Resumo:
O artigo examina criticamente a mais recente inclusão ao repertório do Odin Teatret, The Tree (2016). Objetiva investigar as maneiras como os processos de decisão dramatúrgicas de Barba criam um campo de performance que comenta metaforicamente o status do grupo hoje ao criticar a geopolítica contemporânea. Discute-se que noções de interculturalismo - que têm sido usadas muitas vezes por estudiosos para criticar o trabalho do Odin - não abordam a total complexidade da concatenação incorporada da prática do grupo, e emprega-se o termo intersticial para efetivamente articular o complexo espaço produzido pela formação e performances do grupo.
Palavras-chave: Odin Teatret; Instersticial; The Tree; Dramaturgia; Turbulência
Abstract:
This article aims to critically engage with Odin Teatret’s most recent addition to the repertoire, The Tree (2016), in order to investigate the ways in which Barba’s dramaturgical decision-making processes create a performance field that metaphorically comments on the status of the group today whilst critiquing contemporary geo-politics. Importantly, we argue that notions of interculturalism - which have often been employed by scholars to critique the Odin’s work - do not address the full complexity of the embodied concatenation of the group’s practice, and we employ the term interstitial to more effectively articulate the complex space produced by the group’s training and performances.
Keywords: Odin Teatret; Interstitial; The Tree; Dramaturgy; Turbulence
Résumé :
Cet article examine de manière critique l’œuvre la plus récente à intégrer le répertoire de l’Odin Teatret, The Tree (2016). Son objectif est d’étudier comment les processus de prise de décisions dramurgiques de Barba créent un champ de performance qui devient un commentaire métaphorique du statut du groupe aujourd’hui, en faisant une critique de la géopolitique contemporaine. Le texte observe que les notions d’interculturalisme - qui ont souvent été utilisées par les chercheurs pour critiquer le travail de l’Odin - n’intègrent pas toute la complexité de la concaténation incarnée dans la pratique du groupe, et le terme interstitiel est utilisé pour exprimer l’espace complexe produit par la formation et les performances du groupe.
Mots-clés: Odin Teatret; Interstitiel; The Tree; Dramaturgie; Turbulence
Introdução
Após 55 anos de existência, ainda subsiste um considerável corpo de escritos que enfocam a práxis do Odin Teatret, e o grupo consolidou uma importante posição para si no Teatro Mundial. O Diretor Artístico do grupo, Eugenio Barba, é um autor prolífico (Barba, 1986; 1995; 1999; 2010), e muitas atrizes do Odin publicaram mais recentemente livros sobre suas práticas (Carreri, 2014; Rasmussen, 2017; Varley, 2011). Além disso, estudiosos anglófonos como Chemi (2018), Christoffersen (1993), Ledger (2012), Turner (2018) e Watson (1993) publicaram importantes trabalhos que enfocam o rol de atividades diferentes em que o Odin foi pioneiro e desenvolveu como teatro laboratório. Além disso, os Arquivos do Odin Teatret (OTA), sediados em Holstebro e na Real Biblioteca da Dinamarca em Copenhagen, que são trazidos ao primeiro plano em uma publicação recente da estudiosa italiana Mirella Schino (2018), documentam em detalhe as extensas atividades do grupo.
Entretanto, apesar da grande atenção dedicada ao ofício de ator do Odin, à abordagem singular de Barba como diretor e, mais recentemente, às atividades participativas desenvolvidas pelo grupo (como o festival Festuge em Holstebro, na Dinamarca, realizado a cada três anos), houve menos análises acadêmicas das performances do Odin, particularmente das produções mais recentes. Assim, este artigo objetiva analisar criticamente a mais recente produção incluída no repertório do Odin Teatret, The Tree (2016), de modo a investigar as maneiras como os processos de tomada de decisão dramatúrgica de Barba criam um campo de performance que comenta metaforicamente tanto o status atual do grupo como faz uma crítica à geopolítica contemporânea. Discutimos que as noções de interculturalismo - que muitas vezes são usadas por estudiosos para criticar o trabalho do Odin - não abordam a total complexidade da concatenação incorporada da prática do grupo, e empregamos o termo intersticial para articular de maneira mais efetiva o complexo espaço produzido pela formação e performances do grupo.
Ao invés de uma forma intercultural de teatro ou um modelo exemplar de entrelaçamento de culturas, a prática do Odin deve ser considerada como uma pequena tradição de performance cultural baseada em uma ruptura intersticial tanto em nível macro de estrutura dramatúrgica como em nível micro de técnica pessoal, profissional. As performances do Odin Teatret não podem ser compreendidas como uma baboseira intercultural redutora; o foco na técnica psicofísica e no ofício do ator é muito forte. Além disso, a ênfase na exploração continuada nas práticas dramatúrgicas do Odin permite a renovação constante e encontros proveitosos com a diferença. É precisamente nesse ponto que se encontra o agenciamento do intérprete; seja o intérprete oriundo de uma tradição teatral ocidental ou de uma forma tradicional de performance asiática codificada, ainda são obrigados por Barba a sair de sua zona do conforto e encontrar o Novo, que muitas vezes pode ser uma experiência desconfortável, desorientadora. Mesmo depois de cinco décadas de existência, o Odin, talvez um dos mais expressivos grupos do Terceiro Teatro7, ainda tem coragem de experimentar e errar, de assumir riscos e reinventar-se, existindo nos interstícios como uma forma permanente de engajamento ético e revolta.
Intercultural ou Intersticial?
Durante os assim-chamados debates interculturais das décadas de 1990 e 2000, diversos estudiosos atacaram o que consideravam como a apropriação neocolonial que destacava o trabalho de artistas como Mnouchkine, Grotowski, Brook e Barba. Bharucha (1993) e Marranca e Dasgupta (1991), entre outros, publicaram veementes críticas que indicavam com legitimidade os fantasmas da iniquidade colonial e do orientalismo que assombram a performance de profissionais do teatro europeus brancos. Para Pavis (1996), o próprio termo teatro intercultural estava alinhado com a prática de autores europeus, inclusive Barba.
Mais recentemente, Erika Fischer-Lichte voltou-se para um projeto novo intitulado Interweaving Performance Cultures. Nesse projeto, ela está interessada na intermediação da performance, achando problemático o termo teatro intercultural devido aos pressupostos estéticos e políticos considerados por ela como subjacentes ao teatro intercultural ou híbrido. Conforme diz na coletânea publicada em 2014, “Muitos fios são trançados em uma linha; muitas destas linhas são então tecidas em um pedaço de tecido, que assim consiste em diversos fios e linhas […] sem necessariamente continuar reconhecível individualmente” (Fischer-Lichte; Jost; Jain, 2014, p. 11).
O problema do termo intercultural, como uma forma abreviada englobando práticas teatrais complexas, é sua proveniência do campo das ciências sociais e o fato de que não consegue fazer justiça ao complexo jogo de negociação cultural que ocorre no microcosmo do corpo do ator em formação e no palco. Embora o projeto Interweaving Performance Cultures de Fischer-Lichte seja um modelo mais sutil e bem-sucedido, que extrai do campo do teatro o tecido teatral que resulta desse processo de tessitura, corre o risco de resolver a diferença e, com isso, ofuscar o que Barba (1999) e Cláudia Tatinge Nascimento (2009) denominaram estrangeiridade.
Tanto Barba como Nascimento empregam o termo estrangeiridade para evocar o duplo estranhamento do profissional de teatro laboratório tanto entre suas próprias raízes culturais e as convenções do teatro dominante (hegemônico). De acordo com Nascimento (2009, p. 9), o conceito de estrangeiridade encapsula.
[…] uma situação de estranhamento simultâneo […] pelo sistemático cruzamento de fronteira cultural, o envolvimento com culturas estrangeiras termina por ativar um sentido de familiaridade […].
Entretanto, esse sentido de resolução, de familiaridade com a cultura estrangeira, é problematizado por Barba. Para ele, a estrangeiridade conota um espaço no entre, um estranhamento a partir de si, um processo permanente de exílio e questionamento pela arte. Em A Premise on Written Silence (1986), Barba conecta explicitamente a estrangeiridade com seu conceito de ilhas flutuantes, uma ideia de uma comunidade transnacional de artistas com mentalidade semelhante e que fosse informada por seu mapeamento da comunidade do Terceiro Teatro. Forçado a admitir que seu trabalho é intercultural ou multicultural durante uma conversa com Ian Watson (2002), publicada no livro Negotiating Cultures: Eugenio Barba and the intercultural debate, Barba responde:
Somente um modo preguiçoso de pensar tentaria explicar a complexidade, a continuidade, a consistência, assim como os resultados muitas vezes contraditórios de nosso grupo por meio da fórmula mágica ‘intercultural’ […] A palavra ‘intercultural’ como instrumento cognitivo ou ferramenta de análise não ajuda em nada a esclarecer, interpretar ou explicar a identidade profissional específica das pessoas do Odin (Barba apud Watson, 2002, p. 238-239).
Preocupados com as maneiras pelas quais a noção de teatro intercultural excluiu e desconsiderou tantos aspectos do trabalho desenvolvido por grupos do Terceiro Teatro como o Odin, temos cada vez mais empregado a noção de intersticial para apreciar plenamente a complexa riqueza dos diversos modos de formação e de práticas dramatúrgicas desenvolvidas pelos membros do Odin e pela comunidade internacional ampliada do Terceiro Teatro. A palavra interstícios se refere tanto ao espaço entre dois objetos físicos, uma brecha ou ruptura em um fenômeno que seria contínuo, ou um hiato temporal entre acontecimentos. É essa fusão de diferença e inter-relação espacial, fenomênica e temporal, que é particularmente interessante, pois refuta a lógica binária que muitas vezes fundamentou os modelos linguísticos que informam uma grande parte da teoria crítica e dos Debates Interculturais da década de 1990 e começo da década de 2000. Não estamos contestando as estruturas binárias de poder, frequentemente invisíveis, que são reveladas com muita clareza pelo discurso pós-colonial nem os modos como os processos interculturais de negociação podem gerar formas híbridas. No entanto, também acreditamos que o termo hibridismo pode negligenciar ou excluir formas de performance cultural que não são mesclas ou cadinhos, e são embasadas em um processo investigativo continuado, não em um produto palatável.
Assim, apesar de haver óbvias ressonâncias com a alegoria do entrelaçamento de Fischer-Lichte, os interstícios permitem ruptura e conflito, ao invés de uma trama eficaz composta de diferentes fios culturais. O trabalho consistente sobre formas de performance antigas e novas sempre pode produzir algo inesperado. A questão é estar constantemente em busca de brechas, do novo, do espaço intersticial que obriga o artista a recriar-se como uma fênix.
Conforme foi discutido por Shaviro (2010), os interstícios representam uma ruptura com a capacidade de revelar algo radicalmente novo8. Essa futuridade, que aparece nas brechas que permeiam a causalidade, escapa à nossa capacidade de analisar e reparar. Essa não-causalidade é incômoda para uma sensibilidade ocidental, pois nossa trajetória filosófica desde Platão tem fundamentalmente olhado para trás, não para a frente (Shaviro, 2010). Nossa sociedade tende a congelar e fossilizar a cultura, enaltecendo o habitual e o estabelecido. Muitas vezes a performance é enquadrada como um repertório arquivístico e não como um repertório cultural vivo que busca a renovação ao invés da mera repetição. Tornar-se em vez de ser, processo e não produto, é um desafio ao hegemônico, mas também o alicerce do Terceiro Teatro e das tradições do teatro laboratório. Não há nenhuma pureza cultural embasando o Terceiro Teatro e a prática do Odin em especial - nenhuma fixidez, mas sim uma forma de sustentação da fluidez. Embora determinados processos - exercícios de treinamento, aproximações à montagem - possam ter uma forma que surge de uma perspectiva externa para ser reparada, na realidade esses processos vivos sempre são fluidos e mutáveis, dançados e cantados na existência pelos corpos-em-vida dos profissionais.
O corpo-em-vida equivale à noção do país da velocidade de Barba, descrita por ele como “[...] raízes e sombras que vagueiam em minha cidade interna, naquele território pequeno e sem fronteiras delimitado por minha pele, meus nervos e músculos, em um microcosmo pessoal e incomunicável: o país da velocidade, meu corpo-em-vida” (Barba, 2010, p. 14). Isso não é egocentrismo extremo, uma bolha voltada para dentro ou algum apelo ao transculturalismo; a eficácia desse país da velocidade é que resulta de práxis e de pesquisa continuadas e incorporadas capazes de prender o ator no palco com sua biografia cênica, sua capacidade de alcançar o espectador com sua presença, fruto de seu ofício em constante evolução. Parte desse ofício em evolução encontra-se nos interstícios de relações interpessoais; adaptar-se aos outros atores no palco, dar espaço a outras formas culturais e de performance sem ter que se perder nelas nem se amalgamar a elas com perfeição.
A natureza intersticial da prática do Terceiro Teatro e da poética do Odin propicia o surgimento do Novo radical, mesmo depois de cinco décadas de prática em conjunto. Entretanto, é importante manter a distinção entre novidade e o Novo - por Novo estamos falando de revolta radical, uma forma de ruptura com o passado que somente pode emergir quando forma, rigor e disciplina estiverem profundamente incorporados através de anos de prática investigativa. O perigo é que, ao adotar a novidade superficial, exótica, uma abordagem de diletante ao nosso campo, celebramos a mudança sem integralidade ou profundidade de pesquisa. No exemplo do Odin, temos artesãos nômades que não param; investem em técnica para continuar a inventar e seguir em frente.
O Odin Teatret e The Tree (2000)
The Tree, performance de 2016 do Odin Teatret, é a parte final de uma trilogia de trabalho intitulada The Trilogy of the Innocents: the innocence of war and of its victims9. Em sua avaliação do trabalho, o grupo questiona inocência e culpabilidade. A guerra é criminosa, uma mera engrenagem no conjunto maquínico da guerra, tão inocente quanto as vítimas de crimes de guerra? E quanto aos espectadores na poltrona que assistem a performance da guerra transmitida pela televisão e pela mídia digital - qual é nosso papel neste espetáculo? Qual é a responsabilidade do artista e do profissional de teatro em particular?
É evidente que o conceito narrativo de The Tree parece ilusoriamente simples, quase mínimo; personagens discrepantes se reúnem em torno de uma árvore aparentemente estéril, pensando em como trazer os pássaros de volta. De acordo com o programa da performance, monges Yazidi estão junto com um Senhor da Guerra europeu e um africano, uma mulher Igbo da Nigéria, a filha de um Poeta e seu alter ego mais jovem, dois Narradores e um Deus ex Machina. Isso não é incomum no trabalho do Odin, que muitas vezes reúne personagens aparentemente sem relação entre si, alegóricos no espaço cênico. A dramaturgia que se segue sempre é muito mais complexa do que a premissa inicial pode sugerir.
O que é incomum nessa performance é o predomínio de um elemento cênico maciço - a árvore, colocada no centro do palco, domina e perturba o fluxo da montagem e as partituras orgânicas dos atores. Assim como a árvore, que é montada a partir de seus galhos cobertos com ursinhos de pelúcia e bonecas antes de ser derrubada por uma motosserra, diversos panos brancos grandes adornam o espaço e, a certa altura, são estendidos sobre a plateia, que pode inserir a cabeça em cortes no tecido, antes de, mais tarde, serem enrolados em torno da base da árvore como nuvens. Muito do trabalho dos atores consiste em usar esses elementos cênicos de controle muito difícil, e a parafernália no espaço muitas vezes ameaça roubar a atenção da virtuosa fisicalidade reconhecida no trabalho do grupo.
Além de artistas fixos, The Tree apresenta a estreia dos jovens atores Carolina Pizarro e Luis Alonso do Chile, bem como o renomado intérprete balinês I Wayan Bawa e Parvathy Baul, cantora, pintora e narradora da Bengala Ocidental. Assim, vários intérpretes de diferentes tradições se reúnem sob os auspícios do Odin Teatret; isso dá continuidade a uma tendência familiar, a reunião de atores de diferentes origens culturais. É a primeira vez, entretanto, em que dois intérpretes impregnados em duas formas codificadas de performance asiática se juntaram ao grupo Odin10.
Isso poderia ser considerado como ilustrativo do teatro intercultural ou do entrelaçamento de culturas; as canções tradicionais de Baul se entrelaçam com canções folclóricas italianas e música europeia clássica; atores com uma compreensão profunda da técnica psicofísica do Odin Teatret são confrontados com um artista balinês que se embasa na tradição Gambuh. Contudo, não se trata de nenhum entrelaçamento homogeneizador, que é resolvido de forma híbrida; ao contrário, o texto da performance é caracterizado por interstícios, rupturas e lacunas tanto em nível narrativo como dinâmico. Muitas vezes, os atores são combinados no palco de maneira a justapor ou borrar suas técnicas distintas, seus corpos-em-vida, elevando e ao mesmo tempo distorcendo a diferença cultural. As canções devocionais de Parvathy Baul misturam-se com o canto folclórico anasalado italiano de Elena Floris, e às vezes é difícil distinguir os dois. A elevada fisicalidade e presença cênica de Kai Bredholt é muito diferente das partituras codificadas de Bawa, mas compartilham uma energia e uma dinâmica. Com seus cabelos compridos esvoaçantes e indumentárias disformes, às vezes os monges Yazidi, Julia Varley e Donald Kitt, são indistinguíveis, compartilhando uma energia branda, manis11 no entorno. E existe um espelhamento realmente interessante entre Iben Nagel Rasmussen e seu eu mais jovem, interpretado por Carolina Pizarro, a menina que anseia por voar, mas está presa na fisicalidade de seu avatar mais velho.
Bawa não consegue apenas reproduzir uma performance Gambuh em The Tree; ele precisa adaptar seu material codificado de acordo com as exigências da performance e de sua relação cênica com os outros atores. Pizarro passou por uma formação em profundidade na arte marcial indiana Kalaripyattu e isso permanece como traço em seu corpo no palco. Para Rasmussen, Varley e Kitt, a virtuosidade física evidente do ator do Odin é limitada pela penosidade das tarefas servis geradas pela manipulação dos objetos cênicos. Os atores transformam-se, de fato, em engrenagens no conjunto maquínico do texto da performance. Conforme Barba sugere, “A profusão e a confusão de material e de tendências é a única maneira de chegar à ação nua e essencial” (Barba, 2000, p. 62). A densidade da partitura orgânica permanece, porém, de uma maneira altamente concisa. Tudo isso faz parte da turbulência - a inquietação do ator, a busca pelo Novo através de brechas e supressões na técnica e os encontros entre profissionais diferentes na dramaturgia.
Esses interstícios não são apenas culturais e não são mostrados como tal no espaço cênico abarrotado. Embora o trabalho de Barba com Theatrum Mundi tenha sido acusado de ser um espetáculo de exótica performativa (Turner, 2018), The Tree, como performance laboratório obriga todos os atores a encontrar respostas intersticiais aos desafios desse contexto cênico novo. Apesar da inimitável fisicalidade de Roberta Carreri resplandecer, seu trabalho vocal é um começo; ela explora um ressonador vocal gutural que dá uma qualidade muito particular ao seu trabalho como mulher Igbo. Nas anotações do programa, ela comenta sobre sua frustração durante o processo de desenvolvimento de uma partitura para a peça porque foi provocada a deixar para trás antigos traços físicos e vocais de performances anteriores. A jornada técnica transforma-se em uma rejeição da técnica do virtuoso, desenvolvida por ela ao longo de décadas; ela vivencia o trabalho como “impreciso, inseguro, ineficiente” (Carreri apud Odin Teatret Træet, 2016, p. 30).
As provocações de Barba levaram Carreri a um espaço intersticial, desconcertante e caótico, rompendo com a causalidade da técnica incorporada profundamente aprendida. Esse esquecimento necessário da técnica é vivenciado como uma violação pelo grupo inteiro; Barba, como Carreri, revela:
É impossível desaprender. Passei metade da vida tentando aprender, e a outra metade esforçando-me para ir além do que aprendi. Reflexões, pensamentos, métodos e soluções retornam constantemente em meu trabalho com um gosto reconhecível. Sinto que faz parte da condição humana pertencer à família das árvores que mudam suas folhas e mantêm suas raízes. Tento modificar minhas ideias, expressá-las em formas, ritmos e modos diferentes, usar meu conhecimento de uma maneira paradoxal. Mas as raízes afundam firmemente nas profundezas do meu ser (Barba apud Odin Teatret Træet, 2016, p. 13).
A metáfora da árvore é potente no discurso de Barba e na performance como um todo. Inicialmente, os ramos da árvore estão dispersos no espaço, assumindo a aparência de membros humanos dispersos em uma paisagem devastada pela guerra. Essa imagem é amplificada pela voz em off gravada, que alude às atrocidades da guerra e à tendência primordial de matar. No decorrer da performance, a árvore é montada pelos monges Yazidi; é habitada pela filha do poeta, cujo corpo se desloca para acomodar os galhos; ela promove um piquenique de ursos de pelúcia antes que sejam sacrificados e decapitados, e a árvore finalmente é derrubada quando uma figura semelhante a Cristo - um dos monges Yazidi - é crucificada. A penúltima imagem da performance é a versão mais jovem da filha do Poeta pendurada de cabeça para baixo na árvore destroçada, como alguma Fruta Estranha, ou talvez o deus Odin, pendurada de cabeça para baixo nos galhos de Ygdrassil, a árvore do mundo, em busca de antevisão e conhecimento. Embora não possa voar, canções de pássaros gravadas enchem o espaço. As aves retornaram. A performance termina de maneira prosaica, com o ator que interpreta Deus ex Machina limpando os detritos.
A árvore destroçada está impregnada do ofício esquartejado do ator, do desafio de ter que reconstruir a técnica incorporada a cada nova performance, buscando pelas rupturas intersticiais que permitam a futuridade e a renovação. A árvore fragmentada também se equipara ao desafio de Barba de tecer os fios muitas vezes desconectadas em uma trama e, ao mesmo tempo, puxar os fios soltos, abrindo feridas no corpo da performance, recusando-se a amarrar ordenadamente os fios narrativos. Ao falar sobre a pintura de Velázquez e sua capacidade de aparentemente suspender figuras no ar, Barba questiona “[…] como podemos criar um efeito similar, de um vazio em torno do essencial” (Odin Teatret Træet, 2016, p. 11). Esse vazio é outro exemplo do intersticial; o incômodo entre o que aliena o espectador e o ator do familiar, permitindo um encontro com a estrangeiridade.
Os soldados-criança são incorporados no palco por marionetes manipuladas pelos atores que representam os Senhores da Guerra; seus corpos de madeira são suspensos no espaço, dependentes da destreza dos atores para trazer suas formas, semelhantes a fantasmas, à vida cênica. Como os ursinhos de pelúcia e os monges beatíficos, a justaposição entre esses personagens inocentes e os objetos cênicos por um lado, e os horrorosos crimes de guerra explorados dramaturgicamente por outro, é profundamente perturbadora. Existe uma triangulação interessante entre essas imagens cênicas e o programa da performance, baseado em relatos jornalísticos e reais de horrorosas atrocidades de guerra. O programa começa perguntando “Como deveríamos representar um sacrifício humano no teatro? Para exorcizar nossa angústia ou para demonstrar nossa indignação?” (Odin Teatret Træet, 2016, p. 4). O grotowskiano Ato Total, o sacrifício do ator no palco, sempre esteve no âmago da tradição do Terceiro Teatro; contudo, é como se o Odin questionasse as implicações éticas de se apropriar do sacrifício como uma alegoria metodológica ou um tópico temático. Como podemos até mesmo começar a contemplar (quanto mais invocar) a violência da guerra, a crueldade básica da humanidade, tão banalizada pela nossa cultura midiatizada?
The Tree não é inovadora de maneira eficaz - às vezes é pesada, quase derrotista, demonstrando como é fácil darmos as costas à desigualdade do mundo. Nossa atenção é tão errática como os pássaros esvoaçando no céu; todos nós nos ocupamos com tarefas diárias que racionalizamos como sendo importantes. De maneira semelhante, os atores estão precisando fazer o trabalho no espaço, construindo árvores e perdendo tempo com panos para, no fim, não ter efeito algum, pois a árvore é derrubada e continua estéril. A mensagem política da peça está nos interstícios de tudo isso, nas fissuras entre a performance, seu programa e as associações pessoais que evocam em nós.
Um elemento cênico particularmente desconcertante é a opção por ter todos os atores (exceto os Narradores) usando um nariz vermelho de palhaço. Iben Nagel Rasmussen (apud Odin Teatret Træet, 2016, p. 38) descreve sua reação inicial a essa inclusão tardia à conceituação visual da peça:
Quando, um a um, meus colegas avançavam no espaço de atuação e repetiam suas ações, canções e textos [usando os narizes vermelhos], alguma coisa se encaixou. Não poderia ter sido diferente. Guerra, limpeza étnica, crucifixões e decapitações apareceram com um distanciamento desconcertantemente inesperado. Pois, no meio destas depredações, as figuras apresentadas davam a impressão de ser quase insuportavelmente inocentes.
O uso do nariz de palhaço, nesse caso, não é uma importação de uma alegoria da comédia ou de um conjunto de habilidades relacionadas à arte da palhaçaria; não é outra camada de alguma técnica de performance híbrida perfeitamente entrelaçada. É uma ruptura tanto para o espectador como para o intérprete. Para um grupo que tem se dedicado à seriedade do ofício e do teatro como modo de vida, Barba está enfatizando a definitiva futilidade da arte? Ou isso é um gesto anárquico, não niilista - as rupturas intersticiais no texto da performance perturbam a ordem e o peso da história. Da mesma forma que a violência da guerra e do genocídio é não-causal, ilógica, a natureza absurdamente cíclica da existência significa que a renovação e as respostas criativas podem igualmente emergir nos interstícios. Esta é talvez uma característica-chave de teatros laboratório bem-sucedidos - confusão, caos e erro são tão importantes quanto resultados estéticos agradáveis. Ser deve dar lugar a um devir constante, muitas vezes doloroso.
Como é típico do trabalho do Odin, canção e música instrumental ao vivo é de importância particular. O som diegético assume um papel proeminente na produção devido ao espaço limitado para complexas partituras físicas de ação. Uma inclusão incomum a essa performance é uma voz em off gravada no começo da peça, traduzindo o texto dinamarquês do Senhor da Guerra europeu, narrada por Kai Bredholt. A voz do Senhor da Guerra é, assim, tanto ao vivo como virtual, incorporada e mediada, presente no espaço e de algum modo amortecida pela emissão vocal objetiva da voz gravada, reproduzida em um laptop na mão do intérprete Fausto Pro, o Deus ex Machina. Embora a narração de Bredholt seja áspera e dissonante, a voz em off é desprovida de afeto.
Essa justaposição entre exuberância vocal e monocórdica, quase como um cântico, retorna em diversos pontos da produção. Em seu papel como Joshua Milton Blahyi12, o famigerado General Butt Naked, um pastor sacerdote-e-Senhor da Guerra-e-evangélico tribal Bawa, entona um ritual de feitiço pontuado pelo soar de um sino. Esse cântico contínuo destaca diversas cenas e contrasta com a vivacidade das canções melódicas executadas pelos Narradores Parvati Baul e Elena Floris. Em um nível, as canções dos Narradores funcionam como uma fonte potencial de vida em comparação com a mortalidade da guerra, porém, é a justaposição constante de registos que abre espaço ao ceticismo. No fim da performance, por exemplo, depois de uma canção particularmente comovente, Floris pergunta a Parvati Baul de maneira bastante ríspida: “Terminou?”, e ambas as atrizes descem imediatamente para um registo mais prosaico ao ajudarem a limpar os detritos do cenário. É precisamente esse tipo de incongruência nas relações cênicas entre os atores que é estranhamente perturbador. Além disso, a falta de ação cênica simultânea (uma alegoria que as plateias familiares com o trabalho do Odin poderiam esperar) é um estranhamento desconcertante. O fato de que o grupo inteiro raramente, ou nunca, ocupe o espaço cênico junto fundamenta as relações entre pares de atores que são ambíguos e temperamentais.
Embora The Tree parta de um lugar de familiaridade - a voz jornalística em off, o som da artilharia que indica a representação mediada da guerra -, tudo é desfiado pelos super-sinais teatrais contrastantes criados no palco. O espaço cênico esparso poderia inicialmente ser a Síria, a África ou o Iraque, mas, à medida que a performance progride, tempo e lugar são borrados. É como se Barba estivesse brincando aqui com a tendência acima mencionada da filosofia ocidental de olhar para trás em vez de para frente; a voz jornalística em off e o relato de guerra no começo apontam para as maneiras como o trauma é congelado e fossilizado, até mesmo domesticado, por nossa cultura mediada, que pareceria no início reafirmar o cíclico, o eterno retorno da violência e seu consumo fácil por um ocidente mimado. Entretanto, os interstícios semânticos, as brechas no significado abertas pela dramaturgia obtusa de Barba, significam que não recebemos nenhuma resposta fácil. O céu desaba sobre nós - literalmente, em um momento na peça, quando os panos brancos suspensos do teto caem e são estendidos sobre a plateia. Aqui há uma alusão a Artaud, quando ele sugere que:
[…] ‘teatro da crueldade’ significa um teatro difícil e cruel para mim mesmo, antes de qualquer coisa. E, em nível de performance, não é a crueldade que podemos exercer uns sobre os outros ao invadir os corpos uns dos outros, esculpindo nossas anatomias pessoais, ou, como os imperadores assírios, enviando pelo correio pacotes com orelhas, narizes, ou narinas humanas cuidadosamente desmembradas, mas a crueldade muito mais terrível e necessária que as coisas podem exercer contra nós. Não somos livres. E o céu ainda pode desabar sobre nossas cabeças. E o teatro foi criado para nos ensinar isto mais do que qualquer coisa (Artaud, 1958, p. 79).
Assim, se o teatro de Barba já não é mais sobre o ato total do ator, seu autossacrifício no palco por meio de uma fisicalidade virtuosa, o texto da performance ainda está embasado na crueldade, compreendida aqui como uma luta turbulenta contra a banalidade cotidiana de violência epistêmica e disciplinar alienante. É essa crueldade que no fim caracteriza The Tree, articulação cênica do Teatro de Guerra pelo Odin Teatret.
Conclusão
Em The Deep Order Called Turbulence (2000), Barba fala da técnica como turbulência; “É a prática de uma desorientação lúcida e voluntária em busca de novos pontos de orientação” (Barba, 2000, p. 56). Esse estado de constante reorientação é descrito como uma revolta, “[...] sobretudo contra si mesmo, contra as próprias ideias, as próprias definições e planos, contra a reconfortante segurança da própria inteligência, conhecimento e sensibilidade” (Barba, 2000, p. 56). É essa revolta constante - semelhante à futuridade - que permite a liberdade. É também essa revolta que caracteriza os relatos que os artistas - tanto diretor como atores - fazem do trabalho em The Tree. Ao longo dos anos, Barba precisou ser turbulento, provocando seus atores e quase ordenando a eles a se revoltarem, mesmo quando sentiam uma resistência a isso, depois de seus anos de trabalho e formação pessoal.
Barba fala de uma relação entre ordem e caos, no âmago de seu teatro, que poderia ser considerada como intersticial. Diz ele, “[...] ordem e desordem são não duas opções contrárias, mas sim dois polos que coexistem e reforçam um ao outro reciprocamente. A qualidade da tensão criada entre eles é um indicativo da fertilidade do processo criativo” (Barba, 2000, p. 58). A turbulência pode parecer uma violação da ordem, porém, de fato é, de acordo com Barba (2000, p. 61), “ordem em movimento”. A turbulência continuada que caracteriza o trabalho do ator e do diretor no Terceiro Teatro, essa ordem em movimento, é, assim, uma forma de profunda alteridade. Não é a alteridade binária que separa pessoas de culturas diferentes, o fantasma do orientalismo que assombra os debates intercultural; essa alteridade profunda é a obrigação do artista de integrar consistentemente a alteridade por meio do estranhamento de adquirir, desenvolver e romper com a técnica incorporada. Dessa maneira, o ator e o diretor tornam-se estrangeiros, estranhos para si mesmos.
Referências bibliográficas
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Para uma revisão detalhada da aceitação contemporânea do Terceiro Teatro e do projeto de pesquisa em andamento dos autores, ver <www.third theatrenetwork.com>.
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As outras performances da trilogia incluemThe Great Cities Under the Moon(2003) e The Chronic Life (2011).
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Ur-Hamlet (2003-2009) foi outra produção do Odin Teatret que apresentava um conjunto de atores da Europa, da Ásia e da América Latina. Entretanto, esta performance surgiu dos eventos da ISTA e fundiu a pesquisa de Barba sobre o teatro eurasiano com o trabalho pedagógico do grupo com pessoas mais jovens. Sua genealogia, portanto, é bastante específica e diferente de The Tree, que é claramente uma produção interna, uma peça de câmara.
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Manisé uma palavra balinesa que denota uma forma de energia suave, delicada (energia em balinês é traduzido como bayu, que significa ‘vento interno’). Manis é um cognato do termo anima, que também é usado no trabalho da Escola Internacional de Antropologia do Teatro (ISTA) de Barba para descrever ações cênicas de energia suave que sustenta ações cênicas.
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Joshua Milton Blahyi, nascido em 30 de setembro de 1971, mais conhecido como General Butt Naked, é um antigo Senhor da Guerra pelas atrocidades que cometeu durante a Primeira Guerra Civil Liberiana (1989-1997). Antigo sacerdote tribal, tornou-se pastor evangélico após um pretenso despertar espiritual em 1996.
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Este artigo inédito, traduzido por Ananyr Porto Fajardo, também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
27 Jun 2019 -
Data do Fascículo
2019
Histórico
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Recebido
13 Nov 2018 -
Aceito
26 Mar 2019