: o primeiro refere-se ao fato de a pesquisa ter sido realizada durante o momento de pandemia da Covid-19, o que reduziu a amostra esperada, uma vez que as aulas ocorriam de forma remota; e o segundo tem a ver com a escassez de publicações científicas que avaliem o conhecimento dos profissionais de saúde sobre as línguas indígenas.

CONCLUSÃO

Apesar de Roraima ser o estado brasileiro com maior concentração proporcional de indígenas, evidenciou-se a baixa qualidade na comunicação entre os participantes do estudo e essa população. Essa dificuldade na qualidade da comunicação se repete em relação à Libras, apesar do interesse em aprender dos entrevistados. Destaca-se no presente estudo um interesse bem maior em aprender Libras do que uma língua indígena, o que sugere que, apesar de existir uma grande concentração populacional indígena local, esse fato parece não influenciar o interesse dos participantes.

Embora esteja assegurado pela Constituição Federal e garantido pelo SUS o direito à saúde universal, a não inserção da Libras e de línguas indígenas no meio acadêmico gera lacunas que comprometem seu cumprimento efetivo. Dessa forma, na tentativa de melhorar os índices obtidos, seria importante a oferta de disciplinas que ensinem a Libras e as línguas indígenas. Tais medidas contribuiriam para uma maior autonomia, melhor relação médico-paciente, além de diminuírem possíveis danos e desperdício de recursos públicos.

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  • FINANCIAMENTO

    Declaramos não haver financiamento.

Editado por

Editora-chefe: Rosiane Viana Zuza Diniz. Editor associado: Jorge Guedes.

Disponibilidade de dados

Citações de dados

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Brasileiro 2010. Rio de Janeiro: IBGE; 2012.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    15 Ago 2023
  • Aceito
    09 Abr 2024
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