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Reflexões sobre o Popular no Contexto do Grupo Mamulengo de Cheiroso de Teatro de Bonecos

Réflexions sur le Populaire dans le Cadre du Grupo Mamulengo de Cheiroso de Teatro de Bonecos

RESUMO

Reflexões sobre o Popular no Contexto do Grupo Mamulengo de Cheiroso de Teatro de Bonecos – Este artigo apresenta e discute a noção de cultura e de teatro populares com base na experiência do Grupo Mamulengo de Cheiroso de Teatro de Bonecos (Aracaju/SE), núcleo popular com específica relação com o espaço acadêmico. O estudo é resultado parcial de pesquisa de mestrado e utiliza-se, em maior escala, de revisão bibliográfica, fontes primárias e entrevistas. Por meio das discussões, tem-se uma visão crítica acerca do teatro popular, que pode se manifestar em diferentes lugares, modos e contextos; o que destoa de uma visão estereotipada, largamente homogênea, acerca desses fenômenos, decorrente de uma produção literária que aborda a história sob a ótica da cultura letrada.

Palavras-chave:
Cultura Popular; TeatroPopular; Mamulengo; TeatrodoNordeste; Grupo Mamulengode Cheiroso

RÉSUMÉ

Réflexions sur le Populaire dans le Cadre du Grupo Mamulengo de Cheiroso de Teatro de Bonecos – Cet article présente et discute la notion de culture et de théâtre populaire à partir de l’expérience du Grupo Mamulengo de Cheiroso de Teatro de Bonecos (Aracaju/SE), un noyau populaire ayant une relation spécifique avec l’espace académique. L’étude est le résultat partiel d’une recherche de maîtrise et fait largement appel à la revue de littérature, aux sources primaires et aux entretiens. À travers ces discussions, une vision critique du théâtre populaire peut être obtenue, qui peut se manifester dans différents lieux, modes et contextes, ce qui diffère d’une vision stéréotypée, largement homogène, de ces phénomènes, résultant d’une production littéraire qui aborde l’histoire du point de vue de la culture littéraire.

Mots-clés:
Culture Populaire; Théâtre Populaire; Mamulengo; Théâtredu Nordeste; Grupo Mamulengode Cheiroso

ABSTRACT

Reflections on the Popular in the Context of the Grupo Mamulengo de Cheiroso de Teatro de Bonecos – This article presents and discusses the notion of popular culture and theater based on the experience of the Grupo Mamulengo de Cheiroso de Teatro de Bonecos (Aracaju/SE), a popular nucleus with a specific relationship with the academic space. The study is a partial result of a master’s research and makes extensive use of literature review, primary sources, and interviews. Through these discussions, a critical view of popular theater is obtained, which can manifest itself in different places, modes, and contexts, deviating from a stereotyped and largely homogeneous view of these phenomena, resulting from literary production that approaches history from the perspective of lettered culture.

Keywords:
Popular Culture; Popular Theater; Mamulengo; Theaterfrom Nordeste; Grupo Mamulengode Cheiroso

Na cidade de Aracaju, capital sergipana, existe – entre outros grupos populares e folguedos – o Grupo Mamulengo de Cheiroso de Teatro de Bonecos, com 45 anos ininterruptos de história. Ele foi fundado, em 1978, pela professora e pesquisadora Aglaé D’Ávila Fontes. Desde 1985, o Mamulengo de Cheiroso é dirigido pelo Mestre Augusto Barreto, e atualmente é composto também por Marlene Barreto, Artur Barreto, Pedro Freitas e Isaac Alves.

Figura 1
Augusto Barreto, Artur Barreto e Maira. Espetáculo Talco no Salão, Grupo Mamulengo de Cheiroso, 2018, Aracaju/SE.

Aglaé D’Ávila Fontes era professora do curso de Pedagogia do Departamento de Educação (DED)2 2 Na ocasião, ainda não existia o curso de Licenciatura em Teatro na UFS, implantado só em 2007, no campus Laranjeiras, decorrente da criação do Núcleo de Teatro. Sendo que, em 2017, o Núcleo foi transferido para o campus São Cristóvão, e, na ocasião, tornou-se o atual Departamento de Teatro (DTE). da Universidade Federal de Sergipe (UFS), onde lecionava, entre outras, a disciplina Psicologia do Adolescente. No ano de 1978, no processo pedagógico da referida disciplina, a professora decidiu trabalhar, com base na cultura popular, na confecção de brinquedos e bonecos utilizando materiais orgânicos como ferramenta pedagógica de auxílio em sala de aula. A disciplina resultou em miniespetáculos, para os quais os alunos confeccionavam os bonecos e os animavam em cena. As apresentações foram realizadas na Escola Estadual Armindo Guaraná3 3 A escola é situada ao lado de onde é hoje o campus São Cristóvão da UFS, e recebe, inclusive, estagiários da Licenciatura em Teatro que desenvolvem intervenções artístico-pedagógicas. , no bairro Rosa Elze, em São Cristóvão/SE, e na ocasião também foram realizadas pequenas oficinas com os estudantes da escola. Concluída a disciplina e a fase de apresentações e oficinas, que compunham os instrumentos de avaliação previstos, constatou-se um desejo, por parte dos universitários, de continuar com aquele processo, envolvendo a criação cênica baseada no teatro de bonecos popular em contextos educativos.

A professora Aglaé Fontes propôs, então, diante do desejo da turma, um projeto de extensão com teatro de bonecos popular, no qual os estudantes ingressaram como bolsistas do Programa Bolsa/Trabalho/Arte, da Funarte. Esse recurso do governo federal, à época, além de funcionar como um auxílio direto aos universitários, proporcionou também, àquele grupo, subsídios para a produção de novos espetáculos, bem como a promoção de intercâmbios entre artistas de fora do âmbito da universidade (inclusive de outros estados).

Figura 2
Nildete Santos, Walkyria Sanders, Aglaé Fontes, Augusto Barreto, Edivaldo e Neli Tavares, Grupo Mamulengo de Cheiroso, 1987, Laranjeiras/SE.

A iniciativa deu origem ao núcleo de artistas que, ainda nos primeiros meses de formação, foi nomeado como Grupo Mamulengo de Cheiroso de Teatro de Bonecos, um coletivo de teatro popular originado no ambiente acadêmico, naquela época composto unicamente por universitários, que promovia espetáculos e oficinas, experimentando a relação entre arte e educação.

O batismo com o nome Mamulengo de Cheiroso explicita referências do teatro de bonecos popular como praticado no estado de Pernambuco. O termo Mamulengo é utilizado para nomear a brincadeira no território pernambucano (e, posteriormente, paraibano), e tem como possível origem uma analogia ao movimento das mãos para animar os bonecos em cena: a mãomolenga. Já a utilização do nome Cheiroso é homenagem ao artista popular conhecido como Mestre Cheiroso, que morou entre Recife e Olinda, um dos primeiros mamulengueiros tradicionais sobre os quais temos registros documentados (Santos, 1979SANTOS, Fernando Augusto Gonçalves. Mamulengo: um povo em forma de boneco. Rio de Janeiro: Funarte, 1979.), que teve forte destaque no início do século XX.

Figura 3
Cheiroso: o homem do mamulengo.

Aglaé Fontes já fazia menção ao Mestre Cheiroso, ao falar brevemente da trajetória do Grupo, num programa de espetáculo:

Ao descobrir o espaço embrenhou-se pelos caminhos da Cultura Popular e se alimentou de suas raízes. Entre boquiaberto e deslumbrado, ganhou um nome: MAMULENGO DE CHEIROSO. Homenagem a Cheiroso, mamulengueiro do Nordeste que animou as feiras com a venda de seus cheiros e as estórias dos seus bonecos em Pernambuco e Paraíba (Fontes, 1982, n. pFONTES, Aglaé D’Ávila. Programa de teatro. Peça “Maria Língua de Trapo”, de Aglaé D’Ávila Fontes, 1982.).

O Grupo Mamulengo de Cheiroso da UFS foi dirigido pela professora Aglaé Fontes, que coordenou as ações do projeto de extensão universitária naqueles anos iniciais. Por esse contexto, Augusto Barreto, que na época integrava a equipe ainda como aluno, considera Aglaé a fundadora do Grupo, embora ela afirme que provocou os alunos, e eles sim o fundaram.

Augusto entrou na universidade com um repertório e vivência prévios com teatro de bonecos, inclusive já era aprendiz de Aglaé Fontes e de sua mãe, Marieta Fontes, pois eles nutriam um contato anterior devido a um laço parental entre as famílias Barreto e Fontes. Ele comenta que, na sua infância, teve contato com a olaria, ofício de vizinhos seus, e que fazia muitas brincadeiras no barro quando chovia. Daí viria sua admiração e seu domínio do trabalho com cerâmica, presente em artefatos produzidos pelo Grupo Mamulengo de Cheiroso, inclusive em alguns bonecos para espetáculos ou para comercialização.

Logo nos primeiros anos, o Grupo Mamulengo de Cheiroso se desvinculou da universidade, em 1985, e passou a ser independente, isto é, precisou se autogerir, sem que houvesse a participação mais empenhada de Aglaé como professora-diretora, deixando de se configurar como projeto de extensão da UFS. Com a saída dos primeiros integrantes, pouco a pouco Augusto Barreto virou uma figura de liderança e foi assumindo a função de diretor do Grupo, de mestre, sempre tendo Aglaé na retaguarda desse processo. Ele a encara como uma mestra, uma fonte de sabedoria e inspiração artística, cultural, intelectual. Faz questão de sempre mencioná-la, em aulas, palestras etc., a fim de que ela se torne, de fato, uma referência na história do teatro sergipano.

Mesmo completados 45 anos agora em 2023, ainda temos poucos registros sobre o Grupo Mamulengo de Cheiroso, sua história, suas características ou sobre algum outro aspecto específico do coletivo. Um avanço se deu por duas recentes pesquisas acadêmicas voltadas ao Grupo, ambas concluídas em 2023: uma é a minha pesquisa de mestrado, que resultou na dissertação intitulada História e pedagogia do teatro no Grupo Mamulengo de Cheiroso de Teatro de Bonecos (Aracaju/SE), pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC/Unirio); e a outra é a do pesquisador Gustavo Floriano, intitulada ‘Mestre Cheiroso chegou’: a formação artística e pedagógica do brincante Augusto Barreto – reflexos para a carpintaria teatral do Mamulengo de Cheiroso, pelo Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Culturas Populares (PPGCULT/UFS).

O movimento de fomentar registros sobre o Mamulengo de Cheiroso se faz importante por tratar de teatro (em contraponto a pensamentos, ainda existentes, que desconsideram essas estéticas como fazer teatral), do teatro do Nordeste (que luta por uma conscientização que venha a romper a ideia homogênea em relação às características do Nordeste e dos nordestinos), por reaquecer o diálogo da linguagem com a cultura popular, por auxiliar a compreender a história do povo, por meio do seu teatro.

Em termos de registro e de produção de fontes para estudos contemporâneos e futuros de um conhecimento, de uma herança (nesse caso, sobretudo uma herança cultural e artística), é importante que haja a escrita dessa determinada história, com base em fontes e referências de diversas naturezas; é importante que seja organizada e narrada a sua historiografia. Alimento, entretanto, a consciência de que existem limitações específicas da natureza da pesquisa em história do teatro, visto que não há a possibilidade de registrar-se tudo sem deixar brechas, como uma história única, oficial; também porque os dados de pesquisa sempre podem ser alterados, atualizados e/ou ressignificados. Para calcar essa reflexão, cito a professora e historiadora do teatro Beti Rabetti (2017, p. 52-53)RABETTI, Beti. Em busca da tradução teatral: o trabalho do historiador em meio a miudezas da cena e precariedades documentais. Sala Preta, v. 17, n. 2, p. 4871, 2017. Available at: https://doi.org/10.11606/issn.2238-3867.v17i2p48-71. Accessed on: Aug. 9, 2021.
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Com a consciência de que a escrita da história partilha da efemeridade que comumente se atribui ao fato cênico, também o historiador do teatro, com humildade diante da história que acredita ajudar a construir, levando vestígios ao futuro, vê-se condenado tanto a exercícios exaustivos quanto a inesgotáveis operações de escrita, porque sabe, de antemão, que as escritas historiográficas de um tempo são sempre precárias, determinadas pelo estado da arte a que se vincula e especialmente determinadas por novos e talvez mais preciosos, e, quem sabe, mais precisos dados. Sua consciência da infinita reescrita da história e a precariedade de sua escrita instável, no entanto, não o desobrigam do mergulho nos detalhes, nas variações, nas contradições, na utopia da precisão, em detrimento do que se pretendia simples, homogêneo.

Foi nessa perspectiva que tracei minha pesquisa, na busca de compor e escrever um panorama histórico, pelo menos, do período de fundação do Mamulengo de Cheiroso, a fim de analisar como as características identitárias, plantadas desde o início, influenciam em suas práticas artísticas e formativas na contemporaneidade, em prol da manutenção e disseminação do teatro de bonecos popular. Para tanto, precisei abrir discussão sobre a noção de popular, que despertou algumas reflexões aqui reorganizadas, para contribuição teórica na área, com base no exemplo do Cheiroso.

Dentre as tantas possibilidades de se compreender e expressar o popular, inclusive no vasto universo do Teatro de Bonecos Popular que é definido como do Nordeste, o Grupo Mamulengo de Cheiroso de Teatro de Bonecos tem seus recortes, seus prismas para esculpir e modelar sua acepção de cultura, de popular, de teatro, de identidade. O repertório que o Grupo vem construindo é aquele que valoriza os aspectos da tradição local do território, as heranças de contos e cantigas da oralidade, os costumes cotidianos observados nos sergipanos, as expressões do vocábulo, o artesanato, os bens simbólicos e outras manifestações artísticas oriundas do estado, com suas histórias, seus mitos e suas místicas.

Paralelamente, o Mamulengo de Cheiroso estuda e viaja o mundo pesquisando outras formas de expressão popular, em especial aquelas com bonecos, pois sabe que a história da tradição sergipana (nordestina, brasileira) vive em diálogo com a temporalidade das tradições populares da América Latina e do mundo inteiro, aliás, em detrimento da temporalidade da tradição europeia. Com isso, podemos notar que o calendário que rege essa história, como é majoritariamente ensinado, inclusive nas universidades, não pode ser apenas o europeu, pois, no que se refere ao percurso da cultura popular, como se dá no caso do Mamulengo de Cheiroso, alguns caminhos são intercruzados. Como alerta Mario J. Valdés (1934-2020), professor norte-americano de hermenêutica literária e história da literatura comparada:

[...] a temporalidade da tradição popular é muito diferente da que se encontra na literatura iluminista e que, por conseguinte, o historiador terá de achar o modo de respeitar essas duas temporalidades. A tradição popular não segue o calendário europeu nem tampouco a periodização dessas histórias literárias. [...] Na América Latina vive-se, a cada dia, o choque das duas tradições (Valdés, 2000, p. 8-9VALDÉS, Mario J. Conversação com Cornejo Polar sobre a história da literatura latino-americana. In: CORNEJO POLAR, Antonio. O condor voa: literatura e cultura latino-americanas. Org. Mario J. Valdés. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000.).

Ao passo que o Grupo Mamulengo de Cheiroso defende as questões identitárias, refletidas em seus espetáculos e em suas práticas pedagógicas, também a consciência da pluralidade de culturas permeia essa composição mista. Isso é decorrente de diversos contextos de hibridação cultural no Brasil, desde culturas indígenas presentes no território, em suas diversas etnias, cruzadas com culturas africanas trazidas para o país no processo de escravidão (parecidas em alguns aspectos, por exemplo, na relação com os rituais e com a natureza). Alguns países da Europa, ainda no processo colonizador, também importaram características de suas culturas, além de outras influências universais, inclusive do Oriente, resultantes do acelerado processo de globalização.

Afinal, o Mamulengo de Cheiroso pesquisa a cultura de diversas nações, tem uma trajetória de viagens a trabalho e pôde tatear esse emaranhado de afetações. No próprio acervo da sede5 5 Rua do Igaruana, nº 127, bairro Aeroporto, Aracaju/SE. , encontramos diversos bonecos e máscaras do mundo todo, que o Grupo comprou nas suas viagens ou foi presenteado. O Grupo reconhece, obviamente, a existência de manifestações originadas e pertencentes propriamente ao território sergipano. Daí se suscitam o orgulho e a celebração pela riqueza do popular na cultura local, e do caminho de pesquisa e criação nas artes cênicas empenhado nas questões identitárias da região do Nordeste e suas tradições populares.

É sabido que a tradição da cultura letrada está associada à posição de poder. Historicamente constituiu-se assim, pois a história escrita exerce função opressora diante da história oral, de modo que herdamos justamente o triunfo da letra. Embora o Grupo Mamulengo de Cheiroso não tenha se dedicado exatamente a escrever/redigir seu percurso historiográfico, ele tem iniciativas que apontam para uma construção concreta da sua história, uma vez que reúne fontes documentais diversas (fotos, documentos, matérias de jornais, programas de espetáculos etc.) na sua sede, além do próprio acervo de bonecos, máscaras, dramaturgias, livros, artigos e periódicos, bem como tomou a iniciativa de oficializar o seu espaço físico como museu.

Ou seja, percebe-se uma aposta na edificação da narrativa dos 45 anos de história do Grupo por reconhecer, certamente, a contribuição que trará às manifestações populares, aos artistas e aos pesquisadores, assim como à própria população. Essa consciência, por exemplo, afetou positivamente a generosa permissão e abertura da equipe para que eu desenvolvesse a minha pesquisa de mestrado, centrada em dois períodos históricos do Grupo Mamulengo de Cheiroso: o contexto de fundação e os anos iniciais (19781982), e sua atuação com práticas artísticas e formativas na contemporaneidade (2018-2022). É possível que o Grupo funcione assim pela sua específica relação com o espaço acadêmico desde sua formação, dado que ele foi criado no contexto artístico-pedagógico mencionado anteriormente.

Poderia, então, o Cheiroso ser considerado um grupo popular? Em que termos? O contexto e o perfil desse grupo popular de teatro de bonecos, com raízes acadêmicas, nos faz refletir sobre noções, aqui discutidas neste texto, a respeito de cultura popular e teatro popular, com base propriamente no mamulengo.

Nesse sentido, metodologicamente, o caminho para refletir sobre as questões levantadas nesta pesquisa enquadrou-se no tipo de estudo descritivo, que essencialmente “[...] descreve as características de uma determinada população ou um determinado fenômeno, e os interpreta” (Costa; Costa, 2011, p. 36COSTA, Marco Antonio F.; COSTA, Maria de Fátima Barrozo. Projeto de pesquisa: entenda e faça. Petrópolis: Vozes, 2011.), não se furtando a uma reflexão constante traduzida em comentários e análises. Assim, este estudo é de abordagem qualitativa e teve como opção metodológica a pesquisa etnográfica e histórica. A pesquisa foi dividida em etapas cumulativas, sendo a primeira a revisão bibliográfica relativa à fundamentação teórica do tema em estudo, que apresenta e discute as principais noções presentes nos objetivos da pesquisa. As outras etapas, que aparecem com menos ênfase neste artigo, consistiram na realização de entrevistas com os atuais integrantes do Mamulengo de Cheiroso, bem como na análise de materiais em arquivo.

Vale pontuar que o campo teórico sobre o qual está debruçado o objeto da pesquisa não é, nem de longe, calcado em conceitos e noções simples e totalmente convergentes. Ao contrário, é uma área densa, repleta de contradições, tensões e abordagens que ora se cruzam, ora se distanciam, mas que vão compondo uma ampla rede de noções que podemos minimamente tatear. Longe de querer encerrar as discussões propostas, mas a fim de friccioná-las e aproximar novos dados do universo da pesquisa com base nas questões levantadas diante do objeto, irei refletindo e me posicionando como professor-artista-pesquisador do teatro.

Da cultura popular ao teatro popular: algumas acepções

A única história cria estereótipos. E o problema com estereótipos não é que eles sejam mentira, mas que eles sejam incompletos. Eles fazem uma história tornar-se a única história (Chimamanda Ngozi Adichie, 2019ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O Perigo de uma História Única. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.).

No campo que se debruça sobre analisar a chamada cultura popular, bem como problematizar o termo em vigor, pesquisadores de diversas áreas do conhecimento elencam e questionam perspectivas teóricas mais apropriadas para tratar do assunto referente aos níveis de cultura, o que é um ótimo sinal, pois é relevante que as teorias estejam nesse movimento de tensão ao correr do tempo. O fato de estarmos discutindo o tema ainda hoje prova o quanto ele é vivo e carrega sentidos pertinentes às sociedades dos séculos passados, mas que persistem na contemporaneidade. É uma questão tradicional, na perspectiva da sobrevivência da cultura popular ao longo do tempo, e, ao mesmo tempo, possui uma dimensão erudita, uma vez que desperta interesse entre os intelectuais de sociedades letradas.

Roger Chartier, francês especialista em história cultural e história da leitura, apresenta uma significação dúbia para o termo discutido. Antes de traçar um emaranhado histórico da cultura popular, o autor inicia apresentando determinada problemática conceitual, retomada por vezes na sua escrita, e apresenta, no conjunto de reflexões, problemas sociais e sobretudo políticos envolvidos nas questões históricas. Ele propõe dois modelos de descrição e interpretação de cultura popular, sobre os quais discorre:

O primeiro, no intuito de abolir toda forma de etnocentrismo cultural, concebe a cultura popular como um sistema simbólico coerente e autônomo, que funciona segundo uma lógica absolutamente alheia à da cultura letrada. O segundo, preocupado em lembrar a existência das relações de dominação que organizam o mundo social, percebe a cultura popular em suas dependências e carências em relação à cultura dos dominantes. Temos, então, de um lado, uma cultura popular que constitui um mundo à parte, encerrado em si mesmo, independente, e, de outro, uma cultura popular inteiramente definida pela sua distância da legitimidade cultural da qual ela é privada (Chartier, 1995, p. 1CHARTIER, Roger. Cultura popular: revisitando um conceito historiográfico. Translated by Anne-Marie Milon Oliveira. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 8, n. 16, p. 179-192, 1995.).

Destrinchando a visão de Chartier, a cultura popular pode ser lida: como um universo autossuficiente, independente e paralelo ao da cultura letrada, tão legítimo quanto a outra, opondo-se à ideia do etnocentrismo (visão que centraliza a própria cultura como referência para qualificar outras culturas); ou como uma manifestação resultante de relações históricas de poder em detrimento da cultura erudita, ou seja, estaria valorada como inferior, não mais independente, pois padece dessa outra, e está geralmente associada a grupos socialmente menos favorecidos, chegando a beirar o que o autor chama de miserabilismo. Entretanto, Chartier chama atenção para o fato de que esses dois modelos não necessariamente são empregados de modo excludente, podendo estar presentes de modo intercruzado, como o fazem alguns historiadores e pesquisadores.

Néstor García Canclini, antropólogo argentino, referência em estudos culturais, sobretudo do fenômeno da hibridação cultural na América Latina e sua relação com a modernidade, no capítulo que nomeia de A encenação do popular, faz apontamentos semelhantes a essa última perspectiva ao afirmar que “o popular costuma ser associado ao pré-moderno e ao subsidiário” (Canclini, 2019, p. 205CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Translated by Heloísa Pezza Cintrão and Ana Regina Lessa. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2019.). E acrescenta:

O popular é nessa história o excluído: aqueles que não têm patrimônio ou não conseguem que ele seja reconhecido e conservado; os artesãos que não chegam a ser artistas, a individualizar-se, nem a participar do mercado de bens simbólicos ‘legítimos’; os espectadores dos meios massivos que ficam de fora das universidades e dos museus, ‘incapazes’ de ler e olhar a alta cultura porque desconhecem a história dos saberes e estilos (Canclini, 2019, p. 205CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Translated by Heloísa Pezza Cintrão and Ana Regina Lessa. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2019.).

Por sua vez, Chartier ressalta que, mesmo nos momentos históricos de repressão, não houve efetivamente a exclusão total de determinada cultura aculturada, pois, embora havendo pressão para que morra, a cultura popular continuou a existir, transformando-se, até hoje, sempre com força histórica, com resistência, astúcia e rebeldia. Sobre essa temática, Mario J. Valdés (2000, p. 9)VALDÉS, Mario J. Conversação com Cornejo Polar sobre a história da literatura latino-americana. In: CORNEJO POLAR, Antonio. O condor voa: literatura e cultura latino-americanas. Org. Mario J. Valdés. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000. escreve: “[...] comodamente se esquecem de que as culturas autóctones não foram aniquiladas, mas continuaram e perduraram; apesar das interferências exógenas, assimilaram novos meios de expressão sem renunciar aos seus e são parte dessa dialética aberta”. A questão é: o que a história hegemônica – contada e, sobretudo, escrita – escolheu narrar?

O destino historiográfico da cultura popular é portanto ser sempre abafada, recalcada, arrasada, e, ao mesmo tempo, sempre renascer das cinzas. Isto indica, sem dúvida, que o verdadeiro problema não é tanto datar seu desaparecimento, supostamente irremediável, e sim considerar, para cada época, como se elaboram as relações complexas entre formas impostas, mais ou menos constrangedoras e imperativas, e identidades afirmadas, mais ou menos desenvolvidas e reprimidas (Chartier, 1995, p. 3CHARTIER, Roger. Cultura popular: revisitando um conceito historiográfico. Translated by Anne-Marie Milon Oliveira. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 8, n. 16, p. 179-192, 1995.).

Ainda nessa perspectiva, Hilário Franco Júnior, brasileiro especialista em história medieval, ressalta que as influências folclóricas fazem da cultura popular uma cultura da contestação por carregar resíduos mitológicos, por conter o saber por excelência dos fundamentos míticos, por vir de uma transmissão oral, pelo pertencimento do povo, por manter-se ligada a tradições ancestrais que ultrapassaram o tempo e os segmentos sociais. Ele complementa: “Ora, o fato daquela cultura ser ‘folclórica’, isto é, contestatária, indica que a cultura clerical não privara totalmente a cultura folclórica de suas funções, daí a própria existência desta e a possibilidade dela exercer uma resistência, uma contestação” (Franco Júnior, 1991, p. 24FRANCO JÚNIOR, Hilário. Meu, teu, nosso: reflexões sobre o conceito de cultura popular. Revista USP, n. 11, p. 18-25, 1991.).

Como visto, o tema costuma trazer opostos que se relacionam numa linha de tensão composta, comumente, por duas acepções da cultura: popular x erudita, ou tradicional x letrada. São conceitos que estão diretamente ligados na busca por uma autonomia conceitual – talvez não aplicável. Canclini destaca e critica o fator hegemônico que permeia essa complexa denominação ao considerar que “[...] os modernizadores extraem dessa oposição a moral de que seu interesse pelos avanços, pelas promessas da história, justifica sua posição hegemônica, enquanto o atraso das classes populares as condena à subalternidade” (Canclini, 2019, p. 206CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Translated by Heloísa Pezza Cintrão and Ana Regina Lessa. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2019.).

No caso do Grupo Mamulengo de Cheiroso, desde a sua fundação até hoje, os seus integrantes não se enquadram no perfil historicamente traçado acerca dos agentes da cultura popular, nem no período de formação, nem na contemporaneidade. O próprio diretor do Grupo, Augusto Barreto, embora tenha tido vivência no campo quando criança, foi aluno de Aglaé Fontes, como dito, e obteve formação em Pedagogia pela UFS. Depois disso, foi professor de educação básica pela rede estadual de ensino.

Franco Júnior convida-nos a relativizar as supostas distâncias entre as culturas divergentes (tradicional/erudita, por exemplo), como a própria história do Mamulengo de Cheiroso relativiza, e propõe que se considere a inter-relação das culturas. Dessa forma, segundo ele, tendemos a aprofundar melhor a questão, ao invés de encerrá-la em conceitos de oposição, considerando a sociedade como um organismo comum, híbrido, o que não necessariamente dilui diferenciações internas. O pesquisador comenta:

A constatação do simplismo dos sistemas binários civilizado/primitivo, racional/irracional, histórico/mítico, religioso/mágico e outros do tipo, provocaria importantes reflexões nas ciências humanas desta segunda metade do século [XX]. Acompanhando, aliás, a revisão epistemológica que ocorria em outras áreas do conhecimento, e que em suma revela os limites do modelo cartesiano (Franco Júnior, 1991, p. 19FRANCO JÚNIOR, Hilário. Meu, teu, nosso: reflexões sobre o conceito de cultura popular. Revista USP, n. 11, p. 18-25, 1991.).

Relacionado à discussão de junção de diferentes culturas, Chartier traz uma ideia associada à anulação, que considera o espectro social e econômico, que resulta numa imposição intransigente e na consequente eliminação de determinada cultura tida como inferior. Por outro lado, Franco Júnior inicialmente a aborda como inter-relação, considerando-se as similitudes entre as diversas culturas populares como um denominador comum, alargando a zona de identidade grupal e a intermediação cultural.

Baseado em dados decorrentes de estudos sobre religião popular, Franco Júnior mostra que a cultura popular não está unicamente presente em contextos rurais, camponeses, ignorantes, primitivos ou ultrapassados, como se costuma associar ao termo. Ao contrário, faz-se presente inclusive nas outras instâncias, funcionando, segundo o historiador, como um forte elo que afetaria – e uniria – toda a sociedade. Ele usa a bruxaria e a crença no Diabo como exemplos de marcos medievais ainda presentes na sociedade de hoje, em todo o mundo, tanto no espectro cultural das classes dominantes quanto no das classes oprimidas. Talvez essa linha de pensamento seja a mais razoável, pois reconhece que existem diferenças conceituais, tentativas de segregação, e assume também que sempre haverá permeabilidade entre as partes. Trata-se de um verdadeiro universo de tensões, não de oposições.

É importante desdobrarmos esse apontamento sobre a presença da cultura popular fora de contextos rurais e camponeses, analfabetos, determinados por laços essencialmente hereditários, pois nos auxilia a pensar sobre a formação e atuação do Grupo Mamulengo de Cheiroso de Teatro de Bonecos.

Na gestão de Augusto Barreto, e em sua transformação em mestre, conforme o Grupo diluiu o caráter universitário e assumiu a estrutura familiar, a relação da sua vida pessoal passou a se estreitar com a vida laboral, numa sucessiva adaptação. Isso a contar do ingresso de suas irmãs Mary e Marlene Barreto, a partir de 1989; depois, com a entrada de Artur Barreto, seu sobrinho, em 2013; de Pedro Freitas, seu companheiro; além de outros artistas e colaboradores, todos letrados, em sua maioria com formação acadêmica; e em grande medida a partir do momento que Augusto passou a morar na casa que fica no mesmo terreno da sede do Grupo.

Augusto afirma que a formação dele e de suas irmãs “[...] é rural, porque meu pai era agricultor, fornecia cana-de-açúcar para os engenhos daqui. Depois, ele passou a trabalhar com gado, e terminou como citricultor em Boquim/SE. Depois comprou um sítio em Itabaianinha/SE” (Barreto, 2022, entrevista ao pesquisador). Sobre suas observações e inspirações, o mestre comenta:

Como é esse teatro que eu percebi? Eu vi os cassimicocos, os teatros populares primitivos, no interior, nas feiras. Porque a feira é onde acontecia tudo. Nas feiras, tinham os prostíbulos, tinham os teatros de lata, tinham os encontros das pessoas. As feiras eram marcadas semanalmente, aos sábados, à segunda. [...] A feira tinha tudo, os vendedores, as farmácias, as ervas [...] Era um evento, as feiras. Isso serviu muito pra minha base. E os circos. Peguei circos ainda de drama popular: Circo Zé Bezerra, Circo da Mulher da Goiaba, o Gran Bartholo Circus, Circo Garcia, o ‘circo pano de roda’, ‘pé duro’, que chamava ‘o circo de sarna’ (Barreto, 2022, entrevista).

Embora o Grupo Mamulengo de Cheiroso não tenha sido fundado (e nem tenha sido sediado, durante sua existência) em zonas rurais, ele tem uma atuação diretamente urbana na cidade de Aracaju, mesmo enquanto se identifique como grupo popular e tenha a influência das tradições camponesas e primitivas como inspiração e material de trabalho. Levantando e refletindo sobre tais questões, é fato que as próprias culturas tradicionais já vêm desempenhando autonomamente seu papel de transformação, como sempre o fizeram.

Mesmo nas zonas rurais, o folclore não tem hoje o caráter fechado e estável do universo arcaico, pois se desenvolve em meio às relações versáteis que as tradições tecem com a vida urbana, com as migrações, o turismo, a secularização e as opções simbólicas oferecidas tanto pelos meios eletrônicos quanto pelos novos movimentos religiosos ou pela reformulação dos antigos (Canclini, 2019, p. 218CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Translated by Heloísa Pezza Cintrão and Ana Regina Lessa. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2019.).

A realidade da cultura popular, hoje, vai muito além do imaginário que a faz exclusiva de zonas rurais, camponesas, e já não é mais representada majoritariamente por esse senso comum sobre cultura. Em relação a isso, José Jorge de Carvalho, antropólogo e etnomusicólogo, traz contribuições relevantes que atualizam os dados.

[...] passa a existir, também, um grande circuito de cultura rural nas cidades, na medida em que numerosos grupos transplantados do interior são refeitos (e sua cultura, obviamente, reinterpretada) no meio metropolitano. Assim, vários símbolos que, no campo, funcionam como fortes elementos de caracterização e consolidação da identidade camponesa, passam a ser, na urbe, meras celebrações rituais do estilo camponês de vida, levadas a cabo por grupos que são agora urbanoides (Carvalho, 2000, p. 24-25CARVALHO, José Jorge de. O lugar da cultura tradicional na sociedade moderna. O Percevejo, n. 8, p. 19-40, year 8, 2000.).

De modo que o Grupo Mamulengo de Cheiroso de Teatro de Bonecos, mesmo sem ter sido formado pelo modo tradicional/hereditário, configura-se como grupo popular composto por artistas populares. As citações anteriores auxiliam a contextualizar o Grupo no contexto urbano, desde a sua formação, de matriz acadêmica, até a atuação na cidade de Aracaju, no estado de Sergipe, no Brasil e no mundo, muito embora o mestre Augusto Barreto deixe claro que tem a herança de uma experiência de imersão na cultura popular sergipana, na sua educação e na sua relação com pessoas, lugares e contextos com os quais se relacionou, e reverberam até hoje na sua atuação profissional à frente do coletivo.

Diluindo essa fronteira de características, enraizadas em princípios geracionais (antigo ou contemporâneo), geográficos (rural ou urbano) e/ou culturais (popular ou erudito), podemos considerar o caráter popular de um grupo que, por ter seu nascimento ancorado no universo acadêmico, destoa de uma realidade camponesa, analfabeta, tradicional, mas que trará questões peculiares até para o seu projeto formativo. O Mamulengo de Cheiroso, com origem e membros fundadores numa relação intrínseca com a universidade, característica a salientar, vem desenvolvendo uma sistemática prática artística e pedagógica com mamulengo, a ser apresentada e discutida a fundo na dissertação resultante desta pesquisa. Podemos considerar que o Grupo não é nem da tradição pretérita, nem se distancia totalmente dela: o conjunto é uma metáfora do espírito de inovação/transformação inerente à própria tradição.

Seguindo essa breve contextualização do vasto terreno conceitual acerca da cultura popular, refletido sob a perspectiva do exemplo do Cheiroso, proponho um recorte e aproximo a discussão desse campo teórico em direção ao universo da pesquisa do teatro de bonecos, entendendo que se trata de uma linguagem artística fortemente presente em determinados contextos culturais, sociais e históricos. Em diálogo com as contribuições anteriores, volto a citar a historiadora do teatro Beti Rabetti, quando discorre acerca das culturas tradicionais:

A título de síntese, pode-se recuperar aqui os elementos fundamentais daquelas culturas, ligadas às correntes de longa duração (que envolvem persistências e variações), à transmissão oral, à hegemonia da festa, à mistura do sagrado e do profano, ao rústico, à eleição de praças e ruas como espaços de intenso convívio entre manifestações artísticas diversificadas, ao riso, à procura da manutenção de parâmetros coletivos de produção, ao anonimato prevalecendo sobre a autoria, ao profuso em detrimento do específico, à aparente espontaneidade (Rabetti, 2000, p. 4RABETTI, Beti. Memória e culturas do “popular” no teatro: o típico e as técnicas. O Percevejo, n. 8, year 8, p. 3-18, 2000.).

Ao estender a discussão ao âmbito do teatro de tradição popular, que, assim como a cultura de modo geral, tem diversas facetas conforme o lugar e a época em que ocorre, os desafios acerca do popular continuam presentes. No Brasil, temos uma vastidão de manifestações culturais em todo o território, sendo muitas delas carregadas de elementos de linguagens artísticas, como a dança, a música e o teatro. Bem mais na perspectiva teatral e menos na folclorista, passo então a destacar um brinquedo popular originário da região Nordeste, precisamente do estado de Pernambuco: o Mamulengo6 6 Existem diferenças entre as formas de fazer e brincar o teatro de bonecos popular do Nordeste, de acordo com os demais estados onde se encontra (Cassimiro Coco, no Maranhão, Piauí e Sergipe; João Redondo, no Rio Grande do Norte e Paraíba; Mané Gostoso, na Bahia; Babau e Mamulengo, em Pernambuco), e essas variações devem ser reconhecidas e respeitadas. Entretanto, escolho usar o termo mamulengo para me referir ao brinquedo por ser a nomenclatura de batismo no estado de Pernambuco, onde ele surgiu e do qual se expandiu (IPHAN, 2014; Lima, 2009). , forma de teatro que fundamenta o Grupo analisado.

Teatro de Mamulengo e os bonecos populares: noções e categorizações

Na medida em que me proponho a abordar o mamulengo, surge a demanda de compreender algumas categorizações a respeito das linhagens do teatro de bonecos popular. Assim ficará melhor para visualizar o contexto no qual está inserido o Grupo Mamulengo de Cheiroso, com suas práticas artísticas e formativas.

O mamulengo é uma forma popular de fazer teatro de bonecos no Nordeste, com uma estética particular, com sentidos, preceitos e métodos de trabalho específicos. É denominado brinquedo por conter a presença de objetos como protagonistas do acontecimento teatral (Lima, 2009LIMA, Marcondes. A arte do brincador. Recife: Sesc, 2009.). No caso do mamulengo, o objeto fundamental – e central – é o boneco. Assim, enquadra-se na linguagem antes chamada de Teatro de Marionetes e atualmente denominada Teatro de Formas Animadas, ou Teatro de Animação, ou, ainda, Teatro do Inanimado, que engloba: objetos, bonecos, sombras e máscaras – sempre se mantendo o mesmo princípio em torno da anima (Amaral, 2011AMARAL, Ana Maria. Teatro de formas animadas: máscaras, bonecos, objetos. São Paulo: Edusp, 2011.), sinônimo de alma, princípio espiritual humano que se opõe ao corpo, pois, para manifestar-se como teatro, esses objetos inanimados precisam da energia vital de algum ser vivo animador.

Figura 4
Cheiroso e Augusto Barreto.

A composição do personagem Cheiroso, interpretado por Augusto, é um arquétipo de palhaço de circos populares. Quando Augusto sai da tenda e aparece ao público como gente, e não como boneco, é como se o encarnasse e virasse, ali, um palhaço popular: grosseiramente maquiado, voz estrondosa, riso sarcástico, sexualidade exuberante, espírito improvisador ancestral dos atores de rua.

Tradicionalmente, o mamulengo é um brinquedo popular no qual o mestre brincador8 8 Além deste termo, são utilizados outros: folgazão, brincante, ator-animador e mamulengueiro, este último ligado também ao artesão que confecciona os mamulengos (bonequeiros). fica atrás de uma empanada9 9 Também chamada de tenda, tolda ou barraca, é a estrutura que serve de palco para os bonecos. (podendo estar acompanhado de contramestres e ajudantes) e começa a representar, com os bonecos, para as pessoas da cidade (nas ruas, praças, calçadas), histórias, causos, contos baseados nos ditos populares, passados de geração em geração, e, sobretudo, buscando inspiração nas situações que vivencia e observa no seu cotidiano, no entorno, nas relações que experimenta em sociedade (no âmbito pessoal, social, de crenças etc.). O pesquisador e artista pernambucano Hermilo Borba Filho (1917-1976) é personagem fundamental para se compreender o mamulengo. Ele escreveu, dentre diversos textos, o livro Fisionomia e espírito do mamulengo (Borba Filho, 1987BORBA FILHO, Hermilo. Fisionomia e espírito do mamulengo. Rio de Janeiro: Inacen, 1987.).

A obra contextualiza o mamulengo diante das manifestações de teatro de bonecos do mundo (em países como China, Egito, Índia, França e Inglaterra), bem como as influências de sua origem, e descreve as características dessa arte popular do povo do Nordeste, defendendo-a como sendo teatro. O livro também disponibiliza o registro de dramaturgias para espetáculos do brinquedo popular, sendo algumas delas criadas pelos renomados mestres mamulengueiros Januário de Oliveira (Mestre Ginu) e Manuel Amendoim. Num breve texto, publicado na Revista Mamulengo, em 1974, Hermilo narra a seguinte cena:

No interior da tenda, feita de palha, com um cobertor em cima para não estragar os bonecos nas cenas violentas, estão três malas onde os personagens repousam, em ordem, à espera de entrar em cena. Uma mulher e uma menina vão entregando os bonecos a Manuel Amendoim, o mamulengueiro de Goiana, que interpreta com a voz, a cara, os gestos e o corpo, sapateando, suando em bicas, um espetáculo à parte: – ‘Tá vendo? Eu invento as histórias de acordo com a figura’. Nesta declaração está contido todo o seu entrosamento com a personagem de madeira – seu ato poético (Borba Filho, 1974, p. 22BORBA FILHO, Hermilo. Mamulengo. MAMULENGO – Revista da Associação Brasileira de Teatro de Bonecos, Rio de Janeiro, n. 2, p. 21-22, Mar. 1974.).

Os mamulengueiros primitivos nas feiras, com possíveis influências herdadas do circo-teatro, utilizavam-se de semelhantes estratégias que captavam a atenção do público na rua, atraindo-o para assistir aos seus espetáculos. Alguns esquetes teatrais, misturados com números circenses, rodas de ciranda, cantoria de cordéis etc., compunham certos recursos presentes antes dos espetáculos, assegurando uma recepção calorosa por parte dos espectadores, que já eram inseridos diretamente no jogo teatral. O brinquedo popular, que tende a funcionar quase como um retrato do povo nordestino, é calcado principalmente na relação do ator-animador com o público, por um forte espírito de jogo e de interatuação, contando com recursos cênicos como: sátira, peripécias, rima, trocadilhos, ditados e cantigas populares, danças, sons e músicas, pancadaria, xingamentos, safadeza etc.

Esses bonecos populares são uma manifestação artística antiga e têm seu nascimento associado à constituição do Brasil. Eles surgem com os escravizados no meio das senzalas, como ferramenta de diversão e projeção das suas questões sociais, ainda como brincadeiras livres. É uma arte que está diretamente relacionada ao início da produção teatral no Brasil, quando foram importadas as formas de fazer teatro de bonecos do mundo, sobretudo da Europa e da África, bem como tem relação entre as culturas indígenas já presentes no território. Segundo o dossiê interpretativo:

O teatro de bonecos que se desenvolveu no Nordeste sofreu forte influência das culturas africanas e indígenas. [...] Percebem-se, também, influências das tradições de bonecos populares da Europa, como o Pulcinella italiano, os Robertos portugueses e o Punch inglês. Nessas tradições, assim como no TBPN, os protagonistas, sempre identificados com as camadas populares, lutam contra diversos tipos de autoridades (soldados, padres, ricos fazendeiros), evidenciando sua valentia e coragem (IPHAN, 2014, p. 24IPHAN. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Registro do Teatro de Bonecos Popular do Nordeste – Mamulengo, Babau, João Redondo e Cassimiro Coco: dossiê interpretativo. Brasília: IPHAN, 2014.).

No ano de 2015, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) concedeu o título de Patrimônio Cultural Imaterial, no Livro de Formas de Expressão, ao então denominado Teatro de Bonecos Popular do Nordeste: Mamulengo, Babau, João Redondo e Cassimiro Coco – TBPN. A nomenclatura foi criada pela Associação Brasileira de Teatro de Bonecos (ABTB)10 10 Entidade que articula bonequeiros e demais artistas do teatro de animação, em âmbito nacional. A ABTB representa, no Brasil, a Union Internacionale de la Marionette (UNIMA), entidade que congrega associações e titeriteiros do mundo todo, criada em 1929. e apresentada ao IPHAN no processo de pedido do registro do bem como patrimônio cultural do Brasil, em 2004.

No processo de elaboração do inventário realizado pelo IPHAN (2014)IPHAN. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Registro do Teatro de Bonecos Popular do Nordeste – Mamulengo, Babau, João Redondo e Cassimiro Coco: dossiê interpretativo. Brasília: IPHAN, 2014., foi traçado um recorte de pesquisa diante da difícil tarefa de criar as linhagens do Mamulengo. Com base no que compõe o importante dossiê, podemos refletir sobre em que categoria pode-se enquadrar o Mamulengo de Cheiroso, que não se encontra efetivamente registrado no documento. Em sua parte introdutória, em relação às linhagens, registra-se que:

Diferentemente daquela região [Sudeste], o teatro de bonecos de cunho popular se manteve em quase todos os estados no Nordeste até meados do século XX, porém, a partir dos anos 70, ali também passa a sofrer um declínio, chegando a desaparecer nos estados de Alagoas, Bahia e Sergipe (IPHAN, 2014, p. 41IPHAN. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Registro do Teatro de Bonecos Popular do Nordeste – Mamulengo, Babau, João Redondo e Cassimiro Coco: dossiê interpretativo. Brasília: IPHAN, 2014., grifo do autor).

Embora no próprio Registro não constem os critérios de delimitação das categorias de mamulengueiros, no texto O processo do Registro do Teatro de Bonecos Popular do Nordeste do Brasil como patrimônio cultural do Brasil, de Izabela Brochado, coordenadora da ABTB na época de desenvolvimento do inventário, a autora trata de tais definições:

Neste contexto, inserem-se, primordialmente, os brincantes que aprenderam e aprendem por linhagem ‘familiar’, ou seja, que estão inseridos na própria comunidade e/ou grupo social do seu mestre e que se tornam bonequeiros por contato constante com a linguagem e pelos bens associados de herança vivencial e cultural. Esta distinção deu-se uma vez que foi identificada a existência de outras duas categorias: b) aquele que aprende com um ou mais mestres e que se apropria dos elementos de linguagem das formas tradicionais, incorporando-as nos seus espetáculos, mas que, diferentemente do primeiro grupo, vem de fora da comunidade – grupo social do mestre, ou seja, aprende por vivência temporária, passando a formar seu próprio grupo e brincadeira; c) aquele que se apropria de certos elementos de linguagem das formas tradicionais, passando a incorporá-los nos seus espetáculos a partir de releituras. Neste caso, não apresenta vínculo permanente com as formas populares tradicionais, usando-as de forma descontinuada (Brochado, 2018, p. 32-33BROCHADO, Izabela. O processo do Registro do Teatro de Bonecos Popular do Nordeste do Brasil como Patrimônio Cultural do Brasil. Móin-Móin – Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas, Florianópolis, v. 1, n. 15, p. 28-43, 2018. Available at: https://doi.org/10.5965/2595034701152016028. Accessed on: July 30, 2021.
https://doi.org/10.5965/2595034701152016...
).

Eis um emaranhado conceitual delicado, como reconhece a própria autora, que abre uma série de questões ainda no âmbito do popular, que tenta separar, com necessária finalidade de registro e análise, o que seria o mamulengo tradicional, traduzido na primeira linhagem, e o contemporâneo, com as duas possibilidades (b e c) apontadas na citação acima. Com base nas categorizações propostas por Brochado, o Mamulengo de Cheiroso poderia se enquadrar no tipo b, um exemplo vivo de iniciativa de manutenção e disseminação do teatro de bonecos popular, pois herdou a arte do mamulengo e tem o olhar de reelaboração do brinquedo.

Sobre a conceituação do mamulengo de acordo com um prisma geracional, Aglaé D’Ávila Fontes, dramaturga e pesquisadora da cultura popular, propõe as nomenclaturas mamulengo autêntico e mamulengo de projeção estética. A primeira refere-se aos mamulengueiros primitivos, aqueles primeiros que tiveram registro dos seus brinquedos, e detinham a forma raiz de brincar: os pernambucanos Doutor Babau (Severino Alves Dias), Mestre Cheiroso (Severino Francisco da Silva)11 11 Na pesquisa, encontrei dois possíveis nomes de batismo de Cheiroso: segundo uma fonte, Severino Francisco da Silva (Balzoni Filho, 1947, p. 92), ou, como em outro documento, Amaro Branco (Cunha, 1952, p. 9). e o Mestre Ginu (Januário de Oliveira). A segunda nomenclatura refere-se a uma forma de brincar inspirada nos primeiros mamulengueiros, com base na compreensão daquele gênero teatral e da cultura na qual está inserido, podendo, aliás, ter contextos socioculturais diferentes.

Mas, afinal, quando algo deixa de ser primitivo e passa a ser de projeção? A pesquisadora comentou, em entrevista cedida a esta pesquisa:

Eu acho que o Mamulengo de Cheiroso é um Grupo de projeção estética, ou seja: ele tomou esse aspecto cultural do teatro de bonecos do povo, na linguagem do povo, no jeito do povo. Mas todo mundo lá é formado, eles não são analfabetos. Um é formado nisso, o outro é formado naquilo. Assumiram a linguagem de Zé de Vina, assumiram a linguagem de outros mamulengueiros famosos e ficaram vendo, ou seja, espiando. [...] Como é que esses meninos, todos formados, são iguais ao Zé de Vina? Ao próprio Cheiroso? Não são. [...] Estes são mamulengueiros que eu chamo de autênticos, geralmente analfabetos, tocam viola. Eles têm essas características, e nem por isso valem menos. Valem tanto, que eu os copio, que eu quero ser tão popular quanto eles. [...] Não é tirando, em nenhum momento, o valor, ao contrário, é ampliando: ele busca no autêntico a inspiração para o trabalho dele, de projetar cada vez mais. [...] O que é que ele [o Mamulengo de Cheiroso] busca? Trabalhar uma linguagem popular, trabalhar a música popular autêntica do folclore sergipano (Fontes, 2022, p. 123, entrevista concedida ao pesquisador).

Uma outra perspectiva, para pensarmos diferenciações no mamulengo, é sob a óptica levantada por Fernando Augusto Santos, no livro Mamulengo: um povo em forma de bonecos (1979). Ele faz considerações sobre o surgimento do brinquedo e aponta, com base em suas observações e pesquisas junto ao grupo Só-Riso, sobre a presença do mamulengo no estado de Pernambuco, duas áreas de atuação, na década de 1970: a área urbana (que ele considera abarcando a Região Metropolitana do Recife) e a área rural (que compreende o interior do estado). Cada uma delas preservaria características particulares, mas com comunhão de sentidos que faziam ambas serem mamulengo. Um dos pontos no qual ele se baseia para pensar tal distinção está calcado no que se refere à periocidade/calendário e aos espaços/locais nos quais ocorrem apresentações de mamulengo.

É certo que eventos como festas religiosas de cunho popular, notadamente os festejos natalinos (Natal, Ano Novo e Reis) ou as festas de padroeiros, quase sempre motivam apresentações, mas via de regra o brinquedo é feito, sendo ele próprio o motivo ou causa do evento. Não é necessário haver uma festa num sítio para que haja um mamulengo. O dono do sítio contrata o mamulengo como forma de diversão para os moradores do lugar. Muitas vezes isso se constituindo em motivo de festa e não obrigatoriamente o contrário, ou seja, a festa ocasionando o mamulengo. [...] Já na área urbana, as apresentações estão ordinariamente vinculadas a eventos. O mamulengo quando acontece é, via de regra, durante os festejos natalinos e juninos, ou em festas folclóricas, sendo na atualidade apresentado com maior frequência quando contratado por órgãos de turismo [...] (Santos, 1979, p. 42SANTOS, Fernando Augusto Gonçalves. Mamulengo: um povo em forma de boneco. Rio de Janeiro: Funarte, 1979., grifo do autor).

Como dito, uma forma de brincar ocorre de maneira espontânea e não necessariamente vinculada a eventos. Nesses casos, muito fortes na Zona da Mata de Pernambuco, o mamulengo é que gera a festa, a brincadeira coletiva, pública, em espaços abertos. A outra forma teria uma relação de dependência/vinculação direta a situações externas, como festivais de teatro ou outros programas de produção cultural. Este último, o mamulengo da área urbana, podemos observar como sendo o caso do Mamulengo de Cheiroso. Além de participar de festivais de teatro e de realizar apresentações avulsas, dentro e fora do Brasil, o Grupo sempre está presente nos festejos juninos e natalinos, inclusive com criações inéditas de dramaturgias e encenações dedicadas para a apresentação daquele ano, inspiradas em histórias da narrativa oral, que têm essas festas como ambiente temático, como inspiração.

Tendo seu início vinculado à Universidade Federal de Sergipe (UFS), o Grupo não é formado por artistas primitivos. Como já dito, são pessoas que tiveram acesso ao mamulengo como linguagem artística pré-existente, diferentemente dos primeiros mamulengueiros, que inventaram o brinquedo mais no intuito da brincadeira, do divertimento. Embora esses mamulengueiros reconheçam os princípios de criação, de técnicas das suas obras, a natureza da criação deles era mais intuitiva, e transmitidos ainda no esquema de linhagem familiar – foram os precursores da arte do mamulengo, como tomamos mais ou menos conhecimento hoje (dada a escassez de registros com precisão de dados). E existe uma geração posterior que – com base na recepção de espetáculos, livros, dramaturgias, fontes históricas – tem uma noção do brinquedo como um todo, uma dimensão distanciada dos elementos que o constituem, como pesquisadores e experimentadores da linguagem. A partir do que se conhece, do que se observa, esse grupo começa a criar, brincando com os elementos existentes, e vai avançando, criando outros modos de fazer com base nesse modelo herdado, podendo seguir, aliás, outro perfil social, econômico, geográfico etc.

A ideia do Mamulengo de Cheiroso não é querer manter um purismo, uma forma única e inquestionável de se fazer, que atravesse o tempo intacta, mas entender que os contextos mudam e, consequentemente, mudam as formas de brincar, de olhar para o mundo. Afinal, como o próprio Canclini reflete, este não seria o melhor recurso do popular para manter-se vivo. Em relação à equação maniqueísta tradicional x moderno, ele desdobra:

[...] o que já não se pode dizer é que a tendência da modernização é simplesmente provocar o desaparecimento das culturas tradicionais. O problema não se reduz, então, a conservar e resgatar tradições supostamente inalteradas. Trata-se de perguntar como estão se transformando, como interagem com as forças da modernidade (Canclini, 2019, p. 218CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Translated by Heloísa Pezza Cintrão and Ana Regina Lessa. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2019.).

Com as mudanças sociais, culturais, políticas, ainda que estejamos no mesmo território geográfico-cultural-histórico, existem alterações na sociedade que afetam diretamente o olhar dos artistas sobre o mundo, bem como o olhar do mundo sobre os artistas e suas criações. Os mestres mais recentes, contemporâneos, trabalham nessa dimensão, propondo, por exemplo, cruzamento com outras formas de fazer teatro, novas técnicas incrementadas, outras formas de dramaturgia, novos modos de produção etc. O que parece importante é evitar colocar o mamulengo primitivo num lugar sacralizado, cristalizado – ao mesmo tempo que se reconhece a beleza desse útero potente que geriu o brinquedo –; nem assumir outro extremo que pretende salvar o trabalho autêntico, na utopia de executá-lo continuamente da mesma maneira.

Concordo com Marco Camarotti (1947-2004), professor e pesquisador do teatro popular em Pernambuco, quando levantou a perspectiva de que “[...] principalmente num país tão grande como o Brasil, que tem assimilado uma herança étnica e cultural diversificada, o teatro folclórico12 12 “Por fim, Abrahams considera como Teatro Folclórico (que pode ser também chamado de Teatro do Povo, como prefere Camarotti, ou Teatro da Gente) aquele que é praticado em pequenas comunidades, onde atores e público comungam uma mesma cosmovisão. Ele é realizado e mantido segundo preceitos de uma tradição e suas apresentações ocorrem em ocasiões especiais, geralmente em festas tradicionais” (Lima, 2009, p. 31). precisa ser lido e relido ‘através dos elementos que o fazem funcionar do jeito que funciona’” (Camarotti, 2001, p. 70-71CAMAROTTI, Marco. Resistência e voz: o teatro do povo do Nordeste. Recife: Ed. Universitária/UFPE, 2001.). Canclini discute também fortemente a ideia de pensarmos a cultura aplicada no contexto socioeconômico atual, destoante da corrente folclorista, que tende a apegar-se a um passado descontextualizado. Ele discorre:

A percepção dos objetos e costumes populares como restos de uma estrutura social que se apaga é a justificação lógica de sua análise descontextualizada. Se o modo de produção e as relações sociais que geraram essas ‘sobrevivências’ desapareceram, para que preocupar-se em encontrar seu sentido socioeconômico? Apenas os investigadores filiados ao historicismo idealista se interessam por entender as tradições em um âmbito mais amplo, mas as reduzem a testemunhos de uma memória que supõem útil para fortalecer a continuidade histórica e a identidade contemporânea (Canclini, 2019, p. 210CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Translated by Heloísa Pezza Cintrão and Ana Regina Lessa. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2019.).

Segundo o autor, nessas abordagens, embora haja um resgate do povo, este não é reconhecido. Destaco ainda, baseado nas falas do estudioso, a ideia de pensarmos a cultura popular sobretudo do ponto de vista dos seus agentes. Afinal, o mamulengo é objeto criativo resultante de modos de produção de artistas de teatro inseridos em determinados contextos sociais, culturais, políticos e históricos, de modo que, sem mamulengueiros, não tem como haver mamulengo, pois não é nos objetos que se concentra o popular. Canclini (2019, p. 217)CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Translated by Heloísa Pezza Cintrão and Ana Regina Lessa. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2019. complementa: “Mas todos esses usos da cultura tradicional seriam impossíveis sem um fenômeno básico: a continuidade da produção de artesãos, músicos, bailarinos e poetas populares, interessados em manter sua herança e em renová-la”. Isso justifica o caráter social da manutenção da cultura popular, bem como implica sobre os aspectos econômicos referentes à sobrevivência dos agentes desse setor da cadeia cultural.

Muito embora o mamulengo não fosse utilizado como profissão em seus primórdios, hoje em dia ele já aparece socialmente como fator de sustentabilidade para os bonequeiros populares, que comumente vendem bonecos e outros objetos relacionados (brinquedos populares, máscaras, itens decorativos, bens de consumo etc.) em seus ateliês/lojas, recebem cachês provenientes de apresentações em eventos culturais, recorrem a leis de incentivo público por meio de editais de salvaguarda etc.

A ideia é manter a linguagem viva, visto que ela pretende, desde o início, representar o Nordeste (como território geográfico – físico e subjetivo – e corporal) e representar o povo nordestino em forma de bonecos, para nos remeter ao já citado livro do mestre Fernando Augusto Gonçalves Santos (1947-2022), do Mamulengo Só-Riso (PE), Mamulengo, um povo em forma de boneco (1979). Entendo que isso compõe, paradoxalmente, uma corrente de persistências e variações, como disse Rabetti (2000, p. 12)RABETTI, Beti. Memória e culturas do “popular” no teatro: o típico e as técnicas. O Percevejo, n. 8, year 8, p. 3-18, 2000. sobre o teatro popular, conforme o tempo, a sociedade e os avanços tecnológicos, para que essa arte faça sentido também nos dias de hoje.

Com a atuação do Mamulengo de Cheiroso em Sergipe, proponho a ideia de ressemântica, na perspectiva de um novo olhar, um novo sentido. Ou de um olhar que dá sentido, também no tempo presente, ao mamulengo, aos seus contextos e desdobramentos. Desse modo, investe-se para que o mamulengo não corra o risco de assumir uma dimensão folclórica, do passado, quase como uma lenda, um mito ou um registro de um fenômeno que já se encerrou. Ao contrário, que seja algo que se transforme e continue a acontecer, num constante aprimoramento da técnica do teatro de bonecos associada à dimensão identitária do povo do Nordeste, atravessando o tempo e as gerações.

Algumas considerações

Este artigo objetivou desembaraçar os fios do campo teórico acerca da cultura popular no específico caso do Grupo Mamulengo de Cheiroso de Teatro de Bonecos (Aracaju/SE), ao mesmo tempo que ajudou a complexizar os assuntos aqui abordados, visto que pôs em xeque conceitos que podem ser engessados e tidos como unicamente opostos, tais como as noções de popular e erudito.

Por meio das discussões fomentadas neste artigo, podemos ter uma visão crítica e atualizada acerca do teatro popular, que pode se manifestar de diferentes modos, em diferentes lugares e contextos; o que destoa de uma visão estereotipada, largamente homogênea, acerca desses fenômenos, decorrente de uma produção literária que aborda a história sob a óptica da cultura letrada.

Constatamos que a manutenção e disseminação do mamulengo segue um fluxo contínuo da natureza de autotransformação da cultura popular. Ainda que, na perspectiva de um elitismo classista, a cultura popular seja inferiorizada até hoje; ou, em contraponto, seja estrategicamente enaltecida, porém como vítima de um miserabilismo, que se alimenta cada vez mais das vantagens existentes quando da separação de valor entre o erudito e o popular.

Grupo que nasceu na universidade, espaço que tem como pilares o ensino, a pesquisa e a extensão, o Mamulengo de Cheiroso se sustenta também nesses vieses, ao passo que, da sua origem até seus 45 anos de exercício na atualidade, investe em ações formativas em prol de educação estética sensível; nutre uma prática coletiva de pesquisa na área da cultura popular sergipana e do teatro de animação; continua na fomentação de espetáculos teatrais, de cunho popular e aspiração identitária, ocupando diversos espaços da cidade de Aracaju e do estado de Sergipe, sobretudo aqueles espaços nos quais o público, o povo, pode se reunir e partilhar, coletivamente, da fruição artística de uma obra teatral, festiva, popular.

Disponibilidade dos dados da pesquisa:

o conjunto de dados de apoio aos resultados deste estudo está publicado no próprio artigo.

Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.

Notas

  • 1
    Disponível em: https://www.instagram.com/p/CQKNeW9h4en/. Acesso em: 19 jun. 2021.
  • 2
    Na ocasião, ainda não existia o curso de Licenciatura em Teatro na UFS, implantado só em 2007, no campus Laranjeiras, decorrente da criação do Núcleo de Teatro. Sendo que, em 2017, o Núcleo foi transferido para o campus São Cristóvão, e, na ocasião, tornou-se o atual Departamento de Teatro (DTE).
  • 3
    A escola é situada ao lado de onde é hoje o campus São Cristóvão da UFS, e recebe, inclusive, estagiários da Licenciatura em Teatro que desenvolvem intervenções artístico-pedagógicas.
  • 4
    Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/003581/52579. Acesso em: 19 dez. 2022.
  • 5
    Rua do Igaruana, nº 127, bairro Aeroporto, Aracaju/SE.
  • 6
    Existem diferenças entre as formas de fazer e brincar o teatro de bonecos popular do Nordeste, de acordo com os demais estados onde se encontra (Cassimiro Coco, no Maranhão, Piauí e Sergipe; João Redondo, no Rio Grande do Norte e Paraíba; Mané Gostoso, na Bahia; Babau e Mamulengo, em Pernambuco), e essas variações devem ser reconhecidas e respeitadas. Entretanto, escolho usar o termo mamulengo para me referir ao brinquedo por ser a nomenclatura de batismo no estado de Pernambuco, onde ele surgiu e do qual se expandiu (IPHAN, 2014IPHAN. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Registro do Teatro de Bonecos Popular do Nordeste – Mamulengo, Babau, João Redondo e Cassimiro Coco: dossiê interpretativo. Brasília: IPHAN, 2014.; Lima, 2009LIMA, Marcondes. A arte do brincador. Recife: Sesc, 2009.).
  • 7
    Disponível em: https://www.instagram.com/p/CJWrLWqhNWt/. Acesso em: 19 jun. 2021.
  • 8
    Além deste termo, são utilizados outros: folgazão, brincante, ator-animador e mamulengueiro, este último ligado também ao artesão que confecciona os mamulengos (bonequeiros).
  • 9
    Também chamada de tenda, tolda ou barraca, é a estrutura que serve de palco para os bonecos.
  • 10
    Entidade que articula bonequeiros e demais artistas do teatro de animação, em âmbito nacional. A ABTB representa, no Brasil, a Union Internacionale de la Marionette (UNIMA), entidade que congrega associações e titeriteiros do mundo todo, criada em 1929.
  • 11
    Na pesquisa, encontrei dois possíveis nomes de batismo de Cheiroso: segundo uma fonte, Severino Francisco da Silva (Balzoni Filho, 1947, p. 92BALZONI FILHO, F. Mamulengo: a poesia do Nordeste. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, p. 91-96, 27 Dec. 1947. Available at: http://memoria.bn.br/DocReader/003581/52579. Accessed on: Dec. 19, 2022.
    http://memoria.bn.br/DocReader/003581/52...
    ), ou, como em outro documento, Amaro Branco (Cunha, 1952, p. 9CUNHA, Armando. Necrológio de um que foi pro céu. Diário de Pernambuco, Recife, Aug. 24, 1952. Available at: http://memoria.bn.br/DocReader/029033_13/12329. Accessed on: Mar. 26, 2023.
    http://memoria.bn.br/DocReader/029033_13...
    ).
  • 12
    “Por fim, Abrahams considera como Teatro Folclórico (que pode ser também chamado de Teatro do Povo, como prefere Camarotti, ou Teatro da Gente) aquele que é praticado em pequenas comunidades, onde atores e público comungam uma mesma cosmovisão. Ele é realizado e mantido segundo preceitos de uma tradição e suas apresentações ocorrem em ocasiões especiais, geralmente em festas tradicionais” (Lima, 2009, p. 31LIMA, Marcondes. A arte do brincador. Recife: Sesc, 2009.).

Referências

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  • BALZONI FILHO, F. Mamulengo: a poesia do Nordeste. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, p. 91-96, 27 Dec. 1947. Available at: http://memoria.bn.br/DocReader/003581/52579. Accessed on: Dec. 19, 2022.
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    » http://memoria.bn.br/docreader/003581/52579.
Editora responsável: Celina Nunes de Alcântara

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    31 Jan 2023
  • Aceito
    15 Jun 2023
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