Open-access Performance Negra e a Dramaturgia de Corpo no Batuque

Performance Afro-Brésilienne et Dramaturgies Corporelles des Batuques

Resumo:

Uma importante contribuição da Etnocenologia e dos Estudos da Performance para o campo de estudo das Artes Cênicas é a ampliação do que pode ser considerado como cena, espetáculo ou performance, rompendo fronteiras, calcadas no colonialismo do saber, que separaram radicalmente arte e cultura popular, polarizando criação e tradição. Essa quebra de paradigma abre a possibilidade de pensar as dramaturgias corporais presente nos rituais afro-brasileiros como um constructo da relação corpo e ancestralidade. É nessa perspectiva que o presente artigo apresenta uma discussão sobre a performance negra dos batuques, mais especificamente a Suça, da cidade de Natividade, estado do Tocantins.

Palavras-chave: Dramaturgia; Corpo; Batuque; Performance Negra

Résumé:

Une importante contribution de l’ethnocenologie et des études de la performance dans le domaine de l’art de la scène est l’expansion de ce qui put être considère comme la scène ou comme le spectacle, en brisant les frontières, fondées sur le colonialisme du savoir, qui ont séparé radicalement l’art de la culture populaire, en polarisant la création et la tradition. Cette rupture de paradigme ouvre la possibilité de penser les dramaturgies corporelles présentes dans les rituels african-brésiliens comme une construction de la relation entre le corps et l’ancestralité. C’est dans cette perspective que cet article présente une discussion sur la performance african-brésilienne des batuques, plus précisément la Suça, de la ville de Natividade, située dans l’état du Tocantins, au Brésil.

Mots-clés: Dramaturgie; Corps; Batuque; Performance Afro-Brésilienne.

Abstract:

The expansion of what can be considered as a scene, show or performance is a major contribution of Ethnoscenology and Performance Studies to the field of the Performing Arts, breaking borders that are based on the colonialism of knowledge, which radically separated art from grassroots culture, putting creation and tradition in different poles. This shift of paradigm opens the possibility of thinking the body dramaturgy of the African-Brazilian rituals as a construct of the relationship between body and ancestry. It is in this perspective that this paper presents a discussion on the black performance of batuque, more specifically the Suça, from Natividade (TO/Brazil).

Keywords: Dramaturgy; Body; Batuque; Afro-Brazilian Performance

Introdução

Até que os leões inventem suas próprias histórias, os caçadores serão sempre os heróis das narrativas de caça (Provérbio Africano).

Assim como observa Brah (1996), as questões da diferença, diversidade, pluralismo e hibridismo estão no centro dos debates contemporâneos. Momento oportuno para que as teorias e estudos da Dança e Artes Cênicas em geral atravessem a linha abissal que relegou as manifestações dramáticas negro-africanas e afro-brasileiras para o recuo e o confinamento do primitivo e folclórico, como um demarcador da relação de dominação e subordinação entre colonizador e colonizado.

Slenes (2011), ao observar que o registro das danças dos escravizados, muitas vezes e por muito tempo, isto é, do século XVI ao século XX, foi feito por colonizadores, limitando-se a entendimentos enraizados em preconceitos, esclarece os mecanismos pelos quais os batuques foram invisibilizados no cenário da história da dança brasileira, dificultando, ainda em tempos hodiernos, que façam parte da formação de bailarinos, por exemplo.

Evocar a importância dos batuques no cenário da dança no Brasil não pretende desconsiderar as diferenças entre uma dança pensada para o palco e uma dança feita em roda por determinada comunidade, e sim ampliar o campo de análise do fenômeno corpo em transfigurações poéticas para além dos cânones artísticos, chamando a atenção para três questões fundamentais: 1) os batuques, a despeito de sua orgânica e vital vinculação com a tradição, também foram forjados através de processos de criação; 2) os batuques estão vivos e ativos na contemporaneidade, isto é, não são artefatos de um passado esquecido e saudoso; 3) a dança cênica, particularmente a dança contemporânea, nos faz perceber uma ambiguidade: ao mesmo tempo em que essa manifestação se apresenta como privilegiada para a democratização das linguagens do corpo, toda sua estrutura, bem como suas próprias técnicas, são formadas por concepções e epistemologias que a vinculam a um universo cultural bastante particular e hegemônico.

Dito isso, nos debruçamos sobre os batuques como manifestações de dança afro-brasileira que apresentam sua dramaturgia corporal construída no jogo e na relação com a ancestralidade. Aqui, o conceito de dramaturgia corporal, em sua qualidade de tecido poético agenciado pelo corpo em movimento, nos parece adequado, pois o caráter performático dessas manifestações se engessaria e empobreceria se analisados sob a óptica de noções como a de passo e coreografia.

Para não incorrer no risco das generalizações abstratas, apresentaremos o conceito de batuque também a partir da vivência etnográfica com a Suça, no município de Natividade, estado do Tocantins (TO), sistematizada na dissertação de mestrado A Suça em Natividade: Festa, batuque e ancestralidade (Rosa, 2015).

Batuque: música e dança

Na concepção africana, da qual os batuques brasileiros descendem, música e dança dificilmente se distinguem, encontram-se absolutamente amalgamados. Já em 1961, Edison Carneiro, em seu clássico livro Sambas de Umbigada, constata que em toda a grande área de cultivo de cana-de-açúcar, tabaco, algodão e café, e também nos trabalhos da mineração em que os povos de Angola e do Congo efetivamente participavam, havia a presença de batuques, que o autor designou como sambas de umbigada. Conforme já apontado em Silva (2010a), essas formas de expressão, primeiramente rurais, de execução nos terreiros das fazendas, em tempos hodiernos encontram-se em diferentes processos de urbanização, incluindo o fenômeno de apropriação pelas grandes capitais, como tem acontecido em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Curitiba, por exemplo, para onde algumas manifestações tradicionais expressivas do interior ou de outras regiões do país migraram e estão sendo ressignificadas.

Os estudos de Roger Bastide (1959) sobre a diáspora africana no Brasil mostram que a matriz banto, pertencente a várias etnias do Congo, de Angola e de Moçambique, foi a força motora dos engenhos de açúcar do Nordeste desde o século XVII, tendo, no século XVIII, sido responsável pela extração de ouro e diamantes das Minas Gerais, e, no século XIX, atuado nas plantações de café no Sudeste.

Dias (2001) esclarece que, para o escravizado rural, em sua grande maioria de origem banto, as manifestações expressivas, denominadas pela crônica do período colonial como batuques, calundus ou sambas, representavam o ansiado momento de reunião, em que se desenvolvia certa consciência de classe entre os cativos, que, dada a impossibilidade de organização entre as próprias etnias, se viam em situações de convívio, comunhão e celebração multiétnica, o que tradicionalmente poderia ser inviabilizado por rivalidades históricas. Aqui, vale mencionar que alguns bantos, sobretudo da região do Congo, já vieram para o Brasil catequizados por missionários católicos.

Conforme já apontado por Silva (2010a) em artigo intitulado Sambas de Umbigada: considerações sobre jogo, performance, ritual e cultura, o baiano Edson Carneiro (1961), ao invés de batuque opta pelo termo samba, corruptela de semba, que na África banto quer dizer umbigada. Destarte, para Carneiro (1961), os sambas de umbigada dizem respeito a um conjunto de manifestações caracterizadas pela presença da umbigada ou a menção desse gesto, característica de danças lúdicas amorosas banto-africanas. O autor e pesquisador chegou a catalogar 33 danças distribuídas entre o Sudeste, Nordeste e Norte do Brasil.

Por outro lado, Dias (2001) chamou a atenção para outras características presentes nos sambas de umbigada, que no entanto preferiu chamar genericamente de batuques: os tambores feitos em troncos de árvore ocados ou em tanoaria com uma só pele fixada por pregos ou cravos, afinados a fogo, ou sua reinterpretação rítmico-timbrística em instrumentos de modelos de fabricação industrial; afinação da voz pelo tambor; estilo vocal em que se alternam frases curtas entre solo e coro, ou em que o coro repete um refrão fixo, enquanto o solista evolui com certa liberdade; o canto improvisado em forma de desafio; a presença de linguagem fortemente metafórica, com temas de crônica histórica e social da comunidade.

Nesse sentido, Silva (2010b) observa que em grande parte das vezes essas manifestações se situam em contexto liminar sagrado/profano, no qual a atitude religiosa permeia organicamente a festa aparentemente profana e vice-versa. Tal relação se manifesta no respeito aos tambores, ancestrais e outras entidades espirituais.

No que diz respeito à dança, as formações coreográficas em roda valorizam a performance individual ou de um par ao centro, com exceção do batuque paulista, realizado em filas. Nas mulheres, as saias rodadas ou ligeiramente rodadas são utilizadas não só como vestimenta, mas também como elemento cênico, que confere certa projeção ao movimento; os pés, descalços ou não, são plantados no chão; e a coluna geralmente tem leve ou acentuada inclinação de eixo para a frente, acompanhando flexão nos joelhos e muita, ou moderada, mobilidade no quadril.

Aqui, a partir de Silva (2012) consideraremos os batuques como manifestação de encruzilhada - lugar de interseções por onde perpassam as noções de sagrado e profano, passado e futuro, no cotidiano no qual reside o corpo limiar. Por seu turno, o corpo limiar é o corpo em estado de jogo na performance ritual, que no devir presente-passado atualiza e ressignifica identificações corporais herdadas de um processo histórico de fuga e dobra de poder, representadas na operação cultural que foi a instalação e permanência da cultura de matriz banto no Brasil (Silva, 2012). Tais identificações no momento da performance se materializam em forma de dramaturgias corporais.

O corpo limiar, conforme discutido por Silva (2012) a partir da Capoeira Angola e alguns Sambas de Umbigada, está munido de uma potência dramatúrgica que consideramos relevantes para o estudo da Dança numa perspectiva anticolonialista, pois se apresenta como um receptáculo de parte significativa da pluralidade que constitui a cultura brasileira.

A noção de corpo limiar, cunhada por Silva (2010b), teve como principal esteio a visão do antropólogo Turner (1974), que aponta que a instauração de um espaço limiar permite a busca de fontes de metapoder, que é certamente o próprio corpo liberado, com seus múltiplos recursos não explorados de prazer, dor e expressão. Sob essa perspectiva, é possível crer que nos batuques estamos diante de corpos que ludibriaram simbolicamente, ao menos nessa instância, o poder microfísico que fabrica corpos dóceis, outrora denunciados por Foucault (1979).

O antropólogo Victor Turner (1974) discute o fenômeno da liminaridade a partir dos rituais de passagem. A partir do entendimento de que os batuques brasileiros não são, a priori, rituais de passagem, já que neles não tem como função o distanciamento e, depois, a aproximação do indivíduo com status social diferente, como por exemplo uma mudança de lugar, estado, posição social ou faixa etária. Todavia, essas danças são acontecimentos prescritos em ocasiões não dominadas pela rotina e relacionadas com a crença em seres ou forças místicas, caracterizando-se dessa forma como eventos em que as estruturas sociais são desorganizadas pelas brincadeiras e pelo acaso instaurado (Turner, 1974; Carlson, 1996).

Ao propor que o ritual e as artes performativas derivam do eixo liminar do drama social, Turner (1974) insere a performance, pensada aqui a partir dos estudos de Schechner (2002), como formas de poder liminar. É nesse sentido que consideramos aqui que os batuques dos negros brasileiros, na qualidade de performance afro-brasileira, são constituídos por formas de poder liminar. Batuques como o Jongo, a Suça, o Tambor de Crioula e o Samba de Roda, são habitados e significados por corpos limiares que por sua vez constituem a encruzilhada, lugar onde a tríade batucar - dançar - cantar é constituída a partir do fenômeno da ancestralidade.

A Dramaturgia do Corpo Tecida pela Ancestralidade

A cultura é o movimento da ancestralidade. A ancestralidade é como um tecido produzido no tear africano: na trama do tear está o horizonte do espaço; na urdidura do tecido está a verticalidade do tempo. Entrelaçando os fios do tempo e do espaço cria-se o tecido do mundo que articula a trama e a urdidura da existência (Oliveira, 2007, p. 245).

Um som de tambor em meio a festas herdadas do período colonial, em que a fé católica progride e se atualiza. É batuque de negro! E o tambor como objeto e símbolo aglutinador de uma comunidade específica anuncia em sua voz o som de ancestralidades africanas.

Na performance da ancestralidade, tradição e memória são desenhadas no espaço-tempo ritual através de uma dramaturgia do corpo. A ancestralidade, seja de matriz banto ou ioruba, entre outras formas, anuncia-se no som do tambor e se inscreve nos corpos que respondem a ele. “O tambor toca o corpo e o corpo dança o tambor” (Rosa, 2015, p. 40).

O universo simbólico africano no Brasil se reterritorializa no seio da hagiologia católica inscrevendo novos sentidos e significados. Há nos saberes e linguagem dos tambores o impedimento do esvaziamento da memória. Esse ecoar dos tambores com seus timbres e enunciados é fruto de um complexo sistema de manufaturas que insere o sujeito num corpus coletivo negro e engravidam de África as terras americanas (Rosa, 2015, p. 40).

Nos batuques, nas congadas, na capoeira, nos terreiros e pelo tambor, se ecoa a transgressão da ordem do sistema escravocrata em que a comunidade negra inscreveu uma afirmação étnica. Por esse som a ancestralidade reverberou nos corpos de pessoas que tiveram sua condição humana violentada pela escravidão e se tornou resistência que reverbera hoje.

O conceito de ancestralidade torna-se núcleo da materialização do batuque como manifestação de encruzilhada, em que o corpo limiar manifesta-se por meio de uma “memória dramatizada” (Martins, 1997).

Outra discussão proposta pela autora citada acima consiste nos atos rituais atestando o poder do indivíduo e de suas responsabilidades. Nesse entendimento mora a dimensão individual de identidade e a apropriação da cultura tradicional pelo indivíduo.

Embora o fenômeno da identidade possa ser entendido como aquilo que qualifica o sujeito a partir de perspectivas sociais, recorremos aqui à concepção exposta em Silva & Falcão (2015), que propõem que nos estudos das performances culturais a identidade seja pensada a partir da corporeidade humana, pois é pelo corpo que acontecemos no mundo e na dimensão simbólica da performance nos tornamos fazedores de cultura.

A dramaturgia do corpo no batuque é constituída pela tecitura poética de corpos em movimento em profunda conexão com o tambor. É a expressão do negro no mundo atravessado por suas identificações individuais e coletivas que reverberam ao longo dos anos de forma resistente.

O batuque é uma maneira de se anunciar no mundo como afrodescendente e criador de cultura. Cultura que resiste e subverte os padrões estéticos hegemônicos pautados na invisibilidade ou a exotização do corpo negro.

A crueldade das representações operada simbólica e fisicamente no corpo do africano e de seus filhos no processo de escravização não conseguiu emudecer ou paralisar a capacidade de expressão pelo corpo do negro que, alimentado pelo mito, memória e imaginário, ressignifica a vida pela ancestralidade (Rosa, 2015).

Permeada por memórias individuais e coletivas que ressoam ao longo dos tempos em caráter resistente, a performance negra (Cf. Rosa, 2015) é a expressão de negros e negras no mundo assimilando a dimensão simbólica do corpo naquele tempo e espaço específicos e, por conseguinte, a dimensão dramatúrgica do corpo. Esse núcleo ancestral torna-se também sentido. A ancestralidade é a potência da dramaturgia do corpo na performance negra.

Desse modo, a memória da África, tanto histórica como mítica e imaginada, é o que constitui, em primeira instância, a noção de ancestralidade que opera nos corpos limiares das encruzilhadas de batuques como o tambor de crioula, o samba de roda, o coco, o jongo e a suça. Por outro lado, as influências da igreja católica que se deram no período colonial também devem ser consideradas como elemento constitutivo dos batuques, pois, apesar de terem se apresentado de maneira ostensiva, a fé católica, sobretudo em santos e santas, transformou-se em devoções sinceras.

É desde um olhar para o Brasil colônia que a resiliência e capacidade de negociação da cultura negra se torna evidente, conforme se pode observar na cidade de Natividade (TO), com a Suça.

A Suça, que acontece no estado de Goiás e no Tocantins, é fruto de um processo de atualização da ancestralidade para uma construção identitária que fricciona a aceitação de uma fé católica, à medida que se estabelece em meio às Folias do Divino Espírito Santo, Santo Antônio e São Sebastião, com a afirmação e manutenção de uma identidade negra através do batuque.

Na Suça, as mãos acentuam o tempo repercutindo sobre a pele morta (couro) que ganha vida no tambor, os pés tateiam o chão como num reconhecer do solo, a saia voleia e o sorriso escapa pela face (Rosa, 2015, p. 40).

Assim, podemos considerar a Suça como um rastro da cultura negra e a cultura negra como o próprio movimento da ancestralidade, que por sua vez se movimentam e fazem mover no corpo dos suceiros e suceiras. Existe nesses corpos negros sentidos que fluem entre o passado ancestral e o presente instaurado em um corpo que “[...] é mais que uma memória, é uma trajetória. Uma anterioridade. Uma ancestralidade” (Oliveira, 2007, p. 107). Um corpo onde reside uma potência dramatúrgica advinda da noção de ancestralidade e que toma forma na performance.

Ao compreender a história das pessoas negras nas Américas como uma narrativa de travessias e migrações em que a vivência do sagrado representa mais do que uma resistência cultural e, também, forma de sobrevivência étnica, política e social, a autora Martins (1997, p. 24) coloca que “[...] no corpo/corpus do africano e de origem africana não se conseguiu apagar os signos culturais, textuais e toda a complexa constituição simbólica fundadores de sua alteridade”.

Repousa sobre a noção de ancestralidade, que se emprega a cultura afro-brasileira, a desterritorialização africana e suas consequências históricas e subjetivas. Esse processo é observado por Martins (1997), que destaca o cruzamento das tradições e memórias orais africanas que, ao longo da história, fundam estratégias de instituição e restauração da significância de sua cultura, um processo da “encruzilhada”.

E é pela via dessas encruzilhadas que também se tece a identidade afro-brasileira, num processo vital móvel, identidade esta que pode ser pensada como um tecido e uma textura, nos quais as falas e gestos mnemônicos dos arquivos orais africanos, no processo dinâmico de interação com o outro transformam-se e reatualizam-se, continuamente, em novos e diferenciados rituais de linguagem e de expressão, coreografando a singularidade e alteridades negras (Martins, 1997, p. 26).

É na encruzilhada que se (re)inventam sujeitos históricos capazes de tecer sua identidade por processos de interação entre sua subjetividade, o passado ancestral e a performance. Na concepção de Oliveira (2007), na encruzilhada, o corpo é imanência. E, por seu turno, é consequência do contexto e circunstâncias deste contexto. O referido autor aponta que o contexto da diáspora africana apresenta para esses sujeitos a necessidade de possuir um território, que é, na verdade o próprio corpo.

É saudade que funciona como utopia. Melhor: é saudade como móbile de uma ação que se orienta para o tempo dos antepassados e que deseja recriar o ‘espírito’ do tempo dos ancestrais. É saudade no sentido que o negro-africano e descendentes mantém um elo com sua tradição, mesmo que esse elo não se dê num vínculo institucional ou de pertencimento a uma nação, identidade ou religião (Oliveira, 2007, p. 228).

Oliveira (2007) ressalta ainda que o motivo da saudade é o tempo, saudades de um tempo que não se viu e a esperança do tempo que está por vir. Essa percepção do tempo dá materialidade aos batuques como performances negra. Felisberta, suceira de Natividade, traz em sua fala a dimensão da ancestralidade de que trata o autor:

[...] Era como se eles estivessem acordando os deuses ancestrais, era revivendo coisas da terra deles, matando um pouco a saudades, porque eles cantavam também pra natureza. [...] (Felisberta, maio, 2013 apud Rosa, 2015 p. 45)1.

O conceito de ancestralidade pode então ser pensado, sobretudo a partir da contribuição de Oliveira (2007) como um pensamento cultural que parte do corpo para uma existência coletiva, pois é o corpo o lócus da experiência em que a memória reside. A ancestralidade não é assim uma volta ao passado, ao contrário disso trata-se de uma atualização da tradição na experiência do corpo. No corpo se inscreve um processo de transformação da tradição a partir de trocas com o ambiente. Há nas manifestações corporais negro-africanas um arsenal de códigos que compõem a memória coletiva e que, na Suça, tem como potência geradora a ancestralidade, ampliando a compreensão dos batuques para além do sentido somente de resistência.

A Suça é um saber que resiste, transforma e se recria pelo corpo e no corpo. A Suça é assim, uma performance negra (Rosa, 2015, p. 45-46).

Em sociedades e culturas em que a dança é forma de oração e que os próprios deuses se apresentam dançando, é possível reconhecer a centralidade conceitual e simbólica do corpo. Desse modo, a dança no batuque, como também em outras manifestações expressivas afro-brasileiras, é construída por uma dramaturgia do corpo tecida pela ancestralidade.

A Suça: batuque no centro-oeste brasileiro

Também chamada de súcia, sussa, sússia, a dança da Suça tem como matriz os batuques herdados do período da escravização e da exploração do ouro no estado de Goiás. A presença dessa dança no Norte de Goiás e Tocantins marca a influência negra na cultura popular do centro oeste, facilmente designada por sua forte influência caipira.

Suça é barulho, é alegria, é zoada como a gente fala. É isso que é a Suça, é um batuque de senzala (Felisberta, Inventário da Suça, 2011)2.

Conforme discussão apresentada em Rosa (2015), a cartografia geográfica da Suça na região de Goiás e Tocantins formou-se pelas rotas de fuga dos escravizados durante o período colonial. Para Karash (1996), o fato de eles trabalharem em regiões mineradoras com poucos homens para vigiar; um tipo de terreno que permitia esconderijos naturais e a presença de três grandes rios - o Araguaia a oeste, o Tocantins a leste e o Paranã, ligados a inúmeros afluentes, permitiram constantes fugas de escravos e formação de comunidades quilombolas.

Outros escravos das lavras fugiam para as montanhas e planaltos. Os montes Pireneus, atrás de Meia Ponte (hoje Pirenópolis), a Serra Dourada, perto de Vila Boa, e as chapadas perto de Arraias ofereciam possibilidades sem limites de refúgio. Embora os cerrados tornassem a fuga mais difícil, se os fugitivos alcançassem as matas, galerias e bosques de buritis que margeavam pequenos córregos, poderiam segui-los para escapar à perseguição dos capitães-do-mato. Em outras áreas, existiam ainda matas extensas no século XVIII, especialmente no norte, entre os rios Araguaia e Tocantins, onde os quilombolas eram frequentemente localizados e atacados, principalmente nas florestas densas, montanhas inexploradas, cerrados espinhosos, manguezais infestados por mosquitos, ilhas escondidas, inúmeros rios e muita distância dos Brancos; tinham, enfim, locais onde levantar quilombos e viver em liberdade (Karash, 1996, p. 245).

Esse dado é importante na compreensão da Suça, territorialmente, já que esta se situa, justamente, à leste dos estados de Goiás e Tocantins, havendo uma possível relação de sua constituição com o rio Tocantins e a formação tanto de comunidades quilombolas quanto de cidades, como Natividade.

Karash (1996) também sugere que a região de Natividade, São Félix, Arraias e Cavalcante, que também passa o rio Paranã, pode ter formado uma rota natural que facilitava o movimento de escravizados em fuga, propiciando a formação de quilombos, alguns remanescentes até hoje.

Os dados coletados por Rosa (2015) demonstram que a Suça pode ser encontrada atualmente nos limites dessas regiões tanto como manifestação de comunidades quilombolas em Goiás (Cavalcante e Teresina de Goiás), como manifestação urbana, nas cidades de Arraias, Natividade, São Valério de Natividade, Peixe, Paranã, Porto Nacional, Conceição do Tocantins, todas no estado do Tocantins. Há relatos orais de presença da Suça também no noroeste de Minas Gerais, região de Unaí.

É importante ressaltar que, mesmo como manifestação urbana, a Suça também acontece em comunidades quilombolas do Tocantins, como é o caso de Redenção, há 20 quilômetros da cidade de Natividade, também durante a Festa do Divino Espírito Santo.

A seguir (Imagem 1), um mapa publicado na obra de Frei Audrin (1963, p. 05) demonstra as regiões citadas onde ocorre a Suça e também os rios que correm na região.

Imagem 1
Mapa demonstrando regiões onde ocorre a suça.

Em linhas gerais, a Suça pode ser compreendida como uma manifestação fruto das festas do Brasil colonial em sua fricção entre o poder e fé católica com as influências africanas. De modo geral, nos batuques brasileiros é possível se perceber a presença do catolicismo popular, seja nos Sambas de Roda em homenagem a São Cosme e Damião ou nos Tambores de Crioula para pagar promessa para São Benedito. No caso da Suça, apesar de ser uma manifestação que tem vida própria, está fortemente vinculada à devoção e festividade do Divino Espírito Santo (Imagem 2).

Uma Vivência Etnográfica com a Suça em Natividade3

Imagem 2
Mastro do Divino Espírito Santo (2014).

O domingo de Páscoa marca o início do Giro das folias na cidade de Natividade que, por 40 dias, vão percorrer a cavalo a zona rural e municípios vizinhos. São três folias que, reunidas em janeiro, escolhem as rotas. Elas arrecadam contribuições para a festa e levam a mensagem cristã por cada casa que passam. Ao abrir suas portas, as famílias tentam oferecer o que há de melhor em suas possibilidades e são recompensadas com cantos e benditos. Acredita-se que ali é um lugar de emoção, oração e confraternização marcado pela esperança de uma vida e mundo melhor.

Fazem parte de cada folia os alferes, os foliões, o caixeiro e os arrieiros. Existe também o despachante que organiza o grupo, com uma média de 15 homens, e assume a responsabilidade pelas famílias dos foliões enquanto eles não estão presentes. Cada folia tem mais de um despachante. Os líderes do grupo são os alferes, que carregam a Bandeira do Divino durante a jornada. Os movimentos da folia (chegada, saída, bendito, reza, avisos) são anunciados pelo caixeiro (tocador de caixa). Os arrieiros são responsáveis por cuidar dos animais e mantimentos da tropa, eles que chegam primeiro no pouso das folias para organizar a parada. Por fim, os foliões são os músicos que cantam, dançam, tocam, rezam, versam, e são recebidos com seus cavalos à noite.

No começo da noite os foliões chegam à propriedade para fazer o ritual de acolhida. O proprietário distribui velas para as pessoas presentes e a folia entoa dois cânticos. O dono da casa ou um dos moradores da casa pega a bandeira e dá três giros passando a bandeira entre foliões e moradores, que vão um a um beijando a bandeira vermelha com uma pomba branca e bordados brancos, com fitas coloridas em várias cores.

Depois que todos beijaram a bandeira, os foliões pausam o canto, guardam a viola e entregam os pandeiros aos cuidados do folião responsável para afinar na fogueira. Servido o jantar, o tocador de caixa, fazendo ressoar seu instrumento, chama as pessoas para adentrar o recinto e, antes do banquete, há uma reza em que todos cantam, rezam o Pai Nosso, a oração do Divino Espírito Santo, para então se ouvir as tampas das panelas. Arroz, feijão, macarrão, salada, carne, farofa de carne, refrigerante e sobremesa... Servem-se todos. Depois, são retirados os bancos e a mesa, para os foliões cantarem o bendito. Formam-se duas filas, um de frente para o outro, e são cantados versos em duplas. São utilizados os pés, as vozes, o violão e os pandeiros para marcar o ritmo e tocar a música. É servido cachaça. Servem aos foliões e a quem mais se interessar. Ao final, entra a caixa e todos vão para o lado de fora da casa. Vai começar a Suça. Tocando a caixa, o pandeiro e a viola, os foliões chamam os moradores da casa para dançar:

Quero ver, quero ver, o dono da casa dançar, mas eu não vi, eu não vi, a dona da casa dançar. Quero ver, quero ver o dono da casa dançar, mas eu só vi, eu só vi, o dono da casa fugir.

Todos participam da roda que, apesar de breve, é intensa. O alferes dessa folia relatou que, às vezes, a Suça não é tocada, “vai muito do dono da casa pedir”. A foto abaixo (Imagem 3) mostra esse momento descrito durante o pouso na casa de Felisberta, em 2014.

Imagem 3
Suça dançada no pouso na casa de Felisberta (2014)

As três folias giram em diferentes direções: “a do Outro Lado gira no entorno do rio Manoel Alves, a de Cima gira no sentido de São Valério e a dos Gerais, vai em direção à cidade de Santa Rosa e, às vezes, chega a Palmas. São 40 dias e elas se encontram no ritual chamado de Encontro das Folias, como é possível ver na Imagem 4, abaixo:

Imagem 4
‒ Encontro das Folias (Foto de Flávio Cavalera, 2014)

Ao se completar o ciclo de quarenta dias do Giro da Folia pelas fazendas, na quinta-feira, dia da Ascensão de Cristo, acontece o Encontro das Folias na Praça da Igreja Matriz e a festa continua na casa do Imperador. Depois dessa data inicia-se o Tríduo do Divino, em que na sexta-feira, sábado e domingo acontece uma Missa às 19 horas na Igreja Nossa Senhora de Natividade, na qual os devotos cantam e louvam o Espírito Santo. Esses momentos são preparações para a festa que irá ocorrer no sábado e no domingo conseguinte.

É chegado o sábado e, durante o dia, acontece uma procissão pelas ruas da cidade, chamada de Esmola Geral. Ao anoitecer começa a Festa do Capitão do Mastro. Logo depois da missa, o Capitão se dirige até o Mastro, que está próximo a sua casa, e é carregado em cima do Mastro durante o Giro até a porta da Igreja Matriz. Os homens carregam tanto o Capitão quanto o Mastro, simulando os movimentos de um navio em alto mar (Imagem 5).

Imagem 5
Giro do Mastro (Auro Giuliano, 2009. Acervo Fundação Cultural do Tocantins)

A Suça abre caminho para o Mastro e próximo a ele vão os tocadores de zabumba, sanfona e triângulo e a banda da cidade, numa procissão apressada. Ao final do giro, soltam fogos, os suceiros e suceiras fazem sua dança, marcando suas presenças, e todos se direcionam para as comidas e licores que estão à disposição.

No domingo de Pentecostes, logo pela manhã, o Reinado do Imperador começa um cortejo pelas ruas da cidade até a Igreja de Nosso Senhor do Bonfim, quando se inicia a missa. A banda da cidade acompanha o cortejo. Muitos fiéis enchem a igreja. Acredita-se que nesse momento o Espírito Santo derrama as bênçãos e graças em sete dons: Sabedoria, Entendimento, Conselho, Fortaleza, Ciência, Piedade e Temor a Deus. Chegam cada vez mais fiéis para acompanhar a Missa e a escolha do novo Capitão e Imperador. O sorteio é acompanhado com empolgação. A comoção é geral, os contemplados choram e agradecem ao Divino. Depois disso, na praça ao lado da Igreja, há um novo banquete com pratos típicos, bolos, doces e licores para a população. Todos os anos acontece esse mesmo ritual.

Todos os ‘do lugar’ compartilham crenças e conhecimentos comuns. Pouca coisa pode ser improvisada, e é porque desigualmente se sabe o que vai acontecer e desigualmente se sabe como proceder que o rito recria o conhecido e, assim, renova a tradição; aquilo que se devem repetir todos os anos como conhecimento, para se consagrar como valor comum. Renova um saber cuja força é ser o mesmo para ser aceito. Repetir-se até vir a ser, mais do que apenas um saber sobre o sagrado, um saber socialmente consagrado (Brandão, 2010, p. 58).

Em meio a tanta devoção e fé católica, a Suça na Festa do Divino Espírito Santo, em Natividade, conforme descrito anteriormente, acontece sábado, dia do Capitão do Mastro, sob a responsabilidade do grupo de Suça da cidade, chamado Mãe Ana. Os três tambores colocados no chão, um ao lado do outro, anunciam a presença negra na festa e aglutinam os suceiros e suceiras que, nesse momento, se constituem como uma comunidade do tambor. Por perto, as crianças que acompanham com o pandeiro simulam tocar os tambores. A líder do grupo Mãe Ana, Felisberta, distribui as saias para as mulheres. Começa o toque e a ancestralidade negra ocupa o espaço através do som, as pessoas que ainda estavam dispersas são tocadas pelo som e são convocadas.

Um cantador puxa o verso Levanta a saia muié, não deixa a saia marrom e o coro responde a saia custa dinheiro e o dinheiro custa a ganhar. Esse formato de canto, chamado de responsorial, é característico dos batuques brasileiros, como os Jongos do Sudeste, o Tambor de Crioula do Maranhão e os Sambas de Roda da Bahia.

A dança tem como padrão de movimento um gestual simples que, na verdade, é o próprio diálogo do corpo com o tambor, são movimentos que marcam o ritmo da música nos pés enquanto meneios e giros acontecem. O corpo tem uma batida vertical iniciada nos movimentos dos pés, que reverberam numa alteração de nível ao dançar.

Imagem 6
Roda de Suça durante o Giro do Mastro (2011)

Para um relato um pouco mais detalhado da movimentação, tomemos o exemplo de Dona Altina, na foto acima (Imagem 6). A suceira segura a saia e faz movimentos com os braços, girando no seu próprio eixo, e se desloca com as batidas nos pés, em que um pé bate no chão somente com o metatarso e o outro bate inteiro no chão.

Embora esse seja um padrão geral para a dança, cada suceira desenvolve um jeito próprio de dançar, brincar e de se divertir na Suça. Rosângela, por exemplo, realiza diferentes pulsações nos seus pés, quebrando o ritmo do tambor. Já Felisberta projeta seu queixo e seu esterno para uma diagonal para cima. Trata-se de uma dança convidativa em que os dançadores abrem espaço para os observadores entrarem na roda também.

A roda é, na verdade, uma estrutura imaginária, já que não há delimitações espaciais, somente os tambores são fixos e, conforme o número de pessoas vai aumentando, o espaço da dança fica definido pelos corpos que observam.

Ao descrever a Suça na comunidade Kalunga em Goiás, Silva Junior (2008) relata que numa grande roda apenas duas mulheres entram por vez, fazendo passos cadenciados e que “[...] aproximam os corpos, jogam a cintura de lado e executam umbigadas desafiadoras ou brincantes” (Silva Junior, 2008, p. 4). Assim, nesse depoimento sobre a dança da Suça na comunidade Kalunga, é perceptível uma estrutura muito parecida com o Jongo e o Samba de Roda, em que as mulheres executam movimentos em duplas no centro da roda.

A jiquitaia é um momento ápice da Suça, em que se enfatiza seu caráter lúdico. Homens e mulheres se retorcem, requebram e saracuteiam simulando uma reação a um ataque de formigas. Nesse momento, todos começam a se relacionar mais diretamente, procurando (e/ou retirando) formigas no corpo do outro com as mãos, ou mesmo individualmente. É quando se instaura uma esfera de riso e brincadeira motivada por uma movimentação corporal burlesca.

A formiga que dói é jiquitaia Ela morde, ela coça Ela esconde na palha Ela morde no pé e debaixo da saia A formiga que dói é jiquitaia

Nas diferentes cidades em que a Suça já foi documentada, tanto em Goiás como no Tocantins, existe a menção à dança da jiquitaia. A respeito de experiência com festejos quilombolas nas comunidades do norte de Goiás, Silva Junior (2008, p. 04) comenta:

Em linhas gerais, a jiquitaia é uma dança que imita a presença de formigas no corpo. Fazendo menção ao constante ataque de formigas nas antigas senzalas, ela é uma espécie de paródia popular de um dos problemas que os escravos tinham de lidar (Silva Junior, 2008, p. 04).

A jiquitaia pode ser tocada e dançada em alguns momentos da roda de Suça, entretanto, percebe-se que ela sempre é executada no momento em que os tocadores querem atingir o auge da animação na roda. Outra característica que pode ser observada na dança da Suça é o equilibrar de garrafas na cabeça.

Ao finalizar a missa do Capitão do Mastro, um fluxo de pessoas vindas da igreja se aproxima do local em que a Suça acontece, distribuindo pavios de bambus para acender durante o Giro do Mastro. Aumenta o número de pessoas próximo à roda, fogos de artifício silenciam os tambores, a banda da cidade se aproxima e, então, inicia-se o Giro do Mastro.

Tradicionalmente, na abertura do Giro do Mastro, a Suça deve ir à frente, percorrendo vários cruzeiros. Em cada cruzeiro a Suça é tocada e dançada, enquanto o Mastro se aproxima. Quando chega o Mastro, todos correm, segurando o tambor, saias e chinelos nas mãos, até o próximo cruzeiro. No Giro, insere-se na Suça o fator deslocamento, que passa a acontecer em um tempo delimitado e em espaços previamente definidos. Nesse instante, as batidas do tambor são aceleradas e o ritmo acompanha a dança.

Ao final do Giro acontece o encontro do Mastro com a Suça, próximo à Igreja de Nossa Senhora de Natividade. Nesse momento, a roda fica bastante apertada, em razão da quantidade de pessoas que se aproximam e observam (Imagem 7). A pulsação dos tambores toma conta do corpo coletivo, mesmo as pessoas que apenas assistem a Suça são embaladas pelo ritmo contagiante, que inscreve na Folia do Divino Espírito Santo de Natividade as marcas de uma dramaturgia da ancestralidade.

Imagem 7
Final do Giro do Mastro e a roda de Suça (2014)

Nesse instante, finda-se a participação da Suça na Festa do Divino da cidade de Natividade, deixando rastros e ruídos de um batuque, que, como tantos outros que se inscreveram no território brasileiro a partir da diáspora africana, afirmam a dança como uma dramaturgia da ancestralidade.

Considerações Finais

Poucos brasileiros conhecem ou ouviram falar de Natividade. Conhecem menos ainda o batuque que lá se faz, uma dança negra brasileira que tem seus significados e sentidos construídos por corpos que são o próprio movimento de sua cultura. Corpos que são trespassados pelo ritmo dos tambores e que, por sua vez, atravessam com a mesma potência a Folia do Divino Espírito Santo, reiterando a ancestralidade africana e ocupando um lugar de afirmação de identidade.

Entre as aderências e atritos do processo de formação cultural brasileira, marcado por um projeto atroz de colonização, batuques como a Suça, na qualidade de performance negra, constituíram-se a partir de reminiscências de africanidades corporificadas (Rosa, 2015).

Em meio a uma roda de Suça instaura-se um plano de imanência, que cria uma fenda para outra realidade. O voleio das saias passando pelas canelas, o repicar dos tambores, o jogo, a brincadeira, a jiquitaia... Esse tempo/espaço é uma encruzilhada entre a fé católica e a ancestralidade dos negros, que também opera em outros batuques, como o Samba de Roda, Jongo, Batuque e Tambor de Crioula.

Os batuques são o movimento da ancestralidade, dança de resistência, de regatear, de brincar, de seduzir e de rememorar. Capaz de criar e recriar mundos através de seus atores sociais e suas visões de arte e cultura, tão atreladas ao universo místico, da magia e do encantamento.

Na Suça, como em outros batuques quando o tambor se faz soar, sua vibração entra numa consonância com o passado, ecoando nos sujeitos do presente. As polaridades corpo e tambor, música e dança, passado e presente, indivíduo e coletivo, criam um jogo cênico que é a própria dramaturgia da dança negra brasileira, em que as noções de passo e coreografia não dão conta da vivacidade, dinamismo e, muitas vezes, singeleza das manifestações tradicionais expressivas. Nesse espaço/tempo dos batuques, mais do que a simples execução de passos de dança, é possível ver, viver e ouvir a voz dos subalternos4 que se pronunciam através de seus corpos, isto é, sua existência.

Considerando que os constructos históricos são processuais e que os discursos que deles advêm são resultados de forças de poder, o deslocar da análise dos batuques do contexto folclorista, marcado por uma clara e clássica divisão de classe (letrados - iletrados, brancos - negros, colonizadores - colonizados, artistas - artesões, arte - cultura popular) representa um importante passo do campo crítico da arte em direção aos estudos pós-colonialistas, em respeito à diversidade e por uma ecologia dos saberes.

Desse modo, é possível abrir caminhos para que um batuque como a Suça, da cidade de Natividade, seja apreciado não por seu exotismo e sim por sua potência estética, forjada em um processo de criação que é, na verdade, seu próprio processo histórico de resistência e negociação. Todavia, para além de apreciado, os batuques podem também ser experimentados no corpo de artistas cênicos como parte de uma formação plural, ampliando-se assim as possibilidades de referências técnicas e poéticas e caminhando efetivamente ao encontro da democratização das linguagens do corpo nas artes cênicas.

Referências

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  • MARTINS, Leda Maria. Afrografias da Memória: o Reinado do Rosário no Jatobá. Belo Horizonte: Mazza Edições, 1997.
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  • SCHECHNER, Richard. Performance Studies: an introduction. London; New York: Routledge, 2002.
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  • SILVA, Renata de Lima. Corpo Limiar e Encruzilhada: processo de criação em dança. Goiânia: Ed. UFG, 2012.
  • SILVA, Renata de Lima; FALCÃO, José Luiz Cirqueira. Identidades Negras em Movimento: entre passagens. Repertório: Teatro & Dança, Salvador, p. 98-113, 2015.
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  • TURNER, Victor. O Processo Ritual: estrutura e antiestrutura. Petrópolis: Vozes, 1974.
  • 11
    Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.
  • 1
    Entrevista com Felisberta Pereira da Silva concedida a Eloisa Marques Rosa durante o Festejo do Divino Espírito Santo em 23 e 24 de maio 2013.
  • 2
    Entrevista com Felisberta Pereira da Silva concedida ao Inventário da Suça no Tocantins produzido pela Fundação Cultural do Tocantins. Palmas: Fundação Estadual de Cultura, 2011.
  • 3
    A etnografia descrita acima faz referência à pesquisa realizada na dissertação de Mestrado em Performances Culturais de Eloisa Marques Rosa (Rosa, 2015).
  • 5
    Interview with Felisberta Pereira da Silva to Eloisa Marques Rosa during the Festival of the Divine Holy Ghost in May 23 and 24, 2013.
  • 6
    Interview with Felisberta Pereira da Silva to the Suça Inventory in Tocantins, produced by Fundação Cultural de Tocantins. Palmas: Fundação Estadual de Cultura, 2011.
  • 7
    The ethnography above described refers to the research developed in Eloisa Marques Rosa’s MSc thesis on Cultural Performances (Rosa, 2015).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2017

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2016
  • Aceito
    28 Out 2016
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