Acessibilidade / Reportar erro

Questões de Gênero e Mais Além: a interseccionalidade na Arte Drag

Les Questions de Genre et Au-delà: l’intersectionnalité dans l’Art du Drag

RESUMO

Este artigo entrela-ça a análise de estudos contemporâneos e um breve repertório de artistas queer com as questões identitárias e suas relações de interseccionalidade. A partir da noção de corpo como território de ação política, analisa-se como abordam em suas criações as questões de identidade, gênero e sexualidade, raça, etnia e classe, que se consideram urgentes para dar visibilidade e provocar as transformações políticas implicadas nos processos artísticos e pedagógicos contra-hegemônicos. Sendo um dos autores um artista praticante de drag queen, interessa a experiência do corpo como pesquisa. Atualmente, a categoria recente da drag queer e os subgêne-ros dela derivados possibilitam dialogar com o conceito de pós-drag, levantado por Luc Schicharin.

Palavras-chave:
Arte Drag; Performance Queer; Interseccionalidade; Identidade Corporal; Gênero e Sexualidade

RÉSUMÉ

Cet article entremêle l’analyse d’études contemporaines et un bref répertoire d’artistes queer confrontés à des questions d’identité et de leurs relations intersectionnelles. Basé sur la notion de corps, comme territoire d’action poli-tique, on analyse comment leurs créations abordent les questions d’identité, de genre et de sexualité, de race, d’ethnicité et de classe, considérées comme urgentes pour donner de la visibilité et provoquer les transfor-mations politiques impliquées dans processus artistiques et pédagogiques contre-hégémoniques. L’un des auteurs étant un artiste drag queen pratiquant, l’expérience du corps est intéressante en tant que recherche. De nos jours, la catégorie récente de drag queer et les sous-genres qui en dérivent, permettent de dialoguer avec le concept de post-drag, évoqué par Luc Schichicharin.

Mots-clés:
Art du Drag; Performance Queer; Intersectionnalité; Identité du Corp; Genre et Sexualité

ABSTRACT

This article weaves together the analysis of contemporary studies and a brief repertoire of queer artists with identity issues and their intersectional relations. Through the notion of the body as a territory of political action, we examine how they have addressed, in creation, issues concerning identity, gender, sexuality, race, ethnicity, and class, which we consider to be urgent in terms of raising awareness and inciting political transformations inherent in antihegemonic artistic and pedagogical processes. Since one of the authors is a practitioner of drag queen, the body’s role in research matters. Nowadays, the recent category of drag queer and their associated subgenres enables us to engage in a dialogue with the concept of post-drag, as proposed by Luc Schicharin.

Keywords:
Drag Art; Queer Performance; Intersectionality; Body Identity; Gender and Sexuality

[...] na verdade, não sou nem menino nem menina, e não sou gênero neutro. A única referência que tenho sou eu mesma. Sou eu, na verdade! (Soa de Muse apud Drag Race France, 2022).

Este artigo precisa ser pensado como decorrência de um estudo-em-movimento, considerando que ele surge a partir da experiência viva de um dos autores na prática da montação de arte drag1 1 Drag: Embora não haja fontes que garantam precisamente a etimologia da palavra em inglês drag, por vezes é atribuída à abreviação das iniciais de dressed as a girl, que seria vestido como uma garota, em referência à tradição dos atores que se vestiam de mulheres. Atribui-se também ao verbo em Inglês to drag, que significa arrastar, em referência ao movimento que os longos vestidos dos figurinos faziam no chão. Esse último significado é reivindicado a Willian Dorsey Swann the Queen, “[...] bicha preta que foi escravizada, como referência de primeira Drag Queen no mundo, trazendo além do termo o modus operandi desse fazer como a noção de haus, baile, família e mobilização por lutas e direitos” (Sarita; Astrais, 2020, p. 11). e é incorporado à investigação no campo das Artes Cênicas, sofrendo interferências e contaminações que o tornam sempre fluência2 2 Este artigo é parte e desdobramento da pesquisa da tese de doutorado de Francisco Carlos Costa Filho, pesquisador e artista drag na cidade de Brasília/DF. Utilizam-se como metodologias o levantamento bibliográfico; o trabalho de campo – com produção e análise de dados a partir de entrevistas e participação observadora junto a coletivos e artistas da cena drag no Brasil; e a pesquisa sobre o próprio trabalho. Para tanto, estabelecemse diálogos com os estudos da performance, estudos de gênero e com a Pesquisa baseada na Prática (Nelson, 2013). Foi escrito em coautoria com a pesquisadora prof.ª Dra. Elisabeth Silva Lopes, que orienta a pesquisa, implicada nos estudos da performance. .

Agregando diferentes abordagens de pesquisa, entretanto, as fontes têm em comum a noção de corpo como identidade, questão que se coloca no centro dos debates acadêmicos sobre as práticas artísticas. Abordagens que se colocam em contraposição à identidade entendida como algo fixo e imutável, que não leva em conta os desdobramentos e conquistas dos processos históricos decoloniais. A identidade de uma pessoa não deve ser motivo para discriminação ou violação de seus direitos humanos. Assim, no fluxo oferecido pelos métodos científicos que tratam o corpo como conhecimento, vamos combinar a pesquisa prática cênica com os métodos da cartografia, da pesquisa documental e histórica, além da bibliográfica.

A contribuição deste estudo-em-movimento deve servir, também, para dar visibilidade a um debate histórico e estético que nos interessa refletir: como a arte drag é atravessada pelas políticas identitárias e utilizadas como uma materialidade sensível por artistas contemporâneos que, além das questões de gê-nero e sexualidade (que muitas vezes parecem coincidentes e em outras intrínseca ao fazer drag), vêm cruzando reflexões também sobre desigualdade, diferença, dignidade e liberdade, resistindo às violências que a discriminação racial, homofóbica, transfóbica e até religiosa retrocedem aos processos coloniais.

O repertório das/os/es artistas trazidos como referência apresentam produções artísticas transgressoras que levantam assuntos apartados dos estudos queer há muito tempo, mas que têm sido atualizados por meio de um pensamento interseccional. Trata-se, com essa perspectiva conceitual, de uma possibilidade de análise que reflita sobre as relações sociais, políticas e culturais, em que se cruzam as reivindicações dos direitos humanos, cujos temas são diferentes, embora se mostrem combináveis e/ou inseparáveis.

A partir da observância de artistas contemporâneos, como as Themô-nias (Belém/PA), Lolita Banana (França/México), Soa de Muse (Fran-ça/Martinica), 2Fik (Canadá/França) e Uýra Sodoma (Manaus/AM), refletimos como há uma maior problematização e preocupação em se pensar e criar criticamente, e o necessário cuidado para não reproduzir erroneamente estereótipos, que acabam indo contra o discurso contrahegemônico que a arte da montação essencialmente evoca.

Nesse sentido, focamos na performance drag, em sua técnica, monta-ção, maquiagem, artefatos, figurino, peruqueria, dança, atuação, canto e principalmente numa atitude e composição corporal que condigam com a grandeza da imagem criada. Um corpo construído, desconstruído e reconstruído, que muitas vezes ao refletir sobre um determinado contexto social e cultural, torna visíveis as razões de opressão, discriminação e desigualdade.

A arte drag, arte transformista, arte da montação ou transformismo são formas de arte em que a/o/e artista se caracteriza com uma personagem que alude à performatividade/teatralidade com a construção de uma outra aparência física, um outro comportamento, outra personalidade e, portanto, um outro corpo, que se monta com artefatos visuais e cênicos extravagantes, mas sempre muito belas/os/es. Essas figuras excêntricas são literais, no sentido em que se toma o ex para fora do centro, o que se pressupõe, visivelmente, fora de si, como se diz, fora da casinha. A performance do gênero é, antes de tudo, uma arte para entreter, para fazer rir e, em outras vezes, não esconde a pungência das formas e visualidades, pano de fundo mais sério na forma de resistência e de ativismo.

A arte drag, podese ponderar, vem ganhando outras funções na contemporaneidade, como Rita Von Hunty, personagem criada pelo ator e professor Guilherme Terreri, que entre as possibilidades que a composição de montação proporciona, lança mão da performance como uma prática pedagógica e política.

O transformismo e a arte drag vem se modificando a partir da criação de novas possibilidades além da drag queen e do king, como é o caso da drag queer, e discussões relevantes têm acompanhado esse movimento em todas as manifestações da arte drag. Uma arte que sempre esteve atrelada às questões de gênero e sexualidade ganha pluridimensionalidade, de onde emergem outros aspectos que constituem a identidade das pessoas artistas que outrora talvez não ficassem tão evidentes.

Tendo suas origens ligadas às tradições teatrais e culturas, artistas de montação drag sempre desafiaram as normas de gênero e tabus sociais. As diferentes formas da arte drag acontecem, atualmente, em shows, em que são contratadas/os/es principalmente como performers e DJ's para eventos em casas noturnas LGBTQIAPN+ e em eventos culturais e particulares. Os shows se assemelham ao que no campo das Artes Cênicas conhecemos como números ou gags das palhaçarias, nos quais em um espaço de tempo curto, as/os/es artistas realizam uma performance com objetivo de divertir e animar a plateia, combinando elementos que são característicos desta arte, como a dança3 3 Na dança, muitas drags utilizam elementos do Vogue e do Bate-Cabelo. O Vogue ou Voguing é um gênero de dança que está inserido dentro da chamada cultura ballroom, atrelado à comunidade LGBTQIAPN+. Foi criado por pessoas negras, latinas e trans nos EUA entre as décadas de 1960 e 1980. Atribuise à brasileira Marcia Pantera a criação do Bate-Cabelo, um movimento de dança em que a/o/e performer joga a peruca em variadas direções e combina-ções, como um chicote. , dublagens cômicas e lip-sync (dublagem musical). Os elementossurpresa durante o número são muito importantes, como uma mudança repentina de figurino ou peruca (conhecida como reveal, do Inglês, revelar) e passos de dança ou acrobacias virtuosas, como aberturas e espacates, que feitos em cima de saltos altíssimos, causam frisson no público.

A arte drag, brasileira e internacional, também ganha espaço na indústria cultural, com forte alcance na televisão e na internet, especialmente em programas de reality show, grupos e fóruns de WhatsApp e Telegram, nas redes sociais, com uma legião de fãs que seguem e acompanham suas/seus artistas favoritas/os/es.

Guardadas as devidas proporções, é notável a quantidade de produções de narrativas acadêmicas que têm tratado do tema, principalmente por sua relação direta com as questões de gênero, sexualidade e identidade. São artigos científicos, dissertações e teses que discutem os aspectos históricos, esté-ticos, culturais, sociais, econômicos e políticos que a arte drag movimenta, traçando diálogos com outras disciplinas como as Artes Cênicas, Artes Visuais, Psicologia, Antropologia e Sociologia.

Imagem 1
Bandeira do Orgulho e suas interseccionalidades. Fonte: Reprodução/Internet.

Na América Latina e no Brasil, inclusive, a arte drag recebe também o nome de transformismo. Segundo o pesquisador Bentes (2020, p. 54)BENTES, Juliano. Ekoaoverá: um estudo sobre a territorialidade nos processos identitários das drags demônias. Salvador: Devires, 2020.,

Transformismo é o fenômeno latino da montação dentro das comunidades LGBTI+ no subúrbio. Enquanto no começo, se assemelhava muito com a Female Impersonator estrangeira, buscando reencarnar as grandes divas, não só internacionais e da Broadway, mas também de novelas e grandes cantoras de rádio. O transformismo é a busca pela transformação no gênero dito oposto de forma natural. Com a hipermediatização da Drag Queen nos anos 1970 e sua eventual influência das comunidades Club Kid nos anos 1980, o conceito de Drag chega ao Brasil lentamente e causando uma estranheza na comunidade Transformista da época.

Essa nomenclatura tem sido resgatada por artistas e pesquisadoras/es com o intuito de valorizar nossa história, como aponta a drag queen, pedagoga, ativista e política, Ruth Venceremos, em coluna à revista Dragazine: “[...] na atualidade, fazer uso e reivindicar o termo arte transformista é um reencontro com a história não só de um fazer artístico, mas da própria comunidade LGBTQIA+” (Gagliardo, 2023, p. 22GAGLIARDO, André. A história. Revista DRAGAzine, Brasília, Distrito Drag; Pop Up Drag, 2023.).

Gal Maria, que hoje se identifica como uma mulher trans e foi uma das precursoras do transformismo no Distrito Federal, fazendo cover da cantora Gal Costa, diz: “[...] não me recordo de artistas drag antes de me expressar na arte transformista, pois era uma novidade no Brasil ainda pouco explorada no comecinho dos anos 90” (Gagliardo, 2023, p. 25GAGLIARDO, André. A história. Revista DRAGAzine, Brasília, Distrito Drag; Pop Up Drag, 2023.).

Diferenciando-se das transformistas, que faziam uma construção visual dita natural, à semelhança das divas, as drag queens emergem trazendo uma estética mais exagerada, com perucas e saltos enormes, “o feminino elevado ao cubo”, como descreve Nany People em entrevista. Nas performances, enquanto aquelas apresentavam mais sutileza, fazendo dublagens, estas realizavam ações também mais exageradas, como aponta a artista transformista Sarah de Montserrat, de Belém:

O transformista, ele tinha o público, a luz e a música, só. Quando surgiu esse segmento de Drag Queens, pra mim, porque eu não tinha esses aparatos, essas coisas, esse suporte, elas eram loucas, elas jogavam sangue, se batiam, se quebravam, se jogavam lá de cima, isso tudo foi muito estranho (Bentes, 2020, p. 55BENTES, Juliano. Ekoaoverá: um estudo sobre a territorialidade nos processos identitários das drags demônias. Salvador: Devires, 2020.).

As primeiras artistas transformistas no Brasil, a maioria delas mulheres trans e travestis, construíram um verdadeiro legado na cultura brasileira a partir da década de 1960, deixando marcas e se transformando em ícones, como Rogéria, Jane di Castro, Divina Valéria, Eloína dos Leopardos, Briggite de Búzios, Camille K., Fujica de Holiday, Marquesa, Vera Verão, Elke Maravilha, Nany People, Kaká di Polly, Miss Biá, Silvetty Montilla, Isabelita dos Patins, Marcinha do Corintho, Marcia Pantera, Salete Campari, dentre muitas outras.

A história desse pioneirismo é retratada no filme documentário Divinas Divas (2017)DIVINAS DIVAS. Directed by Leandra Leal. Rio de Janeiro: Daza Filmes, 2017. 109 min., que conta com a participação das oito primeiras artistas mencionadas acima. O filme faz o recorte histórico de um momento de grande efervescência cultural e resistência na cidade do Rio de Janeiro, mesmo diante da ditadura militar. É importante ressaltar que embora o eixo Rio-São Paulo muitas vezes ganhe mais visibilidade do que outras regiões do País, a cena e cultura LGBTQIAPN+ é intensa de Norte a Sul do Brasil.

Na história atual do transformismo e da arte drag, também estão presentes os drag kings, que, grosso modo, seriam uma personificação do dito masculino. Segundo Viviane de Paoli, que pesquisa o transformismo latino-americano, performa Lorde Lazzarus (king) e Lady Lazzarus (queen) e foi a criadora do primeiro concurso (oficializado) de drag kings no Brasil, o King of Kings,

A arte dos drag kings, cuja história remonta oficialmente há mais ou menos 250-300 anos atrás, é uma arte que partiu de pessoas AFAB (assigned female at birth), mulheres cisgênero e homens trans, essencialmente. Muito se dizia e se diz que ‘mulheres não poderiam ser drag’, quando não só poderiam como já eram há muito tempo. Estudos realizados pelo drag king Mo B. Dick, do Drag King History, diz ter encontrado registros de artistas de male impersonation dos anos 1660. Como não temos certeza exata de como surgiu a arte das drag queens, podemos dizer que kings existem há tanto tempo quanto elas. Logo, pessoas AFAB estão há muito pavimentando a estrada da arte da montação, e deveriam ser tão respeitadas quanto as pessoas AMAB (assigned male at birth – designados homens ao nascer) (Lady Lazzarus, 2023, n. p.).

Mais além das queens e dos kings, outras figuras montadas têm emergido na contemporaneidade, como as drag queers. Essas criações buscam justamente romper com representações muito essencialistas do masculino e do feminino, levando a arte drag para lugares de expressão que chacoalham a tradição. Segundo Bentes (2020, p. 57)BENTES, Juliano. Ekoaoverá: um estudo sobre a territorialidade nos processos identitários das drags demônias. Salvador: Devires, 2020.,

[...] a Drag Queer é um fenômeno artístico que foi construído a partir das mudanças nos conceitos de gênero. Sendo este de caráter performativo, a questão levantada é: por que continuar a reproduzir os arquétipos de gêneros que nos prendem socialmente até dentro da arte? Assim nasce a drag que não reproduz gêneros específicos e busca brincar com eles ou com a sua ausência, utilizando ambas as representações sociais e até mesmo nenhuma (objetos, animais, etc.).

Dentro desta categoria das drag queers, cuja estética na montação irá buscar fugir de padrões convencionais, podemos incluir as drag monstras, cuja caracterização irá remeter a todo tipo de monstruosidade, e ainda os subgêneros das ecodrags e das tranimals:

[...] a EcoDrag – a drag que busca utilizar materiais recicláveis ou orgânicos, geralmente representada em performances ativistas políticas de apelo público às causas sociais e ambientais – e a Tranimal – a drag que busca desumanizar ao máximo sua construção artística, lembrando mais a aparência de animais do que de humanos (Bentes, 2020, p. 57BENTES, Juliano. Ekoaoverá: um estudo sobre a territorialidade nos processos identitários das drags demônias. Salvador: Devires, 2020.).

Em Belém do Pará, existe ainda outro subgênero das drag queers, as chamadas drag themônias. O movimento artístico ou grupo cultural das Themônias, que começou com a produtora NoiteSuja e completou em 2023 dez anos de atividade, não se trata apenas de seguir uma linha estética queer ou underground. Trata-se de um trabalho que amparado na coletividade, no afeto e cuidado mútuo, tem discutido de maneira singular a questão da cultura e da territorialidade, por meio de uma montação que exalta suas identidades, a diversidade da região Norte e da floresta amazônica, ao passo que critica a importação e influência de modelos estrangeiros.

Ainda segundo o autor4 4 Para mais, ver Ekoaoverá - Um estudo sobre a territorialidade nos processos identitários das Drags Demônias, de Juliano Bentes (2020). , na cidade existe um amplo segmento de drags que desenvolvem um trabalho que segue padrões mais tradicionais, como de um corpo acinturado e maquiagens com acabamento delimitado, mas que apesar das diferenças estéticas, fazem parte do grupo cultural das Themônias e são parte importante e primordial do seu mantenimento. Cabe ressaltar que a disseminação de uma estética de montação baseada em um estereótipo de feminilidade se deve muito à massiva influência do programa RuPaul’s Drag Race, no qual a maioria das/dos/des competidoras/es faz essa abordagem.

De qualquer forma, as Themônias hackeiam e ressignificam o que a palavra demônio/a carrega de marginal e sentido negativo, afirmando-a como um lugar positivo, de potência, a exemplo dos processos de inversão presentes na estética do grotesco (Bakhtin, 2010BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 2010.), que lhes é também uma fonte de inspiração e referência. Ao longo dos anos, o movimento vem consolidando uma prática que é descolonizadora desde seu início, nas festas marginais voltadas à montação, em que já podemos observar os cruzamentos da interseccionalidade. Segundo a themônia Sarita (2020, p. 9)SARITA; ASTRAIS, Flores. Desconstrução permanente. Revista Themônia, Belém, 2020. Available at: https://linktr.ee/WanAleixoDesign. Accessed on: Apr. 26, 2023.
https://linktr.ee/WanAleixoDesign....
,

Themônias escrita com ‘th’ é um estranhamento à palavra demônio que tenta resumir tudo aquilo que é ruim e que deve ser proibido pela moral judaico-cristã, e com isso, o sentido da themonização que para nós é sinônimo de qualidade, como resposta à demonização da nossa existência, cultura e ancestralidade. Fazemos questão de existir, de incomodar cada vez mais, sendo a nossa existência uma ameaça, nossas ações passam a ser um atentado em nome do amor e da liberdade de expressão. Muito prazer, somos Themônias, movimento das diferenças que reinventa comportamentos e relações, por tudo e por todas, das relações de trabalho e apoio cultural à autonomia e democratização da arte e cultura enquanto saberes essenciais inerentes à expressão e organização social, em disputa do imaginá-rio e materialidades dominantes em empoderamento.

Diante do exposto, não queremos restringir o que pode ser a arte drag, mas destacar a sua presença no contexto da arte contemporânea, cuja linguagem e criação não colocam fronteiras. Ademais, na era do sujeito pósmoderno e das identidades fragmentadas (Hall, 2019HALL, Stuart. A identidade cultural na pósmodernidade. Rio de Janeiro: Lamparina, 2019.), vemos ainda a emergência da epistemologia do pós-drag. Extrapolando as questões de gênero, o pós-drag, à semelhança das drag queers, seria uma outra estratégia estética que não atua mais através da imitação paródica, mas inventa novas possibilidades críticas de representação (Schicharin, 2017SCHICHARIN, Luc. Do Drag ao Pós-Drag: a performance travesti frente à etnicidade e à classe. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 7, n. 2, p. 225-248, 2017. Available at: https://seer.ufrgs.br/index.php/presenca/issue/view/2997. Accessed on: Apr. 28, 2023.
https://seer.ufrgs.br/index.php/presenca...
).

Drag: repertórios e as questões de identidade

Como vimos anteriormente, a arte drag também se construiu inicialmente sobre os binarismos do feminino e do masculino, nas figuras da drag queen e do drag king, respectivamente. No entanto, a arte drag brinca com tal binarismo, uma vez que desestabiliza papéis de gênero que ainda são bastante fixos e presentes de maneira normativa em nossa sociedade.

Novas figuras montadas vêm surgindo, como drag queers (monstras, ecodrags, tranimals e themônias) e outras figuras e performances cujas imagens irão remeter ao corpo drag, mas talvez não necessariamente se autodenominem drags per si. Tais artistas buscam mesclar, hibridizar, borrar os códigos que supostamente seriam femininos e masculinos, trazendo as questões de gênero em seus trabalhos, mas também outros aspectos importantes do que constituem suas identidades fluidas, que não são fixas e estão em constante transformação, buscando responder, paradoxalmente, o que torna uma pessoa única.

Para dar uma amostra de artistas que articulam a questão interseccional, citamos a drag queen Lolita Banana, uma das participantes do reality show RuPaul’s Drag Race5 5 Programa de TV norteamericano de competição entre drags, cuja primeira temporada foi em 2009, seguida de outras diversas temporadas nos EUA, produzidas e apresentadas pela drag queen RuPaul (RuPaul Andre Charles). Atualmente, possui franquias na Espanha, França, Canadá, Suécia, Reino Unido, Austrália, Holanda, Alemanha, Itália, Bélgica, Filipinas, Tailândia, México e no Brasil. . Em sua edição francesa, o Drag Race France (2022), apresentado por Nicky Doll (Karl Sanchez). Lolita, performada por Esteban Inzúa, homem cisgênero e gay, foi a primeira mexicana nascida no México a competir em uma das franquias de RuPaul, e se tornou uma das apresentadoras da recente franquia mexicana do programa, junto à Valentina. Na concepção estética do artista, que também é dançarino profissional, fazemse presentes as referências culturais que dão reconhecimento ao artista latinoamericano, seja na dança, nos figurinos, na maquiagem e em seu próprio nome de batismo drag.

Além de mexicano, o performer é imigrante na França e uma pessoa que vive com HIV, e é nesse cruzamento de questões identitárias que interessa mirar. Tais agenciamentos e interseccionalidades foram trazidos em seus shows e performances durante o programa, a partir de composições visuais (comumente chamadas de looks) e intervenções artísticas que fazem referência à sua cultura (Imagem 2).

Imagem 2
Lolita Banana com look inspirado na pintora Frida Kahlo e elementos da cultura mexicana. Fonte: Lahoucine (Paris, 2022).

Incorporar suas heranças culturais na cena é louvável, principalmente dentro de um contexto em que a maioria das/os/es participantes era nativa da Fran-ça e não trouxeram à competição esse tipo de referência. Contudo, essas escolhas têm uma perspectiva diferente quando são feitas por pessoas racializadas:

[...] em meio ao jogo de papéis de gênero no RuPaul’s Drag Race, há uma aderência à ‘autenticidade’ racial, na qual ‘para as personagens negras e pardas no show, a veracidade racial significa se manter ‘verdadeiro’ à identidade étnica/racial fora dos palcos, um requerimento que não é imposto para brancos/as e asiáticos/as [...] Isso deixa tais performances presas em um estado de tensão irresolvível ou em apropriações fatalmente não-subversivas, preservando o status quo (Ward, 2022, p. 142, tradução nossaWARD, Maggie. “Cultural Appropriation! That’s what we never heard”: Performing Indigeneity on Reality Television and Beyond. In: BRYDE, Lindsay; MAYBERRY, Tommy (Ed.). RuPedagogies of Realness: Essays on teachings and learning with RuPaul’s Drag Race. EUA: McFarland & Company, 2022. p. 142-160.)6 6 Do original em inglês: Amid gender play on RPDG there is an adherence to racial ‘authenticity’ where ‘for the Black and Brown characters on the show, racial realness means staying 'true' to one's off-stage ethnic/racial identity, a requirement not enforced for the white and Asian [...] This leaves these performances caught in a state of unresolvable tension or in fatally un-subversive appropriations, preserving the status quo. .

É o que pode ter ocorrido com Lolita, que em alguns momentos, contraditoriamente à sua intenção, talvez tenha adentrado em um lugar de exotização da cultura. O artista foi criticado pelo painel de júri e muitas vezes zombado pelas colegas pelo excesso de mexicanismos. Uma das devolutivas de um dos integrantes do júri se referia à necessidade de Lolita ir mais fundo em sua proposta e refletir, por exemplo, sobre o que significaria ser imigrante na França há mais de dez anos, como o México e a França se cruzam em suas culturas e como isso poderia ser traduzido em performance.

Por isso, nesse ponto de vista, tornase importante que as/os/es artistas reflitam sobre suas questões identitárias e as interseccionalidades que lhes atravessam. No caso de Lolita, ela é colocada em um lugar estereotipado, e até mesmo cruel, o do performer latino, do mexicano e da drag que reproduz uma lógica colonial. Essa devolutiva que recebeu pode ser problemática pois, em outras palavras, soa como: “Está ótimo! Adoramos que você traga a sua cultura, mas queremos que nos mostre [neste caso, ao país colonizador] como você dialoga com a nossa cultura, como é sua experiência como imigrante”.

Para as juradas/os/es, Lolita precisava mostrar mais na competição. Ampliando o debate, imaginemos por exemplo que o júri, diante da persistência de uma tradição drag na performance, tenha julgado suas criações lugares-comuns, considerando-as meras ilustrações cuja camada exterior, ornada com tanta riqueza visual inspirada na própria cultura, torna-se insuficiente como exemplar de um território de diversidade e alteridade no contexto da subjetividade.

Podemos supor ainda que o júri poderia ter desejado que o performer refletisse criticamente sobre o que aquele corpo ganha e perde com o entrecruzamento de culturas, e ainda, o que ele traz e deixa da cultura original e o que foi inculturado. Nesse caminho, poderíamos perceber outras camadas que a materialidade do corpo de Lolita poderia ter evocado e subvertido, inserida em um contexto histórico mais crítico sob a perspectiva da performance queer.

A performance queer/cuir latina tem ganhado mais visibilidade na última década, tanto que alguns estudiosos de disciplinas variadas vêm apontando nelas a inerência de uma qualidade disruptiva (revolucionária, interventiva), que não se aplica a apenas um projeto particular, mas a uma mirí-ade de questões sociopolíticas (Walters, 2022WALTERS, Brigette. Drag: Performance and Politics in the Americas Today. 2022. Thesis (PhD in Spanish) – Department of Spanish and Portuguese, University of Arizona, Arizona, 2022.). Assim,

Más allá de los temas de género y sexualidad, las artes y el activismo queer latinoamericanos buscan extender una serie de agendas de cambio social; esto ocurre en países o regiones con transiciones y contextos políticos de violencia estructural y excepcional; migraciones regionales, internacionales y cí-clicas; debates democráticos; desestabilidad económica; y pensamientos y espacios que desde la colonización ejercen una crítica a la colonialidad (Vidal-Ortiz; Viteri; Serrano Amaya, 2014, p. 187VIDAL-ORTIZ, Salvador; VITERI, María Amelia; SERRANO AMAYA, José Fernando. Resignificaciones, prácticas y políticas queer en América Latina: otra agenda de cambio social. Nómadas, n. 41, p. 185-201. 2014. Available at: https://nomadas.ucentral.edu.co/index.php/inicio/8-articulos/803-trayectos-y-posibilidades-en-ciencias-sociales-nomadas-41. Accessed on: Apr. 30, 2023.
https://nomadas.ucentral.edu.co/index.ph...
).

Nesse sentido, Lolita poderia ter incorporado em suas performances esse “corpoterritório colonizado, mestiço e agente” (Walters, 2022, p. 41WALTERS, Brigette. Drag: Performance and Politics in the Americas Today. 2022. Thesis (PhD in Spanish) – Department of Spanish and Portuguese, University of Arizona, Arizona, 2022.). Assim, a partir dessa perspectiva, como poderíamos pensar do lugar de um corpo colonizado? Cabe entender que, em sua trajetória histórica, a drag é imagem e é corpo que ocupa espaços sociais de entretenimento na arte. É a subversão e a extravagância da imagem que o torna quem é.

Nessa mesma edição do Drag Race France, outra competidora, a drag queen Soa de Muse, também se montou trazendo a sua ascendência estrangeira em torno dos traços de sua ancestralidade. Natural da Martinica, ilha colonizada pela França, Soa, que é não-binária, também incorporou elementos da sua cultura às suas criações. Elu7 7 Pronome neutro da Língua Portuguesa usada para pessoas nãobinárias. disse que “[...] na verdade, não sou nem menino nem menina, e não sou gênero neutro. A única referência que tenho sou eu mesma. Sou eu, na verdade!8 8 Do original em francês: En fait, je ne suis ni garçon ni fille, et je ne suis pas non genré. Le seul repère que j'ai, it's myself. C'est moi, en fait! (tradução livre de fala retirada do programa). ”.

Talvez por já transgredir em sua existência as normas do binarismo masculino e feminino, habitando esse entrelugar, a pessoa artista constrói uma estética também transgressora, trazendo uma mescla de elementos identitários em sua performance e identidade drag. É importante ressaltar que não queremos comparar Lolita Banana à Soa de Muse, apenas apontar que a forma como cada artista conta sua história é diferente, e na competição, como a drag conta a(s) histó-ria(s) através da montação e performance, é algo que o júri levará em considera-ção: o quanto é instigante, avant-garde, quanto consegue entreter, despertar a curiosidade, o interesse, dentre outros critérios subjetivos.

No primeiro episódio, Soa de Muse já mostrou seu perfil genderfuck, de estética andrógina e multicultural, que aparecerão no decorrer do programa. No seu look de entrada, elu usou um terno masculino listrado de tamanho extragrande, com o tronco desnudo por baixo, já trazendo de iní-cio um tensionamento dos binarismos. Em outra tarefa, as/os/es participantes tinham que criar um look de passarela, ou seja, fashion e editorial, inspirado no estilista francês Jean-Paul Gaultier, criador do famoso sutiã cônico usado por Madonna nos anos 1990. Nesse desafio, elu desfilou com um vestido todo feito de cabelos e pelos (Imagem 3), recriando o sutiã cônico com tranças de cabelo entrelaçadas.

Imagem 3
Soa de Muse posa para o Drag Race France. Fonte: Nathalie Guyon (Paris, 2022).

As tranças são um elemento identitário simbólico das culturas africanas e afro-diaspóricas, e quando Soa as coloca em diálogo com um símbolo bastante ocidental (a moda francesa e o sutiã de Madonna), observamos um interessante cruzamento interseccional, nesse caso de sua raça e etnia negra com as criações provenientes de uma outra cultura.

O pós-drag

A montagem drag, de todo modo, é um processo criativo que constrói sobre si um outro corpo, proporcionando fluidez à identidade do sujeito/a na construção de um espaço de liminaridade entre a realidade e a representação. As inversões de papéis, tanto de gênero como de classe, subvertem as regras sociais desde as comemorações grotescas das festas de origem litúrgica da Idade Média.

A atitude sob o vestirse de outro gênero, ou de animal, ou de louco, vista por meio de práticas lúdicas, de paródia e de riso, fazemnas parecer profanações às sagrações cristãs. Tais atitudes e rituais de caráter farsesco demonstram que subverter a ordem implica em propor desordens nas normas e comportamentos sociais, a fim de provocar a percepção sobre outros modos de existência. Rituais que expõem as contradições das regras sociais antes mesmo de serem iluminadas pela Teoria Queer.

E, como nos aponta Baker (2014, p. 40)BAKER, Roger. Drag: a History of Female Impersonation in the Performing Arts. Nova York: New York University Press, 1995.,

[...] embora hoje suas energias pareçam ser canalizadas no teatro, cinema e clu bes noturnos, o espírito indomável da drag queen ainda paira, inesperadamente, sobre festividades populares, as feiras e dias de celebração realizados em vilas e pequenas cidades por todo o país, quando homens se vestem como mulheres grotescas com sutiãs super estofados e cintas-ligas para jogar partidas de futebol de caridade ou competir em corridas. Esses são os vestígios de um antigo travestismo comunal, primitivo e pagão, que a igreja não pôde erradicar e então, como em muitas práticas pré-cristãs, os incorporou em suas próprias práticas, com o último dia do Natal (Décima Segunda Noite) se tornando associado à desobediência e reversão da ordem (tradução nossa)9 9 Do original em inglês: Although her energies seem today to be channeled into the theater, the film and the nightclub, the drag queen’s unruly spirit still hovers unexpectedly over the popular festivities, the fairs and celebration days held in villages and small towns all over the country when men dress themselves as grotesque women with over stuffed bras and suspended belts to play charity football matches or compete in High Street races. These are the remnants of an ancient communal transvestism, primitive and pagan, which the church could not eradicate and so, as with many pre-Christian observances, incorporated them into its own functions with the last day of Christmas (Twelfth Night) becoming associated with misrule and reversal of order. .

O travestimento10 10 O uso dos termos travestirse, travestimento, travestido, como tradução para o ato de se vestir de outro gênero (que seria drag ou mesmo crossdress), é bastante problemático em nosso ponto de vista, pela proximidade com a palavra travesti, no Português e Espanhol, que nesse caso é usada para se referir a um modo de existência, uma identidade de gênero (e não apenas ao ato de se vestir com outras roupas). é um ato performativo que se constitui na fricção dos gêneros opostos. A sua relação com a identidade de gênero e sexualidade, ou seja, se a/o/e performer é cisgênero, transgênero, travesti, gay, hétero ou bissexual, dentre outras, forçosamente traz questões que materializam o desejo de liberdade de expressão do indivíduo. Isso passa, obviamente, pelo debate da sexualidade e sensualidade, da violência de gênero e da discussão da heterossexualidade compulsória que reflete a filósofa Judith Butler, visto que elide com a concepção de sexo biológico e gênero binário.

Contudo,

[...] a ‘ludicidade’ em drag, enquanto é frequentemente vista como desafiadora de noções hegemônicas de gênero, também tem o potencial de reificar noções hegemônicas de raça e cultura [...] Como a artista Nine Yamamoto-Masson nos recorda: pessoas negras, indígenas e de cor com frequência enfrentam ridicularização, discriminação, retaliação social, violência por características que são celebradas quando usadas por pessoas nãonegras, nãoindígenas, e/ou brancas (Ward, 2022, p. 142WARD, Maggie. “Cultural Appropriation! That’s what we never heard”: Performing Indigeneity on Reality Television and Beyond. In: BRYDE, Lindsay; MAYBERRY, Tommy (Ed.). RuPedagogies of Realness: Essays on teachings and learning with RuPaul’s Drag Race. EUA: McFarland & Company, 2022. p. 142-160., tradução nossa)11 11 Do original em inglês: The ‘playfulness’ of drag, while often perceived to challenge hegemonic notions of gender, thus also has the potential to reify hegemonic notions of race and culture [...] As artist Nine Yamamoto-Masson reminds us: Black, Indigenous and People of Colour often face ridicule, discrimination, social backlash, violence for features that are celebrated when worn by [non-Black, non-Indigenous, and/or white] people. .

Essa problemática é apontada pelo pesquisador Luc Schicharin, que articula o conceito de pós-drag, apresentando e analisando artistas que trazem em suas produções aspectos que considera relevantes para essa epistemologia, que diz respeito à extrapolação da imitação ou paródia de gênero, como é frequentemente a descrição acerca do trabalho de drag queens e kings.

Um deles é 2Fik, homem cisgênero, gay, de origem árabemuçulmana (francês nascido em uma família muçulmana), atualmente radicado na cidade de Quebec, no Canadá. Com suas criações em fotografia e performance, o artista questiona os estereótipos associados à figura masculina – compondo diferentes personagens com barba, bigode, gestos, roupas –, por meio de figuras ou avatares que causam um deslocamento na percepção e, portanto, um estranhamento, pois estão em um lugar liminar, entrecruzando os códigos de gênero, aproximando-se assim mais ao queer, que envolve o nãobinarismo em uma posição mais profunda (Imagem 4).

Imagem 4
2fik em ensaio fotográfico. Fonte: Jeremy Patlen (Nova York, 2013).

Como parte da complexa jornada do sujeito/a em busca de afirmação das posições identitárias, em eterna construção, e consequentemente de seu lugar ético e estético como artista, acreditamos que a reflexão acerca dessa criação pós-drag, que além das questões de gênero traz à performance questões identitárias e dialoga diretamente com as noções presentes na arte da performance, seja algo importante a ser considerada por artistas da cena drag (e de outras linguagens artísticas), tendo em vista as mudanças de paradigmas que vivenciamos na contemporaneidade.

É o que 2fik realiza ao questionar seu lugar de homem, com códigos da masculinidade muito presentes em seu corpo, como uma barba cheia e cumprida, mas que usa um salto alto sem necessariamente se autodenominar drag:

[...] a obra de 2Fik propõe uma reflexão sobre o gênero e a etnicidade como identidade complexa, pois, de acordo com o artista, o hábito não faz o gênero, ou melhor, o hábito não pertence a um gênero. Os vestidos, os saltos, o hijab não necessariamente feminizam um homem que os utilize. Essa categoria de trajes, atribuídas ao sexo feminino, permite que o artista redefina o conceito de masculinidade (Schicharin, 2017, p. 240SCHICHARIN, Luc. Do Drag ao Pós-Drag: a performance travesti frente à etnicidade e à classe. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 7, n. 2, p. 225-248, 2017. Available at: https://seer.ufrgs.br/index.php/presenca/issue/view/2997. Accessed on: Apr. 28, 2023.
https://seer.ufrgs.br/index.php/presenca...
).

Para entendermos o que 2fik realiza e o que o autor considera pós-drag, vejamos o que veio antes, partindo já das teorias pós-estruturalistas. Em Problemas de Gênero, Butler (2003)BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. – cuja obra baliza muitas das discussões sobre gênero e sexualidade – irá considerar o gênero a partir da premissa de que se trata de um construto discursivo, algo que é produzido, e não um fato natural, funcionando assim como uma estrutura na qual (ou pela qual) o sujeito é modelado (Salih, 2015SALIH, Sara. Judith Butler a Teoria Queer. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2015.).

Ora, quando o artista 2fik afirma que “o hábito não faz o gênero” está de certa maneira problematizando as colocações de Butler (2003)BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003., que se baseiam na oposição natureza/cultura, explodindo não só a questão da natureza, mas esse script cultural pré-determinado que modelaria a pessoa. Ele faz um jogo com o provérbio o hábito não faz o monge: não é a roupa que determinará se um monge ou monja vive sua vida de acordo com os preceitos budistas, mas sim todas as suas ações enquanto monge/a.

Analogamente, não seriam as roupas que determinariam o que é ser homem ou ser mulher. Tanto em sua vida quanto em sua obra, 2fik busca chacoalhar as concepções pré-determinadas pela sociedade, pela economia, pelo contexto no qual esse alguém está situado, em outras palavras, todas as questões que fazem o gênero: um homem masculino ou uma mulher feminina.

Quando tece suas considerações sobre o fazer drag, Butler (2003)BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. baseiase na linha de pensamento que o associa à imitação ou paródia de um gênero, dizendo que ao imitar o gênero, a/o drag revela, implicitamente, a estrutura imitativa do próprio gênero. Considerando o ano que Problemas de Gênero foi escrito (originalmente publicada em 1990), podemos pensar que Butler usou como escopo e referencial drags mais tradicionais, considerando a importante historicidade presente no movimento LGBTQIAPN+, mas deixando de fora alguns pontos que inclusive serão atenuados pela autora anos depois, como nos aponta Schicharin (2017)SCHICHARIN, Luc. Do Drag ao Pós-Drag: a performance travesti frente à etnicidade e à classe. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 7, n. 2, p. 225-248, 2017. Available at: https://seer.ufrgs.br/index.php/presenca/issue/view/2997. Accessed on: Apr. 28, 2023.
https://seer.ufrgs.br/index.php/presenca...
.

O pesquisador problematiza esse princípio fundamental de Butler, segundo o qual “[...] a repetição paródica das representações homofóbicas, sexistas e racistas, efetuada pela performance travestida12 12 A tradução para o Português do artigo de Schicharin opta pela expressão travestida como tradução para drag (ex: performance drag = performance travestida). , implica em um distanciamento teatral e, consequentemente, na expressão e na recepção de um discurso crítico” (Schicharin, 2017, p. 227SCHICHARIN, Luc. Do Drag ao Pós-Drag: a performance travesti frente à etnicidade e à classe. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 7, n. 2, p. 225-248, 2017. Available at: https://seer.ufrgs.br/index.php/presenca/issue/view/2997. Accessed on: Apr. 28, 2023.
https://seer.ufrgs.br/index.php/presenca...
), mostrando-nos, a partir de exemplos de drag kings norteamericanos da década de 1990, como muitas vezes o efeito que se dá é o contrário: não ocorre um discurso crítico a partir da paródia, mas o reforço ou reafirmação de estereótipos e preconceitos.

Ward também discute essa questão a partir da análise de algumas representações indígenas feitas por drag queens no reality show RuPaul’s Drag Race, questionando quando uma performance é subversiva e educativa e quando é ignorante e provocadora de estragos. Ela aponta duas atitudes problemáticas quando se performa a indigeneidade, dentro e fora do contexto drag: que a cultura drag e as/os/es performers drag são frequentemente consideradas/os/es isentos de modos politicamente corretos de discurso público e podem, portanto, engajaremse em qualquer tipo de performance ou representação; e que performances de estereótipos culturais ou raciais são aceitáveis quando realizados por membros do grupo que está sendo atuado.

Atualmente a cena drag contemporânea se expandiu, abarcando uma diversidade muito maior de trabalhos, que vai além da imita-ção/acentuação/cópia/paródia de um gênero, embora ainda haja e sempre haverá espaço para todos os segmentos de drag, como é o caso de tantas cuja presença e legado contribuem para combater o preconceito, os binarismos e levantar as discussões de gênero (e classe, raça e etnia... interseccionalidades que tampouco entraram nas primeiras análises de Butler). Contudo, infelizmente também são frequentes representações que reforçam estereótipos de gênero, classe e etnia, o que justifica a importância de pesquisas nessa área.

É bom lembrar que estamos aqui em um contexto acadêmico, discutindo o pós-drag, mas que na sociedade (pensemos Brasil, cidades do interior, lugares conservadores, religiosos), a simples presença da figura drag, seja do estilo que for, por si só causa um impacto ou revolta, por apresentar algo totalmente fora da heterocisnormatividade, por essa característica de “anarquia divertida” (Baker, 1995BAKER, Roger. Drag: a History of Female Impersonation in the Performing Arts. Nova York: New York University Press, 1995.).

Na contramão de categorizações que muitas vezes acabam por enquadrar demasiadamente a arte, apresentamos por último o trabalho da artista visual e arte-educadora Uýra Sodoma, trans e indígena em contexto de di-áspora, natural do estado do Pará, radicada em Manaus, Amazonas. Recentemente, Uýra participou do evento Rock in Rio 2022 com a performance Natureza sampleada, junto a dezenas de artistas da Amazônia.

Poderíamos aproximar alguns aspectos do trabalho de Uýra, que pela descrição da artista é uma árvore que anda, ao de uma montação drag de estética mais queer, e tanto em sua composição estética quanto em suas performances, vemos a presença de questões identitárias que extrapolam a discussão de gênero, sem reforçar estereótipos.

Uýra, que atua como ativista dos Direitos Humanos, é como uma mensageira que falaria pelo rio se este pudesse contar suas memórias e violências. Ela agencia em seu corpo e performance questões urgentes relacionadas a padrões e violências de gênero, à LGBTfobia, ao machismo, ao sexismo e a temas ambientais, como a ausência de políticas públicas, a polui-ção fluvial e o desmatamento (Correa, 2022CORREA, Paulo Henrique Trindade. Uýra Sodoma, a mata que anda. Gênero, Etnografias e Performances Rituais, Belém, p. 113-132, 2022. Available at: https://repositorio.ifpa.edu.br/jspui/handle/prefix/243. Accessed on: Apr. 27, 2023.
https://repositorio.ifpa.edu.br/jspui/ha...
). Questionando o que é natural e o que tem sido naturalizado para nos matar, a artista diz que sua luta é por algo óbvio e escancarado na realidade: é pela nossa vida, por um lugar de todas/os/es nós, uma luta que os povos originários vêm fazendo há mais de 500 anos em defesa da Terra.

Como na arte da performance, que como sabemos começou a ganhar seus contornos a partir da década de 1960, e nas performances queer latinoamericanas, vemos a artista realizando ações disruptivas e transgressoras, colocando seu próprio corpo-agente em situações de alto risco para alertar, denunciar e chamar atenção para causas sociais, políticas, econômicas e ambientais. No ensaio fotográfico Mil Quase Mortos, em que se deita e performa em meio ao lixo de um igarapé extremamente poluído, a performer choca quem está assistindo ao vivo, pela combinação de sua construção visualmente impactante, o adentrar nesse espaço de risco e o próprio discurso que a performance em si evoca.

Sua relação com a montação, em um sentido mais amplo, tem uma característica profundamente identitária e espiritual. É uma prática de autoconhecimento, afirmação, resistência, autocuidado e de transformação. A cada vez que a/o/e performer se monta e personifica sua figura no e para o mundo, não apenas aperfeiçoa suas técnicas artísticas, como se abre para um devir subjetivo, irrepetível e misterioso. O corpo drag se constrói pela aglutinação, como na estética do grotesco, juntando referências, memórias e discursos a materialidades como tintas, perucas, tecidos, elementos naturais (folhas, sementes, conchas), grampos, sapatos, colas, adereços de cabeça e o que mais a criatividade e a inventividade derem vazão.

A montação se assemelha às identidades: não é fixa, ela vai se constituindo a partir de construções e desconstruções, através de processos de identificação, contraidentificação ou desidentificação (Muñóz, 1999MUÑÓZ, José Estéban. Disidentifications: queers of color and the performance of politics. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1999.). Como uma imagem grotesca, ao mesmo tempo pode encantar e incomodar, provocar fascínio e horror. No seguinte trecho, podemos observar no relato de Uýra sua relação com esse processo:

[...] em carne de Bicha e Planta. me montar é uma viagem constante de reconhecimento do corpo que vivo. Acho que a gente se engana quando diz que já conhece tudo sobre nosso corpo. Ele é um mundo de lugares fantásticos e autênticos, mas muitos deles permanecem inexplorados porque são locais que nos foram proibidos. Não falo apenas da experimentação artística ou sexual, mas de todas as possibilidades sensoriais como o autotoque ou simplesmente a parada, na frente um espelho, para olhar e amar o nosso corpo nu. Os padrões de beleza e tabus sociais nos ensinaram a odiar o corpo real, o nosso corpo. Nos treinaram e desenvolveram produtos para apertá-lo, escondê-lo e maltratá-lo, criando em nossa intimidade incômodos que doem. A gente adoece quando não sente o nosso corpo. Me montar de Uýra tem sido Cura constante e necessária. Modifico o meu corpo para viver coisas novas, para aprender mais sobre mim e me sentir mais Viva. Me monto em casa, em praças públicas, na casa de amigas. É um ato sozinha ou na frente de pessoas, como proponho em minha performance ‘Criação Assistida’. Geralmente começo pelo olho, zona de maior impacto no contato com o outro; depois sigo para os contornos e boca, dandolhes proporções e elementos nãohumanos, cujo resultado impacta, seja incomodando ou encantando (Uýra Sodoma, 2018UÝRA Sodoma, uma drag queen indígena em defesa da Amazônia. Channel: Mí-dia Ninja. Documentário Brigada NINJA Amazônia. YouTube. Jene 14, 2020. Available at: https://www.youtube.com/watch?v=3AnIteg88-Y&feature=youtu.be. Acesso em: 30 abr. 2023.
https://www.youtube.com/watch?v=3AnIteg8...
).

Enlaçamentos finais

Independente de qual seja a estética de performance, analisamos como artistas da contemporaneidade têm trazido de maneira interseccional questões que precisam, de fato, serem consideradas conjuntamente. Em seu corpo, a/o/e performer carrega uma história complexa, cujas subjetividades não cabem em apenas uma categoria. Ao considerar esses atravessamentos múltiplos, suas produções ganham em potencial discursivo e político.

Como vimos em uma breve apresentação, o transformismo e a arte drag se mantêm ao longo do tempo e a tradição herdada é importante na sua manutenção e preservação, como uma memória viva de que esse caminho foi aberto por muitas pessoas antes de nós, e continua sendo construído. A tradição não deixa que essa expressão artística morra e os ensinamentos continuam sendo passados de mães e pais drags para suas filhas/os/es drags, na família que cada um/a/e escolhe para si. Mesmo que as pessoas integrantes das famílias mudem, mantémse firme a cultura das Haus, um espaço de cuidado mútuo, trocas e preocupação com o bem-estar do outro (Bentes, 2020BENTES, Juliano. Ekoaoverá: um estudo sobre a territorialidade nos processos identitários das drags demônias. Salvador: Devires, 2020.).

Contudo, é preciso olhar para a arte da montação como um organismo vivo que está em constante transformação. Sem atualizar a tradição, sem pensar a arte em diálogo com nosso tempo-espaço presente, mirando um futuro queer, um lá-então (Muñóz, 2020WALTERS, Brigette. Drag: Performance and Politics in the Americas Today. 2022. Thesis (PhD in Spanish) – Department of Spanish and Portuguese, University of Arizona, Arizona, 2022.), por vezes ela pode acabar estigmatizando ou reforçando estereótipos, reproduzindo atitudes coloniais e a visão hegemônica branca, invisibilizando corpos da cena drag, como o de mulheres cis e transgênero (AMAB) e homens transgênero (AFAB) ou desconsiderando o que se tem produzido em regiões fora daqueles eixos que parecem ser o centro, como por exemplo São Paulo, Rio de Janeiro, Nova York e Paris.

Observamos a participação da drag queen mexicana Lolita Banana no reality show Drag Race France, e como compõe sua figura montada trazendo elementos de sua cultura. Discutimos hipóteses de porquê, diante do júri e das colegas, os elementos estéticos de latinidade que o artista trouxe acabaram não sendo suficientes para convencer a bancada, em contraponto à esté-tica e performance de Soa de Muse, que parecem ter agradado mais ao júri.

Com o trabalho do artista 2fik, discutimos a estética do pós-drag, observando como ele joga com sua própria identidade em performances e fotografias nas quais explora a criação de avatares, ultrapassando “[...] as representações racistas da virilidade machista e homofóbica do homem árabemuçulmano através de uma performatividade multiculturalista, na qual estão lado a lado registros que mesclam trajes masculinos/femininos, ocidentais/orientais, homossexuais/heterossexuais” (Schicharin, 2017, p. 242SCHICHARIN, Luc. Do Drag ao Pós-Drag: a performance travesti frente à etnicidade e à classe. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 7, n. 2, p. 225-248, 2017. Available at: https://seer.ufrgs.br/index.php/presenca/issue/view/2997. Accessed on: Apr. 28, 2023.
https://seer.ufrgs.br/index.php/presenca...
). Por fim, com o trabalho de Uýra Sodoma, vimos como a artista coloca seu corpo em risco, tratando de maneira interseccional temas ambientais e de direitos humanos por meio de uma performance queer que foge de padrões pré-estabelecidos, característica também presente no trabalho das drags Themô-nias, de Belém do Pará, sendo Uýra também parte desse coletivo.

Notas

  • 1
    Drag: Embora não haja fontes que garantam precisamente a etimologia da palavra em inglês drag, por vezes é atribuída à abreviação das iniciais de dressed as a girl, que seria vestido como uma garota, em referência à tradição dos atores que se vestiam de mulheres. Atribui-se também ao verbo em Inglês to drag, que significa arrastar, em referência ao movimento que os longos vestidos dos figurinos faziam no chão. Esse último significado é reivindicado a Willian Dorsey Swann the Queen, “[...] bicha preta que foi escravizada, como referência de primeira Drag Queen no mundo, trazendo além do termo o modus operandi desse fazer como a noção de haus, baile, família e mobilização por lutas e direitos” (Sarita; Astrais, 2020, p. 11SARITA; ASTRAIS, Flores. Desconstrução permanente. Revista Themônia, Belém, 2020. Available at: https://linktr.ee/WanAleixoDesign. Accessed on: Apr. 26, 2023.
    https://linktr.ee/WanAleixoDesign....
    ).
  • 2
    Este artigo é parte e desdobramento da pesquisa da tese de doutorado de Francisco Carlos Costa Filho, pesquisador e artista drag na cidade de Brasília/DF. Utilizam-se como metodologias o levantamento bibliográfico; o trabalho de campo – com produção e análise de dados a partir de entrevistas e participação observadora junto a coletivos e artistas da cena drag no Brasil; e a pesquisa sobre o próprio trabalho. Para tanto, estabelecemse diálogos com os estudos da performance, estudos de gênero e com a Pesquisa baseada na Prática (Nelson, 2013NELSON, Robin. Practice as Research in the arts. Principles, Protocols, Pedagogies, Resistances. Reino Unido: Palgrave Macmillan, 2013.). Foi escrito em coautoria com a pesquisadora prof.ª Dra. Elisabeth Silva Lopes, que orienta a pesquisa, implicada nos estudos da performance.
  • 3
    Na dança, muitas drags utilizam elementos do Vogue e do Bate-Cabelo. O Vogue ou Voguing é um gênero de dança que está inserido dentro da chamada cultura ballroom, atrelado à comunidade LGBTQIAPN+. Foi criado por pessoas negras, latinas e trans nos EUA entre as décadas de 1960 e 1980. Atribuise à brasileira Marcia Pantera a criação do Bate-Cabelo, um movimento de dança em que a/o/e performer joga a peruca em variadas direções e combina-ções, como um chicote.
  • 4
    Para mais, ver Ekoaoverá - Um estudo sobre a territorialidade nos processos identitários das Drags Demônias, de Juliano Bentes (2020)BENTES, Juliano. Ekoaoverá: um estudo sobre a territorialidade nos processos identitários das drags demônias. Salvador: Devires, 2020..
  • 5
    Programa de TV norteamericano de competição entre drags, cuja primeira temporada foi em 2009, seguida de outras diversas temporadas nos EUA, produzidas e apresentadas pela drag queen RuPaul (RuPaul Andre Charles). Atualmente, possui franquias na Espanha, França, Canadá, Suécia, Reino Unido, Austrália, Holanda, Alemanha, Itália, Bélgica, Filipinas, Tailândia, México e no Brasil.
  • 6
    Do original em inglês: Amid gender play on RPDG there is an adherence to racial ‘authenticity’ where ‘for the Black and Brown characters on the show, racial realness means staying 'true' to one's off-stage ethnic/racial identity, a requirement not enforced for the white and Asian [...] This leaves these performances caught in a state of unresolvable tension or in fatally un-subversive appropriations, preserving the status quo.
  • 7
    Pronome neutro da Língua Portuguesa usada para pessoas nãobinárias.
  • 8
    Do original em francês: En fait, je ne suis ni garçon ni fille, et je ne suis pas non genré. Le seul repère que j'ai, it's myself. C'est moi, en fait! (tradução livre de fala retirada do programa).
  • 9
    Do original em inglês: Although her energies seem today to be channeled into the theater, the film and the nightclub, the drag queen’s unruly spirit still hovers unexpectedly over the popular festivities, the fairs and celebration days held in villages and small towns all over the country when men dress themselves as grotesque women with over stuffed bras and suspended belts to play charity football matches or compete in High Street races. These are the remnants of an ancient communal transvestism, primitive and pagan, which the church could not eradicate and so, as with many pre-Christian observances, incorporated them into its own functions with the last day of Christmas (Twelfth Night) becoming associated with misrule and reversal of order.
  • 10
    O uso dos termos travestirse, travestimento, travestido, como tradução para o ato de se vestir de outro gênero (que seria drag ou mesmo crossdress), é bastante problemático em nosso ponto de vista, pela proximidade com a palavra travesti, no Português e Espanhol, que nesse caso é usada para se referir a um modo de existência, uma identidade de gênero (e não apenas ao ato de se vestir com outras roupas).
  • 11
    Do original em inglês: The ‘playfulness’ of drag, while often perceived to challenge hegemonic notions of gender, thus also has the potential to reify hegemonic notions of race and culture [...] As artist Nine Yamamoto-Masson reminds us: Black, Indigenous and People of Colour often face ridicule, discrimination, social backlash, violence for features that are celebrated when worn by [non-Black, non-Indigenous, and/or white] people.
  • 12
    A tradução para o Português do artigo de Schicharin opta pela expressão travestida como tradução para drag (ex: performance drag = performance travestida).
  • Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.

Disponibilidade dos dados da pesquisa:

o conjunto de dados de apoio aos resultados deste estudo está publicado no próprio artigo.

Referências

  • BAKER, Roger. Drag: a History of Female Impersonation in the Performing Arts. Nova York: New York University Press, 1995.
  • BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 2010.
  • BENTES, Juliano. Ekoaoverá: um estudo sobre a territorialidade nos processos identitários das drags demônias. Salvador: Devires, 2020.
  • BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
  • CORREA, Paulo Henrique Trindade. Uýra Sodoma, a mata que anda. Gênero, Etnografias e Performances Rituais, Belém, p. 113-132, 2022. Available at: https://repositorio.ifpa.edu.br/jspui/handle/prefix/243. Accessed on: Apr. 27, 2023.
    » https://repositorio.ifpa.edu.br/jspui/handle/prefix/243.
  • DIVINAS DIVAS. Directed by Leandra Leal. Rio de Janeiro: Daza Filmes, 2017. 109 min.
  • DRAG RACE France. Directed by Lionel Chabert. France: Endemol France, World of Wonder, 2022.
  • GAGLIARDO, André. A história. Revista DRAGAzine, Brasília, Distrito Drag; Pop Up Drag, 2023.
  • HALL, Stuart. A identidade cultural na pósmodernidade Rio de Janeiro: Lamparina, 2019.
  • LAZZARUS, Lady. Toda forma de drag? A falta de representatividade AFAB em reality shows brasileiros. Grafia Drag, Porto Alegre, 2023. Available at: https://www.ufrgs.br/grafiadrag/toda-forma-de-drag/. Accessed on: Apr. 24, 2023.
    » https://www.ufrgs.br/grafiadrag/toda-forma-de-drag/.
  • MUÑÓZ, José Estéban. Disidentifications: queers of color and the performance of politics. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1999.
  • MUÑÓZ, José Estéban. Utopía Queer: el entonces y allí de la futuridad antinormativa. Argentina: CajaNegra, 2020.
  • NELSON, Robin. Practice as Research in the arts Principles, Protocols, Pedagogies, Resistances. Reino Unido: Palgrave Macmillan, 2013.
  • SALIH, Sara. Judith Butler a Teoria Queer Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2015.
  • SARITA; ASTRAIS, Flores. Desconstrução permanente. Revista Themônia, Belém, 2020. Available at: https://linktr.ee/WanAleixoDesign. Accessed on: Apr. 26, 2023.
    » https://linktr.ee/WanAleixoDesign.
  • SCHICHARIN, Luc. Do Drag ao Pós-Drag: a performance travesti frente à etnicidade e à classe. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 7, n. 2, p. 225-248, 2017. Available at: https://seer.ufrgs.br/index.php/presenca/issue/view/2997. Accessed on: Apr. 28, 2023.
    » https://seer.ufrgs.br/index.php/presenca/issue/view/2997.
  • UÝRA Sodoma, uma drag queen indígena em defesa da Amazônia. Channel: Mí-dia Ninja. Documentário Brigada NINJA Amazônia. YouTube. Jene 14, 2020. Available at: https://www.youtube.com/watch?v=3AnIteg88-Y&feature=youtu.be. Acesso em: 30 abr. 2023.
    » https://www.youtube.com/watch?v=3AnIteg88-Y&feature=youtu.be.
  • UÝRA SODOMA. Em carne de Bicha e Planta. Manaus, April 15, 2018. Instagram: @uyrasodoma. Available at: https://www.instagram.com/p/Bhmm0R3A7R-/?utm_source=ig_embed. Accessed on: Apr. 30, 2023.
    » https://www.instagram.com/p/Bhmm0R3A7R-/?utm_source=ig_embed.
  • VIDAL-ORTIZ, Salvador; VITERI, María Amelia; SERRANO AMAYA, José Fernando. Resignificaciones, prácticas y políticas queer en América Latina: otra agenda de cambio social. Nómadas, n. 41, p. 185-201. 2014. Available at: https://nomadas.ucentral.edu.co/index.php/inicio/8-articulos/803-trayectos-y-posibilidades-en-ciencias-sociales-nomadas-41. Accessed on: Apr. 30, 2023.
    » https://nomadas.ucentral.edu.co/index.php/inicio/8-articulos/803-trayectos-y-posibilidades-en-ciencias-sociales-nomadas-41.
  • WALTERS, Brigette. Drag: Performance and Politics in the Americas Today. 2022. Thesis (PhD in Spanish) – Department of Spanish and Portuguese, University of Arizona, Arizona, 2022.
  • WARD, Maggie. “Cultural Appropriation! That’s what we never heard”: Performing Indigeneity on Reality Television and Beyond. In: BRYDE, Lindsay; MAYBERRY, Tommy (Ed.). RuPedagogies of Realness: Essays on teachings and learning with RuPaul’s Drag Race. EUA: McFarland & Company, 2022. p. 142-160.
Editor responsável: Fabiana de Amorim Marcello

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2023
  • Aceito
    27 Nov 2023
Universidade Federal do Rio Grande do Sul Av. Paulo Gama s/n prédio 12201, sala 700-2, Bairro Farroupilha, Código Postal: 90046-900, Telefone: 5133084142 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: rev.presenca@gmail.com