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Apontamentos sobre as Pesquisas de Jerzy Grotowski e Maud Robart sobre os Cantos Afrodiaspóricos

Notes sur les Recherches de Jerzy Grotowski et Maud Robart sur les Chants Afro-Diasporiques

RESUMO

Este artigo trata das investigações transculturais de Jerzy Grotowski sobre os cantos tradicionais afrodiaspóricos. A partir de alguns apontamentos sobre a colaboração realizada com a artista haitiana Maud Robart, busca-se explicitar que tais investigações não estavam direcionadas à expropriação dos conhecimentos performativos tradicionais, ao esvaziamento de seus sentidos e à estetização de suas formas. Em sua dimensão política, conforme se busca evidenciar, tratava-se de um trabalho que tinha a potência de relativizar os modos de percepção habituais do indivíduo, principalmente daquele moderno e ocidental, na direção do que poderia ser chamada de uma ‘descolonização do si mesmo’.

Palavras-chave:
Vodu Haitiano; Transculturalidade; Teatro das Fontes; Trabalho sobre Si; Arte como Veículo

RÉSUMÉ

Cet article traite des investigations transculturelles de Jerzy Grotowski sur les chants traditionnels afro-diasporiques. À partir de quelques notes sur la collaboration avec l’artiste haïtienne Maud Robart, nous cherchons à expliquer que de telles investigations ne visaient pas l’expropriation des savoirs performatifs traditionnels, la perte de ses significations et l’esthétisation de ses formes. Dans sa dimension politique, comme nous cherchons à le souligner, c’était une œuvre qui avait le pouvoir de relativiser les modes de perception habituels de l’individu, notamment moderne et occidental, vers ce qu’on pourrait appeler une ‘décolonisation du soi’.

Mots-clés:
Vaudou Haïtien; Transculturalité; Théâtre des Sources; Le travail sur Soi; L’Art comme Véhicule

ABSTRACT

This paper discusses the transcultural investigations conducted by Jerzy Grotowski on traditional AfroDiasporic chants. Based on some notes on the collaboration with the Haitian artist Maud Robart, it argues that these investigations were not aimed at the expropriation of traditional performative knowledge, the emptying of its meanings or the aestheticization of its forms. In its political dimension, as it seeks to delineate, it was a work that had the potential to relativize the usual modes of perception of the individual, especially the modern and western one, towards what could be called a ‘decolonization of the self’.

Keywords:
Haitian Vodou; Transculturality; Theatre of Sources; Work on Oneself; Art as a Vehicle

Mais comumente conhecido pelos espetáculos teatrais produzidos junto ao Teatro Laboratório, na década de 19601, bem como pela mundialmente famosa publicação do livro Em Busca de um Teatro Pobre, de 1965, o artista polonês Jerzy Grotowski estendeu suas pesquisas para além dos limites do teatro convencional, investindo numa longa e sistemática exploração das possibilidades humanas em diferentes contextos performativos. Sua decisão de não produzir novos espetáculos, a partir dos anos 1970, dando início à fase do Parateatro, visava ampliar as possibilidades de trabalho sobre si - conforme a noção herdada de Stanislávski - através de proposições laboratoriais que abdicavam tanto da situação ficcional, quanto da separação atorespectador. A partir da fase do Teatro das Fontes, iniciada em 1976, essa pesquisa foi reorientada na busca de técnicas performativas que possibilitassem o descondicionamento da percepção habitual do indivíduo e permitissem a conquista de uma “percepção direta” - poderíamos chamá-la de experiência pré-predicativa - que estaria ligada, segundo Grotowski, à natureza orgânica do ser (Grotowski, 2016aGROTOWSKI, Jerzy. Sulle trace del Teatro dele Fonti. (1978-1979). In: GROTOWSKI, Jerzy. Testi 1954-1998 - Volume III. Oltre il teatro (1970-1984). Traduzione di Carla Pollastrelli. Firenze/Lucca: La Casa Usher, 2016a. P. 159-174., p. 168). Foi nessa etapa que, junto a um grupo de artistas e performers de diferentes origens e formações, Grotowski realizou as expedições ao Haiti, onde esteve em contato com o Vodu; à Nigéria, quando na companhia de um sacerdote haitiano visitou a região de Ifé e Oshogbo (tendo observado as matrizes da cultura Iorubá e Ewe-Fon); ao México, onde esteve em contato com os indígenas Huichol; e à Índia, na região de Bengala, onde esteve em contato com os Baul (Slowiak; Cuesta, 2013SLOWIAK, James; CUESTA, Jairo. Jerzy Grotowski. São Paulo: É Realizações, 2013.). Até que, já na última etapa das investigações do artista, a denominada “arte como veículo” (iniciada com a abertura do Workcenter of Jerzy Grotowski, em 1986, na Itália), seu trabalho passou a se concentrar sobre os cantos tradicionais africanos e afro-caribenhos, principalmente aqueles do Vodu haitiano.

Ainda nas pesquisas do Teatro das Fontes, Grotowski constatou que cada um desses cantos podia provocar impactos específicos sobre os praticantes, não apenas por suas qualidades estimulantes ou tranquilizantes, que caracterizariam um nível mais simplista e rudimentar do processo, mas também por inúmeras outras qualidades que se situam num campo mais sutil da percepção e dos comportamentos. E considerou que os aspectos vibratórios do canto, com os impulsos corporais despertados por ele, atualizariam na experiência do atuante, de maneira direta, o próprio sentido da canção (Grotowski, 2012GROTOWSKI, Jerzy. Da Companhia Teatral à Arte como Veículo. (1989-1990). In: RICHARDS, Thomas. Trabalhar com Grotowski sobre as ações físicas. São Paulo: Perspectiva, 2012. P. 127-151., p. 142-143). Conforme observou, cada um desses cantos possuiria um aspecto dramático particular - ligado a qualidades animais, humanas ou das forças da natureza - que estaria codificado na estrutura sonora. Assim, a percepção dessas qualidades se daria sempre no corpo, através da prática, num processo cuja natureza seria “completamente diferente de interpretar um personagem” (Grotowski, 1995GROTOWSKI, Jerzy. Projet d’enseignement et de recherches: Anthropologie Théâtrale. Projeto apresentado para candidatura de Grotowski ao Collège de France. Arquivo de Mario Biagini. Cedido à pesquisadora Tatiana Motta Lima, 1995., p. 19).

Diante das estratégias históricas de mercantilização dos saberes tradicionais ou, das assim chamadas, culturas populares, é bastante compreensível - principalmente no Brasil, marcado por relações étnico-raciais tão desiguais - que, ao primeiro olhar, tenhamos ressalvas em relação aos processos artísticos, levados a cabo por europeus, que interajam com tradições culturais não-europeias. Por outro lado, busco evidenciar que a investigação transcultural de Grotowski não estava direcionada à expropriação dos conhecimentos tradicionais, ao esvaziamento de seus sentidos e à estetização de suas formas com vistas à produção de bens artísticos de consumo. Tratava-se, na realidade, de uma investigação realizada no campo artístico, cujo aspecto experiencial é preponderante, que tinha a potência de relativizar os modos de percepção habituais do indivíduo - principalmente aquele moderno e ocidental - através do contato com outras tradições e epistemologias. Um trabalho que, assumindo os limites e perigos de uma interação dessa natureza, buscava exercitar uma descolonização do si mesmo do sujeito. Para tanto, analiso parte das pesquisas de Jerzy Grotowski e Maud Robart - artista e pesquisadora haitiana que colaborou nas investigações do Teatro das Fontes, do Objective Drama e da arte como veículo -, a partir das ressonâncias conceituais, práticas e existenciais encontradas nas epistemologias afrodiaspóricas, bem como em diálogo com a antropologia e a etnomusicologia. Vale destacar, ainda, que este estudo fez parte de uma pesquisa mais ampla, realizada na tese de doutorado (Matricardi, 2022MATRICARDI, Luciano. As pesquisas transculturais de Jerzy Grotowski: trabalho sobre si, modos de percepção e cantos tradicionais no percurso do Teatro das Fontes à Arte como Veículo. 2022. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) - Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2022.), que envolveu a revisão bibliográfica dos textos de Grotowski do referido período2 2 Textos das décadas de 1970, 1980 e 1990, em sua maioria ainda não disponí-veis em língua portuguesa, cujo acesso foi facilitado pelo criterioso trabalho de organização e tradução realizado por Carla Pollastrelli, na edição italiana da coleção Grotowski - Testi 1954 - 1998. ; a reflexão sobre as práticas de canto e atuação que vivenciei, entre 2013 e 2020, com os artistas do Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards; a interlocução com as leituras e vivências em torno das religiosidades de matriz africana3 3 Especialmente as experiências ligadas aos terreiros de Candomblé Ketu Ilê Axé Opo Omin, na cidade de Londrina (PR), liderado pela Iyalorixá Omin e, posteriormente, Ilê Asè Oyá Funsó, na cidade de São Paulo (SP), liderado pela Iyalorixá Clarinha de Oya. ; a revisão bibliográfica dos textos de Maud Robart4 4 Disponíveis, em sua maioria, na tradução italiana publicada pela revista Biblio-teca Teatrale, em 2006 (ver: Biblioteca Teatrale. La Ricerca di Maud Robart: L’orizzonte arcaico e atemporale del canto integrato. Roma: Bulzoni Editore, n. 77, jan./mar. 2006). e a participação no workshop L’esprit du chant, conduzido pela artista haitiana, em 2019, na França.

Intercâmbios, entrecruzamentos e/ou entrelaçamentos culturais marcaram o desenvolvimento do teatro moderno e contemporâneo. Artistas ocidentais, incluídos e/ou alinhados à tradição cultural euro-americana, como Reinhardt, Stanislávski, Craig, Meyerhold, Tairov, Brecht, Artaud, Grotowski, Barba, Brook, Mnouchkine, Schechner, entre outros, debruçaramse sobre técnicas, linguagens e sobre o pensamento filosófico e religioso de tradições não-ocidentais - asiáticas, africanas, afrodiaspóricas e ameríndias, para citar algumas -, criando não apenas formas teatrais completamente novas, mas também outros modos de pensar/fazer na criação. Tais movimentos foram e têm sido abordados sob a perspectiva do Interculturalismo e do Transculturalismo e são também objetos de análise dos Estudos da Performance, da Etnocenologia e da Antropologia Teatral. E os aportes teóricos para pensar essa diversidade de interações culturais vêm sendo explorados por pesquisadores como Patrice Pavis, Rustom Bharucha, Erika FischerLichte, Marco de Marinis, Josette Féral, Jean-Marie Pradier e Richard Schechner, para citar alguns.

A perspectiva intercultural, conforme abordada por Pavis (2008)PAVIS, Patrice. O Teatro no Cruzamento de Culturas. São Paulo: Perspectiva, 2008., parte de uma concepção semiótica da cultura. Alinhado à antropologia de Clifford Geertz, Pavis concebe a cultura como um sistema de significação, composto por normas e símbolos, por meio do qual um grupo compreende a si mesmo. Nesse entendimento, é a expressão do conteúdo social que cria as formas estéticas do grupo - de modo que as práticas sociais e rituais, bem como os sistemas filosóficos e religiosos, formariam modelizações e textualidades que representariam os modos de vida de uma determinada comunidade. A partir de tal concepção, as relações interculturais são então abordadas como adaptações e reelaborações das modelizações estéticas de uma cultura-fonte para serem recebidas pelo público de uma cultura-alvo. De acordo com Pavis (2008)PAVIS, Patrice. O Teatro no Cruzamento de Culturas. São Paulo: Perspectiva, 2008., essa relação de “transferência intercultural” necessita, portanto, de adaptadores/tradutores que organizem a passagem de um universo para o outro. Conforme explica, em tal processo, a “[...] cultura-alvo analisa e se apropria de uma cultura estrangeira ao filtrar e ao ressaltar determinados traços culturais em função de seus próprios interesses e pressupostos” (Pavis, 2008PAVIS, Patrice. O Teatro no Cruzamento de Culturas. São Paulo: Perspectiva, 2008., p. 5). A noção de apropriação, neste caso, provém do postulado de que qualquer tradução - principalmente linguística - estabelece uma relação particular entre uma cultura de origem e outra de chegada.

Nesse âmbito, caberia ao artista tradutor criar um “corpo condutor” entre duas culturas, respeitando suas proximidades e afastamentos, bem como suas familiaridades e estranhezas (Pavis, 2008PAVIS, Patrice. O Teatro no Cruzamento de Culturas. São Paulo: Perspectiva, 2008., p. 147). Embora o autor pareça tentar superar o paradigma representacional, ao propor uma “semiologia energética” - na qual os signos seriam abordados no seu aspecto dinâmico e, através da reinterpretação e reelaboração, poderiam constituir-se como um “pensamento-em-ação” (Pavis, 2008PAVIS, Patrice. O Teatro no Cruzamento de Culturas. São Paulo: Perspectiva, 2008., p. 166) - sua abordagem ainda parece negligenciar aspectos sociais, religiosos e filosóficos das tradições nãoocidentais em favor das suas dimensões estéticas.

Opondo-se a essa perspectiva, Fischer-Lichte (2009)FISCHER-LICHTE, Erika. Interweaving Cultures in Performance: Different States of Being In-Between. New Theatre Quarterly, v. 25, n. 4, p 391-401, 2009. DOI: https://doi.org/10.1017/S0266464X09000670.
https://doi.org/10.1017/S0266464X0900067...
observa que a noção de performance intercultural costuma ligar-se a criações artísticas que, mesmo combinando materiais, linguagens e modos de atuação de diferentes culturas, ainda poderiam ser identificadas como performances euroamericanas. Processo que, de modo mais ou menos consciente, tenderia a uma suposta ocidentalização e homogeneização de referenciais tão diversos. Para a pesquisadora, uma perspectiva mais interessante, de valorização da diversidade, aparece nos entrelaçamentos culturais ocorridos a partir da década de 1970 e que envolvem processos transculturais. Segundo a autora, em alguns desses processos cria-se uma espécie de comunidade, um “estado intermediário no qual diferentes identidades são possíveis lado a lado” (Fischer-Lichte, 2009FISCHER-LICHTE, Erika. Interweaving Cultures in Performance: Different States of Being In-Between. New Theatre Quarterly, v. 25, n. 4, p 391-401, 2009. DOI: https://doi.org/10.1017/S0266464X09000670.
https://doi.org/10.1017/S0266464X0900067...
, p. 398). Conforme observa,

É claro que esse tipo de comunidade também tem implicações políticas. Pois, se tal comunidade pode surgir no espaço do teatro, por que não seria viável em outros lugares? E se, por enquanto, de fato, só é possível no teatro, então o teatro deve ser considerado um laboratório. Aqui, diferentes maneiras são inventadas e experimentadas no entrelaçamento de culturas produtivamente e na exploração de como transformar uma multidão de indivíduos com origens culturais muito diferentes em membros de uma - mesmo que apenas temporária - comunidade que não exige que se escondam ou mesmo abram mão de suas diferenças, e isso não inclui uma e exclui a outra, mas é capaz de tornar suas diferenças produtivas para cada um e todos os participantes (Fischer-Lichte, 2009FISCHER-LICHTE, Erika. Interweaving Cultures in Performance: Different States of Being In-Between. New Theatre Quarterly, v. 25, n. 4, p 391-401, 2009. DOI: https://doi.org/10.1017/S0266464X09000670.
https://doi.org/10.1017/S0266464X0900067...
, p. 398-399, tradução nossa)5 5 No texto original: “Of course, this kind of a community also has its political implications. For if such a community can emerge in the space of theatre, why should it not be feasible in other places? And if, for the time being, it is in fact only possible in theatre, then theatre is to be regarded as a laboratory. Here, different ways are invented and tried out in interweaving cultures productively, and in exploring how to turn a crowd of individuals with very different cultural backgrounds into members of a - even if only temporary - community that does not demand that they hide or even give up their differences, and that does not include the one and excludes the other, but is able to render their differences productive for each and everybody participating” (Fischer-Lichte, 2009, p. 398-399). .

Partindo da abordagem de Fischer-Lichte, podemos dizer que o trabalho de Grotowski, no Teatro das Fontes, voltava-se justamente para a criação dessas comunidades temporárias. Ao olhar para a diversidade dos modos de vida, através do encontro de saberes performativos, propunha-se ali o exercício de uma sensibilidade mais aguçada, o conhecimento e a transformação de seus participantes. Nesse contexto, podemos dizer que a performance era considerada não apenas na sua dimensão estética, mas, principalmente, como um processo que reverberaria em transformações sociais e políticas mais amplas. Isso se daria, pois, ao proporcionar o encontro entre indivíduos de diferentes culturas, em processos de entrelaçamento que resultariam em algo completamente novo, experimentar-se-iam diferentes possibilidades de convivência.

De modo semelhante, Fernando Mencarelli (2017)MENCARELLI, Fernando. Epistemologias: transversalidades nas artes da cena. Conceição/Conception, Campinas, v. 6, n. 2, p. 5-9, jul./dez. 2017. DOI: https://doi.org/10.20396/conce.v6i2.8651172.
https://doi.org/10.20396/conce.v6i2.8651...
observa que, a partir dos desafios lançados pela “virada performativa” e, posteriormente, pela “virada ontológica”, muitas experiências artísticas, incluindo aquelas de Grotowski, passaram a interagir com diferentes sistemas de conhecimento caminhando em direção a novas epistemologias. O que, segundo o pesquisador, teria claras implicações políticas se considerarmos que essas novas formas de socialização da arte visavam promover experiências sobre outros “modos de percepção” (Mencarelli, 2017MENCARELLI, Fernando. Epistemologias: transversalidades nas artes da cena. Conceição/Conception, Campinas, v. 6, n. 2, p. 5-9, jul./dez. 2017. DOI: https://doi.org/10.20396/conce.v6i2.8651172.
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, p. 5-6).

Nas epistemologias Iorubá e Ewe-Fon, das quais descendem as tradições afro-caribenhas, os cantos rituais estão ligados a divindades específicas. Trata-se de modulações das forças vitais cujas artesanias se apresentam como veículos para uma determinada percepção de mundo (Santos; Santos, 1993SANTOS, Deoscoredes; SANTOS, Juana Elbein dos. A cultura nagô no Brasil - Memória e continuidade. Revista USP, São Paulo, n. 18, p. 40-51, 30 ago. 1993.). Embora esses cantos portem elementos simbólicos, sua performatividade não está centrada sobre o status semiótico, mas sim em modos de agenciamento na experiência corpórea de seus praticantes (Goldman, 2005GOLDMAN, Marcio. Formas do Saber e Modos do Ser: Observações Sobre Multiplicidade e Ontologia no Candomblé. Religião & Sociedade, Rio de Janeiro, v. 25, n. 2, p. 102-120, 2005. Disponível em: https://religiaoesociedade.org.br/revistas/v-25-no-02.
https://religiaoesociedade.org.br/revist...
). E é especialmente nas festas, os ritos públicos, que essa forma complexa de agenciamento, entre as diferentes forças da vida, é vivenciada no corpo dos praticantes. Conforme propõe Leda Maria Martins (2002MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar. In: RAVETTI, Graciela; ARBEX, Márcia (Org.). Performance, exílio, fronteiras: errâncias territoriais e textuais. Belo Horizonte: Faculdade de Letras/UFMG; Poslit, 2002. P. 69-91., p. 72), nas performances rituais afrodiaspóricas, o corpo é

[...] local de inscrição de um conhecimento que se grafa no gesto, no movimento, na coreografia, na superfície da pele, assim como nos ritmos e timbres da vocalidade. O que no corpo e na voz se repete é uma episteme. Nas performances da oralidade, o gesto não é apenas uma representação mimética de um aparato simbólico, veiculado pela performance, mas institui e instaura a própria performance. Ou ainda, o gesto não é apenas narrativo ou descritivo, mas, fundamentalmente, performativo.

Assim, uma aproximação com essas epistemologias - fora do contexto ritual - deve pressupor, ao menos, a compreensão dos seus sentidos e funções originais. Sua dimensão artesanal pressupõe não apenas um conhecimento estético, mas, sobretudo, a ativação e circulação das forças envolvidas numa determinada experiência. Aqui, as formas não estão desvencilhadas das forças. Poderíamos dizer, portanto, que um esvaziamento de seus sentidos e funções originais se daria justamente a partir da representação de seus fundamentos sob aspectos unicamente estético-formais. E foi precisamente no contato com as epistemologias de matriz africana (especialmente o Vodu haitiano), em que se afirma a possibilidade de modulação das forças da vida em processos de encarnação, que Grotowski parece ter abordado a eficácia dos cantos afrodiaspóricos na experiência corpóreo-sensível de performers de outras origens. Partindo do pressuposto de que uma técnica performativa carrega em si uma visão de corpo e de mundo, a articulação desses cantos, fora do contexto ritual, foi assumida na pesquisa artística de Grotowski como uma prática existencial. E, assim, sua investigação assumiu um caráter experiencial e pôde voltar-se para questões dificilmente enquadráveis unicamente em um âmbito estético.

Considerando as devidas particularidades e distinções de foco entre as pesquisas antropológicas, etnomusicológicas e a abordagem transcultural de Grotowski, há que se considerar, no entanto, um problema de pesquisa muito semelhante e que me parece pertinente explorar: as relações entre formas artísticas, conteúdo e contexto social. Conforme propõe o antropólogo Alfred Gell (2018)GELL, Alfred. Arte e agência. São Paulo: Ubu, 2018., é possível incluir sob o conceito de arte uma série de objetos e criações performativas de tradições não-ocidentais se, em tal abordagem, analisarmos seus aspectos para além do âmbito unicamente estético. Pois, conforme esclarece o pesquisador, as tecnologias envolvidas nas produções artísticas estão sempre a serviço de interações sociais específicas.

Assim, em sua teoria

[...] qualquer coisa poderia ser tratada como objeto de arte do ponto de vista antropológico, inclusive pessoas vivas, porque a teoria antropológica da arte (que podemos definir de forma aproximada como ‘as relações sociais que acontecem no entorno dos objetos que atuam como mediadores da agência social’) se ajusta perfeitamente à antropologia social das pessoas e seu corpo. Assim, do ponto de vista da antropologia da arte, um ídolo em um templo que acreditamos ser o corpo da divindade e um médium que ofereça o corpo da divindade temporariamente são tratados, em termos teóricos, no mesmo nível, mesmo que o primeiro seja um artefato e o segundo, um ser humano (Gell, 2018GELL, Alfred. Arte e agência. São Paulo: Ubu, 2018., p. 32).

Dessa maneira, Gell considera que a eficácia do objeto de arte é o seu poder de agência e, em sua teoria, em vez de enfatizar a comunicação simbólica, preocupa-se mais com “o papel prático de mediação exercido pelos objetos de arte no processo social”. Uma abordagem que prioriza, então, parâmetros como intenção, causalidade, resultado e transformação (Gell, 2018GELL, Alfred. Arte e agência. São Paulo: Ubu, 2018., p. 31). Neste caso, a análise da eficácia das técnicas artísticas deve englobar, segundo Gell, o aspecto psicológico da antropologia da arte. Ou seja, a conjugação de uma teoria da eficácia social com considerações de natureza cognitiva, pois, conforme observa, “não podemos dissociar a cognição da sociabilidade” (Gell, 2018GELL, Alfred. Arte e agência. São Paulo: Ubu, 2018., p. 126). Assim, o índice artístico deixa de ser entendido como um produto para ser visto como a extensão de um agente, esse que, por meio de um processo artesanal - seja ele artefato ou performance - externaliza e reatualiza um processo cognitivo de um determinado meio social (Gell, 2018GELL, Alfred. Arte e agência. São Paulo: Ubu, 2018., p. 342).

No que concerne ao estudo da música, um dos principais dilemas da etnomusicologia se fundamentou, ao longo do século XX, na compreensão de dois planos de abordagem essenciais: o dos sons e o dos comportamentos (assumindo-se, muitas vezes, uma relação de determinação do primeiro pelo segundo em que a música era entendida como um modo de representação da cultura). Um dos principais etnomusicólogos a pensar esses dois planos em interação, mas não em completa determinação, foi John Blacking (2007)BLACKING, John. Música, cultura e experiência. Cadernos de Campo, São Paulo, v. 16, n. 16, p. 201-218, mar. 2007. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133.v16i16p201-218 .
https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133....
. Para esse pesquisador, a palavra “música” comporta uma enorme variedade de “músicas”, categorizadas por seus produtores não apenas por “sistemas simbólicos especiais e tipos de ação social”, como também “[...] um quadro inato específico de capacidades cognitivas e sensoriais que os seres humanos estão predispostos a usar na comunicação e na produção de sentido do seu ambiente” (Blacking, 2007BLACKING, John. Música, cultura e experiência. Cadernos de Campo, São Paulo, v. 16, n. 16, p. 201-218, mar. 2007. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133.v16i16p201-218 .
https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133....
, p. 202). Conforme explica Blacking (2007BLACKING, John. Música, cultura e experiência. Cadernos de Campo, São Paulo, v. 16, n. 16, p. 201-218, mar. 2007. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133.v16i16p201-218 .
https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133....
, p. 206),

As maneiras pelas quais as pessoas ‘situam’ a música ‘dentro de outros modos de atividade social’; as classificações, metáforas, similaridades, metonímias, analogias e outros meios que utilizam para incorporá-la na textura de seu ‘padrão de vida particular’; e as decisões que tomam pela - ou por causa da - performance musical são pistas vitais na descoberta de gramáticas musicais e de tipos de pensamento e inteligência envolvidos no fazer das músicas do mundo.

Assim, considerando os pressupostos de Gell e Blacking, podemos pensar que a pesquisa de Grotowski, no Teatro das Fontes, ocupava-se de investigar como determinadas capacidades cognitivas poderiam ser transmitidas - através da colaboração direta com os representantes das tradições - para a experimentação de outros modos de sociabilidade num mundo ontologicamente plural. Nesse contexto, há que se considerar, no entanto, que esse saber sempre esteve presente nas tradições afrodiaspóricas - através de diferentes cruzamentos, recriações e transcriações de conhecimentos, práticas e cosmopercepções - como mecanismo de resistência cultural. Conforme destaca Martins (2002)MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar. In: RAVETTI, Graciela; ARBEX, Márcia (Org.). Performance, exílio, fronteiras: errâncias territoriais e textuais. Belo Horizonte: Faculdade de Letras/UFMG; Poslit, 2002. P. 69-91., a África, em toda a sua diversidade, transcriou sua presença nas Américas “por inúmeros processos de cognição, asserção e metamorfose, formal e conceitual” (Martins, 2002MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar. In: RAVETTI, Graciela; ARBEX, Márcia (Org.). Performance, exílio, fronteiras: errâncias territoriais e textuais. Belo Horizonte: Faculdade de Letras/UFMG; Poslit, 2002. P. 69-91., p. 70). Nesse sentido,

As performances rituais, cerimônias e festejos, por exemplo, são férteis ambientes de memória dos vastos repertórios de reservas mnemônicas, ações cinéticas, padrões, técnicas e procedimentos culturais residuais recriados, restituídos e expressos no e pelo corpo. Os ritos transmitem e instituem saberes estéticos, filosóficos e metafísicos, dentre outros, além de procedimentos, técnicas, quer em sua moldura simbólica, quer nos modos de enunciação, nos aparatos e convenções que esculpem sua performance. Nessa perspectiva o ato performático ritual não apenas nos remete ao universo semântico e simbólico da dupla repetição de uma ação re-apresentada (the ‘twicebehaved behavior’, de Schechner), mas constitui, em si mesmo, a própria ação. Para Schechner (1994, p. 28), ‘o processo ritual é performance’ e, como tal, alude “não apenas ao tempo e ao espaço, mas também a extensões através de várias fronteiras culturais e pessoais (Martins, 2002MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar. In: RAVETTI, Graciela; ARBEX, Márcia (Org.). Performance, exílio, fronteiras: errâncias territoriais e textuais. Belo Horizonte: Faculdade de Letras/UFMG; Poslit, 2002. P. 69-91., p. 72).

Nas práticas rituais de matriz africana, como aquelas das epistemologias Iorubá e Ewe-Fon, o pensamento artístico está ligado a um modo particular de ação: uma forma complexa de agenciamento entre seres humanos, forças da natureza, instituições culturais, antepassados, etc. Assim, apesar de suas formas artísticas carregarem aspectos simbólicos e produzirem elementos espetaculares, elas se apresentam, antes de tudo, como veículos de percepção/atualização de mundo para os seus participantes. Nesse sentido, podemos dizer que, atento a essa dimensão, Grotowski não estava interessado na representação dos elementos estéticos dos rituais. As investigações com o grupo transcultural buscavam encontrar “ações simples”, de modo que performers de diferentes culturas fossem capazes de executá-las, entrando, assim, em contato com outros tipos de cognição e ampliando as suas percepções habituais. O que, conforme Grotowski ressaltaria a partir dos anos 1980, só seria possível se o atuante se dispusesse a um trabalho rigoroso e aprofundado sobre suas próprias potencialidades psicofísicas. Em suas palavras: “Não é a boa vontade que salvará o trabalho, mas a maestria. [...] Se alguém vem de fora para participar neste tipo de trabalho, é como se fosse confrontado com uma técnica: uma técnica muito precisa, artística” e, então, “temos a obrigação de sermos competentes” (Grotowski, 2016bGROTOWSKI, Jerzy. Tu es le fils de quelqu’un. (1985). In: GROTOWSKI, Jerzy. Testi 1954-1998 - Volume IV. L’arte come veicolo (1984-1998). Traduzione di Carla Pollastrelli. Firenze/Lucca: La Casa Usher, 2016b. P. 42-53., p. 45-47).

Nesse âmbito, a colaboração com a artista e pesquisadora haitiana Maud Robart foi essencial. Nascida em Porto Príncipe, capital do Haiti, Robart foi criada no cruzamento entre as culturas tradicionais de matriz africana, em especial o Vodu, e a cultura colonial francesa. Em 1971, começou a pintar com o artista multifacetado Tiga (Jean Claude Garoute), com quem fundou e dirigiu, a partir de 1972, a comunidade artística de Saint Soleil, localizada no vilarejo de Soisson la Montagne. Foi no processo de construção da sua casa, no referido vilarejo, que a comunidade artística nasceu. Através do convívio com os operários da obra - em grande parte, agricultores -, uma relação de descoberta e colaboração artística, a partir das orientações arquitetônicas de Tiga, começou a surgir. Encerrada a construção da casa, Robart e Tiga prolongaram esse trabalho junto aos camponeses, na exploração de diferentes materiais e formatos de criação (escultura, pintura, desenho...), bem como na realização de encontros artísticos que frequentemente terminavam com performances baseadas nos contos, lendas e cantigas tradicionais haitianos (Robart, 2006bROBART, Maud. Le radici di un percorso artistico. Intervista a cura di Lilia Ruocco. Biblioteca Teatrale (La Ricerca di Maud Robart: L’orizzonte arcaico e atemporale del canto integrato), Roma, Bulzoni Editore, n. 77, p. 55-66, jan./mar. 2006b., p. 57-58). Grotowski, que nesse período iniciava as pesquisas do Teatro das Fontes, ficou interessado pelo trabalho do grupo e, em 1977, realizou a primeira viagem ao Haiti. O que marcou o início de uma colaboração com Robart, que se prolongaria, até 1993, em diferentes programas: nas expedições de campo do Teatro das Fontes (no Haiti e em outras localidades do mundo); nas pesquisas laboratoriais e nos workshops abertos do Teatro das Fontes (na Polônia); no Objective Drama Program (nos Estados Unidos); e no Workcenter of Jerzy Grotowski (na Itália). Embora Robart fale pouco sobre esse período, alguns aspectos da sua pesquisa atual - conduzida na França, onde vive desde a década de 1990 - permitem-nos entrever certos elementos éticos e práticos de trabalho que teriam marcado sua relação com o artista polonês.

Ao tratar dos cantos do Vodu haitiano, a partir dos seus aspectos formais e da cosmopercepção específica em que se baseiam, Robart (2006aROBART, Maud. A voce libera. Biblioteca Teatrale (La Ricerca di Maud Robart: L’orizzonte arcaico e atemporale del canto integrato), Roma, Bulzoni Editore, n. 77, p. 35-52, jan./mar. 2006a., p. 35) diz:

Na concepção metafísica da maioria dos povos africanos, o valor supremo é a Vida. Ela representa o ‘contexto real’ e, ao mesmo tempo, se explicita em termos de força, poder, energia, dinamismo... Este valor encontra sua realização sob a forma do entusiasmo, uma forma superior específica de emoção religiosa que outrora significava: ‘ter o Deus em si mesmo’... E o escopo de todas as suas práticas é intensificar ou consolidar a vida (tradução nossa)6 6 No texto original: “Nella concezione metafisica dela maggioranza dei popoli africani, il valore supremo è la Vita. Essa rappresenta il ‘contesto reale’ e allo stesso tempo esplicita i termini di forza, potere, energia, dinamismo... Questo valore trova il proprio compimento sotto la forma dell’entusiasmo, forma superiore specifica d’emozione religiosa che significava un tempo: ‘avere il Dio in sé’... E lo scopo di tutte le loro pratiche è d’intensificare o di consolidare la vita” (Robart, 2006a, p. 35). .

Para além da beleza fecunda das melodias, o elemento rítmico, muito próximo aos ritmos biológicos, é a característica dominante dos cantos do Vodu que utilizo. Para os povos da antiga África - de onde derivam essas canções - o ritmo traz em si a força criadora do universo: ‘No princípio era o ritmo e o ritmo estava em Deus. E o verbo criador era a palavra ritmada de Deus. Dela nasceu a criação. O ritmo garante as trocas com os outros planos da criação. Ritmo individual ligado ao ritmo do universo’. É por essa razão que uma dança e um canto são sagrados, ações rituais dotadas de um significado inerente à própria forma - portanto não atribuída de modo convencional - e que solicita diferentes níveis de compreensão (Robart, 2006aROBART, Maud. A voce libera. Biblioteca Teatrale (La Ricerca di Maud Robart: L’orizzonte arcaico e atemporale del canto integrato), Roma, Bulzoni Editore, n. 77, p. 35-52, jan./mar. 2006a., p. 44, tradução nossa)7 7 No texto original: “Al di là della bellezza pregnante delle melodie, l’elemento ritmico è la caratteristica dominante dei canti del vodù che utilizzo, molto vicino ai ritmi biologici. Per le popolazioni della vecchia Africa - da cui questi canti derivano - il ritmo porta in sé il potere creatore dell’universo: ‘All’Inizio era il ritmo e il ritmo era in Dio. E il verbo creatore era la parola ritmata di Dio. Da essa è nata la creazione. Il ritmo assicura gli scambi con gli altri piani della creazione. Ritmo individuale collegato al ritmo dell’universo’. É a questo titolo che una danza, un canto, sono sacri, atti rituali dotati di un significato inerente alla forma stessa - dunque non attribuito in modo convenzionale - e che sollecita diversi livelli di comprensione” (Robart, 2006a, p. 44). .

Para a pesquisadora, a forma, com todos os seus aspectos artesanais, não seria simplesmente um meio de representação dos aspectos simbólicos da tradição, pois sua vocação seria transmitir, por meio da experiência encarnada, um modo de sincronizar a vivência individual de cada pessoa com as forças geradoras de todos os tipos de vida. Trata-se, segundo Robart (2006aROBART, Maud. A voce libera. Biblioteca Teatrale (La Ricerca di Maud Robart: L’orizzonte arcaico e atemporale del canto integrato), Roma, Bulzoni Editore, n. 77, p. 35-52, jan./mar. 2006a., p. 41), “[...] de um patrimônio vivente, que perpetua a intenção original de unir os mundos, os universos e os níveis, e que nos liga diretamente a uma forma antiga de criatividade”. Para a pesquisadora, a noção de criatividade está ligada àquela da espontaneidade, como fator que - diferente daquele comumente explorado no âmbito teatral - é “[...] capaz de revelar, no instante presente, tanto a singularidade de cada pessoa quanto o seu pertencimento a uma ordem mais vasta, ultrapassando os condicionamentos de todas as categorias que limitam nossos modos de ser ou de agir” (Robart, 2006cROBART, Maud. ‘Io faccio e io vivo significa la stessa cosa’. Intervista a cura di Aspasia Vasiaki. Biblioteca Teatrale (La Ricerca di Maud Robart: L’orizzonte arcaico e atemporale del canto integrato), Roma, Bulzoni Editore, n. 77, p. 77-81, jan./mar. 2006c., p. 78). Para tanto, esse saber-fazer explora, para além do ritmo, os aspectos vibratórios, as melodias, as tonalidades, as palavras, a respiração e os movimentos, envolvendo, ao mesmo tempo, as sensações, as imagens, os pensamentos e as emoções despertados na experiência do praticante. Por se tratar de um conhecimento de tradição oral, cuja apreensão pode se dar apenas através da experiência, o praticante precisa se expor ao “impacto direto, físico, fisiológico e psíquico” dos cantos (Robart, 2006aROBART, Maud. A voce libera. Biblioteca Teatrale (La Ricerca di Maud Robart: L’orizzonte arcaico e atemporale del canto integrato), Roma, Bulzoni Editore, n. 77, p. 35-52, jan./mar. 2006a., p. 43). No entanto, levando em conta que esses saberes se baseiam em um modo de agir e de sentir que parece muito distante dos mecanismos de comportamento das sociedades euroamericanas, o trabalho de Robart se ocupa de investigar os processos por meio dos quais uma recepção mais adequada à natureza específica dos cantos pode se dar em outros contextos. Em suas palavras:

Ainda é possível conciliar valores espirituais e normas culturais? Como o encontro de culturas e seus diferentes sistemas científicos, artísticos e filosóficos pode ser uma fonte de enriquecimento mútuo, ao invés de uma diluição desigual no globalismo? [...] ao longo dos anos, considerando que cada transmissão pode ou não se beneficiar de uma situação favorável à sua recepção, fui levada a questionar se os problemas colocados pela utilização de formas artísticas pertencentes a um sistema, em outros sistemas culturais, fossem considerados em seus aspectos essenciais. A utilização do termo ‘transmissão’ refere-se aqui, evidentemente, à necessidade de criar as condições adequadas que ofereçam a oportunidade de empreender um percurso de aprofundamento da arte tradicional e de dar conta da essência das experiências que lhe estão ligadas. A necessidade de compreender certos mecanismos nas trocas interculturais tornou-se uma preocupação para mim. Essa constitui o motivo das principais questões que orientam a aplicação da minha pesquisa em um contexto diferente daquele em que ela nasceu (Robart, 2006aROBART, Maud. A voce libera. Biblioteca Teatrale (La Ricerca di Maud Robart: L’orizzonte arcaico e atemporale del canto integrato), Roma, Bulzoni Editore, n. 77, p. 35-52, jan./mar. 2006a., p. 37, tradução nossa)8 8 No texto original: “È ancora possibile conciliare valori spirituali e norme culturali? In che modo l’incontro delle culture e dei loro differenti sistemi scientifici, artistici e filosofici può essere fonte d’arricchimento reciproco, piuttosto che una diluizione non egualitaria nel mondialismo? [...] col passare degli anni, considerando che ogni trasmissione può o meno beneficiare di una congiuntura favorevole alla ricezione di questa trasmissione, sono stata portata a chiedermi se i problemi posti dall’utilizzo delle forme artistiche appartenenti a un sistema, in altri sistemi culturali, fossero considerati nei loro aspetti essenziali. L’impiego del termine ‘trasmissione’ rimanda qui evidentemente alla necessità di creare delle giuste condizioni che offrano le possibilità di intraprendere un percorso di approfondimento dell’arte tradizionale e di render conto dell’essenza delle esperienze che vi si ricollegano. Il bisogno di comprendere certi meccanismi, negli scambi interculturali, è divenuto una preoccupazione per me. Esso costituisce il motivo degli interrogativi principali che orientano l’applicazione della mia ricerca in un contesto diverso da quello in cui essa è nata” (Robart, 2006a, p. 37). .

Conforme destaca Robart, no contato com os cantos do Vodu haitiano, é essencial que os participantes assumam um compromisso consciente, responsável e voltado a uma “relação ativa com a substância musical” (Robart, 2006aROBART, Maud. A voce libera. Biblioteca Teatrale (La Ricerca di Maud Robart: L’orizzonte arcaico e atemporale del canto integrato), Roma, Bulzoni Editore, n. 77, p. 35-52, jan./mar. 2006a., p. 38). Nesse sentido, a artista reforça: “antes de querer utilizar, é preciso primeiramente ter muito experimentado e entendido” (Robart, 2006aROBART, Maud. A voce libera. Biblioteca Teatrale (La Ricerca di Maud Robart: L’orizzonte arcaico e atemporale del canto integrato), Roma, Bulzoni Editore, n. 77, p. 35-52, jan./mar. 2006a., p. 40). Do contrário, o encontro de diferentes formas culturais pode resultar em uma “[...] penetração superficial, que gera interpretações triviais, ou em um uso convencional, baseado no empréstimo e na falsificação, que estimulam, para ambas as partes, um processo de folclorização” (Robart, 2006aROBART, Maud. A voce libera. Biblioteca Teatrale (La Ricerca di Maud Robart: L’orizzonte arcaico e atemporale del canto integrato), Roma, Bulzoni Editore, n. 77, p. 35-52, jan./mar. 2006a., p. 40). Para a pesquisadora, uma investigação desse tipo deve se ocupar, antes de tudo, de exigências reais que permitam “atravessar a aparência das formas” e adentrar no complexo mundo das tradições que se quer conhecer. Uma postura ético-metodológica que nos permitiria, assim também, reavaliar o que se costuma chamar de “pesquisa de campo” (Robart, 2006aROBART, Maud. A voce libera. Biblioteca Teatrale (La Ricerca di Maud Robart: L’orizzonte arcaico e atemporale del canto integrato), Roma, Bulzoni Editore, n. 77, p. 35-52, jan./mar. 2006a., p. 40-41). Nesse sentido, Robart compreende que só um contato direto com esses elementos, por meio da exploração prática, pode permitir um conhecimento mais aprofundado sobre o potencial criativo humano que os modelos culturais euroamericanos não foram suficientes para esclarecer. Um motivo que deveria, assim também, “nos encorajar a resistir à padronização, um dos efeitos mais perversos da globalização” (Robart, 2006aROBART, Maud. A voce libera. Biblioteca Teatrale (La Ricerca di Maud Robart: L’orizzonte arcaico e atemporale del canto integrato), Roma, Bulzoni Editore, n. 77, p. 35-52, jan./mar. 2006a., p. 46).

Tal abordagem não pode remeter, portanto, a metodologias preestabelecidas. Segundo Robart, torna-se necessária uma educação específica da criatividade que permita penetrar - através de uma via experimental, direta e rigorosa - nos modos de saber-fazer artísticos das tradições e nas experiências humanas que elas podem induzir (Robart, 2006aROBART, Maud. A voce libera. Biblioteca Teatrale (La Ricerca di Maud Robart: L’orizzonte arcaico e atemporale del canto integrato), Roma, Bulzoni Editore, n. 77, p. 35-52, jan./mar. 2006a., p. 46). Nesse sentido, podemos dizer que os instrumentos de trabalho de Robart nascem, precisamente, da relação entre tradição e modernidade. Conforme explica, “[...] ao contrário do senso comum, a tradição contém, em si mesma, um poder implícito de renovação” (Robart apud Baruffi, 2006BARUFFI, Cristina. L’esperienza di lavoro con Maud Robart: l’emergere di un nuovo strumento. Biblioteca Teatrale (La Ricerca di Maud Robart: L’orizzonte arcaico e atemporale del canto integrato), Roma, Bulzoni Editore, n. 77, p. 163184, jan./mar. 2006., p. 164). Assim, ao buscar penetrar no cerne desse processo de transformação, Robart seleciona - e, de certa forma, adapta - certos elementos do Vodu haitiano -, como o ritmo e o aspecto vibratório, por exemplo - que permitiriam a indivíduos de outros contextos uma aproximação com os seus princípios mobilizadores. Ao mesmo tempo, no que diz respeito ao surgimento dessas novas estruturas de trabalho, a pesquisadora faz questão de afirmar que esse processo não busca responder à “necessidade moderna de, a todo momento, inventar o novo” (Robart apud Baruffi, 2006BARUFFI, Cristina. L’esperienza di lavoro con Maud Robart: l’emergere di un nuovo strumento. Biblioteca Teatrale (La Ricerca di Maud Robart: L’orizzonte arcaico e atemporale del canto integrato), Roma, Bulzoni Editore, n. 77, p. 163184, jan./mar. 2006., p. 164-165). Através da relação entre tradição e modernidade, busca-se redescobrir “[...] a modalidade oral e seu poder de comunicar, em uma linguagem global, tudo aquilo que subjaz, revelado e ainda oculto, por trás da aparência das formas” (Robart apud Baruffi, 2006BARUFFI, Cristina. L’esperienza di lavoro con Maud Robart: l’emergere di un nuovo strumento. Biblioteca Teatrale (La Ricerca di Maud Robart: L’orizzonte arcaico e atemporale del canto integrato), Roma, Bulzoni Editore, n. 77, p. 163184, jan./mar. 2006., p. 165-166). Um trabalho que só pode ser realizado, portanto, num ambiente protegido das expectativas de produção, resultado e disseminação, típicos do mundo moderno. Nas palavras de Robart (2006aROBART, Maud. A voce libera. Biblioteca Teatrale (La Ricerca di Maud Robart: L’orizzonte arcaico e atemporale del canto integrato), Roma, Bulzoni Editore, n. 77, p. 35-52, jan./mar. 2006a., p. 51, tradução nossa),

Qualquer que seja o grau objetivo de eficiência que se queira reconhecer em tais instrumentos, como suporte a um programa de pesquisa, não basta apresentá-los de uma forma ou de outra; a eficácia desses instrumentos não depende da magia ou da especulação fantasiosa. A transmissão destas estruturas tradicionais, num contexto em que os valores são completamente diferentes, depende estritamente do seu corolário, ou seja, a recepção desta transmissão. Impõe-se a exigência de abrir um caminho de pesquisa lúcida/complexa, que inclua ‘múltiplos possíveis’ e seja articulado em um projeto promotor de cultura. Um caminho inovador, que integre também o princípio segundo o qual as condições adequadas que estabelecem as possibilidades de uma troca frutífera possam ser descobertas e redescobertas apenas na fricção do próprio encontro, desinteressado, correndo riscos e tomando o tempo necessário, sem medo das ‘incertezas da ambiguidade’, a fim de recolher dados relevantes capazes de conduzir à partilha de experiências de vida9 9 No texto original: “Ma quale che sia il grado oggettivo di efficienza che si voglia riconoscere a tali strumenti come supporto a un programma ri ricerca, non è sufficiente introdurli sotto una forma o sotto un’altra; l’efficacia di tali strumenti non dipende dalla magia o dalla speculazione fantasista. La trasmissione di queste strutture tradizionali, in un contesto in cui i valori sono completamente differenti, dipende strettamente dal suo corollario, ovvero la ricezione di questa trasmissione. S’impone l’esigenza di aprire una via di ricerca lucida/complessa, che includa ‘multipli possibili’ e sia articolata in un progetto portatore di cultura. Una via innovatrice, che integri anche il principio secondo il quale le condizioni adatte che stabiliscono le possibilità di uno scambio fecondo, possono essere scoperte e riscoperte solo nella frizione dell’incontro stesso, disinteressato, correndo dei rischi e prendendo il tempo necessario, senza timore delle ‘incertezze dell’ambiguità’, al fine di raccogliere i dati pertinenti capaci di portare alla condivisione di esperienze viventi” (Robart, 2006a, p. 51). .

Esse ambiente propício à recepção de um saber tradicional, através de uma pesquisa complexa sobre o encontro de culturas, protegido da expectativa de resultados utilitários e não cerceado por prazos pré-estabelecidos, parece ter sido encontrado nos projetos realizados junto a Grotowski, especialmente no Workcenter. Segundo Robart, desde o princípio dessa colaboração, havia uma espécie de ética comum nas investigações de ambos os artistas (Robart, 2006bROBART, Maud. Le radici di un percorso artistico. Intervista a cura di Lilia Ruocco. Biblioteca Teatrale (La Ricerca di Maud Robart: L’orizzonte arcaico e atemporale del canto integrato), Roma, Bulzoni Editore, n. 77, p. 55-66, jan./mar. 2006b., p. 61). E, no âmbito da prática, muitos elementos concretos dessa parceria influenciariam no desenvolvimento do seu trabalho posterior:

Foi interessante e útil, para mim, poder comparar as técnicas tradicionais da performance com outros sistemas de referência modernos, como o método de Stanislávski e as técnicas da organicidade desenvolvidas por Grotowski. Por outro lado, a minha contribuição para este trabalho e o aprofundamento da minha pesquisa pessoal puderam ser realizados em condições únicas. Volta-se sempre a essa noção das condições certas para trabalhar, para buscar, para desenvolver alguma coisa. Ali, tive a oportunidade e o tempo, através de elementos de contato particulares e reveladores, de tomar consciência da problemática relacionada ao encontro de culturas (Robart, 2006bROBART, Maud. Le radici di un percorso artistico. Intervista a cura di Lilia Ruocco. Biblioteca Teatrale (La Ricerca di Maud Robart: L’orizzonte arcaico e atemporale del canto integrato), Roma, Bulzoni Editore, n. 77, p. 55-66, jan./mar. 2006b., p. 61, tradução nossa)10 10 No texto original: “È stato interessante e utile per me poter confrontare te tecniche performative tradizionali con altri sistemi di riferimento moderni, quali il metodo di Stanislavskij e le tecniche di organicità elaborate da Grotowski. D’altronde, il mio contributo a questo lavoro e l’approfondimento della mia ricerca personale hanno potuto realizzarsi in condizioni uniche. Si ritorna sempre a questa nozione di condizioni giusta per lavorare, per cercare, per sviluppare qualcosa. Là, ho avuto l’occasione e il tempo, attraverso elementi di contatto particolari e rivelatori, di prendere coscienza della problematica collegata all’incontro tra le culture” (Robart, 2006b, p. 61). .

Conforme destaca, certos princípios de trabalho explorados no Workcenter - como a relação entre tradição e trabalho pessoal do artista, a relação entre ritual e espetáculo, bem como todos os aspectos técnicos elementares que concernem ao domínio da arte performativa - também passariam a integrar sua pesquisa posterior (Robart, 2006bROBART, Maud. Le radici di un percorso artistico. Intervista a cura di Lilia Ruocco. Biblioteca Teatrale (La Ricerca di Maud Robart: L’orizzonte arcaico e atemporale del canto integrato), Roma, Bulzoni Editore, n. 77, p. 55-66, jan./mar. 2006b., p. 62). É importante destacar, aqui, que a abordagem de Robart não tem como finalidade o espetáculo público. Seus workshops visam à participação direta das pessoas - por meio de um trabalho rigoroso sobre as capacidades psicofísicas dos participantes - , a fim de penetrar no “espírito do canto11 11 L’esprit du chant foi o título do workshop conduzido por Maud Robart, em setembro de 2019, na cidade de Labarrère, na França, do qual participei durante sete dias. ”. Conforme explica:

A proposta fundamental ligada à minha abordagem não é se sentir bem cantando uma bela canção exótica com um grupo simpático. É preciso tornar-se capaz, sem nenhuma fabulação neste nível, de animar a ‘substância’ dos cantos ou, se preferir, de ‘fazer corpo’ com o conteúdo e com o fundo. O ‘espírito móvel da canção’, sua dança oculta, pode ser pressentido através de uma compreensão justa do que está envolvido e do movimento adequado da energia. Não existe algum truque para isso, alguma modalidade de uso já pronta. Esse trabalho exige do artista uma síntese de competências paradoxais para se ligar à energia interna do canto e a sua pulsação. Essa última representa o elemento de coordenação que sincroniza os atos conscientes e instintivos do artista para a realização de uma experiência ideal baseada na interação íntima com a essência mutável do canto, que se torna parte do si mesmo. Então, é talvez possível sentir que ‘é o canto que te canta’ ou, ainda, que ‘Tudo vem, Tudo dança e Tudo canta’ (Robart, 2006aROBART, Maud. A voce libera. Biblioteca Teatrale (La Ricerca di Maud Robart: L’orizzonte arcaico e atemporale del canto integrato), Roma, Bulzoni Editore, n. 77, p. 35-52, jan./mar. 2006a., p. 44-45, tradução nossa)12 12 No texto original: “La proposta fondamentale legata al mio approccio, non è quella di sentirsi bene cantando una bella canzone esotica con un gruppo simpatico. Occorre diventare capaci, senza alcuna affabulazione su questo piano, di animare ‘la sostanza’ dei canti o, se preferite, di ‘fare corpo’ con il contenuto e con il fondo. Lo ‘spirito mobile del canto’, la sua danza nascosta, possono essere presentiti attraverso una comprensione giusta di ciò che è in causa e una messa in movimento adeguata dell’energia. Non esiste alcun trucco per questo, alcuna modalità d’uso già pronta. Tale lavoro richiede all’’artista una sintesi di competenze paradossali per legarsi all’energia interna del canto e alla sua pulsazione. Quest’ultima rappresenta l’elemento di coordinazione che sincronizza gli atti cosciente e istintivi dell’artista per il compimento di un’esperienza ottimale fondata sull’interazione intima con l’essenza mutevole del canto, che diventa una parte di se stessi. Allora, è forse possibile sentire che ‘è il canto che ti canta’ o ancora che ‘Tutto viene, Tutto danza e Tutto canta’” (Robart, 2006a, p. 44-45). .

Isso é possível, pois, conforme compreende Robart, o corpo-voz é um instrumento de grande precisão que, para além do “contexto biossocial” de uma pessoa específica, pode se conectar com os componentes de outros sistemas de conhecimento - como aqueles em que operam “forças ou causas pluridimensionais”, como o Vodu haitiano (Robart, 2006aROBART, Maud. A voce libera. Biblioteca Teatrale (La Ricerca di Maud Robart: L’orizzonte arcaico e atemporale del canto integrato), Roma, Bulzoni Editore, n. 77, p. 35-52, jan./mar. 2006a., p. 48). Nesse processo de transmissão, afirma-se, então, uma noção de precisão, própria às técnicas tradicionais, que é diferente daquela baseada na mera execução formal. Segundo Robart, essa precisão tem a ver com a organicidade, condição que realiza a unidade entre o fundamento, o conteúdo e a forma dos cantos, através de uma organização integrada da pessoa nos níveis “cognitivo, biológico, afetivo e supra-mental”, e que está, ao mesmo tempo, intimamente ligada à “imprevisibilidade do dinamismo da vida” (Robart, 2006aROBART, Maud. A voce libera. Biblioteca Teatrale (La Ricerca di Maud Robart: L’orizzonte arcaico e atemporale del canto integrato), Roma, Bulzoni Editore, n. 77, p. 35-52, jan./mar. 2006a., p. 48). Dessa forma, a compreensão do apelo codificado nos cantos do Vodu surge como uma “evidência sentida, experimentada através da experiência direta, na vivência corpórea” (Robart, 2006bROBART, Maud. Le radici di un percorso artistico. Intervista a cura di Lilia Ruocco. Biblioteca Teatrale (La Ricerca di Maud Robart: L’orizzonte arcaico e atemporale del canto integrato), Roma, Bulzoni Editore, n. 77, p. 55-66, jan./mar. 2006b., p. 65). Aqui, a capacidade principal a ser explorada é a da escuta. Uma escuta consciente que, segundo Robart, “acompanha o processo da organicidade, como resposta espontânea à percepção mais sutil” (Robart, 2006aROBART, Maud. A voce libera. Biblioteca Teatrale (La Ricerca di Maud Robart: L’orizzonte arcaico e atemporale del canto integrato), Roma, Bulzoni Editore, n. 77, p. 35-52, jan./mar. 2006a., p. 50). Trata-se de uma postura ativa - mas, conforme ressalta, não voluntarista - que deve guiar o processo. Em vez de antecipar as emoções ou projetar imagens e sentidos pré-estabelecidos, é preciso desenvolver a habilidade da escuta: esta é a “[...] condição básica para favorecer o funcionamento dos fatores que condicionam o acesso a esta experiência direta - que, em sua mais alta qualidade, sobrevive, paradoxalmente, sem estratégias antecipatórias de realização” (Robart, 2006bROBART, Maud. Le radici di un percorso artistico. Intervista a cura di Lilia Ruocco. Biblioteca Teatrale (La Ricerca di Maud Robart: L’orizzonte arcaico e atemporale del canto integrato), Roma, Bulzoni Editore, n. 77, p. 55-66, jan./mar. 2006b., p. 66).

Em seu trabalho, como pude verificar durante a participação no workshop L’esprit du chant13 13 Realizado em setembro de 2019 na fazenda e associação cultural Las Téouléres, localizada na zona rural de Labarrère, no sul da França. , Robart evita explicar os significados dos cantos e dos movimentos. A aproximação deve acontecer, na experiência encarnada dos participantes, por meio da percepção dos ritmos, das ressonâncias, das melodias e da relação com o espaço. Cito a descrição de parte dessa experiência, conforme registrei em meu diário de campo:

Estamos sentados nos bancos, formando uma espécie de semicírculo e, nesta posição, permanecemos por muito tempo cantando em responsório aos chamamentos liderados por Robart. Diferentes cantos são explorados, um após o outro - às vezes sem interrupção e, às vezes, com alguns momentos de silêncio. Não há comentários e nem indicações de Robart, apenas seguimos a sua liderança através das canções. Já estou cansado e um pouco sonolento, sinto meu corpo pesado, mas me mantenho atento às contínuas repetições do canto. Aos poucos, de modo espontâneo, uma sutil ondulação começa [a] aparecer em minha coluna - como um pequeno impulso que surge na base, se prolonga num movimento até a cabeça e, então, retorna para baixo - tudo isso acompanha o ritmo da canção. Isso me anima, me dá um certo vigor. Meus braços começam a ser envolvidos nesse processo. As mãos vão à frente do corpo, próximas ao peito, e começam a mover-se, alternadamente, para cima e para baixo. Me sinto como uma criança que, mesmo obrigada a permanecer sentada num banco, brinca e dança com essa canção. Continuo, por algum tempo, me deixando levar por esses sensações e associações. Até que, num determinando momento, Robart interrompe o canto e, de maneira alegre, me pergunta - O que você está fazendo? - Eu, sem saber muito bem como descrever em outra língua14 14 Robart conduziu o workshop na língua francesa, que era traduzida para mim, pelos seus assistentes, em língua italiana. , fico perdido entre as palavras e não consigo responder. Ela, então, reformula a pergunta - Quem está fazendo isso? - e, então, como num flash, tudo se torna claro e eu digo - ‘Il giocoliere’, o malabarista. Ela diz: - Isso é bom. Você descobriu algo que está de acordo com o canto. Esse malabarista,ce jongleur, está vivo em você. Mas, cuidado. Mantenha-se próximo àquilo que faz ele nascer dentro de você. É importante que os movimentos exteriores não antecipem ou se sobreponham a essa vida interior. Em seguida, voltamos a cantar. Tento me manter atento à origem desse impulso e, ainda por alguns instantes, esse malabarista/giocoliere/jongleur se anima, em mim, através da exploração do canto. Mas, depois de alguns instantes, desaparece. Cantamos mais algumas canções e a sessão é encerrada (Caderno de Campo do Pesquisador).

A partir do processo vivido nessa sessão de canto, compreendo que, por meio de um certo abandono da atitude voluntarista - quando, mesmo sentindo-me sonolento, mantive-me com a escuta ativa -, fui capaz de perceber a pulsação do canto e, por alguns instantes, “fazer corpo” com ele. Tratava-se de uma reação espontânea gerada a partir de uma percepção sutil - não apenas dos aspectos sonoros, mas também das sensações corporais, das associações e do espaço. Robart, em sua intervenção, parecia tanto reconhecer esse processo, destacando que essa era uma linha de investigação a ser desenvolvida, quanto apontar certas precauções em relação ao fenômeno delicado que ali se apresentava. Tratava-se, a meu ver, de evitar que as associações se tornassem mera representação - fixando-se em movimentos corporais desconectados dos impulsos interiores -, por meio de um trabalho contínuo sobre os elementos precisos do canto. O que se apresentava, na linguagem teatral, era propriamente a relação entre estrutura e espontaneidade15 15 No cerne das investigações de Grotowski sobre o trabalho dor ator encontra-mos a relação entre forma e reações vivas, ou estrutura e espontaneidade, entendida como um conjunctio oppositorum (Motta Lima, 2005). . Conforme explica a pesquisadora,

A verdadeira espontaneidade surge na conjunção dos opostos. É uma promessa de liberdade escondida no coração das formas altamente codificadas dos instrumentos da arte tradicional. Uma promessa que deve ser descoberta por você mesmo, através de um esforço preciso, pessoal e criativo, para acessar uma expressão espontânea autêntica em que ‘fazer’ e ‘viver’ são indissociáveis (Robart, 2006cROBART, Maud. ‘Io faccio e io vivo significa la stessa cosa’. Intervista a cura di Aspasia Vasiaki. Biblioteca Teatrale (La Ricerca di Maud Robart: L’orizzonte arcaico e atemporale del canto integrato), Roma, Bulzoni Editore, n. 77, p. 77-81, jan./mar. 2006c., p. 78, tradução nossa)16 16 No texto original: “La vera spontaneità sorge nella congiunzione degli opposti. È una promessa di libertà nascosta nel cuore delle forme talmente codificate degli strumenti dell’arte tradizionale. Una promessa che occorre scoprire da se stessi, mediante uno sforzo preciso, personale e creativo, per accedere a un’autentica espressione spontanea nella quale ‘fare’ e ‘vivere’ sono indissociabili” (Robart, 2006c, p. 78). .

Podemos dizer que se trata de um aprendizado voltado à regeneração da sensibilidade - fragilizada pelos hábitos de vida modernos - a partir de uma abordagem, enraizada na tradição oral, que pode nos levar a uma compreensão mais profunda do fenômeno artístico. Para Robart (2006cROBART, Maud. ‘Io faccio e io vivo significa la stessa cosa’. Intervista a cura di Aspasia Vasiaki. Biblioteca Teatrale (La Ricerca di Maud Robart: L’orizzonte arcaico e atemporale del canto integrato), Roma, Bulzoni Editore, n. 77, p. 77-81, jan./mar. 2006c., p. 7980), essa compreensão exige um corajoso envolvimento pessoal e, ao mesmo tempo, “[...] um certo gosto pelo risco, pelo desconhecido, uma vontade de superação - desde que, naturalmente, tudo isso seja assumido com consciência e, portanto, com rigor”. Essa necessidade de rigor e habilidade na lida com as técnicas performativas de diferentes origens também parece se aproximar da abordagem proposta por Blacking, no campo da etnomusicologia, para uma melhor compreensão dos fenômenos artístico-musicais das culturas não-ocidentais. Conforme propõe o pesquisador:

[...] quando a gramática da música coincide com a gramática do corpo de uma pessoa particular, a ressonância cognitiva pode, em parte, ser sentida e apreendida por causa da experiência social. Mas quando a gramática da música coincide com a biogramática ‘musical’ do corpo humano, em sentido amplo, a ressonância cognitiva pode ser sentida e apreendida apesar das experiências sociais específicas. Uma compreensão intuitiva da música é possível porque performers e ouvintes possuem, tal como criadores de música, a mesma ‘competência’ ou ‘inteligência’ musical inata (Blacking, 2007BLACKING, John. Música, cultura e experiência. Cadernos de Campo, São Paulo, v. 16, n. 16, p. 201-218, mar. 2007. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133.v16i16p201-218 .
https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133....
, p. 215).

Podemos pensar, assim, que embora as técnicas e formas artísticas sejam indissociáveis dos sentidos e aspectos simbólicos de um meio sociocultural, indivíduos que não dominam os mesmos códigos simbólicos podem ser impactados - e obter uma experiência aproximativa - em decorrência de certas capacidades sensoriais e cognitivas comuns no que tange à experiência musical. É nesse sentido que os conhecimentos artesanais de determinadas escolas e tradições não-ocidentais poderiam ser pensados na sua potência de - através de um trabalho guiado pelo rigor e a precisão - proporcionar processos de alteridade. É também nesse sentido que, parece-me, ao considerar a dinâmica e os papéis que a música pode desempenhar na vida social e na organização cultural, Blacking propõe pensar a “cognição artística” como um veículo para a transformação das formas sociais:

A ideia de que a cognição artística é uma importante fonte da vida humana, e de que a práxis artística pode influenciar e iniciar a ação social, não deveria ser dispensada [...], o fazer musical pode ser uma ferramenta indispensável para a intensificação e a transformação da consciência como um primeiro passo para transformar as formas sociais (Blacking, 2007BLACKING, John. Música, cultura e experiência. Cadernos de Campo, São Paulo, v. 16, n. 16, p. 201-218, mar. 2007. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133.v16i16p201-218 .
https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133....
, p. 208).

Poderíamos dizer, assim, que se as técnicas abordadas por Grotowski e Robart não são completamente transponíveis a outros contextos, elas fornecem pistas sobre princípios elementares do comportamento humano e as possibilidades de trabalhar sobre o corpo, o sensível e a consciência, a partir de novas epistemologias, em contextos artístico-investigativos nos quais os participantes se disponham a realizar um “trabalho sobre si”. Dessa maneira, o trabalho sobre os conhecimentos tradicionais demandaria um esforço de adaptação: não apenas das técnicas originais, mas, principalmente, dos nossos modos de conhecer.

Assim, podemos dizer que a pesquisa de Grotowski, a partir do Teatro das Fontes (e em colaboração direta com os artistas/performers de diferentes culturas, em especial Robart), parecia querer reavivar um aspecto esquecido nas sociedades ocidentais, desde a dissociação entre arte e rito, como a possibilidade de produção de saberes sobre o mundo através de um conhecimento que se constitui pela experiência17 17 É possível observar semelhanças e diferenças, assim como continuidades e des-continuidades, nos trabalhos de Grotowski e Robart, tanto nos primeiros anos de atividade do Workcenter (quando o centro abrigava dois grupos de pesquisa independentes: um liderado por Robart e o outro por Thomas Richards, sob a supervisão de Grotowski), quanto a partir de 1993, quando a artista haitiana deixou o Workcenter e passou a desenvolver suas pesquisas no interior da França. Por falta de espaço, esta discussão não entrou no texto do artigo, mas alguns de seus aspectos, ainda que de maneira introdutória, podem ser encontrados na tese de doutorado (Matricardi, 2022). . Ao mesmo tempo, não se trata de imitar as outras culturas, mas de encontrar-se com elas e descobrir instrumentos (procedimentos, modos de ser/estar, táticas) que nos ajudariam a ampliar os limites da própria cultura ocidental, na direção do que poderia ser chamado de uma descolonização do si mesmo do sujeito. Nesse caso, a cultura não seria vista como um campo de representação da realidade, mas sim como um campo de resposta à realidade. Como diria Suely Rolnik (2018)ROLNIK, Suely. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: n-1 edições, 2018., é preciso que nos reapropriemos de nossas potências vitais, como forças criativas e de cooperação, que foram desviadas para a acumulação do capital. Embora esse trabalho se realize no campo das experiências subjetivas - e, portanto, no âmbito da existência de cada um -, a busca desses meios de reapropriação não se dá de maneira isolada, ela depende de uma vontade coletiva envolvida na construção de um comum. As artes, se não reduzidas a meras mercadorias, podem ser um campo privilegiado para essa atuação. Um meio de insurgência micropolítica - não isento dos paradoxos, das contradições e das tensões geradas pelo encontro - que nos possibilitaria uma reapropriação dos “saberes-do-corpo”, dos “saberes-do-vivo” (Rolnik, 2018ROLNIK, Suely. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: n-1 edições, 2018., p. 111). Ou, como tratei anteriormente, um ambiente voltado para a regeneração da sensibilidade, fragilizada pelos modos de vida modernos, que assume a dimensão do que poderíamos chamar - conforme propõe Mencarelli - de “uma política do sensível” (Mencarelli, 2017MENCARELLI, Fernando. Epistemologias: transversalidades nas artes da cena. Conceição/Conception, Campinas, v. 6, n. 2, p. 5-9, jul./dez. 2017. DOI: https://doi.org/10.20396/conce.v6i2.8651172.
https://doi.org/10.20396/conce.v6i2.8651...
, p. 5-6).

Notas

  • 1
    Como Akropolis (1962), O Príncipe Constante (1965) e Apocalypsis cum Figuris (1969).
  • 2
    Textos das décadas de 1970, 1980 e 1990, em sua maioria ainda não disponí-veis em língua portuguesa, cujo acesso foi facilitado pelo criterioso trabalho de organização e tradução realizado por Carla Pollastrelli, na edição italiana da coleção Grotowski - Testi 1954 - 1998.
  • 3
    Especialmente as experiências ligadas aos terreiros de Candomblé Ketu Ilê Axé Opo Omin, na cidade de Londrina (PR), liderado pela Iyalorixá Omin e, posteriormente, Ilê Asè Oyá Funsó, na cidade de São Paulo (SP), liderado pela Iyalorixá Clarinha de Oya.
  • 4
    Disponíveis, em sua maioria, na tradução italiana publicada pela revista Biblio-teca Teatrale, em 2006 (ver: Biblioteca Teatrale. La Ricerca di Maud Robart: L’orizzonte arcaico e atemporale del canto integrato. Roma: Bulzoni Editore, n. 77, jan./mar. 2006).
  • 5
    No texto original: “Of course, this kind of a community also has its political implications. For if such a community can emerge in the space of theatre, why should it not be feasible in other places? And if, for the time being, it is in fact only possible in theatre, then theatre is to be regarded as a laboratory. Here, different ways are invented and tried out in interweaving cultures productively, and in exploring how to turn a crowd of individuals with very different cultural backgrounds into members of a - even if only temporary - community that does not demand that they hide or even give up their differences, and that does not include the one and excludes the other, but is able to render their differences productive for each and everybody participating” (Fischer-Lichte, 2009FISCHER-LICHTE, Erika. Interweaving Cultures in Performance: Different States of Being In-Between. New Theatre Quarterly, v. 25, n. 4, p 391-401, 2009. DOI: https://doi.org/10.1017/S0266464X09000670.
    https://doi.org/10.1017/S0266464X0900067...
    , p. 398-399).
  • 6
    No texto original: “Nella concezione metafisica dela maggioranza dei popoli africani, il valore supremo è la Vita. Essa rappresenta il ‘contesto reale’ e allo stesso tempo esplicita i termini di forza, potere, energia, dinamismo... Questo valore trova il proprio compimento sotto la forma dell’entusiasmo, forma superiore specifica d’emozione religiosa che significava un tempo: ‘avere il Dio in sé’... E lo scopo di tutte le loro pratiche è d’intensificare o di consolidare la vita” (Robart, 2006aROBART, Maud. A voce libera. Biblioteca Teatrale (La Ricerca di Maud Robart: L’orizzonte arcaico e atemporale del canto integrato), Roma, Bulzoni Editore, n. 77, p. 35-52, jan./mar. 2006a., p. 35).
  • 7
    No texto original: “Al di là della bellezza pregnante delle melodie, l’elemento ritmico è la caratteristica dominante dei canti del vodù che utilizzo, molto vicino ai ritmi biologici. Per le popolazioni della vecchia Africa - da cui questi canti derivano - il ritmo porta in sé il potere creatore dell’universo: ‘All’Inizio era il ritmo e il ritmo era in Dio. E il verbo creatore era la parola ritmata di Dio. Da essa è nata la creazione. Il ritmo assicura gli scambi con gli altri piani della creazione. Ritmo individuale collegato al ritmo dell’universo’. É a questo titolo che una danza, un canto, sono sacri, atti rituali dotati di un significato inerente alla forma stessa - dunque non attribuito in modo convenzionale - e che sollecita diversi livelli di comprensione” (Robart, 2006aROBART, Maud. A voce libera. Biblioteca Teatrale (La Ricerca di Maud Robart: L’orizzonte arcaico e atemporale del canto integrato), Roma, Bulzoni Editore, n. 77, p. 35-52, jan./mar. 2006a., p. 44).
  • 8
    No texto original: “È ancora possibile conciliare valori spirituali e norme culturali? In che modo l’incontro delle culture e dei loro differenti sistemi scientifici, artistici e filosofici può essere fonte d’arricchimento reciproco, piuttosto che una diluizione non egualitaria nel mondialismo? [...] col passare degli anni, considerando che ogni trasmissione può o meno beneficiare di una congiuntura favorevole alla ricezione di questa trasmissione, sono stata portata a chiedermi se i problemi posti dall’utilizzo delle forme artistiche appartenenti a un sistema, in altri sistemi culturali, fossero considerati nei loro aspetti essenziali. L’impiego del termine ‘trasmissione’ rimanda qui evidentemente alla necessità di creare delle giuste condizioni che offrano le possibilità di intraprendere un percorso di approfondimento dell’arte tradizionale e di render conto dell’essenza delle esperienze che vi si ricollegano. Il bisogno di comprendere certi meccanismi, negli scambi interculturali, è divenuto una preoccupazione per me. Esso costituisce il motivo degli interrogativi principali che orientano l’applicazione della mia ricerca in un contesto diverso da quello in cui essa è nata” (Robart, 2006aROBART, Maud. A voce libera. Biblioteca Teatrale (La Ricerca di Maud Robart: L’orizzonte arcaico e atemporale del canto integrato), Roma, Bulzoni Editore, n. 77, p. 35-52, jan./mar. 2006a., p. 37).
  • 9
    No texto original: “Ma quale che sia il grado oggettivo di efficienza che si voglia riconoscere a tali strumenti come supporto a un programma ri ricerca, non è sufficiente introdurli sotto una forma o sotto un’altra; l’efficacia di tali strumenti non dipende dalla magia o dalla speculazione fantasista. La trasmissione di queste strutture tradizionali, in un contesto in cui i valori sono completamente differenti, dipende strettamente dal suo corollario, ovvero la ricezione di questa trasmissione. S’impone l’esigenza di aprire una via di ricerca lucida/complessa, che includa ‘multipli possibili’ e sia articolata in un progetto portatore di cultura. Una via innovatrice, che integri anche il principio secondo il quale le condizioni adatte che stabiliscono le possibilità di uno scambio fecondo, possono essere scoperte e riscoperte solo nella frizione dell’incontro stesso, disinteressato, correndo dei rischi e prendendo il tempo necessario, senza timore delle ‘incertezze dell’ambiguità’, al fine di raccogliere i dati pertinenti capaci di portare alla condivisione di esperienze viventi” (Robart, 2006aROBART, Maud. A voce libera. Biblioteca Teatrale (La Ricerca di Maud Robart: L’orizzonte arcaico e atemporale del canto integrato), Roma, Bulzoni Editore, n. 77, p. 35-52, jan./mar. 2006a., p. 51).
  • 10
    No texto original: “È stato interessante e utile per me poter confrontare te tecniche performative tradizionali con altri sistemi di riferimento moderni, quali il metodo di Stanislavskij e le tecniche di organicità elaborate da Grotowski. D’altronde, il mio contributo a questo lavoro e l’approfondimento della mia ricerca personale hanno potuto realizzarsi in condizioni uniche. Si ritorna sempre a questa nozione di condizioni giusta per lavorare, per cercare, per sviluppare qualcosa. Là, ho avuto l’occasione e il tempo, attraverso elementi di contatto particolari e rivelatori, di prendere coscienza della problematica collegata all’incontro tra le culture” (Robart, 2006bROBART, Maud. Le radici di un percorso artistico. Intervista a cura di Lilia Ruocco. Biblioteca Teatrale (La Ricerca di Maud Robart: L’orizzonte arcaico e atemporale del canto integrato), Roma, Bulzoni Editore, n. 77, p. 55-66, jan./mar. 2006b., p. 61).
  • 11
    L’esprit du chant foi o título do workshop conduzido por Maud Robart, em setembro de 2019, na cidade de Labarrère, na França, do qual participei durante sete dias.
  • 12
    No texto original: “La proposta fondamentale legata al mio approccio, non è quella di sentirsi bene cantando una bella canzone esotica con un gruppo simpatico. Occorre diventare capaci, senza alcuna affabulazione su questo piano, di animare ‘la sostanza’ dei canti o, se preferite, di ‘fare corpo’ con il contenuto e con il fondo. Lo ‘spirito mobile del canto’, la sua danza nascosta, possono essere presentiti attraverso una comprensione giusta di ciò che è in causa e una messa in movimento adeguata dell’energia. Non esiste alcun trucco per questo, alcuna modalità d’uso già pronta. Tale lavoro richiede all’’artista una sintesi di competenze paradossali per legarsi all’energia interna del canto e alla sua pulsazione. Quest’ultima rappresenta l’elemento di coordinazione che sincronizza gli atti cosciente e istintivi dell’artista per il compimento di un’esperienza ottimale fondata sull’interazione intima con l’essenza mutevole del canto, che diventa una parte di se stessi. Allora, è forse possibile sentire che ‘è il canto che ti canta’ o ancora che ‘Tutto viene, Tutto danza e Tutto canta’” (Robart, 2006aROBART, Maud. A voce libera. Biblioteca Teatrale (La Ricerca di Maud Robart: L’orizzonte arcaico e atemporale del canto integrato), Roma, Bulzoni Editore, n. 77, p. 35-52, jan./mar. 2006a., p. 44-45).
  • 13
    Realizado em setembro de 2019 na fazenda e associação cultural Las Téouléres, localizada na zona rural de Labarrère, no sul da França.
  • 14
    Robart conduziu o workshop na língua francesa, que era traduzida para mim, pelos seus assistentes, em língua italiana.
  • 15
    No cerne das investigações de Grotowski sobre o trabalho dor ator encontra-mos a relação entre forma e reações vivas, ou estrutura e espontaneidade, entendida como um conjunctio oppositorum (Motta Lima, 2005MOTTA LIMA, Tatiana. Conter o incontível: apontamentos sobre os conceitos de ’estrutura’ e ’espontaneidade’ em Grotowski. Sala Preta, São Paulo, v. 5, p. 47-67, 2005. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2238-3867.v5i0p47-67.
    https://doi.org/10.11606/issn.2238-3867....
    ).
  • 16
    No texto original: “La vera spontaneità sorge nella congiunzione degli opposti. È una promessa di libertà nascosta nel cuore delle forme talmente codificate degli strumenti dell’arte tradizionale. Una promessa che occorre scoprire da se stessi, mediante uno sforzo preciso, personale e creativo, per accedere a un’autentica espressione spontanea nella quale ‘fare’ e ‘vivere’ sono indissociabili” (Robart, 2006cROBART, Maud. ‘Io faccio e io vivo significa la stessa cosa’. Intervista a cura di Aspasia Vasiaki. Biblioteca Teatrale (La Ricerca di Maud Robart: L’orizzonte arcaico e atemporale del canto integrato), Roma, Bulzoni Editore, n. 77, p. 77-81, jan./mar. 2006c., p. 78).
  • 17
    É possível observar semelhanças e diferenças, assim como continuidades e des-continuidades, nos trabalhos de Grotowski e Robart, tanto nos primeiros anos de atividade do Workcenter (quando o centro abrigava dois grupos de pesquisa independentes: um liderado por Robart e o outro por Thomas Richards, sob a supervisão de Grotowski), quanto a partir de 1993, quando a artista haitiana deixou o Workcenter e passou a desenvolver suas pesquisas no interior da França. Por falta de espaço, esta discussão não entrou no texto do artigo, mas alguns de seus aspectos, ainda que de maneira introdutória, podem ser encontrados na tese de doutorado (Matricardi, 2022MATRICARDI, Luciano. As pesquisas transculturais de Jerzy Grotowski: trabalho sobre si, modos de percepção e cantos tradicionais no percurso do Teatro das Fontes à Arte como Veículo. 2022. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) - Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2022.).
  • Editora responsável: Celina Nunes de Alcântara

Referências

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  • BLACKING, John. Música, cultura e experiência. Cadernos de Campo, São Paulo, v. 16, n. 16, p. 201-218, mar. 2007. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133.v16i16p201-218 .
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  • FISCHER-LICHTE, Erika. Interweaving Cultures in Performance: Different States of Being In-Between. New Theatre Quarterly, v. 25, n. 4, p 391-401, 2009. DOI: https://doi.org/10.1017/S0266464X09000670
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    31 Jan 2023
  • Aceito
    23 Maio 2023
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