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Graduação médica, a prescrição de medicamentos não incorporados ao SUS e a judicialização da saúde

Undergraduate medical training, the prescription of medicines not approved under the SUS and the judicialization of health

RESUMO

Introdução:

O fenômeno da judicialização da saúde pública possui números expressivos, sobretudo quanto ao montante de gastos do erário ou ao volume processual. Entre suas causas, esta pesquisa se dedica à prescrição médica de fármacos em desconformidade com as diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), com enfoque na percepção educacional do bacharelando em Medicina acerca da relação do médico com a judicialização da saúde pública.

Objetivo:

Este estudo teve como objetivo analisar a graduação médica acerca da prescrição de medicamentos não incorporados ao SUS, como fator gerador da judicialização da saúde.

Método:

Trata-se de um estudo descritivo, com abordagem qualitativa, desenvolvido com o corpo discente de uma Instituição de Ensino Superior do Estado do Espírito Santo/ES. A coleta de dados foi realizada por meio de questionários, seguindo um roteiro com perguntas norteadoras, registradas e examinadas de acordo com a análise de conteúdo proposta por Bardin. Conjuntamente, examinaram-se os planos de ensino de matérias que possuem maior aproximação com a temática.

Resultado:

Verificou-se uma lacuna entre a graduação médica e a judicialização em saúde no que diz respeito à prescrição de fármacos que não fazem parte da política pública sanitária do SUS, atraindo a necessidade de promoção de uma política pública educacional por parte das instituições de ensino de Medicina, voltada à efetiva abordagem do assunto, de maneira articulada e interdisciplinar.

Palavras-chave:
Judicialização da Saúde; Educação Médica; Assistência Farmacêutica; Qualidade da Assistência à Saúde; Política Nacional de Assistência Farmacêutica

ABSTRACT

Introduction:

There is strong statistical evidence of the phenomenon of judicialization of public health, especially in terms of public spending or number of court cases. This research looks at one of reasons for these lawsuits, the prescription of drugs that do not comply with Unified Health System (SUS) guidelines, with a focus on the educational perception of medical students about the doctor’s relationship with the judicialization of public health.

Objective:

To analyse undergraduate medical training in relation to the prescription of medicines outside the scope of the SUS, as a factor that generates the judicialization of health.

Method:

This is a descriptive study, with a qualitative approach, developed with the student body of a Higher Education Institution in the State of Espírito Santo/ES. Data collection was carried out through questionnaires, following a script with guiding questions, recorded and examined according to the content analysis proposed by Bardin. Together, teaching plans for subjects that are closer to the theme were examined.

Results:

A gap was found between undergraduate medical training and judicialization in health with regard to the prescription of drugs that are outside the scope of the public health policy of the Unified Health System. This urges the need to promote a public educational policy on the part of medical teaching institutions, aimed at effectively addressing the subject, in a joined-up and interdisciplinary manner.

Keywords:
Judicialization of Health; Medical Education; Pharmaceutical Care; Quality of Health Care; National Pharmaceutical Assistance Policy

INTRODUÇÃO

A Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB)11. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília; 5 out 1988., ao encampar o movimento da Reforma Sanitária expresso na VIII Conferência Nacional de Saúde22. Brasil. Relatório Final da VIII Conferência Nacional de Saúde, 1986. Diário Oficial; 1986., instituiu a saúde como um direito social (artigo 6º, caput), garantindo que a “saúde é direito de todos e dever do Estado” (artigo 196, caput), a ser prestada de maneira universal, igualitária e integral (artigo 196, caput, e artigo 198, II). Ao mesmo tempo, a Carta Magna consolidou que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (artigo 5º, XXXV), estabelecendo, dessa forma, o princípio da inafastabilidade do controle judiciário, pelo qual o Poder Judiciário deve analisar toda e qualquer ameaça ou lesão a direito trazida à sua apreciação, inclusive aquelas decorrentes do cometimento de excessos ou omissões na execução das funções estatais dos dois outros poderes políticos, Legislativo e Executivo33. Albuquerque I. Alternativas para o sistema de justiça promover e proteger bens sanitários de forma igualitária no SUS. Brasília: Conasems; 2022..

Diante dessa nova estruturação normativa, não demorou para que os cidadãos passassem a recorrer ao Poder Judiciário para sanar as falhas administrativas e espontâneas na prestação do serviço público de saúde, tendo como marco histórico inicial a busca do adequado tratamento contra a síndrome da imunodeficiência humana (Sida/Aids), ainda na década de 199044. Duarte L, Vidal V. Direito à saúde: judicialização e pandemia do novo coronavírus. São Paulo: Revista dos Tribunais; 2020..

Décadas após, a judicialização da saúde acarreta expressivos e preocupantes dados em nível nacional, com um aumento de 130% no número de demandas judiciais sobre o tema, entre os anos de 2008 e 2017; produziu-se, no período de sete anos, um crescimento de, aproximadamente, 13 vezes nos gastos do Ministério da Saúde com demandas judiciais, atingindo o montante de R$ 1,6 bilhão, no ano de 201655. Brasil. Judicialização da saúde no Brasil: perfil das demandas, causas e propostas de solução. Brasília: Instituto de Ensino e Pesquisa; 2019.. Somente no ano de 2022, registrou-se o ingresso de mais de 293 mil novos processos sobre saúde pública66. Brasil. Painel da judicialização da saúde. Brasília: Conselho Nacional de Justiça; 2023 [acesso em 15 jun. 2023]. Disponível em: Disponível em: https://paineisanalytics.cnj.jus.br/single/?appid=a6dfbee4-bcad-4861-98ea-4b5183e29247&sheet=87ff247a-22e0-4a66-ae83-24fa5d92175a&opt=ctxmenu,currsel .
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Não diferente, no estado do Espírito Santo, entre os anos de 2015 e 2019, houve um aumento de, aproximadamente, 76% no volume de ações judiciais sobre saúde. No mesmo período, os gastos com a judicialização da saúde pela Secretaria Estadual de Saúde (Sesa) sofreram uma elevação de, aproximadamente, 98%, alcançando um custo aproximado de R$ 115 milhões em 201977. Espírito Santo. Impacto da Judicialização da saúde no orçamento público. Secretaria de Estado da Saúde; 2023. (Apresentação de Power Point)..

Para além dos números, esse fenômeno também suscita problemáticas consequências, tais como graves impactos na administração orçamentária, dificultando o planejamento e a gestão do orçamento público88. Polakiewicz R, Tavares C. Vulnerabilidades e potencialidades da judicialização da saúde: uma revisão integrativa. Rev Enferm Atual In Derme. 2018;84(22). 135-156., inclusive quanto à alocação de recursos humanos99. Wang D. Coleção judicialização da saúde nos municípios: como responder e prevenir - direito à saúde, judicialização e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Brasília: Conasems ; 2021.; lesão ao princípio constitucional do acesso igualitário, gerando um “SUS de duas portas”1010. Naundorf B, et al. Dilemas do fenômeno da judicialização da saúde. Brasília: Conass; 2018.; irreversibilidade fática das decisões liminares, deixando o erário em prejuízo mesmo que comprovada a improcedência da demanda1111. Gadelha M. O papel dos médicos na judicialização da saúde. Revista CEJ. 2014;18(62):65-70.; questionamentos acerca da capacidade institucional do Poder Judiciário em realizar interferências em políticas públicas de saúde, sobretudo diante do princípio constitucional da independência e harmonia dos Poderes da União, insculpido no artigo 2º da CRFB1212. Fernandez E. A necessária judicialização do direito à proteção da saúde (entre os processos individuais e os processos estruturais. Guimarães: UMinho Editoria; 2022 [acesso em 15 jun. 2023]. Disponível em: Disponível em: https://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/82170 .
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, bem como quanto à suposta ausência de expertise técnica pelo Poder Judiciário, já imerso em grande volume de causas de naturezas diversas33. Albuquerque I. Alternativas para o sistema de justiça promover e proteger bens sanitários de forma igualitária no SUS. Brasília: Conasems; 2022.; e ainda maior consideração jurídica à opinião do médico assistente, em prejuízo do conhecimento técnico dos órgãos do Sistema Único de Saúde (SUS), como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) e comissões intergestores federativas1313. Vasconcelos N, et al. Covid-19 e a judicialização da saúde no município de São Paulo. Brasília: Conasems , 2022. [acesso em 15 jun. 2023]. Disponível em: Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1xVtB47NEG3cmeey6e2bqE7jWayDUawLK/view .
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Quanto às suas causas, a literatura aponta o crescimento da esperança do paciente em novas tecnologias, em conjunto com o marketing dessas empresas1414. Freitas B, Queluz D. Perfil da judicialização da saúde pública no município de Piracicaba. Brasília: Conasems ; 2022.; a mudança da pirâmide demográfica do Brasil, com a ascensão da população idosa e as correlatas doenças crônico-degenerativas1515. Campos O, et al. Médicos, advogados e indústria farmacêutica na judicialização da saúde em Minas Gerais, Brasil. Rev Saude Publica. 2012;46(5). 784-90 doi: https://doi.org/10.1590/S0034-89102012000500004.
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; o considerável percentual de sucesso que o demandante possui junto ao Poder Judiciário1616. Wang D, et al. Health technology assessment and judicial deference to priority-setting decisions in healthcare: quasi-experimental analysis of right-to-health litigation in Brazil. Social Science & Medicine. 2020; 265. 165-172.; o aperfeiçoamento do acesso à justiça por parte do cidadão necessitado99. Wang D. Coleção judicialização da saúde nos municípios: como responder e prevenir - direito à saúde, judicialização e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Brasília: Conasems ; 2021.; o hipotético crescimento do ativismo judicial1717. Siqueira D, Santos M. Impactos da judicialização da saúde nos direitos da personalidade à luz do consequencialismo. Revista Estudos Institucionais. 2022;(8): 420-456. doi: https://doi.org/10.21783/rei.v8i3.634.
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; bem como o aumento da importância jurídica dos direitos humanos, inclusive internacionalmente1818. Paiva C, Heemann T. Jurisprudência internacional de direitos humanos. 3a ed. Belo Horizonte: CEI; 2020..

Justamente acerca das causas da judicialização da saúde pública, esta pesquisa selecionou e destacou a prescrição médica, devido ao seu poder de balizar esse fenômeno, tendo o receituário um peso enorme na avaliação jurídica da causa, sendo utilizada como principal fonte de prova para aferir a indispensabilidade de um tratamento para o paciente demandante99. Wang D. Coleção judicialização da saúde nos municípios: como responder e prevenir - direito à saúde, judicialização e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Brasília: Conasems ; 2021..

Inclusive, no estado do Espírito Santo, a Lei nº 10.987/2019 impõe que a prescrição médica de medicamentos diversos dos disponíveis nas políticas públicas esteja acompanhada de justificativa técnica que demonstra a inadequação, a ineficiência ou a insuficiência da prescrição daquele tratamento de saúde padronizado para o caso concreto1919. Espírito Santo. Lei nº 10. 987. Disciplina procedimentos a serem adotados pelos médicos e odontólogos vinculados ao Sistema Único de Saúde - SUS no Estado do Espírito Santo, na prescrição de medicamentos e na solicitação de exames, procedimentos de saúde e internações compulsórias que serão prestados pela Secretaria de Estado da Saúde - SESA e estabelece outras providências. Vitória; 2019..

Ademais, o presente estudo se dedicou à abordagem preventivo-educacional, buscando compreender como se encontra a graduação médica - sobretudo a percepção do aluno de Medicina - acerca da prescrição de medicamentos não incorporados ao SUS e o papel do médico com a judicialização da saúde, buscando aproximar o estudante das noções básicas do direito médico e à saúde, inclusive para evitar eventuais responsabilizações funcionais2020. Mariz L, Asensi, F. Concepções e atitudes de médicos em relação a conteúdos jurídicos em sua prática profissional no preenchimento do universo dos documentos médicos. Revista Jurídica da Universidade do Sul de Santa Catarina. 2020;10(20):87-101 [acesso em 15 jun. 2023]. Disponível em: Disponível em: https://portaldeperiodicos.animaeducacao.com.br/index.php/U_Fato_Direito/article/view/19893 .
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Com efeito, extraem-se da literatura indicações pela intimação do médico prescritor pela justiça para explicar processualmente a sua escolha2121. Moreira P, Castro P, Nunes F, Silva K, Ferraz H. Demandas judiciais direcionadas à assistência farmacêutica de Vitória da Conquista-BA: aplicação de indicadores para avaliação e monitoramento. In: Wang D, Terrazas F, organizadores. Judicialização da saúde nos municípios: teses jurídicas, diagnósticos e experiências de gestão. Brasília: Conasems ; 2022. 314-335., tendo o Conselho Nacional de Justiça, recentemente, alterado a redação do Enunciado nº 58 das Jornadas de Direito da Saúde, a fim de expressamente recomendar “a notificação judicial do médico prescritor, para que preste esclarecimentos - em audiência ou em documento próprio - sobre a pertinência e necessidade da prescrição, bem como para firmar declaração de eventual conflito de interesse”2222. Brasil. Enunciados sobre judicialização da saúde. Brasília: Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde; 2023..

Isso sem olvidar a hipótese de investigação criminal de eventual conluio entre médicos prescritores e terceiros para consecução judicial de medicamentos de valores elevados2323. Pepe V, Martins O. Práticas abusivas e fraudes em demandas judiciais de medicamentos: estratégias para sua identificação e minimização. In: Wang D, Terrazas F, organizadores. Judicialização da saúde nos municípios: teses jurídicas, diagnósticos e experiências de gestão . Brasília: Conasems ; 2022. 601-626..

Não se pode ignorar que o Código de Ética Médica2424. Brasil. Resolução nº 2. 217. Código de Ética Médica. Diário Oficial ; 27 set 2018. veda ao médico deixar de colaborar com as autoridades sanitárias ou infringir a legislação pertinente, sob pena, inclusive, de incidir nas sanções ético-profissionais da Lei nº 3.268/572525. Brasil. Lei nº 3. 268. Dispõe sobre os conselhos de medicina e dá outras providências. Diário Oficial ; 30 set 1957..

Assim, aprofundando nos desafios da educação médica acerca da judicialização da saúde, constata-se, inicialmente, que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)2626. Brasil. Lei nº 9.394. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial ; 20 dez 1996. possibilitou maior grau de liberdade às instituições de ensino superior (IES) ao substituir o currículo mínimo de base flexneriana (focado apenas no processo saúde-doença) pelo estabelecimento das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN)2727. Dias M, et al. A integralidade em saúde na educação médica no Brasil: o estado da questão. Rev Bras Educ Med. 2018;42(4). 123-133. [acesso em 15 jun. 2023]. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbem/a/sz45FC3cYsvnnLGQLQcbXth/ .
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),(2828. Brasil. Resolução nº 03. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Diário Oficial ; 20 jun 2014..

Por seu turno, as DCN médicas de 2014 estabelecem que o graduado em Medicina terá formação geral, humanista, crítica, reflexiva e ética (artigo 3º), de maneira que a educação em saúde objetiva o aprendizado interprofissional com outras áreas do conhecimento (artigo 5º, III), de modo a contemplar a abordagem de temas transversais, como direitos humanos (artigo 23, VII), já que a estrutura do curso de Medicina deve incluir dimensões ética e humanística, e desenvolver no aluno atitudes e valores orientados para a cidadania ativa multicultural e para os direitos humanos (artigo 29, III)2828. Brasil. Resolução nº 03. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Diário Oficial ; 20 jun 2014..

Verifica-se, portanto, que a aproximação da graduação em Medicina com noções de direito possui tranquila conformação nas normas de regência do curso, prestigiando a educação permanente como estratégia para abordagem da judicialização da saúde2929. Floriano F. Estratégias para abordar a judicialização da saúde no Brasil: uma síntese de evidências. Cien Saude Colet. 2023;28(01). 81-196. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232023281.09132022.
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Ademais, essa interdisciplinaridade pode socorrer o discente a compreender os limites e eventuais riscos na aproximação da indústria farmacêutica, que vem ocorrendo cada vez mais cedo, ainda na graduação ou residência, e, até mesmo, por meio dos congressos e das mesas de debate acadêmicos, influenciando precocemente esses profissionais de saúde quanto à prescrição de medicamentos ou equipamentos que ainda não estão padronizados no SUS3030. Campos H. A judicialização da saúde na percepção de médicos prescritores. Interface. 2018; 22(64). 165-176. doi: https://doi.org/10.1590/1807-57622016.0314.
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Por sua vez, a ausência de acesso do bacharelando em Medicina a conhecimentos científicos e embasados sobre os reflexos jurídicos incidentes sobre sua profissão pode ensejar, na prática, a combatida conduta denominada “medicina defensiva”, isto é, o emprego de procedimentos diagnóstico-terapêuticos com o propósito explícito de evitar litígios por má prática da medicina, deixando, dessa forma, de assumir adequadamente o tratamento do paciente e elevando os custos do serviço de saúde de forma desnecessária3131. Miyazaki M, Vale M. Medicina defensiva: uma prática em defesa de quem? Rev Bioét. 2019; 27(4). 747-755. doi: https://doi.org/10.1590/1983-80422019274358.
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MÉTODO

Trata-se de um estudo descritivo, com abordagem qualitativa, desenvolvido com corpo discente de uma Instituição de Ensino Superior do Estado do Espírito Santo/ES. A coleta de dados foi realizada por meio de questionário submetido aos alunos inscritos a partir do oitavo período do curso de graduação em Medicina, conforme prévia aprovação por Comitê de Ética (Parecer nº 5.797.625), que inclusive não implicou o sigilo em relação à instituição de ensino.

Ao fim 63 bacharelandos responderam ao questionário-padrão que continha as seguintes perguntas:

  1. Qual é a sua percepção sobre a formação médica acerca da prescrição de medicamentos não incorporados às listas padronizadas, dos protocolos clínicos e das diretrizes terapêuticas definidas pelo SUS?

  2. Qual é a abordagem do curso de Medicina acerca das listas padronizadas, dos protocolos clínicos e das diretrizes terapêuticas definidas pelo SUS?

  3. Qual é a sua visão sobre a necessidade de elaboração de justificativa técnica do médico prescritor para receitar medicamento não incorporado ao SUS?

  4. Qual é o seu entendimento acerca do papel do médico perante as listas padronizadas, os protocolos clínicos e as diretrizes terapêuticas definidas pelo SUS?

  5. Qual é a sua compreensão acerca do papel do médico sobre a judicialização da saúde pública?

  6. Quais são as facilidades e/ou dificuldades apontadas quanto ao tema e à sua abordagem em sala de aula?

  7. Quais são as facilidades e/ou dificuldades apontadas quanto ao tema e à sua abordagem na prática?

  8. Qual é sua percepção sobre a inclusão na matriz curricular do curso de Medicina de matéria contendo noções de direito médico e à saúde?

Esse roteiro de perguntas foi transcrito na plataforma Google Forms, contando com amplo espaço para respostas dissertativas (abertas), para cada uma das perguntas, viabilizando assim a colheita e o armazenamento das manifestações dos estudantes, bem como do aceite individualizado do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que discorria sobre os termos da pesquisa, bem como a garantia de sigilo, privacidade e anonimato, constando expressamente meios de contato direto com o pesquisador.

A disponibilização desse questionário aos discentes ocorreu de duas maneiras: 1. por meio de envio de e-mail pelo pesquisador diretamente à caixa de correspondência virtual do aluno, valendo-se da listagem previamente disponibilizada pela própria instituição de ensino; 2. comparecimento pessoal do pesquisador em algumas salas de aula para breve explicação do estudo, seguida de disponibilização do link para o questionário formalizado no Google Forms, com acesso por QR Code, para que pudessem preenchê-lo em seus próprios aparelhos informáticos, permanecendo o pesquisador à disposição para eventuais esclarecimentos.

Após a colheita dos dados, as respostas foram compiladas em Excel e examinadas conforme a análise de conteúdo, proposta por Bardin3232. Bardin L. Análise de conteúdo. 4a ed. Lisboa: Edições 70; 2010., dividida em pré-análise (formação do corpus do estudo), exploração do material (identificação das unidades de registro, unidades de contexto e temas) e tratamento dos resultados obtidos e interpretação (proposta de inferências e intepretações a propósito dos objetivos previstos).

Com base no material obtido, iniciou-se a etapa de exploração do material. Realizou-se uma leitura em que se utilizou a codificação por temas das pré-categorias. Em seguida, construiu-se um material com o intuito de consolidar os fragmentos dos depoimentos e ajustá-los em categorias, de acordo com a seguinte organização: identificação das unidades de registro, construção das unidades de contexto e definição das categorias do estudo, conforme apresentado no Quadro 1.

Quadro 1
Organização das categorias, das unidades de registro e do contexto segundo a técnica de Bardin.

Foi realizada, também, a etapa de exploração do material documentado, examinando os planos de ensino das disciplinas Bioética, Medicina e Comunidade VIII, Ética Médica e Medicina Legal e Perícias Médicas, que guardavam proximidade com a pesquisa. Dessa forma, obteve-se o resultado apresentado no Quadro 2.

Quadro 2
Exploração do material documentado nos planos de ensino.

Por fim, apresentam-se a última etapa de tratamentos dos resultados obtidos e a interpretação, bem como as inferências apontadas a partir da análise reflexiva dos depoimentos. Em seguida, indicam-se as unidades de registro e contexto construídas.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A primeira categoria identificada se refere à percepção sobre diretrizes terapêuticas definidas pelo SUS e pela graduação médica, uma vez que tais normatizações são respaldadas por evidências científicas e consensos de pesquisadores, e são praticamente revisadas para incorporar novas tecnologias e melhores práticas3333. Matta G. Princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde. In: Matta G, Pontes A, organizadores. Políticas de saúde: organização e operacionalização do Sistema Único de Saúde. Rio de Janeiro: EPSJV, Fiocruz; 2007..

Nesse sentido, foram obtidas respostas de concordância com a padronização da saúde pública, convergindo para a literatura que aponta o seguinte: a regulação da incorporação de novas tecnologias em saúde é essencial para assegurar que a sua produção atenda às necessidades de saúde a custos suportáveis pela sociedade3434. Souza K, et al. Ações judiciais e incorporação de medicamentos ao SUS: a atuação da Conitec. Saúde Debate. 2018;42(119). 837-848. doi: https://doi.org/10.1590/0103-1104201811904.
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. Este pronunciamento corrobora tal afirmação: é necessário que o médico tenha conhecimento aprofundado sobre esses protocolos e os siga, quando em âmbito público, já que são elaborados conforme as características epidemiológicas do país e sua população (Entrevistado 51).

Nessa linha, os alunos apontaram que a observância da padronização serve, inclusive, para assegurar a segurança do profissional médico, uma vez que a acusação de ter falhado atinge não apenas sua autoimagem, mas também sua imagem social3535. Warde-Filho M, et al. Formas terapêuticas jurídicas para o litígio entre médicos e pacientes. Rev Bras Cir Plást. 2022;37(3):388-98.: com elas que temos respaldo e segurança para nossa conduta (Entrevistado 6).

Sob outra perspectiva, responderam que o profissional deve prestigiar a autonomia médica, de acordo com um dos princípios fundamentais do Código de Ética Médica2727. Dias M, et al. A integralidade em saúde na educação médica no Brasil: o estado da questão. Rev Bras Educ Med. 2018;42(4). 123-133. [acesso em 15 jun. 2023]. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbem/a/sz45FC3cYsvnnLGQLQcbXth/ .
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: os protocolos são apenas guias de boas condutas gerais. Porém, na medicina, cada caso é um caso único (Entrevistado 47).

Ainda nessa esteira, foram obtidas manifestações correlacionando a padronização da política pública com a necessidade concreta de atenção ao paciente, prestigiando a Medicina Centrada na Pessoa (MCP), como um dos objetivos fundamentais dos sistemas de saúde3636. Castro R. A abordagem médica centrada na pessoa no processo terapêutico da hipertensão arterial sistêmica e do diabetes mellitus em atenção primária à saúde: fatores associados e qualidade do manejo [tese]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2015.: o médico deve buscar segui-la, porém sempre levando em consideração as questões individuais de cada paciente (Entrevistado 53).

Também relativizando a obrigatoriedade de observância da listagem, houve associação com a evidência científica, como um dos principais argumentos técnico-científicos - se não o principal - a serem considerados na resolução das demandas relativas à judicialização da saúde3737. Sousa D. Decisões judiciais colegiadas no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais: análise à luz da medicina baseada em evidências [dissertação]. Vitória: Escola Superior de Ciências da Santa Casa de Misericórdia de Vitória; 2021.: depende do caso do paciente e do nível de evidência científica do medicamento para o caso (Entrevistado 25).

Aprofundando a pesquisa, buscamos examinar como se encontra a abordagem dessa temática na matriz curricular, uma vez que a ausência de uma análise dos meios cultural, histórico e jurídico gera o perigo de realizar uma educação que não está adaptada ao homem concreto a que se destina3838. Rodrigues G. Direito e saúde: disseminação de conhecimentos jurídicos aos profissionais da área médica [dissertação]. Volta Redonda: Centro Universitário de Volta Redonda; 2015.. Obtiveram-se, nesse sentido, respostas que indicam a ausência de enfoque satisfatório:

[...] falta de abordagem prática e didática em sala de aula por bons professores que entendem do assunto (Entrevistado 34).

[...] esse tema é pouco abordado em sala de aula, sua divulgação se faz necessária na formação dos futuros profissionais da saúde (Entrevistado 8).

[A abordagem acadêmica é] falha. Raras vezes nos fazem essa distinção ou explicam sobre o assunto (Entrevistado 49).

Essas dificuldades geram desinteresse pelo assunto, indo ao encontro da literatura, segundo a qual o mau aproveitamento do tempo e da literatura médica e a falta de recursos acarretam desinteresse pela educação e desvalorização dela3939. Viera J, Tamousauskas, M. Avaliação das resistências de docentes a propostas de renovações em currículos de graduação em medicina. Rev Bras Educ Med . 2013;37(1). 32-38. doi: https://doi.org/10.1590/S0100-55022013000100005.
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: temos poucas aulas sobre assuntos não relacionados com a medicina e, quando temos, normalmente são pouco valorizadas pelos alunos e pela própria instituição (Entrevistado 9).

Mesmo diante desses empecilhos, os entrevistados demonstraram a necessidade de o profissional médico se dedicar à formação e à qualificação continuada, possibilitando treinamento, aprimoramento e modernização dos conhecimentos após a formação, podendo influenciar diretamente nas práticas dos serviços de assistência à saúde e na qualidade do cuidado prestado2121. Moreira P, Castro P, Nunes F, Silva K, Ferraz H. Demandas judiciais direcionadas à assistência farmacêutica de Vitória da Conquista-BA: aplicação de indicadores para avaliação e monitoramento. In: Wang D, Terrazas F, organizadores. Judicialização da saúde nos municípios: teses jurídicas, diagnósticos e experiências de gestão. Brasília: Conasems ; 2022. 314-335.: “o médico deve estar informado e ciente acerca dessas listas, protocolos e diretrizes” (Entrevistado 8).

A categoria seguinte - medicamentos não incorporados pelo SUS e a necessidade de justificativa técnica - se baseia na compreensão da literatura, segundo a qual esse documento seria necessário para a contenção e regulação dos gastos desnecessários4040. Wang D. Revisitando dados e argumentos no debate sobre judicialização da saúde. Revista Estudos Institucionais . 2021; 7(2):849-69 [acesso em 15 jun. 2023]. Disponível em: Disponível em: https://www.estudosinstitucionais.com/REI/article/view/650 .
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, confluindo com a compreensão dos discentes ao julgarem pertinente, haja vista a necessidade de controle de gastos, pois esse tipo de processo inibe prescrições de medicações fora das indicações preconizadas pelo SUS ao fornecimento de determinadas medicações (Entrevistado 20).

A justificativa também tem como fundamento a demonstração de evidência científica do tratamento, integrando experiência clínica individual com as melhores evidências técnicas externas4141. Sackett D, et al. Evidence based medicine: what it is and what it isn’t. BMJ. 1996;312(7023):71-2., convergindo para o raciocínio exposto pelos entrevistados no sentido de que “em serviço do SUS é válida a justificativa clínica. Mas o médico deve ser amparado pelas diretrizes das sociedades internacionais e estudos científicos” (Entrevistado 19).

Contudo, alerta-se para o risco de esse arranjo não contemplar a perspectiva do jurisdicionado, por não estar nele internalizado como conhecimento aprendido, nem ser por ele percebido de imediato, notadamente quando a cultura dos operadores jurídicos não é acessível aos cidadãos, que desconhecem o direito que rege suas condutas4242. Baptista B, Amorim M. Quando direitos alternativos viram obrigatórios: burocracia e tutela na administração de conflitos. Antropolítica Revista Contemporânea de Antropologia. 2014;37. 287-318. [acesso em 15 jun. 2023].; nesse sentido, foram verificadas respostas classificando a exigência da justificativa técnica como burocrática: se trata um processo oneroso. O tempo previsto para consulta já não é suficiente, e preencher mais um documento atrapalharia ainda mais o fluxo de acordo com a demanda” (Entrevistado 13).

Quanto à categoria 3 - participação do médico nos processos de judicialização da saúde -, os entrevistados reconheceram que o médico exerce considerável papel no fenômeno, o que está de acordo com a literatura que alerta sobre a “ditadura técnica do prescritor”1111. Gadelha M. O papel dos médicos na judicialização da saúde. Revista CEJ. 2014;18(62):65-70.: é um dos atores envolvidos, sobretudo a partir da prescrição de medicamentos, tratamentos e insumos que não estão disponíveis no Sistema Único de Saúde” (Entrevistado 14).

Outras respostas relacionaram a participação do médico na judicialização da saúde com a atenção ao paciente: o médico deve oferecer as informações necessárias aos processos jurídicos desde que não interfiram na condição de médico e no tratamento do paciente ou na ética médico-paciente” (Entrevistado 16). Isso demonstra a importância de as escolas médicas, para a mudança do modelo puramente biomédico para o modelo centrado no paciente, incorporarem em seus currículos conhecimentos de ciências humanas e sociais, além das disciplinas técnico-científicas tradicionais4343. Ribeiro M, Amaral C. Medicina centrada no paciente e ensino médico: a importância do cuidado com a pessoa e o poder médico. Rev Bras Educ Med . 2008;32(1). 90-97. doi: https://doi.org/10.1590/S0100-55022008000100012.
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.

No que tange à última categoria identificada - direito médico e à saúde e matriz curricular -, o conhecimento de noções de regras jurídicas pelos profissionais de medicina serviria a diversos motivos, como conscientizar a respeito da regra jurídica de que ninguém poderá alegar o descumprimento de uma regra por desconhecê-la, robustecer a relação paciente-médico, permitir uma formação médica mais próxima da realidade e proporcionar mais segurança e legitimidade na tomada de decisões4444. Pacheco C. Noções de direito na prática profissional de medicina e seus reflexos na relação médico-paciente [tese]. Volta Redonda: Centro Universitário de Volta Redonda; 2013..

Apesar de a bibliografia constatar a necessidade de as faculdades de Ciências Médicas abrirem espaço para que possam ouvir a voz de seu corpo discente, além de avaliarem permanentemente o trabalho de seus docentes, objetivando a melhor formação dos futuros médicos e a desnecessidade de busca desse conhecimento em estágio extracurricular4545. Taquett R, et al. Paralelo: uma realidade na formação dos estudantes de medicina da UERJ. Rev Bras Educ Med . 2003;27(3). 171-176. doi: https://doi.org/10.1590/1981-5271v27.3-002.
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, foram identificadas respostas como normalmente são conteúdos negligenciados pelos acadêmicos, professores e até pela instituição de ensino” (Entrevistado 9).

Assim, revela-se imprescindível uma formação de um profissional crítico-reflexivo com habilidade de transformar a realidade social de seu cotidiano, de modo a diminuir injustiças e desigualdades3030. Campos H. A judicialização da saúde na percepção de médicos prescritores. Interface. 2018; 22(64). 165-176. doi: https://doi.org/10.1590/1807-57622016.0314.
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. Nesse sentido, foram registradas respostas dos alunos sobre a necessidade da inclusão, na matriz curricular do curso de Medicina, de matéria contendo noções de direito médico e à saúde, tais como: a facilidade poderia ser por meio de matérias optativas realizadas de forma obrigatória, sendo que uma das matérias ofertadas pode ser na área de judicialização da saúde” (Entrevistado 63).

Essa inclusão, de maneira assemelhada, também pode se dar em disciplina já existente na matriz curricular, por meio de argumentações como o tema poderia ser incluso em disciplinas preexistentes, como Ética Médica. A matriz curricular do curso já é muito extensa e exaustiva” (Entrevistado 11), enfatizando que a ausência ou a marginalidade de disciplinas de caráter humanístico constituem evidências de que a medicina ainda não estaria aberta à mudança de paradigma necessária para efetiva mudança do ensino médico e do profissional formado4343. Ribeiro M, Amaral C. Medicina centrada no paciente e ensino médico: a importância do cuidado com a pessoa e o poder médico. Rev Bras Educ Med . 2008;32(1). 90-97. doi: https://doi.org/10.1590/S0100-55022008000100012.
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.

Por último, no que tange à análise documental dos planos de ensino das matérias com aparente aproximação com esta pesquisa, verificou-se que somente a disciplina Medicina Legal e Perícias Médicas (ministrada no oitavo período) não guarda qualquer relação com a judicialização da saúde.

Por sua vez, as cadeiras de Bioética (segundo período), Medicina e Comunidade VIII (oitavo período) e Ética Médica (oitavo período) possuem pontos de diálogo com o objeto deste estudo, por meio de expressões como “direitos humanos”, “direitos dos pacientes e direitos dos médicos”, “responsabilidade profissional médica” e “aspectos jurídicos em saúde”, tornando possível o enfrentamento em sala de aula das dificuldades específicas do assunto para melhor qualificação do futuro profissional médico, inclusive para preservar-se de eventual responsabilização1515. Campos O, et al. Médicos, advogados e indústria farmacêutica na judicialização da saúde em Minas Gerais, Brasil. Rev Saude Publica. 2012;46(5). 784-90 doi: https://doi.org/10.1590/S0034-89102012000500004.
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Maior destaque possui a cátedra de Medicina e Comunidade VIII ao abordar expressamente em seu conteúdo a “judicialização da saúde”, autorizando o contato entre as disciplinas, inclusive na busca de soluções fundamentadas e consensuais entre os conhecimentos jurídico e médico4646. Mota J, Véras M. Eixo ético-humanístico da Faculdade de Medicina da Bahia: percepção dos estudantes. Rev Bioét . 2020; 28(2). 319-331. [acesso em 15 jun. 2023]. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/bioet/a/6L5KRmdQ6L9G3mV767K63kh/?format=pdf⟨=pt .
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Apesar de a prescrição médica de fármacos não incorporados ao SUS ser um considerável fator da judicialização da saúde99. Wang D. Coleção judicialização da saúde nos municípios: como responder e prevenir - direito à saúde, judicialização e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Brasília: Conasems ; 2021., não se observa abordagem expressa nos planos de ensino, constatação que vai ao encontro do desconhecimento expressados pelos alunos inquiridos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de todo o exposto, verifica-se que a judicialização da saúde pública se apresenta como um desafio complexo, que acarreta elevados custos ao erário, crescimento dos números de processos, decisões (judiciais e administrativas) conflitantes, adversidades institucionais e deslocamento de recursos (financeiros, estruturais e humanos), atraindo a necessidade de constantes estudos acadêmicos para seu entendimento.

A maioria das pesquisas se dedica à compreensão do fenômeno por parte dos órgãos públicos e/ou dos atores jurídicos, tais como advogados, Defensoria Pública, Ministério Público, peritos, juízes, desembargadores e ministros. Este trabalho, contudo, buscou entender o ponto de partida: a prescrição médica, sob o enfoque preventivo-educacional, dando voz aos atuais estudantes e futuros médicos prescritores.

Apesar das dificuldades enfrentadas pelo bacharelando em Medicina - envolvendo sobrecarga de estudo, dificuldade de compreensão dos termos jurídicos, problemas estruturais do SUS etc. -, nota-se que os alunos possuem percepção da importância do tema e comprometimento em se aprofundar no estudo da temática em qualificação continuada, especialmente para garantia do exercício de sua profissão, respeito às evidências científicas e devida atenção ao paciente.

Para tanto, faz-se necessário que as instituições de ensino médico efetivamente promovam uma política pública educacional voltada à abordagem da judicialização da saúde pública - especialmente da prescrição de tecnologias em saúde não incorporadas ao SUS -, de modo a reparar a apontada falha no conteúdo educacional trazida pelos discentes. Dessa forma, evita-se que os alunos tenham que recorrer a currículos informais/paralelos. É imprescindível que o corpo discente passe a ser auxiliado por docentes devidamente qualificados na compreensão da linguagem, das decisões e normatizações, viabilizando a sempre almejada aproximação da teoria com a prática.

Diante de todo o quadro narrado, vislumbram-se as seguintes alternativas para melhor aproximação entre o bacharelado em Medicina e as noções de direito acerca da judicialização da saúde: 1. qualificação do corpo docente preexistente, por meio de formação continuada de profissionais que tenham conhecimento e experiência suficiente sobre a matéria; 2. contratação de novos professores que já gozem de comprovada expertise sobre o assunto; 3. criação de disciplina optativa própria, focada na participação do médico na judicialização da saúde e em suas consequências; 4. aproveitamento das disciplinas e dos planos de ensino já existentes para a difusão contínua dessas noções jurídicas, ao longo de todo o bacharelado, inclusive no período de internado; 5. construção da judicialização da saúde como eixo transversal do desenvolvimento curricular, de modo a propiciar ao corpo discente a ampliação de oportunidades de aprendizagem, pesquisa e trabalho, que contemplem atividades complementares por meio de programas de extensão e criação de situações-problema a serem trabalhadas com pequenos grupos de estudantes em sessões tutoriais ou simulações em estações de treinamento de habilidades e que privilegiem as metodologias ativas que otimizem a participação do aluno na construção do conhecimento e na integração entre os conteúdos.

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    Avaliado pelo processo de double blind review.
  • FINANCIAMENTO

    Declaramos não haver financiamento.

Editado por

Editora-chefe: Rosiane Viana Zuza Diniz. Editor associado: Kristopherson Lustosa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    02 Abr 2024
  • Aceito
    03 Jul 2024
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