RESUMO
Dança e racismo: apontamentos críticos sobre o ensino de história da dança1 - Este artigo elabora algumas breves considerações sobre o ensino de história da dança nas universidades. O objetivo é discutir o racismo institucionalizado nos ambientes de ensino superior em dança por meio de apontamentos críticos sobre os conteúdos, de natureza hegemônica e colonial, aplicados aos processos de ensino-aprendizagem da história da dança. Além disso, pretende-se chamar a atenção para a urgência da constituição de uma outra dimensão de produção de conhecimento, desejando garantir ampla visibilidade para histórias marginais e periféricas no contexto da educação em dança.
Palavras-chave: Universidade; Ensino; Racismo; História; Dança
RÉSUMÉ
Cet article élabore quelques brèves considérations sur l'enseignement de l'histoire de la danse dans les universités. L’objectif est de discuter le racisme institutionnalisé dans les milieux de l'enseignement supérieur en danse en formulant des remarques critiques au sujet des processus d'enseignement-apprentissage de l'histoire de la danse, qui font apparaître l’origine hégémonique et coloniale des contenus enseignés. Il s’agit en outre d’attirer l'attention sur l'urgence de créer une autre dimension de production de connaissances dans le but d’assurer une large visibilité aux histoires marginales et périphériques dans le cadre de l'enseignement de la danse.
Mots-clés: Université; Enseignement; Racisme; Histoire; Danse
ABSTRACT
This article elaborates some brief considerations on the teachings of dance history in universities. The goal is to discuss institutionalized racism in higher education dance environments through critical notes on the contents of a hegemonic and colonial nature applied to the teaching-learning of dance history. In addition, it aims to draw attention to the urgency of creating another dimension of knowledge production, in order to ensure that broad visibility is given to marginal and peripheral histories in the context of dance education.
Keywords: University; Teachings; Racism; History; Dance
Introdução
Este artigo elabora algumas breves considerações sobre o racismo estabelecido no ensino de história da dança. Meu interesse é discutir, especificamente, como o racismo se institucionaliza nos processos educacionais relacionados ao ensino de história da dança no contexto da formação universitária. Para tanto, à guisa de hipótese, acredito que os cursos superiores em dança são ambientes estruturados e marcados por lógicas de pensamentos normativos e coloniais, que buscam fortalecer projetos de dominação étnico-racial.
Por outro lado, declaro que todas as minhas ações de luta em favor da educação das relações étnico-raciais partem de um diálogo com as universidades. Trabalho no Curso de Licenciatura em Dança da Universidade Federal da Paraíba e percebo que os espaços de formação superior em dança, embora organizados por meio de orientações pedagógicas e normativas educacionais racistas, expressam, potencialmente, territorialidades críticas de resistência às posições hegemônicas. Pretendo, por isso, não apenas elaborar reflexões sobre o racismo institucionalizado nos ambientes de ensino superior em dança, como também compartilhar os esforços e as estratégias pedagógicas que venho desenvolvendo para garantir ampla visibilidade às histórias marginais e periféricas de ascendência africana no panorama da dança.
Conforme Aquino (2001), o ensino da dança na história das universidades brasileiras pode ser verificado apenas a partir da década de 1950, com a implantação do primeiro curso superior em dança no Brasil, na Universidade Federal da Bahia (1956). Donde se pode compreender que os esforços e atitudes críticas, que contrastam com a ideia da formação em dança nas universidades como projeto integralmente vinculado à reprodução das hegemonias epistemológicas, é um fenômeno ainda mais recente.
Parto do princípio de que é a partir dos anos 1980 que o contexto do ensino e da prática da dança desenvolvido nas universidades públicas brasileiras se torna campo representativo para formulação de pesquisas acadêmicas que buscam restaurar perspectivas pluriversais na produção do conhecimento e que remontam a uma orientação crítica aos impositivos coloniais. Destaco a criação do Grupo de Dança Odundê, fundado por estudantes negros da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia, nos anos 1980, e as proposições teórico-práticas pioneiras de Oliveira (1991), Santos (2002), Lobato (2002) e Damasceno (2003), como representações de lutas históricas que culminaram no fortalecimento de propostas antirracistas nas universidades de dança3.
Dito isso, vale sublinhar que, embora se tenha toda uma trajetória histórica de enfrentamento ao racismo nas universidades de dança do Brasil, liderada por profissionais atentas e atentos à urgência do fortalecimento de modos alternativos na produção do conhecimento, o que se verifica é a persistência de paradigmas racistas no contexto dos processos de ensino-aprendizagem de história da dança. Por isso, neste artigo, preocupo-me, inicialmente, em problematizar o racismo como base das referencialidades eurocêntricas instituídas por meio de narrativas históricas vigorosas que visam a manutenção do poder e a colonização dos imaginários e, em seguida, busco compartilhar práticas de implementação de perspectivas antirracistas para o ensino de história da dança.
Considero que o processo educacional vinculado ao ensino de história da dança tem sido utilizado, prioritariamente, para reproduzir práticas hegemônicas e, com isso, estabelecer territorialidades de dominação étnico-cultural e epistêmica que consolidam o entendimento da história a partir de uma narrativa branca e dominante, intrinsecamente, relacionada ao poder e à autoridade racial. Parto da compreensão de que o ensino de história da dança nas universidades não é baseado em conteúdos neutros e imparciais, sobretudo, quando se percebe que a própria universidade não é uma ambiência neutra (Kilomba, 2019), mas um espaço de discursos estéticos e culturais, predominantemente, brancos: um espaço de violência, que representa os abusos e distorções continuadas provenientes da exploração colonial, com currículos e projetos pedagógicos impregnados de racismo.
Assim, tendo-se em vista que o ensino de história da dança se estabelece como uma ambiência de narrativas, agentes e movimentos artísticos hegemônicos, proponho, neste artigo, a necessidade de reelaborarmos as práticas pedagógicas e os conteúdos vinculados à aprendizagem histórica da dança a partir da ideia da decolonialidade (Mota Neto, 2016; Bernardino-Costa et. al., 2020; Maldonado-Torres, 2020) e da afrocentricidade (Asante, 2009) como perspectivas que fortalecem a resistência à colonização do ser, do saber e do poder. Também, o recentramento histórico e cultural das pessoas de ascendência africana situadas na periferia do contexto educacional em dança pelos impositivos da colonialidade.
Colonialidade e Racismo
A colonialidade tem sido um conceito chave para pensarmos as relações de poder que se estabeleceram por meio do colonialismo, do capitalismo e da modernidade. Introduzida no panorama das Ciências Sociais, no final dos anos 1980, pelo sociólogo peruano Anibal Quijano, a ideia de colonialidade expressa um conjunto de processos que transcende as particularidades do colonialismo histórico e não desaparece com os procedimentos que formalizaram a independência das nações colonizadas.
Desse modo, a colonialidade é considerada como um dos elementos constitutivos de um padrão mundial eurocêntrico, que estrutura concepções de humanidade, segundo a qual as sociedades se diferenciam em irracionais e racionais, inferiores e superiores, primitivos e civilizados, tradicionais e modernos (Quijano, 2010). É, em suma, a colonização dos modos de existir, conhecer e agir que se expressa na invisibilização dos conhecimentos de povos tradicionais, na negação de direitos de existência às minorias étnicas, na contínua produção de estereótipos raciais que geram desativismos e desarticulações e, por conseguinte, na institucionalização do racismo como estrutura social.
De acordo com Quijano (2010), desde o século XVII, tem-se formalizado um modo de produzir conhecimento baseado em lógicas eurocêntricas que tem como base a noção de racionalidade. Esse modo de produção de conhecimento busca legitimar uma organização mundial monocêntrica pautada na valorização de determinadas expressões de saberes em detrimento de outras e na formação de uma geopolítica do conhecimento a partir de classificações étnico-raciais. A linhagem eurocêntrica de produção de conhecimento baseia-se em princípios relacionados com a configuração de formas e elementos historicamente homogêneos, que concedem, à ciência moderna, o monopólio da distinção universal entre o verdadeiro e o falso em detrimento de outros conhecimentos alternativos e invisibilizados.
Por sua vez, Bernardino-Costa et al. (2020) e Grosfoguel (2006) defendem a ideia de que o racismo é um princípio organizador dessa geopolítica da produção de conhecimento cuja base histórica mais acirrada encontra-se na formulação de Descartes, elaborada em 1637: penso, logo existo. Para os autores, a expressão representa a base da tradição de pensamento que se imagina produzindo um conhecimento universal através da ideia do homem, igualmente, universal e desracializado.
A lógica do penso, logo existo se assenta na perspectiva de que outros não pensam e, por conseguinte, não existem, fundando uma divisão radical entre aqueles que são capazes de produzir conhecimento universalizável e aqueles que são incapazes, aqueles que existem e os outros que inexistem. Isso converte a invisibilização de cosmovisões não-hegemônicas em instrumento de política de desaparecimento, violência e morte das populações racialmente minoritárias (Bernardino-Costa et al., 2020).
Verifico, portanto, que o conceito de colonialidade emerge para representar a continuidade da exploração colonial, por meio da invasão do imaginário do outro, ou seja, sua ocidentalização. Em outras palavras, a colonialidade é como um dispositivo que se mantém ativo, mesmo com a emancipação política e jurídica dos territórios colonizados, constituindo-se não como um arranjo cognitivo exclusivo dos europeus, mas também das subjetividades historicamente colonizadas e educadas sob a sua hegemonia.
A colonialidade naturaliza a experiência dos indivíduos com esse padrão de dominação, tornando-a natural e não suscetível de ser questionada (Quijano, 2010), operando a sedução pela cultura colonialista, a subalternização epistêmica do outro não-europeu e o esquecimento de processos históricos não-brancos. Os efeitos da colonialidade se referem não apenas ao estabelecimento do eurocentrismo como referência universal, normativa e desracializada no contexto epistêmico, estético, artístico, filosófico, religioso, político, econômico, histórico, existencial e social, como também com o fortalecimento das estratégias de controle social que atribuem, às pessoas de qualquer outro grupo étnico, uma condição de subalternidade, inferioridade e invisibilização.
No livro intitulado Pele Negra, Máscaras Brancas, Fanon (2008) reflete sobre os efeitos derivados do colonialismo moderno, analisando as condições de vida das pessoas negras na sociedade e os modos a partir dos quais as invasões coloniais estabeleceram um conjunto de alienações e complexos, por meio dos quais as culturas dominantes impuseram aos grupos étnicos minoritários a insígnia da anormalidade e difundiram a ideia de que as classificações e o valores da cultura ocidental branca seriam os únicos verdadeiros. Os estudos elaborados por Fanon (2008) apontam que o racismo difundido com o colonialismo europeu moderno operou com a construção de diferenças por meio da origem racial em um contexto social em que a branquitude4 foi definida como norma e os demais grupos racialmente identificados foram compreendidos como desvio. Essas diferenças, de acordo com Kilomba (2019), encontram-se ainda hoje associadas aos valores hierárquicos que determinam sentidos socialmente compartilhados e que podem gerar marginalidade, estigma, desonra racial e inferioridade ou centralidade, honra racial e superioridade, a depender do grupo étnico ao qual os indivíduos pertençam. O que me leva a identificar o racismo como uma engenharia cultural fundamentalmente política, que não prescinde do poder para gerar e estabelecer diferenças, preconceitos e discriminações.
Percebo, porém, que o campo dos debates críticos em dança, no Brasil, tem se desenvolvido, cada vez mais, em diálogo com perspectivas ou paradigmas radicais que exploram o pluriversalismo na formulação de categorias, conceitos, experiências e, com isso, estabelecem estratégias de combate ao racismo na produção do conhecimento. Recentemente, esses estudos passaram a apontar para os efeitos da colonização na produção do pensamento em dança (Oliveira; Laurentino, 2020; Silva, 2018), para a valorização dos processos históricos de origem africana na formação da dança brasileira (Ferraz, 2017; Santos, 2018; Silva, 2020), para a discussão de aspectos relacionados à pedagogia da dança a partir de perspectivas negras (Machado, 2017, Silva; Lima, 2021, Tavares; Dias, 2020); para o esforço de definir e mapear as práticas coreográficas de origem africana (Oliveira, 2017); dentre outros tantos temas relevantes.
A heterogeneidade de temas vinculados às pesquisas sobre racismo no contexto da dança surge como resposta à opressão colonial, à marginalização da presença preta no sistema de dominação racial branco, ao amplo debate sobre a educação étnico-racial na sociedade brasileira e à implementação de políticas públicas específicas para o combate ao racismo. Além disso, vale ressaltar o crescente desenvolvimento dos Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (NEABIs) nas universidades, a formação da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), a realização de Congressos Brasileiros e Regionais de Pesquisadores Negros e os múltiplos avanços da presença preta no ambiente universitário, que vai desde a instituição de diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nos cursos superiores (Conselho, 2004) até as ações afirmativas, por meio de reservas de vagas, como políticas de combate às desigualdades sociais e de promoção das reparações históricas.
Outrossim, conforme Oliveira & Laurentino (2020), sublinho a importância da Associação Nacional de Pesquisadores em Dança (ANDA) e da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas (ABRACE), que têm desenvolvido esforços para promover uma discussão institucionalizada sobre o tema. No ano de 2019, a ANDA criou um Comitê Temático de Dança e Diáspora Negra: poéticas políticas, modos de saber e epistemes outras coordenado pelos Professores Doutores Fernando Marques Camargo Ferraz e Amélia Vitória de Souza Conrado, ambos da Universidade Federal da Bahia. Por sua vez, a ABRACE possui um Grupo de Trabalho intitulado O Afro nas Artes Cênicas: performances afro diaspóricas em uma perspectiva de decolonização, que se encontra em processo de mudança de gestão, mas tem sido coordenado, desde 2017, pelos Professores Doutores Julio Moracen Naranjo (UNIFESP) e Marianna Francisca Martins Monteiro (UNESP).
Em linhas gerais, o objetivo desses encontros de discussão é reunir pesquisas e reflexões sobre a produção de dança nos territórios da diáspora e criar um ambiente que incentive a produção de conhecimento crítico em torno das histórias e estéticas engendradas pelas culturas negras e seus arcabouços políticos e poéticos. Desse modo, as instruções legais, as políticas públicas e as organizações acadêmicas colaboram na formatação de novos paradigmas epistêmicos, revelando a necessidade urgente de valorização da presença negra no panorama da história da dança brasileira.
Passa-se, então, a operar com a ideia de que os contextos de produção em dança que conhecemos não são universais, mas particulares, locais e étnicos. Portanto, percebe-se a necessidade de deslocar o conhecimento hegemônico, branco e ocidental do lugar de referencialidade única como resposta às dinâmicas de poder e autoridade que legitimam protagonismos na história da dança baseados em princípios racistas e coloniais.
História da dança: perspectivas antirracistas
Em julho de 2009, a escritora nigeriana Chimamanda Adichie realizou uma conferência no evento Tecnology, Entertainment and Design (TED) intitulada O perigo de uma história única. Nessa palestra, a escritora tratou das articulações perigosas que se estabelecem em torno das histórias que são contadas e compartilhadas a partir de uma única referencialidade, assim como das implicações dessas narrativas no que se refere à construção do estereótipo de subjetividades e de territorialidades.
Inicialmente, a escritora discursou sobre a sua experiência de leitura durante a infância e o quanto as narrativas organizadas nos livros infantis fizeram com que ela passasse a escrever histórias sobre realidades que não diziam respeito à experiência vivida na Nigéria, onde personagens brancas, de olhos azuis, que comiam maçãs, brincavam na neve e conversavam sobre o quanto era maravilhoso o sol ter aparecido, contrastavam com a realidade social das pessoas pretas que consumiam mangas, desconheciam a neve e não tinham necessidade de conversar sobre o tempo em seu país. Em seguida, Adichie organizou, a partir de acontecimentos vividos, eventos que explicam a categoria história única em relação com aspectos como o preconceito de classe, a xenofobia, o racismo, a exploração da informação unilateral e compartilhou argumentos sobre a tradição de contar histórias no Ocidente, apontando a nossa vulnerabilidade face às narrativas que nos são contadas (O Perigo, 2009).
Essa conferência é um importante elemento para compreendermos os perigos de uma história única e analisarmos os processos por meio dos quais a história tem estabelecido mecanismos de controle e regulação social. Mas, simultaneamente, essa conferência serve para percebermos como o ensino de história da dança vem orientando a reprodução de perspectivas teórico-práticas hegemônicas e delimitando o contexto do ensino e da criação em dança a partir de uma arena perigosa: a história única pautada no racismo e na colonialidade.
Os efeitos de uma história da dança baseada, unicamente, em lógicas de pensamento europeus e norte-americanos são diversos. Primeiramente, podese verificar processos de invisibilizações ou perseguições de histórias e poéticas não-hegemônicas que se associam à circulação contínua de estereótipos sobre as produções coreográficas das minorias raciais. Em seguida, observa-se panoramas de violência na experiência artística de estudantes, professores e pesquisadores pretos e pretas da área da dança, porquanto o racismo é performado através da exaltação de princípios europeizados associados às noções de beleza, harmonia, ordem e por meio de estratégias pedagógicas que são reproduzidas sem uma reflexão sobre os mitos raciais, a produção de práticas artísticas racistas e a continuada normatização das violências institucionais no contexto universitário. Além disso, nota-se aquilo que Veiga (2019) identifica como efeito diáspora: a sensação de não ser integrado aos modos de produção de conhecimento, de não se perceber pertencente ao ambiente em que se vive e de não ser incluído nas dinâmicas sociais em uma posição equânime com os demais membros da sociedade.
Os efeitos da história única nos processos educacionais aplicados às construções de narrativas sobre a dança indicam a invisibilização ou o desparecimento dos conhecimentos de ascendência africana e têm assumido diferentes nomes, perspectivas ou categorias analíticas no contexto das teorias críticas à colonização, a saber: genocídio (Nascimento, 2016; 2019); alienação (Fanon, 2008); colonialidade (Quijano, 2010) ou epistemicídio (Santos, 2006). Vale ressaltar, porém, que apesar das diferenças, tais categorias expressam estratégias que remontam ao racismo na ação de negar e destruir a capacidade dos povos não-brancos de produzir conhecimento histórico.
Em contraposição à monocultura da produção do conhecimento, verifico que diversos autores e autoras têm chamado nossa atenção para a necessidade de uma desobediência epistêmica no campo das Ciências Sociais, como exemplos podemos citar Hartmann et al. (2019), Hooks (2017), Nascimento (2016), Maldonado-Torres (2020), Mignolo (2008), Rufino (2019), Santos (2010; 2006), Tavares (2020), que apontam possibilidades de pensar a vida, a relação entre conhecimentos e, por conseguinte, a elaboração do pensamento histórico para além dos cânones coloniais.
É, portanto, nesse contexto do debate acadêmico, que a perspectiva das práticas antirracistas se apresenta como um fenômeno que atende às demandas transgressoras dos pesquisadores e pesquisadoras negras que se encontram em todo o mundo na luta contra a colonialidade e contra o racismo. Me debruço, portanto, na formulação de propostas pedagógicas combativas ao racismo, para refletir sobre o ensino de história da dança nos contextos universitários a partir de diálogos teóricos estabelecidos com a teoria decolonial e a abordagem da afrocentricidade.
A perspectiva da decolonialidade expressa um movimento de superação dos arcaísmos da modernidade, uma espécie de giro que fratura as lógicas da racionalidade, uma atitude crítica engajada. Conforme Maldonado-Torres (2020), a atitude decolonial refere-se à orientação dos indivíduos em relação ao ser, ao saber e ao poder e significa um comprometimento crítico contrário à colonialidade.
Essa atitude é fundamental para a execução do giro decolonial e se incorpora como conhecimento no corpo. Observa-se, portanto, uma relação estabelecida entre a ideia do giro decolonial e a corporeidade, por meio da dimensão ontológica, epistemológica e ética na emergência de subjetividades como agentes de transformação radical.
A meu ver, a decolonialidade é como uma força em movimento, uma espécie de torção do corpo sobre si e em deslocamento no espaço cujo esforço consiste em combater a descorporificação da consciência-ético-transformativa, perceber as implicações da colonialidade na construção social, política, ambiental, educacional, artística, histórico-filosófica e criar estratégias de conscientização, enfrentamento e desarticulação dos paradigmas coloniais. Expressão da transgressão, o giro decolonial não aquiesce com a desqualificação epistêmica, nem com a negação ontológica ou ética (Bernardino-Costa et al, 2019), consolidando uma forma de pensamento-criação-ativismo que busca valorizar o conjunto de experiências das subjetividades não-hegemônicas em contraponto às opressões estruturantes e constitutivas das sociedades.
A decolonialidade revela maneiras de compreender a existência por meio do próprio mundo em que vivemos e das epistemes que lhe são próprias e busca fomentar práticas, estratégias e formas de pensar-fazer construídas na afirmação da humanização e da existência, através de sistemas civilizatórios contra-hegemônicos, isto é, organizam processos de conscientização do mundo por meio de saberes e experiências que conduzem a novos paradigmas no que diz respeito às estratégias de combate às opressões e às desigualdades.
Conforme Mota Neto (2016), a decolonialidade é anticolonial, não eurocêntrica, antirracista, antipatriarcal, anticapitalista, em seus devidos desdobramentos, e assume um enfrentamento crítico contra toda e qualquer forma de exclusão cuja procedência seja a exploração colonial. Nesse contexto, a teoria decolonial é uma ação de resistência, uma prática ativista, um modo criativo de posição crítica que problematiza e provoca mudanças radicais em busca da dissolução das distintas formas de opressão perpetradas pela colonialidade.
Por sua vez, a afrocentricidade é uma abordagem que tem sido apresentada como ruptura à hegemonia da identidade dominante, representando, por isso, uma possibilidade de transformar as referencialidades centrais e discutir novas orientações a partir da perspectiva epistemológica do lugar. A ideia de lugar é utilizada como um modo de identificar contextos sociais e étnicos como específicos e particulares, o que postula, à abordagem afrocentrada, a necessidade de explicitar a localização do sujeito para desenvolver uma postura teórica própria ao grupo social e fundamentada em sua experiência histórica e cultural (Nascimento, 2009).
Desse modo, a proposta caracteriza-se como um tipo de pensamento que desenvolve argumentos críticos sobre a racionalidade moderna, o etnocentrismo hegemônico e a exploração colonial. Vale ressaltar, entretanto, que a abordagem afrocentrada não pretende se estabelecer como um modelo hegemônico etnocêntrico, mas busca recentralizar povos e saberes africanos que vem sendo mantidos à margem da educação, da arte, da economia, da comunicação, da tecnologia, sustentando cosmovisões africanas dentro e no centro da sua própria história.
A perspectiva da afrocentricidade deriva de uma posição política, pedagógica, artística e histórica e representa um lugar paradigmático na construção do conhecimento que, de acordo com Mazama (2009), surgiu na década de 1980, com a publicação do livro Afrocentricidade (1980) de Molefi K. Asante, seguido por A Ideia Afrocêntrica (1987) e Kemet, Afrocentricidade e Conhecimento (1990). O paradigma afrocêntrico é uma resposta à supremacia branca e se baseia na afirmação do racismo como um problema social e epistêmico, na não aceitação do eurocentrismo como norma universal e na afirmação das questões raciais como relevantes para os debates sobre a consolidação das referências hegemônicas e do próprio conhecimento (Oliveira, 2021a).
A partir da proposta da afrocentricidade, considero que as assimetrias étnico-raciais expressam um conjunto de negação de direitos à população preta no Brasil, afinal, como declara Asante (2009), os negros têm sido negados no sistema de dominação racial branco. E, essa negação não significa apenas marginalização, mas obliteração das presenças, dos sentidos estéticos e das atividades, o que produz desagência, ou seja, uma incapacidade de dispor de recursos psicológicos e culturais necessários para o avanço da liberdade, produzindo, assim, uma postura subalterna e deslocada (Asante, 2009).
Nos termos do autor, uma pessoa oprimida encontra-se deslocada quando opera a partir de uma localização centrada nas experiências do opressor. Por outro lado, sujeitos pretos e pretas podem ocupar um lugar central quando passam por um processo de conscientização política, educacional, artística, estética; descobrem a possibilidade de construir e ressignificar suas próprias presenças; trazem o compromisso com a própria localização psicológica e com a descoberta de si mesmos como agentes; elaboram a defesa dos elementos culturais africanos; articulam uma responsabilidade com o refinamento léxico atribuído aos sentidos do devir africano e um compromisso com a narrativa da história. Em suma, a perspectiva da afrocentricidade propõe um recentramento das pessoas negras a partir da compreensão da existência de diversas centralidades e referencialidades.
Diante dessas dimensões conceituais, vale sublinhar que, conquanto a decolonialidade expresse uma crítica radical à colonização dos imaginários, das subjetividades e aos dispositivos da exploração colonial moderna e a afrocentricidade indique o campo específico da cultura africana como território de resistência e produção de conhecimento, ambas as perspectivas apontam para o racismo vivenciado no corpo e estruturado nas histórias como articulador das opressões e dominações coloniais. Desse modo, ambos debates fortalecem o desenvolvimento de propostas antirracistas aplicadas aos processos de ensino-aprendizagem em história da dança: ora desconstruindo a dependência conceitual e artística que desconsidera a singularidade dos processos históricos constituídos na dança brasileira, ora criando condições para valorizarmos as histórias das populações oprimidas e silenciadas em nosso país.
Experiências com ensino de história da dança
As práticas de ensino antirracista que partem de concepções decoloniais e afrocentradas expressam atitudes teórico-práticas cujo objetivo é romper com as experiências coloniais e, por isso, representam um ato de confrontação com um sistema de pensamento hegemônico e, consequentemente, um ato de libertação histórica e cultural da colonialidade e do eurocentrismo. Essa modalidade de desobediência epistêmica, entretanto, precisa ser cada vez mais associada às nossas ações, de modo a ser transposta do plano teórico ao campo prático, a fim de promover um combate às injustiças cognitivas, organizando um enfrentamento às razões indolentes (Santos, 2006) ou às razões intransigentes (Rufino, 2020), mas, simultaneamente, a fim de criar um enfrentamento às injustiças sociais, fomentando saberes praticados, ou seja, um processo de performatização dos saberes.
Por isso, neste momento, desejo compartilhar breves observações sobre o curso Poéticas Pretas na Dança, organizado por meio de parceria estabelecida entre o Grupo de Pesquisa Cena Preta - Quilombo e o Projeto de Extensão ComuniDança/UFPB, projetos que coordeno no âmbito do Curso de Licenciatura em Dança da Universidade Federal da Paraíba, localizado em João Pessoa (PB), a fim de verificar possibilidades de ensino-aprendizagem alternativas ao currículo e compartilhar, brevemente, a performatização de possibilidades pedagógicas antirracistas.
As discussões sobre o embranquecimento do currículo do Curso de Licenciatura em Dança, da Universidade Federal da Paraíba, começaram a surgir por meio das provocações estabelecidas por estudantes negros e negras que não se reconheciam na maior parte dos componentes curriculares regulares do curso em questão. Assim, a fim de atender a uma demanda imediata, enquanto o Núcleo Docente Estruturante do curso trabalha na idealização de componentes curriculares que atendam políticas raciais minoritárias na elaboração do pensamento em dança, elaborei o curso Póeticas Pretas na Dança5.
O curso surgiu, então, como possibilidade alternativa para o tratamento de conteúdos que não vinham sendo contemplados pelo projeto pedagógico do Curso de Licenciatura em Dança e buscou aprofundar o olhar histórico sobre a dança brasileira a partir da presença negra. O curso foi realizado entre os dias 08 de outubro e 10 de dezembro de 2020, integralizando uma carga horária total de 30 horas e, ao longo dos encontros, procuramos estabelecer uma estreita relação entre artistas, pesquisadores e pesquisadoras que operavam lógicas artístico-pedagógicas baseadas em perspectivas decoloniais e/ou afrocentradas.
Havia vinte e três estudantes com vínculo ativo na Universidade Federal da Paraíba no curso, somados a quarenta e uma pessoas que não integravam a comunidade da universidade e se inscreveram na atividade, o que reuniu um total de sessenta e quatro pessoas interessadas na discussão sobre histórias baseadas em perspectivas pretas na dança. O quantitativo de pessoas inscritas era proveniente das mais diversas regiões do Brasil, o que gerou dinamismos e múltiplas perspectivas nos debates engendrados no curso. Em meio às cidades, destacaram-se: Araraquara (SP), Bayeux (PB), Belo Horizonte (MG), Candeias (BA), Contagem (MG), Guarapari (ES), Ilhéus (BA), Juazeiro (BA), Macéio (AL), Natal (RN), Niterói (RJ), Petrolina (PE), Planaltina (DF), Pombal (PB), Porto Alegre (RS), Rio de Janeiro (RJ), Salvador (BA), São José do Egito (PE), Senhor do Bonfim (BA), Viçosa (MG), Vitória (ES).
Dentre os discentes da Universidade Federal da Paraíba, obtivemos um quantitativo de onze estudantes pretos, sete estudantes pardos e seis estudantes brancos. Dentre as pessoas inscritas no curso sem vínculo com a universidade, o número de participantes pretos era ainda mais elevado, totalizando vinte e nove pessoas, seguido por um número de sete pessoas identificadas como brancas e cinco que se autodeclaravam pardas.
Durante todo o curso, procuramos elaborar um aprofundamento teórico de estudos sobre os conceitos de racismo estrutural; sobre as construções de estereotipias na cena e as tecnologias do racismo recreativo; sobre os impactos da colonialidade na formação em dança; sobre as definições de dança preta; sobre a dimensão histórica da presença negra na dança brasileira e sobre os coletivos artísticos pretos em atividade na cena contemporânea. Nossas atividades, cujos encontros ocorreram semanalmente, estavam relacionadas à leitura e discussão de textos; à análise crítica de obras de dança reconhecidamente pretas; e aos espaços de conversas com diretores e diretoras, coreógrafos e coreógrafas, pesquisadores e pesquisadoras associados à concepção estética e poética das produções coreográficas em questão.
Durante a execução do curso, estabelecemos parcerias com alguns convidados e convidadas cujos trabalhos orientaram uma nova configuração para o fazer-pensar histórias e para as composições coreográficas, por meio de perspectivas afrodiaspóricas, como Bruno de Jesus (Salvador), Tiago Oliveira (Rio de Janeiro), Flávia Souza (Rio de Janeiro), Tieta Macau (São Luís - Fortaleza), Fábio Batista (Rio de Janeiro), Dende Ma’at (João Pessoa), Mirela Ferreira (Salvador - João Pessoa), Fernando Ferraz (Salvador)6.
Em todos esses encontros, buscamos debater as relações de poder racialmente estruturadas no panorama da dança e avaliar as possibilidades de empreender pensamentos acerca da história da dança, por meio de estratégias de combate ao racismo. O que implica afirmar que, ao longo dos processos pedagógicos, desenvolvemos algumas considerações basilares para a estruturação de ações institucionais e propostas pedagógicas vinculadas à formação em dança e ao ensino de história da dança baseadas em lógicas antirracistas.
De imediato, compreendemos que não pode haver um processo de ensino de história da dança antirracista pautado, unicamente, em referencialidades hegemônicas, porquanto, a representação da hegemonia, como herança colonial, é estruturada pelo racismo. Desse modo, assim como Souza (2020), percebemos que a seleção de conteúdos históricos baseados em perspectivas colonizadoras e eurocêntricas invisibilizam grupos e artistas pretos/pretas e impossibilitam a construção de uma história da dança em que esses artistas sejam vistos como agentes criadores de arte e cultura.
Nesse contexto, identificamos que uma das tarefas mais desafiadoras no processo de proposições antirracistas, nas discussões sobre história da dança, relaciona-se com a necessidade de desmascararmos a ideia de que posições particularistas não são universais, ou seja, a perspectiva de ensino-aprendizagem que implementamos busca discutir a hegemonia europeia e norte-americana como um momento histórico, mas não como um fenômeno universalista. Dessa maneira, a história da dança moderna americana e do expressionismo alemão, por exemplo, com nomes como Doris Humprey, Isadora Duncan, Kurt Jooss, Martha Graham, Mary Wigman, Merce Cunningham, Rudolf Laban, passam a ser apreendidas como referências particulares de dança. E, muito embora, reconheça-se o impacto dessas referências na formação do artista-docente-pesquisador da dança no Brasil, pelas consequências dos processos de colonização, elas constituem percepções particulares da história e do fazer coreográfico (Oliveira, 2021b).
Compreendemos que se os currículos estruturam a produção do conhecimento a partir de parâmetros unicamente eurocêntricos, é necessário criar discussões sobre esse currículo e pensar em estratégias de elaborações de novos componentes curriculares e ementas. Se as referências bibliográficas utilizadas nos diálogos com os saberes estão relacionadas às lógicas brancas, é imprescindível convocar as pessoas responsáveis pela elaboração dos projetos políticos e pedagógicos para uma discussão e encontrar representatividade nos núcleos docentes estruturantes ou nas organizações pretas externas às universidades (Oliveira, 2020).
Além disso, outro ponto que identificamos como relevante para a consolidação de processos de ensino relacionados às histórias da dança por meio de perspectivas pluriversais e antirracistas consiste em observar e valorizar proposições coreográficas marginais e periféricas, contrariando, desse modo, os sinais de apagamento e de invisibilização das produções coreográficas pretas. Esse argumento se relaciona com toda a cadeia de produção em dança que, por sua vez, consolida, em certa medida, as histórias da dança. Dessa maneira, faz-se extremamente importante consumir arte negra e fomentar espaços de equidade racial nos processos curatoriais relacionados à dança.
Vale ressaltar, no entanto, que a importância de se analisar modos coreográficos afrodiaspóricos não se baseia em uma visão essencialista, ou seja, na crença de que precisam ser notabilizados por serem negros. Mas, porque é irrealista que em uma sociedade como a nossa, de maioria negra, somente um grupo étnico tenha seus saberes coreográficos vistos, valorizados e domine os sentidos do que venha ser dança.
Ademais, faz-se imperioso efetivar contratações de professores e professoras com base em critérios raciais, proporcionando representatividade e proporcionalidade nas universidades e, com isso, favorecendo à expansão de perspectivas epistêmicas e históricas múltiplas e diversificadas. A contratação de profissionais da educação não-brancos e, sobretudo, críticos ou críticas ao racismo pode impactar significativamente o processo de ensino-aprendizagem de história da dança nos contextos universitários. Considero que a ausência de professores ou professoras negras e racializadas é um sinal que nos leva não apenas a reconhecer a composição racista dos profissionais envolvidos com as políticas de ensino-pesquisa-extensão, como também a organizar esforços e pressionar a instituição na elaboração de concursos que considerem e determinem o ingresso de profissionais pretos (Oliveira, 2020).
O compromisso de inserir, em nossas práticas acadêmicas, uma crítica àquilo que se encontra instituído nas universidades e, por conseguinte, nos processos de ensino-aprendizagem da história da dança, a saber: o racismo, a colonialidade e o eurocentrismo na produção do conhecimento, induz-nos a compreender a urgência de valorização de diferentes perspectivas históricas, para que nomes como Dona Mercedes Baptista e Mestre King sejam representados como expressão de genealogias, narrativas e protagonismos na história da dança brasileira. Por isso, ao introduzirmos a implementação de um olhar antirracista para o ensino de história da dança, produzimos um contexto de dança politicamente consciente e engajado e, com isso, criamos mais um espaço não-hegemônico de resistência teórica e prática capaz de nos levar a transformar radicalmente as instituições educacionais.
Considerações finais
Acredito que dentre todas as formas de dominação, aquelas que se justificam através de vieses ideológicos e ocultam os processos históricos que promovem as desigualdades sociais podem ser consideradas as mais poderosas. Isso porque a colonização do imaginário e do conhecimento atua como um fenômeno gerador de consenso e justifica as desigualdades, opressões e explorações através das instituições sociais. As opressões, então, se enraízam na estrutura da sociedade através de um conjunto de ideias organizadas e compartilhadas sistematicamente; ideias que passam a ser reconhecidas como normas, padrões e modelos que se pretendem, em muitos casos, indiscutíveis.
Certamente, nas sociedades ocidentais, e naquelas ocidentalizadas por um amplo processo de colonização, esses modelos unívocos e indiscutíveis correspondem às perspectivas eurocêntricas e norte-cêntricas. E é a partir dessa referencialidade, que recusa o reconhecimento do outro como sujeito e opera na sua conversão em objeto, que definimos padrões de harmonia e crenças sobre supremacias artísticas que se estabelecem em um contexto extremamente violento baseado em privilégios e opressões.
A manutenção dessas violências em nossas práticas educacionais configura espaços de reprodução das estruturas sociais racistas que, no contexto do ensino de história da dança, apresenta-se em forma da ausência categórica de professores e artistas pretos e do apagamento das histórias das danças de motrizes africanas nos componentes curriculares regulares. Essas danças nomeadas, de modo geral, como danças afro-brasileiras são qualificadas como processos étnicos, anônimos, artesanais, anacrônicos, ritualísticos e a-históricos.
A consolidação da história da dança como uma história única pautada em lógicas etnocêntricas se baseou no princípio de organizar narrativas incessantes sobre a realidade coreográfica europeia e norte-americana. Isso transformou, por fim, essas narrativas em uma realidade histórica de caráter dominante, verossímil e, pretensamente, universal.
Na atual conjuntura, entretanto, reconheço que o ensino de história da dança a partir dos parâmetros por meio dos quais vem sendo estabelecido não representa a história universal, mas, sim, uma etno-história baseada em perspectivas brancas. E, por isso, proponho, assim como Mignolo (2017), um processo de decolonialidade epistêmica, com possibilidades de desaprender o aprendizado, por meio de uma prática baseada no reconhecimento da colonização dos saberes históricos em dança e na ruptura com o pensamento colonial e com a narrativa da modernidade.
Ao analisar os efeitos da colonialidade, do racismo e do etnocentrismo europeu na formatação dos currículos em dança, especificamente, no que diz respeito ao ensino da história da dança nas universidades, compreendo a ausência das variadas histórias da dança (no plural) e a necessidade de transformarmos, de modo radical, os conteúdos e as abordagens de ensino, a fim de rompermos com a reprodução de lógicas coloniais e estabelecermos novas centralidades na aprendizagem da dança.
Dito isso, percebo que, por mais contundente que pareça ser o processo vinculado à confrontação dos saberes históricos em dança, essa ação é igualmente, como nos indica Rufino (2019), um ato de ternura, amor e responsabilidade com a vida, com todas as vidas. Afinal, se vidas pretas importam, devemos considerar que as histórias pretas no panorama da dança brasileira também devem nos importar.
Notas
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1
Este trabalho contou com apoio financeiro da Chamada nº 03/2020 Produtivi-dade em Pesquisa PROPESQ/PRPG/UFPB código do projeto de pesquisa no SIGAA PVJ13529-2020.
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2
This study had financial support from Research Productivity PROPESQ/PRPG/UFPB Public Call nº 03/2020 under SIGAA research project code PVJ13529-2020.
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3
À vista desse contexto histórico, justifico que, ao situar minhas práticas pedagó-gicas como possibilidades alternativas à hegemonia eurocêntrica no panorama da formação em dança, meu interesse não é invisibilizar os esforços anteriores de luta e de combate ao racismo no contexto da educação em dança produzida nas universidades do Brasil, mas colaborar com novas perspectivas combativas ao racismo institucionalizado nos ambientes de ensino superior.
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4
O termo utilizado aqui se refere ao campo de privilégios e de vantagens estrutu-rais das pessoas brancas em sociedades marcadas pelo racismo.
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5
É importante observar que o curso de Licenciatura em Dança da UFPB apre-senta inúmeros projetos de pesquisa e extensão combativos à monocultura nos processos de produção de conhecimento, além de componentes curriculares que relacionam as danças de ascendência africana e indígena aos processos de composição coreográfica e pesquisa de movimento autoral.
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6
Tais artistas possuem uma longa trajetória relacionada aos processos históricos das danças negras, seja por suas experiências profissionais, perspectivas coreográficas ou genealogias artísticas.
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Editado por
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Editores responsáveis: Arnaldo de Siqueira JuniorCassia NavasHenrique Rochelle Celina Nunes de Alcântara
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
15 Dez 2021 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
29 Abr 2021 -
Aceito
11 Ago 2021