RESUMO
Neste artigo, investiga-se a oposição dor versus prazer a partir do acervo de obras de performance do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP) entre 1972 e 2021. As performances analisadas têm como principal característica a relação extrema com o limite físico, e este estudo relaciona os conceitos de dor e prazer aos avanços e retrocessos sofridos pelas mulheres nos âmbitos social, político e cultural para compreender quem são as mulheres recebidas dentro do espaço museológico. Ainda, coloca-se em perspectiva a construção estética da mulher na história da arte, concatenando as diferentes intersecções para compreender a complexa teia sexual na arte de mulheres.
Palavras-chave:
Performance; Museu; Gênero; Sexualidade; Dor.
RÉSUMÉ
Nous étudions l'opposition entre douleur et plaisir à partir d'œuvres de performance du Musée d’Art Contemporain de l'Université de São Paulo entre 1972 et 2021. La principale caractéristique entre les performances analysées est le lien extrême avec la limite physique. Cette étude relie les notions de douleur et de plaisir aux avancées et reculs subis par les femmes dans les sphères sociales, politiques et culturelles pour comprendre qui sont les femmes accueillies dans l'espace muséal. Nous proposons la mise en perspective de la construction esthétique des femmes dans l'histoire de l'art, en concaténant les différentes intersections pour comprendre le tissu sexuel complexe dans l'art.
Mots-clés:
Performance; Musée; Genre; Sexualité; Douleur.
ABSTRACT
This article investigates the opposition of pain versus pleasure in the performances in the Museum of Contemporary Art of the University of São Paulo collection, from 1972 to 2021. The performance works analyzed share, as a major attribute, a relation to extreme physical limit. This study correlates the concepts of pain and pleasure with the advances and setbacks suffered by women socially, politically, and culturally in order to understand who are these women received into the museum. Also, we discuss women’s aesthetic construction in the history of art, considering the various intersections of gender, race, and class to comprehend the complex sexual web in women’s art.
Keywords:
Performance; Museum; Gender; Sexuality; Pain
Introdução
O corpo de mulher é um corpo que grita, ainda que em silêncio - tal qual a performance de John Cage (Schwarm, 2015SCHWARM, Betsy. “4’33’”. Encyclopedia Britannica, 7 abr. 2015. Disponível em: https://www.britannica.com/topic/433-by-Cage. Acesso em: 1 nov. 2022.
https://www.britannica.com/topic/433-by-...
), em que, mesmo sem tocar uma nota, foi possível ouvir todos os sons do ambiente e do corpo humano em seus 4”33’ (1952) de silêncio em frente ao piano. Nesse sentido, assim também é o corpo de uma mulher em performance: ela não precisa dizer palavra ou fazer movimento para que seja possível alguém tecer uma história completa sobre ela com base em seu tamanho, decote, gordura corporal, postura; ou, ainda, é fácil ignorá-la, caso queira se expressar sobre um assunto incomum entre as pessoas com a sua aparência. Reconhecer uma mulher é reconhecer a construção cultural que antecede a sua singularidade.
Esse corpo, dentro da sociedade ocidental, esteve sempre numa posição de fricção de poderes, lutando junto à formação da sociedade moderna por direitos e independência. O uso do gerúndio é proposital, pois essa fricção permanece. Neste artigo, enquadramos o corpo da mulher a partir da performance, localizando os corpos das artistas dentro da sociedade, em busca de analisar sexualidade e dor como opostos de prazer nas reflexões apresentadas, examinando essa sexualidade junto à construção da estética da mulher dentro da história da arte. A performance funciona como um meio de transferência vital, permitindo a transmissão de memórias, identidades e traços culturais por meio daquele corpo encarnado em ação, seja essa ação uma coreografia, uma cena ou um ritual. Além disso, a performance guarda em sua efemeridade a potência da presença. Exatamente por isso, a performance também é lente metodológica, visto que é compreendida na condição de episteme, sendo simultaneamente real e construída (Taylor, 2013TAYLOR, Diana. O arquivo e o repertório. Performance e memória cultural nas Américas. Belo Horizonte: UFMG, 2013.).
Exatamente por compreender a força da efemeridade nesse ambiente é que foi realizada uma arqueologia da performance dentro do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP), a fim de compreender quem está convidado a habitar o ambiente e como a performance opera. Em busca de uma reflexão profunda para organizar os dados objetivos nesta construção, sistematizamos os artistas por etnia, gênero, nacionalidade e temática, de modo a facilitar o agrupamento de artistas e entender quem produz performance dentro do museu e quais temas são mais emergentes. Esta análise objetiva, embora fundamental para refletir sobre o objeto da pesquisa, não alcançou por si só a complexidade das variáveis do campo da performance, por isso colhemos depoimentos de outros agentes envolvidos diretamente nas performances para compor a história. Na constante ponderação sobre esse arquivo, o denominador comum encontrado - a dor - é fio condutor do desenvolvimento deste artigo.
No arquivo de performance do MAC-USP, foram quantificadas, até o ano de 2021, 35 ações performáticas com 98 artistas envolvidos, cujo percentual de ações feitas e/ou lideradas por mulheres é de 51,7%. Trabalharemos com a maioria feminina, compondo o total de 14 artistas e/ou companhias11 A construção deste arquivo de performance do MAC-USP é parte da tese de doutorado da autora, denominada Memória encarnada: a performance a partir do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, da Pósgraduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo, reunindo um panorama com dados primários (com entrevistas de artistas e curadores) e dados secundários, junto a catálogos e documentos oficiais. Ademais, aqui falamos em quantidade de artistas, não em quantidade de obras, pois algumas delas tiveram mais de uma obra no mesmo espaço..
Isso posto, são alicerces teóricos deste artigo a intelectual Diana Taylor, cujas teorias sobre performance norteiam nossa metodologia; a crítica de arte Griselda Pollock, cujos estudos feministas pós-coloniais nas Artes Visuais são importantes para compreender a relação da sexualização da mulher pela arte, como protagonista e objeto; a intelectual Lélia Gonzalez, imprescindível para uma leitura através do arquivo montado para a pesquisa de doutorado, provocando perguntas no hiato de representação desse arquivo e apontando caminhos rigorosos para uma análise que se pretende antirracista; o antropólogo David Le Breton, a partir dos estudos sobre a dor que alimentam esta reflexão; e, por fim, a intelectual Peggy Phelan, cujas percepções da performance como forma de reinventar o presente são preciosas para este texto.
A questão propulsora para este artigo é a percepção de que a esmagadora maioria dessas mulheres apresenta, em suas ações, a relação extrema com o limite físico, seja pela dor, seja pela extrema vulnerabilidade, seja pelo cansaço, seja pela automutilação. Destarte, investigamos os conceitos de dor em oposição ao prazer paralelamente aos avanços e retrocessos sofridos pelas mulheres nos âmbitos social, político e cultural vigentes, a fim de traçarmos pontos dialógicos fundamentados entre ações performativas de mulheres e a evocação dessa situação limítrofe física, em sua maioria dentro do ambiente museológico.
Tornar-se visível
Um dos trechos do livro de Peggy Phelan, Unmarked: The Politics of Performance, engatilhou o estudo principal deste artigo quando ela nos apontou que trazer a visibilidade da mulher na narrativa de uma performance envolve trazer mais do que o corpo feminino para dentro da cena. Phelan (1996PHELAN, Peggy. Unmarked: The Politics of Performance. Londres; Nova York: Routledge, 1996., p. 158-161) cita os autorretratos de Cindy Sherman, nos quais a artista manipulava a sua própria imagem para fazer emergir as suas questões, ou, por exemplo, o filme de Yvone Rainer, The Man Who Envied Women (O homem que invejava as mulheres, em livre tradução), de 1985, cuja imagem da mulher nunca aparece no filme; ainda, a obra de 1988, Guarded Conditions (Condições protegidas, em livre tradução), de Lorna Simpson, em que as justaposições fotográficas obrigam o público a encarar as costas de mulheres negras, sem nunca mostrar a face delas. Dessa maneira, trazer a narrativa da mulher envolve apagá-la da cena para, assim, encenar o seu apagamento cotidiano; ademais, requer manipular opostos e sobrepor marcadores como raça, território e classe, para além do gênero.
As narrativas de mulheres, assim, passam a ocupar um espaço de problematização da existência feminina, assuntos que, antes, eram relegados às sombras aparecem de maneira a expor verdades por meio de suas protagonistas,
[...] verdades estas experienciadas no cotidiano das corpas femininas que sofrem secularmente a tentativa de apagamento pelas estruturas e estratégias de colonização, adestramento e condicionamento do corpo-mente; verdades como a desumanização, a objetificação e a invisibilidade a que somos submetidas, sobretudo, as mulheres negras. E a arte da performance guarda a potência de expressar verdadeiramente essa situação (Silva, C., 2021SILVA, Caroline Dias de Oliveira da. Narrativa em primeira pessoa na prática performativa de mulheres marginalizadas e produção de conhecimento decolonial. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 11, n. 1, 2021. Disponível em: https://www.seer.ufrgs.br/index.php/presenca/article/view/94925. Acesso em: 1 nov. 2022.
https://www.seer.ufrgs.br/index.php/pres... , p. 17).
A sociedade brasileira, após a conquista do voto feminino em 193222 O voto é reconhecido em 1932, incorporado à Constituição em 1934 de forma facultativa e passa a ser obrigatório em 1965., passa por transformações intensas no entendimento do que é gênero e de como essa marcação se relaciona nas malhas sociais. É inegável, ainda, o papel da luta feminista nos avanços da agenda para equidade das mulheres na sociedade em todas as searas (Gonzalez, 2020GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. 1. ed. São Paulo: Zahar, 2020., p. 140), principalmente com a ocupação de mulheres em cargos de decisão, como poderemos observar durante este artigo a partir da entrada de diretoras e curadoras mulheres no MAC-USP.
Tornar-se visível, então, é um constante esforço de ocupação de espaço. Os espaços museais não são exceções. Dito isso, compreender as camadas que perpassam gênero no museu nos interessa a fim de entender também quais mulheres são colocadas nesse ambiente, para quais mulheres há visibilidade dentro de um museu universitário - portanto, comprometido com a experimentação artística, com a pesquisa acadêmica e com a educação. A ex-diretora do MAC-USP, Ana Mae Barbosa (1990BARBOSA, Ana Mae. Museu de Arte Contemporânea. In: BARBOSA, Ana Mae. O Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. São Paulo: Banco Safra, 1990. p. 5-47., p. 7), em sua gestão, diz-nos que o museu universitário precisa:
[...] ser uma porta de comunicação da universidade com o público, não só universitário, mas, principalmente, com aquele público que não conseguiu entrar na universidade ou já saiu dela. [...] Partimos do princípio de que todas as classes sociais devem ter acesso aos códigos culturais.
Esse pensamento de Barbosa, preocupado com uma agenda democrática, marca o museu com ações que acolhem diferentes formas de arte, como a exposição Carnavalescos (1987), de Luiza Olivetto e Roberto Loeb, que causou repúdio da imprensa e de artistas da universidade quando viram alegorias de Escola de Samba subirem as ruas do museu (Barbosa, 1990BARBOSA, Ana Mae. Museu de Arte Contemporânea. In: BARBOSA, Ana Mae. O Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. São Paulo: Banco Safra, 1990. p. 5-47., p. 07).
Nosso modelo de museu adveio da Europa e fincou raízes no Brasil em 1818, com o Museu Nacional no Rio de Janeiro, de forma que se baseia em documentos e expressões artísticas que cabem numa determinada ordem de importância. Em outras palavras, para uma determinada classe de pessoas e para uma determinada classe de conhecimento (Le Goff apud Abercrombie, 1998ABERCROMBIE, Thomas A. Pathways of Memory and Power: Ethnography and History among an Andean People. Madison: Wiscosin Press, 1998.; UNESCO, 2002UNESCO. Masterpieces of the Oral and Intangible Heritage of Humanity. Paris, 2002.; Taylor, 2013TAYLOR, Diana. O arquivo e o repertório. Performance e memória cultural nas Américas. Belo Horizonte: UFMG, 2013.), entendemos que esse modelo, bem como as práticas artísticas e as concepções estéticas, flutuam de acordo com a necessidade do status quo. Ao pensar a reprodução estética e a educação de forma mais ampla, entendemos que o sistema de ensino brasileiro traz, ainda, parcas representações femininas dentro dos livros didáticos, mesmo com a vasta pesquisa acadêmica mostrando a importância de se levar as figuras femininas para o centro de suas próprias histórias. Ademais, se for adicionado o marcador racial, tal escassez é ainda maior. Lélia Gonzalez (2020GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. 1. ed. São Paulo: Zahar, 2020., p. 39, grifo nosso), corroborando o pensamento de Abdias do Nascimento, aponta que o “[...] sistema educacional é usado como aparelhamento de controle nessa estrutura de discriminação cultural. Em todos os níveis do ensino brasileiro - elementar, secundário e universitário”.
A partir da ocupação feminina dos cargos de diretoria e curadoria do MAC-USP, vemos um expressivo aumento nas exposições com mulheres em posição de destaque (não apenas na performance, mas nas artes visuais como um todo nesse espaço), com destaque para a intervenção com a artista Barbara Krueger, Seu corpo é um campo de batalha (Your body is a battlefield) (1992), na gestão de Ana Mae Barbosa (1986-1993); a série de exposições Mulheres Artistas no acervo do MAC (1996), na primeira gestão de Lisbeth Rebollo; e a tríade de exposições Mulheres Artistas e a contemporaneidade (2007, 2008 e 2009), já em sua segunda gestão (1994-1998; 2006-2010).
Para compreender a escassez de mulheres em proeminência no espaço do museu, basta checar os catálogos expositivos, mas tal míngua pode ser vista também na fala do então diretor Wolfgang Pfeiffer, durante a exposição American Women Artists, em 1980, de curadoria colaborativa entre Regina Silveira (Brasil), Glenna Park (EUA) e Mary Dritschel (EUA):
Considero muito interessante poder observar como elas trabalham hoje, especialmente, por poder fazer comparações, também com as pesquisas e trabalhos das artistas brasileiras. Temos, justamente, no desenho e na gravura, valores de primeira linha entre nós. Portanto, o fato de serem mulheres que expõem não constitui elemento de tanto destaque ou estranheza. O que queremos ver é a expressividade e a qualidade do trabalho, mesmo que neste ato que, naturalmente, é de intercâmbio cultural e artístico, campo que, infelizmente, por razões puramente materiais, não se pode cultivar, de maneira desejável (Dimambro, 2018DIMAMBRO, Nadiesda. Imagens de Gretta Sarfaty: fotografia, performance e gênero. 2018. Dissertação (Mestrado em Estética e História da Arte) - Programa de Pós-graduação Interunidades em Estética e História da Arte, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018., p. 105, grifo nosso).
A negação do gênero feminino como marcador da exposição, isto é, afirmar que as mulheres ali presentes não estão ali por serem mulheres, evidencia exatamente o contraste da presença (ou falta) delas nesse espaço. Além disso, dizer que elas estão ali apenas por apresentarem trabalhos de primeira linha nos faz perguntar: antes não havia mulheres com um trabalho digno, de modo que seria esse o motivo da falta de artistas mulheres no museu? Ainda, mesmo com a crescente entrada dessas artistas, como indicamos acima, de quais mulheres falamos?
De quais mulheres falamos?
Para a tese da qual este artigo faz parte, foi construído um arquivo para estudar as performances no MAC-USP, cujas ações datam de 1972 a 2021. Desse montante, as mulheres totalizam 51,7% do total de performances (MAC, 2021aMAC. Museu de Arte Contemporânea de São Paulo. Além de 2020. Arte italiana na pandemia. São Paulo, 2021a. Disponível em: http://www.mac.usp.br/mac/expos/2021/italiana2020/home.html. Acesso em: 1 nov. 2022.
http://www.mac.usp.br/mac/expos/2021/ita...
; 2021bMAC. Museu de Arte Contemporânea de São Paulo. Além de 2020. Arte italiana na pandemia. (Poeiragem. Artista Preta Kiran, filmado por Gustavo Faria Bq, Coletivo Projetemos). São Paulo, 2021b. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=NWworsA25h0&ab_channel=MACUSP . Acesso em: 1 nov. 2022.
https://www.youtube.com/watch?v=NWworsA2...
), em que:
Considera-se performance o que foi feito a partir do corpo e teve sua ação principal ao vivo, mesmo que haja filme ou rastros visuais após a performance.
Não são consideradas para esta análise obras que foram pensadas para a videoarte, ou seja, cuja performance seja para o vídeo, com exceção para três obras de dança filmadas, El Tango de Passilos (1971), Amálgama (2020) e Poeiragem (2021)33 As obras de dança entram neste panorama, pois a linguagem da dança enqua-dra-se na lente metodológica utilizada. Entendemos que as danças filmadas são rastros para a performance física (restored behavior), além de permitirem o aprendizado corporal via repetição - a filmagem da dança permite que uma memória seja digitalizada e possa passar a outro corpo, além do próprio treinamento de quem dança (Schechner, 1988; Taylor, 2016a)..
Considera-se, ainda, a performance do grupo misto cuja composição tenha maioria feminina e/ou seja dirigido por mulheres.
Nesse panorama de performances, o corpo da mulher prova, na maioria das vezes, um lugar limítrofe, esgarçando o tempo ao máximo, como as performances de Ana Amorim, Contar Segundos (2018), e do Núcleo Pausa, O que vemos quando olhamos dança? (2019). Estimula o corpo até o limite do cansaço, como as performances de Marta Minujín, Repollos (1977), e de Juliana Morais, Obra sem título (2016). Traz denúncia, automutilação e posição de extrema vulnerabilidade física, conforme as performances de Laura Lima, Pilar Albarracín e Regina José Galindo em diversas ações dentro da exposição Mulheres Artistas: corpos estranhos (2009), e de Andreia Yonashiro, Uma baleia encalhada (2016). Há ainda outras artistas cujas técnicas de uma modalidade de dança colocam-nas na posição de virtuose44 Artista que atingiu um altíssimo grau de conhecimento e domínio técnico na execução de sua arte; virtuosa., como Analívia Cordeiro, Uma linguagem de dança (1974); Patrícia Osses, Tango del Pasillo (2012); Ciane Fernandes e Coletivo A-fecto, Cristal (2016); Marcia Milhazes Cia. de Dança, Cebola (2016); e São Paulo Cia de Dança, Amálgama (2020) - em oposição ao espaço de pura experimentação frequentemente concedido aos homens, sem exigências técnicas ou de produto final. Em síntese, é sobre os trabalhos dessas 13 artistas e/ou companhias que o artigo elucubra - há ainda a exceção, a 14ª, como citado na introdução, à qual nos referiremos ao fim.
Da oposição entre dor e prazer
Que corpos são esses cujos espaços se abrem para gritar a sua condição em agonia? Tânia Modleski, apontada por Peggy Phelan (1996PHELAN, Peggy. Unmarked: The Politics of Performance. Londres; Nova York: Routledge, 1996., p. 149150), diz que o escândalo histórico para a escrita feminista está no discurso centrado nos “homens falantes” em oposição às “mulheres mudas”. Se essa sugestão está correta, para a performance, tal oposição se dá no “corpo que sente prazer” versus o “corpo que sente dor”.
Claudia Fazzolari (2021)FAZZOLARI, Claudia. Entrevista sobre Mulheres Artistas: corpos estranhos. (Entrevista concedida à autora via e-mail durante 2021 para fins da escrita da tese Memória encarnada: a performance no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. A publicação será disponibilizada junto à tese). São Paulo, 2021., curadora da exposição Mulheres Artistas: corpos estranhos (2009), contou sobre os preparativos da performance Juegos de poder, realizada por Regina José Galindo, em que a artista pediu o
[...] contexto de um projeto que expusesse um corpo frontalmente submetido, humilhado. Como sabemos, o corpo que agoniza em suas performances e chega a limites quase inimagináveis é sempre aquele corpo magro, de mulher latino-americana, de uma errância caribenha que confronta a opressão. Juegos de poder nasce como Hipnosis (em seu pré-roteiro de ação assinado por Galindo) e se ajusta ao próprio compasso de uma complexa existência, vivendo o conflito de sua própria materialização.
Do espaço de decisão ocupado pelas mulheres, brotam temas dolorosos para a existência feminina na sociedade. Aqui fazemos um adendo à dicotomia dor e sofrimento, em que a diferença é fundamental para a nossa reflexão, embora, frequentemente, as duas sejam tratadas como sinônimos. A dor física é uma defesa para o bem-estar do corpo, uma vez que ela nos avisa de uma possível conduta que pode prejudicar o corpo físico, como um joelho ralado quando caímos da rua, e essa dor não causa sofrimento, necessariamente. Outro exemplo, mais complexo, é o trabalho de parto, no qual a dor física sentida não precisa ter sofrimento envolvido, inclusive, há quem sinta regozijo nesse momento. Além disso, a doença rara da analgesia, isto é, a ausência de dor física, não significa a inexistência do sofrimento para a pessoa55 Conceitos de dor desvelados no artigo A dor, de Manoel Tosta Berlinck (1999).. Nesse aspecto, a própria definição de dor postulada pela Associação Internacional para o Estudo da Dor (IASP, em seu acrônimo inglês) sofreu alterações em seu conceito inicial, deslocando a dor percebida da dor sofrida, mostrando que dor é “[...] uma experiência sensorial e emocional desagradável associada, ou semelhante àquela associada, a um dano real ou potencial ao tecido. Cada indivíduo aprende a utilizar esse termo através das suas experiências anteriores” (IASP, 2020IASP. International Association for the Study of Pain. Pain, 2020. Disponível em: https://www.iasp-pain.org/. Acesso em: 1 nov. 2022.
https://www.iasp-pain.org/...
, n. p.).
Desse modo, quando falamos na oposição dor versus prazer, apontamos a dor coletiva da mulher na sociedade, a relação no âmbito do afeto, pois, para sentir dor, é preciso ser afetada por ela. Na vasta obra Antropologia da dor, David Le Breton (1999LE BRETON, David. La Antropología del dolor. Barcelona: Editorial Seix Barral, 1999., p. 09) diz que
Al sentir sus horrores, éste no es el receptáculo pasivo de un órgano especializado que registra vaivenes impersonales de tipo fisiológico. La manera en que el hombre se apropia de la cultura, de unos valores que son los suyos, de su relación con el mundo, suponen un entramado decisivo para su aprehensión. Porque el dolor es, en primer lugar, un hecho situacional66 Ao sentir seus horrores, este não é o receptáculo passivo de um órgão especiali-zado que registra múltiplos impessoais fisiológicos. A maneira em que o homem se apropria da cultura, dos valores que lhe pertence, de sua relação com o mundo, supõe um todo decisivo para sua apreensão. Porque a dor é, em primeiro lugar, um fato situacional (Le Breton, 1999, p. 09, livre tradução)..
Compreende-se, ainda, com o antropólogo, que a dor tem diferentes estágios e mesmo uma dor leve, se constante, pode alterar a relação de uma pessoa consigo mesma, apartando-a de suas relações sociais, como acontece com a enxaqueca e as dores crônicas. Habituar-se à dor modela a forma como o ser se comporta socialmente e tem o poder de deslocá-lo da sociedade, como em casos de dores excruciantes.
Nesse sentido, a abertura do espaço museal para essas questões parece refletir um estado da sociedade, todavia, detectar a dor como uma das principais características nas mulheres presentes leva a uma pergunta indigesta: não seria fetiche nosso fascínio em ver mulheres em situações-limite? Ou, ainda, a resistência à dor, nesses corpos, não nos treina para a própria resistência em sentir o sofrimento da mulher? Dito isso, conversando com a ideia de Le Breton (1999)LE BRETON, David. La Antropología del dolor. Barcelona: Editorial Seix Barral, 1999., a dor nos leva a um momento de epifania em que, enfim, percebemo-nos estranhas a nós mesmas.
A relação com a dor também se aproxima da relação com o risco, outra condição “natural de vulnerabilidade humana” (Leles; Camargo, 2022LELES, Marilia Teodoro de; CAMARGO, Robson Corrêa de. O circo e as performances aéreas: a simulação do risco e a dissimulação da dor. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 12, n. 3, e112568, 2022. Disponível em: https://www.seer.ufrgs.br/index.php/presenca/article/view/112568. Acesso em: 1 nov. 2022.
https://www.seer.ufrgs.br/index.php/pres...
, p. 3). Pensar que o trabalho do processo criativo de dominação do risco poderia ser ainda uma forma de reparação dos apagamentos constantes também alarga o conceito da dor, conferindo dimensões de dominação a protagonistas antes dominadas.
Da desconstrução da beleza e sexualidade
Para compreender a complexa teia da sexualidade feminina na arte, vamos tecer um breve argumento sobre a beleza e a imagem construída da mulher. A beleza e a suposta feminilidade, que marcam a leitura da mulher na sociedade, são construções vastamente exploradas na literatura acadêmica, mas, ainda assim, predominantemente vivenciadas em sua forma mais estereotipada. Griselda Pollock (2008POLLOCK, Griselda. Vision and Difference: Feminism, Femininity and the Histories of Art. Londres; Nova York: Routledge, 2008. (1988)., p. 168), em sua obra que revisa a historiografia da arte dos impressionistas e pré-rafaelitas, diz sobre a ironia existente na máxima da fala masculina que postula que a beleza é uma característica de todas as mulheres. Entretanto, os ideais de beleza, que variam historicamente, estão sempre conectados a um doloroso ideal físico.
Desse modo, a negação a se aproximar da imagem da mulher considerada bela e sexual consiste na própria libertação da classe para a sua entrada no mercado de trabalho e nas universidades, e também envolve a desvinculação da figura feminina delicada, apêndice do homem, à sombra de alguém. Ademais, se, para as mulheres brancas, desvencilhar-se da sexualidade era preciso para se lançar no universo do trabalho e da intelectualidade, para as mulheres negras, desvincular-se da sexualização é, antes, desvincular-se da hipersexualização, visto que “[...] a sexualização como característica biológica dos negros foi difundida de tal forma que, ainda hoje, os corpos negros são marcados por essa constante representação” (Reis, 2019REIS, Marina de Oliveira. O pacto narcísico da casa-grande: a representação das mulheres negras a partir de Lélia Gonzalez e Gilberto Freyre. Humanidades em diálogo, v. 9, n. 1, p. 93-101, 2019., p. 98).
Gonzalez (2020)GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. 1. ed. São Paulo: Zahar, 2020. nos aponta que a mulher negra vive de uma imagem dupla, ora dentro do mito da mulata, ora empregada doméstica. Assim, a autora mostra como os fenômenos do racismo e do sexismo influenciam diretamente a imagem da mulher negra e a sua forma de se colocar no mundo. Reis (2019REIS, Marina de Oliveira. O pacto narcísico da casa-grande: a representação das mulheres negras a partir de Lélia Gonzalez e Gilberto Freyre. Humanidades em diálogo, v. 9, n. 1, p. 93-101, 2019., p. 98), ao interpretar Gonzalez, faz uma síntese certeira das contradições sobre a figura da mulher negra quando coloca que o mito da mulata reside no “[...] entre parênteses do Carnaval, a mulher negra é hipersexualizada, e seu corpo, desejado. Passado esse momento festivo, todo esse desejo acumulado pelo corpo negro vai se descarregar sob a forma de violência, justamente na figura da empregada doméstica”.
A oposição sexualidade versus intelectualidade passa a ficar mais visível a partir dessa construção. Pensar tais camadas, recuperando o pensamento de Pollock (2008)POLLOCK, Griselda. Vision and Difference: Feminism, Femininity and the Histories of Art. Londres; Nova York: Routledge, 2008. (1988)., não é substituir gênero por classe ou gênero por raça, contudo, ajuda-nos a decifrar sensíveis interdependências em todas as formas a fim de compreender as práticas históricas.
Barbosa, quando disserta sobre a sua gestão no museu, mostra a fusão de percepções estéticas, sinalizando principalmente a questão do eu (branco de raízes europeias) e do outro (periférico, de raízes negras):
A política cultural que imprimi ao MAC, de 1987 a 1993, foi feminista, ecológica, crítica, multicultural, e privilegiou a cultura visual do cotidiano e a cultura visual do povo. A exposição Carnavalescos apresentava alegorias de Carnaval que comentavam o universo da arte. Como a cultura visual do povo interpreta a arte? A magnífica exposição de Glaucia Amaral e May Suplicy, Arte periférica: combogós, latas e sucatas (outubro, 1990), foi interpretada erroneamente como exposição de arte popular, quando, naquela época, eu era bem mais radical que hoje e não aceitava sequer essa designação, por ter sido criada pelos intelectuais hegemônicos para nomear o ‘outro’. Assim, estávamos mostrando a cultura visual do povo; entretanto, aqueles que aprenderam pela cartilha da crítica europeia eram, e são, incapazes de reconhecê-la como produção cultural, muito menos como arte (Barbosa, 2011BARBOSA, Ana Mae. A cultura visual antes da cultura visual. Educação, Porto Alegre, v. 34, n. 3, p. 293-301, 2011., p. 300).
Nessa perspectiva, a psicóloga e pesquisadora Joana Novaes (2010)NOVAES, Joana de Vilhena. Com que corpo eu vou? Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2010., que coordena o Núcleo de Doenças da Beleza da PUC-Rio, aponta em seu conjunto de pesquisas a diferença da percepção estética entre as mulheres abastadas e as periféricas. Duas tônicas podem ser percebidas. A primeira é que, enquanto a população abastada procura um padrão magro, a população periférica privilegia as curvas. A segunda nos mostra a percepção delas em relação ao próprio corpo, sendo que o grupo abastado entende o magro enquanto elegante; já o grupo periférico entende que o corpo curvilíneo é mais atrativo e as roupas justas mostram essas formas.
A performance Lunares (2009), de Pilar Albarracín, também documentada em vídeo, coloca a artista sob uma dor causada exatamente pela exibição de seu corpo, de sua dança e de vestimentas que exaltam as curvas de seu corpo. A artista veste um traje típico flamenco, branco, com uma banda que toca ao fundo e, enquanto dança, ela vai se perfurando com uma agulha, formando lunações com sangue vermelho manchando a roupa77 Importante notar que o Flamenco é uma arte de transmissão oral, preservada pelas famílias ciganas da Baixa Andaluzia, e os estudos que tentam rastrear as suas origens acham seus vestígios em meados do século XIX (Grimaldos, 2010). Portanto, o Flamenco é, dentro de seu território, uma arte que surgiu das periferias sociais..
O museu dá espaço à mulher que responde a determinado código de vestimenta e, portanto, de estética possível. Além disso, como em Lunares, o corpo que ousa adentrar a sexualidade é marcado pela dor. Com efeito, aumentando a perspectiva, se analisarmos performance como propõe Judith Butler (2003)BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. 22. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003., dentro de uma lente filosófica que analisa o gênero enquanto performance em construção diária - isto é, ela observa a agência cultural e a subjetividade como discurso normatizante de nossa identidade de gênero -, podemos afirmar, ao observarmos as fotografias acima, que a mulher artista convidada para o museu performa dentro da percepção que cabe à mulher intelectual, aceita pela sociedade, cujas roupas reproduzem o modelo também aceito pelas classes mais abastadas.
Assim, não é preciso olhar longe para percebermos que a sexualidade feminina está num lugar de oposição à mulher intelectualizada, como se a percepção de sua própria sexualidade a colocasse num estado de vulnerabilidade social ou, ainda, como desprovida de inteligência. Retomando a análise das ações de performance, na instalação Dopada (2009), Laura Lima traz uma camisola gigante que se conecta a um tubo de crochê vermelho no qual uma mulher dorme no meio do público, vulnerável ao que acontece ao seu redor e ao público. A curadora, Fazzolari (2021FAZZOLARI, Claudia. Entrevista sobre Mulheres Artistas: corpos estranhos. (Entrevista concedida à autora via e-mail durante 2021 para fins da escrita da tese Memória encarnada: a performance no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. A publicação será disponibilizada junto à tese). São Paulo, 2021., n. p.), conta que o elenco de mulheres convidadas a sentir a instalação consistia em:
[...] atrizes interessadas na experiência de um corpo compreendido como dimensão material particular de uma obra de arte; estudantes de Artes Visuais, motivadas pela proximidade com o ato performático em circunstância em que a própria criadora não vivencia a imersão no seu corpo, mas permite o êxtase a outro corpo de mulher; profissionais de Assistência Social buscando compressão da vulnerabilidade de um corpo exposto em local público.
As mulheres que experienciaram Dopada conseguem achar experiência semelhante no dia a dia da mulher brasileira que necessita de leis específicas, como a Lei Maria da Penha88 A Lei Maria da Penha foi sancionada em 7 de agosto de 2006 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Com 46 artigos distribuídos em sete títulos, ela cria mecanismos para prevenir e coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher em conformidade com a Constituição Federal (art. 226, § 8°) e os tratados internacionais ratificados pelo Estado brasileiro (Convenção de Belém do Pará, Pacto de San José da Costa Rica, Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher)., para proteger seus corpos da objetificação estrutural na sociedade.
Há poucos dias do envio deste artigo, devemos ressaltar, veio à tona o caso do médico anestesista Giovanni Quintella Bezerra, da cidade de São João do Meriti, que abusou sexualmente de uma mulher que ele sedou indevidamente dentro da sala de cirurgia enquanto estava em trabalho de parto (Anestesista..., 2022ANESTESISTA que estuprou mulher durante o parto tem prisão em flagrante convertida em preventiva. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Seção de Notícias, 12 jul. 2022. Disponível em: http://www.tjrj.jus.br/. Acesso em: 1 nov. 2022.
http://www.tjrj.jus.br/...
). Filmado por enfermeiras do hospital, ele foi preso em flagrante99 Conclusão cedida pela delegada Bárbara Lomba, responsável pelo inquérito na Delegacia de Atendimento à Mulher e noticiada pela maioria dos jornais brasileiros. Os vereditos estão sendo noticiados, ainda, dentro do site do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro.. Condenado pelo crime, o estuprador responde em liberdade e está sendo investigado por mais 40 possíveis casos de estupro. Esse recorte revela o quanto o corpo feminino, independente de raça e classe, ainda é sexualizado e subjugado em qualquer condição. A performance Juegos de poder (2009), de Regina José Galindo, escrutina exatamente essa relação de subjugação total do corpo feminino. A artista diz, no roteiro de sua performance:
Un hipnotizador profesional me dormirá. Cuando yo esté en completo estado de trance hipnótico, el hipnotizador me dará una serie de instrucciones para realizar una serie de actos absurdos. El hipnotizador finalizará con la orden o la clara instrucción de yo hacerme la muerta. [...] El dominio del uno sobre el otro. Represión absoluta. Pérdida de voluntad individual como metáfora de la pérdida de voluntad de las sociedades. Son los otros quienes nos manejan. Juego absurdo de poder que rige las relaciones de la humanidad en el mundo. Unos pocos dan las órdenes, el resto las cumple (Galindo, 2009, n.p.)1010 Um hipnotizador profissional me fará dormir. Quando eu estiver em completo estado de transe hipnótico, o hipnotizador me dará uma série de instruções para realizar uma série de atos absurdos. O hipnotizador finalizará com a ordem ou a clara instrução de que eu me faça morta. [...] O domínio de um sobre o outro. Repressão absoluta. Perdida de vontade individual como metáfora da perda da vontade das sociedades. São os outros que nos manipulam. Jogo absurdo de poder que rege as relações da humanidade no mundo. Uns poucos dão as ordens, o resto cumpre (Galindo, 2009, n. p., livre tradução)..
A mulher cujo corpo se distancia da sexualidade, então, habita o espaço destinado à intelectualidade, e a dor passa a ser um pedido desesperado contra as violências diárias sobre os corpos de mulheres, opondo-se, nessa construção sociocultural, ao corpo das mulheres cuja sexualidade aflora através de suas vestes, do corpo aparente e do prazer (Novaes, 2010NOVAES, Joana de Vilhena. Com que corpo eu vou? Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2010.; Reis, 2019REIS, Marina de Oliveira. O pacto narcísico da casa-grande: a representação das mulheres negras a partir de Lélia Gonzalez e Gilberto Freyre. Humanidades em diálogo, v. 9, n. 1, p. 93-101, 2019.; Gonzalez, 2020GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. 1. ed. São Paulo: Zahar, 2020.).
A carne que nada sente
O exercício de suportar a dor - individual ou coletiva - não deixa de parecer um treinamento, pois, como sabemos, só sente dor quem pode ser afetado por ela: quem é capaz de sentir alguma coisa. Um corpo vivo e saudável é capaz de sentir dor e prazer. Um ou outro, apenas, torna a experiência humana incompleta ou, ainda, coloca o corpo num estado de não sentir absolutamente nada.
Ao pensarmos na representação dessa dor coletiva, o gradual aumento no suportar a dor física tem um preço: a carne que nada sente torna-se insensível. Desse modo, a mesma carapaça que se constrói na resistência física da dor também pode agir como carapaça para o sensível ao prazer. Le Breton (1999)LE BRETON, David. La Antropología del dolor. Barcelona: Editorial Seix Barral, 1999. diz, nessa seara, que “si el dolor es un estado molesto, también es una defensa apreciable contra la inexorable hostilidad del mundo”1111 Se a dor é um estado incômodo, também é uma defesa apreciada contra a ine-xorável hostilidade do mundo (Le Breton, 1999, p. 15, livre tradução). Em suma, o corpo da mulher torna-se um local de tantas outras, de forma que a performance, pelo corpo de uma, afeta o corpo de todas - mesmo que, para tanto, o corpo dessa uma se torne cada vez mais insensível à sua própria dor física. Diante disso, seria possível sentir o grito que revela o feminicídio que tantas mulheres sofrem diariamente em silêncio? Na performance (279) Golpes, trazida por vídeo (2009), Galindo não dá nome às 279 mulheres mortas na Guatemala entre 1o de janeiro a 9 de junho de 2005, representadas sobre suas costas nuas, num quarto escuro, mas o som das chibatadas vela para que a morte delas não seja esquecida e, quiçá, para que outras sejam evitadas.
Nesse sentido, a sociedade se constrói como um local onde a prática de violência contra a mulher - ou pessoas socializadas como mulheres durante parte de sua vida - é naturalizada, e quanto mais intersecção há nos grupos de mulheres, maior é o abismo entre os direitos que se estabelecem na sociedade e os que continuam no limbo do esquecimento. A dor, portanto, transforma-se numa construção social, visto que a fisiologia humana não começa de um estado de pureza, como se o corpo não fizesse parte da história; o corpo é atravessado por “simbolismos sociales y culturales” (Le Breton, 1999LE BRETON, David. La Antropología del dolor. Barcelona: Editorial Seix Barral, 1999., p. 137)1212 Simbolismos sociais e culturais (Le Breton, 1999, p. 137, livre tradução)..
Gozaremos de futuro?
Essa fome de espaço para que a arte possa denunciar um estado de violência e desigualdade para a população feminina incita a outras questões, como o fetiche dessa mulher que está sempre no limite de algo. Modleski (apud Phelan, 1996PHELAN, Peggy. Unmarked: The Politics of Performance. Londres; Nova York: Routledge, 1996.), quando apontou para o desafio da oposição de dor versus prazer, também aponta para o desafio de uma escrita performativa, que se aproxima de um futuro no qual as mulheres possam sentir prazer.
A percepção que as diferentes mulheres têm de seu próprio corpo atravessa a percepção de si e de sua relação com o espaço que as recebe, pois entende-se que existe uma estética intelectual dentro desse ambiente - em relação não apenas aos temas das obras, mas em relação às próprias artistas presentes. Ademais, a percepção do hiato de determinado grupo dentro do espaço museal é importante para desenharmos um futuro em que mulheres ocupem os locais de protagonismo. Para tanto, olhamos para a construção da sexualidade em torno delas.
Quando especificamos a questão da dor e da sexualidade nos temas de performance apresentados, não nos referimos à sexualidade das artistas de forma individual, mas à percepção da (não) sexualidade que o museu expõe. Em outras palavras, falamos da ausência do prazer como tema nas obras de mulheres. Nesse aspecto, diante de nosso arquivo de performances, uma mulher que se coloca na condição suprema de regozijo parece-nos a exceção: quem tem medo de uma mulher capaz de sentir prazer?
Com uma exceção temática no ambiente da alta cultura, surge como um sopro leve que levanta a poeira de terra vermelha, projetada nas paredes do museu, a obra Poeiragem. A performance para vídeo fez parte do conjunto de obras de Trans lu(z)cidez, do coletivo nacional Projetemos, que estava dentro da exposição Além de 2020. Arte italiana na pandemia, curada por Teresa Emanuele e Nicolas Ballario, em 2021, no MAC-USP. A artista da dança e terapeuta sexual Preta Kiran projeta-se num breve momento pelas paredes do museu com um sopro de futuro possível. A obra Poeiragem é a exceção, a antítese, desse conjunto de obras e de mulheres, com uma abordagem artística que fala sobre identidade, território e natureza através de uma relação nítida de prazer. A câmera revela a poeira subindo pelos pés que batem no chão e, em seguida, mostra o rosto da artista, sorrindo, e floresce uma dança cheia de toques sobre o próprio corpo com carinho e afeição. Seu olhar, que conversa com a câmera de frente, é profundo e sereno. Com isso, a artista investiga o tema Imagem do Território Afro-Brasileiro, e seu corpo, ao contrário dos estereótipos incrustados na cultura, mostra uma mulher confortável em sua pele.
De todas as artistas, Preta Kiran entra como uma parte dentro de um coletivo que compõe uma exposição coletiva. Uma pequena parcela. Pela projeção que emana o corpo dançado em outro lugar, mas ao contrário de um fantasma indesejado, a performance transfigura-se num presságio de futuro vivaz capaz de tudo sentir, incluindo prazer.
Considerações finais
Um vídeo ou fotografia de performance não é a performance em si, de forma que sua natureza efêmera faz com que a sua duração seja limitada.
Todavia, isso não quer dizer que os rastros da performance estejam mortos, uma vez que eles são sopros de memória que podem chegar ao corpo de quem pensa sobre esses acontecimentos.
Então, para dar vazão às reflexões provenientes do conjunto de performances, este texto citou as obras, mas não se ocupou de uma análise crítica de cada uma delas. Com efeito, embora árduo, esse recolhimento do que foi performado é absolutamente necessário para entender, quantitativa e qualitativamente, as histórias contadas dentro do museu através da performance, isto é, entender em quais contextos o corpo em movimento torna-se bem-vindo nesse ambiente, bem como quais são os corpos que estão ali. Perceber que há apenas determinado tipo de mulher, de determinada raça (branca) e que é vista dentro do padrão aceito pelo corpus intelectual vigente (dessexualizado) parece conduzir a perguntas que caem num maniqueísmo simplório entre um ou outro, o que é legítimo ou não. Percebe-se mais frutífero saber que, sim, há determinado tipo de performance dentro desse espaço cultural que só é exercido por mulheres que correspondem a esse padrão, e tal percepção precisa, com urgência, conduzir a um espaço mais polissêmico e heterogêneo - pois é dado que há uma questão de raça vigente e, frequentemente, uma classe que ainda tem voz homogênea dentro do museu.
Como nos lembra Taylor (2016bTAYLOR, Diana. Regina José Galindo. Radical Exposure. Earth (2013). Nova York: New York University; Hemispheric Institute, 2016b. Disponível em: http://hemi.nyu.edu/courses/sp2016-performance-and-activism/wp-content/uploads/sites/8/2016/03/Taylor-Radical-Exposure.pdf. Acesso em: 1 nov. 2022.
http://hemi.nyu.edu/courses/sp2016-perfo...
, n. p.), a performance que representa a denúncia, atrocidade, testemunho de atentado traz marcada uma grande assimetria de poder, entretanto, é impossível uniformizar ou destituir de singularidade a performance exatamente por sua presença efêmera, pois, nesse espaço de tempo, ela é sua singularidade e a dor coletiva. Por isso repetimos: quem tem medo da mulher capaz de sentir prazer? O conjunto apresentado guarda, mesmo em seu fio condutor a partir da dor, singularidades na performance de realidades distintas. Trazer à baila futuros refeitos em regozijo, via performance, é colocar em perspectiva não apenas alguma reparação ao passado - se é que possível -, mas a perspectiva de um presente capaz de sentir tudo, principalmente prazer. Tal pluralidade coloca em diálogo pensamentos críticos capazes de formular um futuro que abarque a complexidade de múltiplas mulheres e, porventura, abrir caminhos para construções estéticas favoráveis a todas elas. Ainda mais, a exposição dessas diferentes construções nesse espaço museológico obrigatoriamente confronta o homogeneizado a se compreender num espaço de criação identitária, pois o que é dominante nunca se compreende como recorte cultural, sempre como o todo.
A performance foge à regra colecionista que rege as grandes instituições de arte: ela não pode ser colecionada, ela precisa da efemeridade do presente para se fazer potente. Para a performance, dito isso, o museu seria um espaço de habitação onde as pessoas precisam estar ativas e atentas para o que acontece, com menos mediação e mais provocação. Mais, ela permite singularidades culturais em sua ontologia, sua efemeridade é o poder sentido nos rituais, nas cenas, nas coreografias, nos improvisos, entre outros, sem qualquer conexão umas com as outras na superfície - seja técnica, contextual ou socialmente -, mas radicalmente emaranhadas na raiz, cuja potência máxima é sentida por quem está ali, parte da performance e, portanto, performando.
Notas
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1A construção deste arquivo de performance do MAC-USP é parte da tese de doutorado da autora, denominada Memória encarnada: a performance a partir do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, da Pósgraduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo, reunindo um panorama com dados primários (com entrevistas de artistas e curadores) e dados secundários, junto a catálogos e documentos oficiais. Ademais, aqui falamos em quantidade de artistas, não em quantidade de obras, pois algumas delas tiveram mais de uma obra no mesmo espaço.
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2O voto é reconhecido em 1932, incorporado à Constituição em 1934 de forma facultativa e passa a ser obrigatório em 1965.
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3As obras de dança entram neste panorama, pois a linguagem da dança enqua-dra-se na lente metodológica utilizada. Entendemos que as danças filmadas são rastros para a performance física (restored behavior), além de permitirem o aprendizado corporal via repetição - a filmagem da dança permite que uma memória seja digitalizada e possa passar a outro corpo, além do próprio treinamento de quem dança (Schechner, 1988SCHECHNER, Richard. Performance Theory. Nova York: Routledge, 1988.; Taylor, 2016aTAYLOR, Diana. Performance. Durham; London: Duke University Press, 2016a.).
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4Artista que atingiu um altíssimo grau de conhecimento e domínio técnico na execução de sua arte; virtuosa.
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5Conceitos de dor desvelados no artigo A dor, de Manoel Tosta Berlinck (1999)BERLINCK, Manoel Tosta. A dor. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, v. II, n. 3, p. 46-58, 1999..
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6Ao sentir seus horrores, este não é o receptáculo passivo de um órgão especiali-zado que registra múltiplos impessoais fisiológicos. A maneira em que o homem se apropria da cultura, dos valores que lhe pertence, de sua relação com o mundo, supõe um todo decisivo para sua apreensão. Porque a dor é, em primeiro lugar, um fato situacional (Le Breton, 1999LE BRETON, David. La Antropología del dolor. Barcelona: Editorial Seix Barral, 1999., p. 09, livre tradução).
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7Importante notar que o Flamenco é uma arte de transmissão oral, preservada pelas famílias ciganas da Baixa Andaluzia, e os estudos que tentam rastrear as suas origens acham seus vestígios em meados do século XIX (Grimaldos, 2010GRIMALDOS, Alfredo. Historia social del flamenco. Barcelona: Península, 2010.). Portanto, o Flamenco é, dentro de seu território, uma arte que surgiu das periferias sociais.
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8A Lei Maria da Penha foi sancionada em 7 de agosto de 2006 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Com 46 artigos distribuídos em sete títulos, ela cria mecanismos para prevenir e coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher em conformidade com a Constituição Federal (art. 226, § 8°) e os tratados internacionais ratificados pelo Estado brasileiro (Convenção de Belém do Pará, Pacto de San José da Costa Rica, Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher).
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9Conclusão cedida pela delegada Bárbara Lomba, responsável pelo inquérito na Delegacia de Atendimento à Mulher e noticiada pela maioria dos jornais brasileiros. Os vereditos estão sendo noticiados, ainda, dentro do site do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro.
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10Um hipnotizador profissional me fará dormir. Quando eu estiver em completo estado de transe hipnótico, o hipnotizador me dará uma série de instruções para realizar uma série de atos absurdos. O hipnotizador finalizará com a ordem ou a clara instrução de que eu me faça morta. [...] O domínio de um sobre o outro. Repressão absoluta. Perdida de vontade individual como metáfora da perda da vontade das sociedades. São os outros que nos manipulam. Jogo absurdo de poder que rege as relações da humanidade no mundo. Uns poucos dão as ordens, o resto cumpre (Galindo, 2009, n. p., livre tradução).
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11Se a dor é um estado incômodo, também é uma defesa apreciada contra a ine-xorável hostilidade do mundo (Le Breton, 1999LE BRETON, David. La Antropología del dolor. Barcelona: Editorial Seix Barral, 1999., p. 15, livre tradução)
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12Simbolismos sociais e culturais (Le Breton, 1999LE BRETON, David. La Antropología del dolor. Barcelona: Editorial Seix Barral, 1999., p. 137, livre tradução).
Referências
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
13 Mar 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
20 Jul 2022 -
Aceito
03 Nov 2022