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A ideia de afetividade na filosofia e na educação

The idea of affection in philosophy and education

La idea de afectividad en la filosofía y la educación

Resumo:

No contexto da educação, a afetividade é parte integrante no que se refere à formação humana. Considera-se como premissa a possibilidade de recuperação do significado de afetividade, que exerce um papel fundamental no desenvolvimento integral da pessoa. O objetivo deste artigo é estabelecer a compreensão da afetividade na perspectiva de Dietrich von Hildebrand no âmbito da filosofia da educação. A metodologia utilizada é a interpretação hermenêutica segundo Ricoeur. O texto está dividido em três seções principais, nas quais é analisada a ideia de afetividade na filosofia e suas implicações para a educação: 1) Ideias concernentes à afetividade no âmbito da filosofia da educação; 2) O papel da afetividade na educação integral; e 3) Natureza e conceito de afetividade: implicações éticas para a educação. Propõe-se a recuperação do conceito de afetividade na formação humana e sua função integradora em conexão com as dimensões da razão e da vontade. Argumenta-se que a afetividade se relaciona aos elementos básicos do ser humano. Conclui-se que a afetividade precisa ser compreendida e trabalhada no contexto da educação, na medida em que é uma dimensão fundamental na vida do ser humano, pois sem ela não seria possível a cognição, e a inteligência funcionaria de modo deficiente.

Palavras-chave:
afetividade; educação; Dietrich von Hildebrand.

Abstract:

In the educational context, affection is an essential part of human development. We consider the possibility of recovering the connotation of affection as a premise, which plays a fundamental role in the integral development of the person. The focus of this study is to establish an understanding of affection from Dietrich von Hildebrand's perspective in the context of the philosophy of education. Using Ricoeur's hermeneutic theory of interpretation as methodology, the text is divided into three main sections which analyze the idea of affection in philosophy and its educational implications: 1. Ideas regarding affection in the field of philosophy of education; 2. The role of affection in integral education; and 3. The nature and concept of affection: ethical implications for education. We propose a recovery of the concept of affection in human upbringing and its inclusive part in connecting with the dimensions of reason and will. It is argued that affection is related to the basic elements of a human being. The conclusion is that affection must be assimilated and worked within the context of education, insofar as it is an elementary dimension in the life of a human being, since cognition would not be possible, and intelligence would operate poorly without it.

Keywords:
affectivity; education; Dietrich von Hildebrand.

Resumen:

En el contexto de la educación, la afectividad es parte integrante del desarrollo humano. Se considera premisa la posibilidad de recuperar el significado de la afectividad, que desempeña un papel fundamental en el desarrollo integral de la persona. El objetivo de este artículo es establecer una comprensión de la afectividad desde la perspectiva de Dietrich von Hildebrand en el contexto de la Filosofía de la Educación. La metodología utilizada es la interpretación hermenéutica según Ricoeur. El texto se divide en tres principales apartados en los que se analiza la idea de afectividad en filosofía y sus implicaciones para la educación: 1. Las ideas relativas a la afectividad en el contexto de la Filosofía de la Educación; 2. El papel de la afectividad en la educación integral; y 3. La naturaleza y el concepto de afectividad: implicaciones éticas para la educación. Se propone recuperar el concepto de afectividad en la formación humana y su función integradora en conexión con las dimensiones de razón y voluntad. Sostiene que la afectividad está relacionada con los elementos básicos del ser humano. Concluye que la afectividad necesita ser comprendida y trabajada en el contexto de la educación, ya que es una dimensión fundamental en la vida del ser humano, pues sin ella no sería posible la cognición, por lo que la inteligencia funcionaría deficientemente.

Palabras clave:
afectividad; educación; Dietrich von Hildebrand.

Introdução

O processo educativo acompanha a humanidade, embora em seu início não tenha havido clareza quanto à sua necessidade nem sequer preocupação com o modo processual. Conforme Jaspers (2011JASPERS, K. Introdução ao pensamento filosófico. Tradução de Leônidas Hegerbeg e Octanny Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 2011.), com a invenção da escrita, a informação brota do registro de experiências e ações em sucessivo aperfeiçoamento. Tanto a filosofia quanto a educação permitem esse desvelar que o ser humano precisa fazer, no intuito de evitar o estado de inércia intelectual e de buscar maior conhecimento.

No sexto capítulo do livro Diálogos: apologia de Sócrates, escrito por Platão (1980PLATÃO. Diálogos: apologia de Sócrates, Critão, Menão, Hípias Maior e outros. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Pará: UFP, 1980. v. 1-2.) - 427-347 a. C - quando Sócrates - 469-399 a.C. - tenta se defender da acusação de não aceitar os deuses de Atenas nem corromper a juventude, diz:

Sou mais sábio do que aquele homem, pois que, ao contrário, nenhum de nós sabe nada de belo e bom, mas aquele homem acredita saber alguma coisa, sem sabê-la, enquanto eu, como não sei nada, também estou certo de não saber. (Platão, 1980PLATÃO. Diálogos: apologia de Sócrates, Critão, Menão, Hípias Maior e outros. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Pará: UFP, 1980. v. 1-2.).

Em sua defesa, o filósofo reconhece que nada sabe e mostra o teor danoso da argumentação sofista, que tem aparência de verdade em seus raciocínios, mas na realidade são falsos. Os filósofos foram os primeiros a levantarem questões referentes à formação da pessoa em sua essência, principalmente a partir de Sócrates e de seu rompimento com o modelo de ensino vigente em seu tempo. Ao instaurar a estratégia de fazer perguntas (conhecida como método socrático), de acordo com Ponchirolli (2008PONCHIROLLI, O. Introdução à filosofia grega. Petrópolis: Vozes, 2008. ), o filósofo abre espaço para o diálogo com os alunos e valoriza o conhecimento produzido pelo outro.

Aristóteles (2014ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Edson Bini. 4. ed. São Paulo: Edipro , 2014.) - século 4º a.C. -, discípulo de Platão, divergiu do mestre em alguns assuntos, mas ambos estão concordes no que se refere à educação, como se pode ler a seguir:

De fato, é devido ao prazer que realizamos ações vis e devido à dor que deixamos de realizar ações nobres. Daí a importância, segundo Platão, de ser especialmente educado desde a infância a gostar e a não gostar das coisas: nisso consiste efetivamente a educação correta. (Aristóteles, 2014ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Edson Bini. 4. ed. São Paulo: Edipro , 2014., livro II, 1104 b1-10).

Podemos entender, desse modo, a ideia de que o homem deve ser ajudado, orientado e, desde a sua infância, encorajado a superar os limites de sua natureza, em um esforço contínuo na busca do conhecimento. Aristóteles (2014ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Edson Bini. 4. ed. São Paulo: Edipro , 2014., livro I, 1095a 1-15) ainda propõe: “Posto que todo conhecimento e prévia escolha objetivam algum bem, examinemos o que cumpre declararmos ser a meta da política, ou seja, qual o mais elevado entre todos os bens cuja obtenção pode ser realizada pela ação”. Essa afirmativa destaca as dimensões ética e política como inerentes à própria formação humana. Em outro trecho, teoriza que “a educação tem papel fundamental nessa formação, ENT#091;...ENT#093; razão pela qual, a fim de ser um bom discípulo do correto e do justo e, em suma, dos tópicos da política em geral, o discípulo tenha de ser educado nos bons hábitos” (Aristóteles, 2014ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Edson Bini. 4. ed. São Paulo: Edipro , 2014., livro I, 1095b 1-5). Há um processo no qual a educação visa à prática de bons hábitos; atividade que favorece a vivência da virtude.

O filósofo francês Maritain (1985MARITAIN, J. Introdução geral à filosofia. 14. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1985. (Elementos de Filosofia 1)., p. 57) salienta que a obra de Aristóteles “encerra também o germe inteiramente formado da sabedoria universalmente humana; as virtualidades contidas neste germe comportam um desenvolvimento ilimitado”. Não seria exagero afirmar que as virtudes aristotélicas conservam sua relevância para a vida ética. Corrobora essa argumentação o filósofo MacIntyre (2021MACINTYRE, A. Depois da virtude: um estudo em teoria moral. Tradução de Pedro Arruda e Pablo Costa. Campinas: Vide Editorial, 2021.), ao enfatizar que é possível propor as virtudes, na contemporaneidade, objetivando estabelecer a ética como parâmetro norteador do pensamento e da ação. Nessa perspectiva, a educação tem o papel de promover a plena realização, não somente no campo da ética, mas em todas as dimensões da vida humana.

Maritain (1985MARITAIN, J. Introdução geral à filosofia. 14. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1985. (Elementos de Filosofia 1)., p. 47), ao comentar a oposição de Sócrates aos métodos de ensino aplicados em Atenas, afirma que “os sofistas pretendiam saber tudo e não criam na verdade; Sócrates faz profissão de ignorância e ensina seus ouvintes a procurarem somente a verdade”. Para quem se propõe a alcançar o conhecimento verdadeiro, Sócrates mostra ser fundamental a aplicação das virtudes honestidade e veracidade como um critério norteador, evitando qualquer espécie de sofisma que prometa levar o sujeito ao conhecimento, mas, com efeito, leva-o a equívocos. Vale lembrar que, ainda segundo Maritain (1985MARITAIN, J. Introdução geral à filosofia. 14. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1985. (Elementos de Filosofia 1)., p. 48), “Sócrates não era metafísico, era antes um médico das almas. Não estava empenhado em construir um sistema, mas em fazer com que as inteligências trabalhassem”. O filósofo grego indaga para, a partir das respostas, promover a construção do conhecimento, e não a simples transmissão de ideias.

Os nomes de Maritain (1959MARITAIN, J. Rumos da educação. Tradução de Inês Fortes de Oliveira. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1959. ) e de Piaget (1987PIAGET, J. O nascimento da inteligência na criança. Tradução de Álvaro Cabral. 4. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987. , 2011PIAGET, J. Para onde vai a educação? Tradução de Ivette Braga. 20. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011. , 2013PIAGET, J. Psicologia da inteligência. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis: Vozes, 2013., 2014PIAGET, J. Relações entre a afetividade e a inteligência no desenvolvimento mental da criança. Organização de Tradução de Cláudio J. P. Saltini e Doralice B. Cavenaghi. Rio de Janeiro: Wak, 2014.) sobressaem pela confirmação de que o educando é sujeito de um processo de construção do conhecimento. Para Maritain (1959MARITAIN, J. Rumos da educação. Tradução de Inês Fortes de Oliveira. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1959. ), a educação sistematizada:

ENT#091;...ENT#093; tem, na verdade, um mundo próprio, que consiste na dignidade e nas realizações do conhecimento e da inteligência, isto é, da faculdade essencial ao ser humano. Pois a finalidade deste mundo mesmo está naquele conhecimento que é também sabedoria. (Maritain, 1959MARITAIN, J. Rumos da educação. Tradução de Inês Fortes de Oliveira. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1959. , p. 53).

Tal faculdade do ser humano consiste na capacidade de construir seu conhecimento à medida que é sujeito de sua própria formação. Piaget (1987PIAGET, J. O nascimento da inteligência na criança. Tradução de Álvaro Cabral. 4. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987. , 2013PIAGET, J. Psicologia da inteligência. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis: Vozes, 2013., 2014PIAGET, J. Relações entre a afetividade e a inteligência no desenvolvimento mental da criança. Organização de Tradução de Cláudio J. P. Saltini e Doralice B. Cavenaghi. Rio de Janeiro: Wak, 2014.) não mostra sua teoria diretamente no aprendizado, pois estabeleceu uma epistemologia, cuja mola é a afetividade impulsionando a inteligência. De acordo com esse pensador, o início da inteligência corresponde ao nascimento da criança, no período sensório-motor (de 0 a 2 anos), em um processo que se desenvolve nas atividades mentais em adaptação e equilíbrio entre a assimilação e a acomodação, no qual é estruturado o raciocínio, modificando a cognição.

Segundo esse autor, a inteligência não aparece em um determinado momento do desenvolvimento mental, como um mecanismo inteiramente montado, mas há uma continuidade em construção e interações com os processos inatos e os adquiridos.

Ao estudar as estruturas da inteligência segundo a perspectiva do epistemólogo suíço, Macedo (1980MACEDO, L. As estruturas da inteligência, segundo Piaget: ritmos, regulações e operações. Arquivos Brasileiros de Psicologia, Rio de Janeiro, v. 32, n. 4, p. 37-43, out./dez. 1980. ) conclui que, de acordo com a Epistemologia Genética de Piaget,

ENT#091;...ENT#093; o conhecimento não está nem no sujeito nem no objeto, mas decorre das interações entre um e outro ENT#091;...ENT#093;. Estas interações dependem, desde o início da vida do sujeito, de dois aspectos complementares e irredutíveis - um afetivo e outro cognitivoENT#091;...ENT#093;. (Macedo, 1980MACEDO, L. As estruturas da inteligência, segundo Piaget: ritmos, regulações e operações. Arquivos Brasileiros de Psicologia, Rio de Janeiro, v. 32, n. 4, p. 37-43, out./dez. 1980. , p. 37).

Compreendemos que as duas dimensões se conjugam de modo que não se pode pensar, dentro da educação, em formação humana sob um dos aspectos somente, dispensando o outro. Tais interações supõem que o desenvolvimento afetivo se apresenta tão importante quanto o cognitivo e o volitivo.

Ideias concernentes à afetividade no âmbito da filosofia da educação

Contemporâneo de Maritain e Piaget, Dietrich von Hildebrand (1889-1997) - filósofo central na pesquisa empreendida neste artigo - também adentra no século 20 com propostas filosóficas instigantes que podem ser aplicadas à Educação, entre elas a da “fenomenologia realista da afetividade”, cujo cerne consiste na experiência humana e consequente captação e compreensão dos fenômenos da vida consciente. Para von Hildebrand (1996VON HILDEBRAND, D. Las formas espirituales de la afectividad. Traducción castellana de Juan Miguel Palacios. Madrid: Universidad Complutense, 1996., 2007VON HILDEBRAND, D. The heart: an analysis of human and divine affectivity. South Bend, Indiana: St. Augustine’s Press, 2007., 2009VON HILDEBRAND, D. The nature of love. South Bend, Indiana: St. Augustine’s Press, 2009. ), a afetividade possui um componente ativo e funciona como ponte de ligação entre a vida interior e os acontecimentos sociais. Nesse sentido, compreende a afetividade como o ato voluntário envolvendo a intencionalidade e motivação consciente.

Von Hildebrand (2007VON HILDEBRAND, D. The heart: an analysis of human and divine affectivity. South Bend, Indiana: St. Augustine’s Press, 2007., p. 4) argumenta que essa dimensão humana foi mal compreendida, ao afirmar: “Toda a esfera afetiva foi em sua maior parte subordinada ao título de paixões e, enquanto se tratou dela expressamente sob este título, seu caráter irracional e não espiritual foi enfatizado”. Esse problema da má compreensão da esfera afetiva atravessa a obra The Heart e mostra o propósito desse filósofo de reabilitar a afetividade em seu significado correto. A fenomenologia realista se preocupa, igualmente, com a exegese do amor. Em suas obras, enfatiza a necessidade de a natureza do amor ser analisada, evitando começar por analogias ou por aspectos periféricos que possam levar a equívocos. Sugere, portanto, um estudo realista das manifestações do amor e da afetividade, fonte da felicidade na vida do ser humano.

Esse tema se soma à compreensão da educação como um processo que proporciona as condições para o desenvolvimento da pessoa em sua totalidade, contribuindo sobremaneira para o aperfeiçoamento das potencialidades (adormecidas ou em crescimento) do educando. Sob a visão da filosofia da educação, a afetividade é concernente aos corpos docente e discente, uma vez que ambos são diretamente afetados por suas manifestações e, em contrapartida, por suas respostas, em um movimento ativo, e não meramente reativo, como explica esse filósofo alemão, por corresponderem às tomadas de decisões diante dos acontecimentos.

Notemos o imenso valor educacional do presente assunto quando referido aos processos de ensino/aprendizagem. Autores como Rovira (2006ROVIRA, R. Los tres centros espirituales de la persona: introducción a la filosofía de Dietrich von Hildebrand. Madrid: Fundacion Emmanuel Mounier, 2006. (Colección Persona).), Miranda (2019MIRANDA, B. R. C. O início do processo de formação do caráter das crianças na educação infantil. 2019. 131 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019. ), Silva e Goto (2020SILVA, M. Z.; GOTO, T. A. Emoção e afetividade na fenomenologia e nas ciências cognitivas: uma compreensão a partir da Fenomenologia de Dietrich von Hildebrand e Natalie Depraz. Ciências & Cognição, Rio de Janeiro, v. 25, n. 1, p. 82-98, nov. 2020.) e Sucupira Lins (2021, 2022a, 2022b) que refletem sobre os conceitos de educação, de pessoa, de parâmetros e de valores éticos na formação humana também se debruçaram sobre as questões concernentes à afetividade.

Concentramos nosso foco, em especial, no processo educativo, com relação às dimensões da afetividade, da razão e da vontade como componentes intrinsicamente vinculados. Avançando no assunto, Rates e Sucupira Lins (2021RATES, F. M.; SUCUPIRA LINS, M. J. C. Filosofia da educação e desenvolvimento da pessoa humana por meio da construção de conceitos éticos. Pesquiseduca, Santos, v. 13, n. 30, p. 409-425, maio/ago. 2021.) elucidam a interligação da razão e da vontade com a ética, valor sem o qual o ser humano fica obscurecido:

A importância do processo educativo deve privilegiar a formação ética nas escolas e universidades. Ninguém nasce ético; é preciso ensinar a preciosidade destes conhecimentos para as futuras gerações. A pessoa, enquanto ser constituinte da sociedade, está caindo em desuso, perdendo sua essência e valor. Há um turbilhão de desvalorização da pessoa enquanto sujeito na sociedade. Há uma virtude na natureza humana e é preciso que a pessoa descubra sua disposição para a razão e sua vontade de agir de acordo com os fins necessários para a felicidade humana. Isto é a busca do bem comum que precisamos para sermos felizes na comunidade e para a construção de uma sociedade humanizada e de princípios. O ser humano é pessoa de valor e deve ser compreendido em toda a sua totalidade de acordo com seu humanismo integral. (Rates; Sucupira Lins, 2021RATES, F. M.; SUCUPIRA LINS, M. J. C. Filosofia da educação e desenvolvimento da pessoa humana por meio da construção de conceitos éticos. Pesquiseduca, Santos, v. 13, n. 30, p. 409-425, maio/ago. 2021., p. 423).

No texto destacado, as autoras sustentam a necessidade de se descobrir a disposição para a razão e a vontade de agir de acordo com os fins necessários para a felicidade humana. Educa-se não somente a parte intelectual e racional da pessoa, mas também as dimensões volitiva e afetiva.

Continuando a argumentação que realça a afetividade não como simples afetação, mas no significado de experiência afetiva autêntica, von Hildebrand (1996VON HILDEBRAND, D. Las formas espirituales de la afectividad. Traducción castellana de Juan Miguel Palacios. Madrid: Universidad Complutense, 1996., 2007VON HILDEBRAND, D. The heart: an analysis of human and divine affectivity. South Bend, Indiana: St. Augustine’s Press, 2007., 2009VON HILDEBRAND, D. The nature of love. South Bend, Indiana: St. Augustine’s Press, 2009. ) também a entende em sua dimensão espiritual, como a capacidade de empreender ações conscientes, dotadas de razão e de vontade, e não como forças dos instintos ou de processos fisiológicos.

Von Hildebrand (2007VON HILDEBRAND, D. The heart: an analysis of human and divine affectivity. South Bend, Indiana: St. Augustine’s Press, 2007.) alerta quanto ao lugar secundário em que o estudo da afetividade tem permanecido, o que indica o desinteresse por maiores investigações acerca do tema. Ao ser classificada no campo das paixões, essa esfera intrínseca ao ser humano caiu em descrédito. Observa ainda que o coração é o centro da pessoa humana e explica os fenômenos decorrentes de sua conexão com a afetividade.

Partimos do pressuposto de que é possível compreender o conceito de afetividade, na perspectiva de von Hildebrand, no contexto educacional.

Consideramos que a afetividade exerce um papel fundamental no desenvolvimento integral da pessoa humana. Há urgência em se recuperar o devido lugar integrador da afetividade em relação à razão e à vontade, dentro do processo educativo.

O papel da afetividade na educação integral

Segundo von Hildebrand (2007VON HILDEBRAND, D. The heart: an analysis of human and divine affectivity. South Bend, Indiana: St. Augustine’s Press, 2007., p. 5), “toda a área afetiva, e mesmo o coração, foi vista à luz dos sentimentos corporais, estados emocionais ou paixões no sentido estrito do termo”, o que acarretou consequências desastrosas pelo desinteresse e pelo não reconhecimento do papel da afetividade na educação. A afetividade se destaca no âmbito da educação, pois nesta se pretende recuperar a compreensão da esfera afetiva na formação humana integral.

A individualidade da pessoa humana indica o papel específico da afetividade em relação aos outros seres vivos:

Ao contemplar o significado completamente novo da individualidade na pessoa em comparação com um animal, uma planta ou alguma substância inanimada, não podemos deixar de compreender o papel específico e significativo que a afetividade desempenha. (Von Hildebrand, 2007VON HILDEBRAND, D. The heart: an analysis of human and divine affectivity. South Bend, Indiana: St. Augustine’s Press, 2007., p. 40).

Há nessas palavras a valorização da dignidade da pessoa humana em relação a outros seres, que retratam a realidade espiritual do ser humano, dotado de afetividade, razão e vontade. Um papel preponderante é desempenhado pela esfera afetiva, sem a qual não haveria interação entre a esfera volitiva e a racionalidade.

Sem a esfera afetiva, o sujeito tenderia ora para as vontades desgovernadas, ora para os pensamentos desordenados. O termo indivíduo é aqui utilizado no sentido atribuído por Maritain (1984MARITAIN, J. Para una filosofía de la persona humana. Traducción castellana de Abelardo González, Rodolfo Martínez Espinosa, Rafael Pividal y Antonio Vallejo. Buenos Aires: Club de Lectores, 1984. , p. 148): “A individualidade, ou mais precisamente, individuação, é o que faz uma coisa da mesma natureza de que a outra diferir dessa outra dentro da mesma espécie e do mesmo gênero”. Com essa argumentação, destaca a pessoa humana enquanto indivíduo único, irrepetível, dentro de todo o universo, e o inegável valor universal e absoluto da pessoa humana. Contudo, é preciso fazer uma distinção entre a expressão pessoa humana e o termo indivíduo, como esclarece:

A pessoa é “uma substância individual completa, de natureza intelectual e dona de seus atos”, sui juris, autônoma, no sentido autêntico da palavra. (...) A denominação do indivíduo, por outro lado, é comum ao homem e ao animal, à planta, ao micróbio e ao átomo. (Maritain, 2006MARITAIN, J. Los tres reformadores: Lutero, Descartes, Rousseau. Traducción castellana de Ágel Álvarez de Miranda. Madrid: Encuentro, 2006., p. 24-25, grifo do autor).

Embora os termos pessoa e indivíduo sejam geralmente utilizados como sinônimos na linguagem diária, existe uma diferença: pessoa humana se refere a um ser intelectual e espiritual, ao passo que indivíduo se reveste de caráter físico, material e representante de uma espécie, derivando, daí, o princípio de individuação. O sujeito - pessoa humana - é um indivíduo social e único, irrepetível na imensidão do universo. A pessoa, ao nascer, precisa passar por um processo de educação para chegar ao máximo de plenitude possível. De acordo com Maritain (1959MARITAIN, J. Rumos da educação. Tradução de Inês Fortes de Oliveira. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1959. , p. 44), “a educação, no seu sentido mais lato, deve compreender semelhante encadear de funções. E aperfeiçoar tanto a inteligência quanto a vontade”. Por meio da educação, a pessoa se conhece, amadurece sua personalidade, aprimora seus conhecimentos. Para esse processo, faz-se necessário que sejam incluídas virtudes que favorecem a formação como um todo.

A educação, por seu alcance abrangente, está relacionada às várias dimensões do ser humano, e não se restringe à escola. Maritain (1959MARITAIN, J. Rumos da educação. Tradução de Inês Fortes de Oliveira. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1959. , p. 49) afirma que “não há ilusão mais prejudicial do que procurar encerrar, inteiramente, no microcosmo da educação escolar, o processo de formação do ser humano”. Isso porque a educação e a formação humana acontecem, inicialmente, desde o ambiente da família, passando pela escola e alcançando outras esferas da sociedade.

Desse modo, a educação escolar pode exercer uma influência positiva, à medida que suscita no educando o desenvolvimento da capacidade de pensar, sentir e exercitar a liberdade com responsabilidade, inserindo a dimensão afetiva nesse processo em sentido integrador com o intelecto e a vontade.

Destacamos a importância e a necessidade de recuperação do lugar da afetividade na formação da pessoa humana por meio da educação. Em sintonia com a responsabilidade educacional da família, a educação escolar exerce função indispensável no desenvolvimento do aluno em todas as facetas. É o contexto apropriado no qual existem ações educativas concernentes às capacidades e características de cada pessoa, de cada aluno, em processo de formação. De acordo com Sucupira Lins (2013SUCUPIRA LINS, M. J. C. Natureza da educação e filosofia da educação. Revista da Faeeba: Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, p. 31-39, jan./jun. 2013., p. 34), “educação não se expressa por meio de um conceito abstrato, pelo contrário, é uma atividade concreta que envolve pessoas comprometidas com valores e engajadas na prática pedagógica”. Trata-se, portanto, de uma atividade concretizada na sociedade, com a finalidade de formar o ser humano em sua integralidade. Envolve agentes da educação que transmitem os valores fundamentais, sem desvios e ideologias, preocupados com a verdade fundamental da ética. É papel do professor não só proporcionar a aprendizagem de conteúdo das disciplinas, mas também estar comprometido com a formação integral e a responsabilidade ética com todas as pessoas sob os seus cuidados em interação social.

No campo das relações sociais, a afetividade adquire realce quando ligada à ética. Sucupira Lins (2018SUCUPIRA LINS, M. J. C. A filosofia da educação a partir do pensamento de von Hildebrand. In: SUCUPIRA-LINS, M. J. C.; MIRANDA, B. R. C. (Org.). Filosofia da pessoa e educação: Dietrich von Hildebrand. Curitiba: CRV, 2018. p. 73-85. , p. 77) argumenta que “ninguém nasce ético ou socializado. A criança precisa aprender a viver em sociedade, a se conhecer, a se respeitar e simultaneamente conhecer e respeitar os outros”. A filósofa brasileira enfatiza a participação da pessoa na sociedade com o valor que é em si mesma, por sua dignidade, desde sua concepção. Por meio da interação social, a pessoa tem a possibilidade de crescer em sua humanidade e se conhecer melhor como personalidade única. Pela educação, a pessoa exercita o devido discernimento que lhe permite uma vida equilibrada, centrada em princípios e valores. Acrescentamos ao tema da formação da pessoa humana a afirmação de Mounier (2004MOUNIER, E. O personalismo. Tradução de Vinícius Eduardo Alves. São Paulo: Centauro, 2004. ), fundador do personalismo, cujo eixo considera a educação um “movimento de personificação”:

Uma experiência rica, que no mundo se insere, exprime-se por interessante criação de situações, de regras, de instituições. Mas sendo os recursos da pessoa indefinidos, nada do que a exprime a esgota, nada do que a condiciona a escraviza. (...) É uma atividade vivida de autocriação, de comunicação e de adesão, que um ato, como movimento de personificação, alcançamos e conhecemos. A uma tal experiência ninguém pode ser condicionado, nem constrangido. (Mounier, 2004MOUNIER, E. O personalismo. Tradução de Vinícius Eduardo Alves. São Paulo: Centauro, 2004. , p. 16, grifo do autor).

Para esse filósofo, a noção de pessoa humana significa o sujeito em si mesmo e inserido no mundo, na história e em sua relação com o outro. Sendo um ser relacional, o estar com o outro o impele a tomar consciência das exigências e condicionantes para uma boa convivência. Interagindo com o meio social, especialmente no ambiente escolar, a pessoa cumpre a função de aprender conteúdos científicos e humanos e se forma internamente, inclusive como cidadão capacitado para exercer direitos e deveres.

Ao analisar a relação entre afetividade e inteligência, Saltini (2022SALTINI, C. J. P. Afetividade e inteligência. 6. ed. Rio de Janeiro: Wak, 2022., p. 35) pondera que é preciso “refletir sobre uma educação que possa servir ao desenvolvimento da condição humana em termos de ser ao invés de ter”, completando mais adiante que “não é a busca de uma nova maneira de educar, mas uma transformação quase completa sobre o conceito e a significação da educação”. A preocupação, portanto, com esse processo de se tornar pessoa por meio da educação, deve ser de todos os educadores.

Em uma apresentação biográfica, Sucupira Lins (2018SUCUPIRA LINS, M. J. C. A filosofia da educação a partir do pensamento de von Hildebrand. In: SUCUPIRA-LINS, M. J. C.; MIRANDA, B. R. C. (Org.). Filosofia da pessoa e educação: Dietrich von Hildebrand. Curitiba: CRV, 2018. p. 73-85. ) observa que Dietrich von Hildebrand, nascido em Florença (Itália), era de família alemã e, ainda jovem, transferiu-se para a Alemanha, onde estudou com grandes mestres da Fenomenologia.

Autores como Burgos (2018BURGOS, J. M. Introdução ao personalismo. Tradução de Maria Isabel Gonçalves. São Paulo: Cultor de Livros, 2018.) e Rovira (2006ROVIRA, R. Los tres centros espirituales de la persona: introducción a la filosofía de Dietrich von Hildebrand. Madrid: Fundacion Emmanuel Mounier, 2006. (Colección Persona).) informam que, em 1940, von Hildebrand se refugiou em Nova Iorque, nos Estados Unidos, em virtude de sua firme oposição ao nacional-socialismo nazista. Instalou-se e ensinou durante vários anos em Fordham University, em Nova Iorque, onde intensificou sua produção filosófica. Von Hildebrand (2020VON HILDEBRAND, D. Ethics. Steubenville: Hildebrand Press, 2020.) enfatiza a preocupação com a questão dos valores morais e temas relacionados, configurando a relação existente entre ética, afetividade e liberdade, valores analisados em interação com as experiências afetivas.

A ideia de interação social é destacada por Simmel (1971SIMMEL, G. On individuality and social forms. Chicago: The University of Chicago Press, 1971.), que propõe uma comparação entre o campo sociocultural e a biologia do corpo humano, cujos órgãos, alguns grandes e outros minúsculos, trabalham em harmonia e colaboração entre si. Para o autor, é nessa dinâmica da vida em sociedade que se situam instituições como Estado, escola, associações variadas e família, todas em interações sociais, interdependentes, com a finalidade de gerar estabilidade e harmonia.

Nessa realidade de interações sociais, estão inseridas as instituições educacionais, com suas características permeadas de aspectos culturais, de acordo com o meio.

Em outra obra, Simmel (2006SIMMEL, G. Questões fundamentais da sociologia: indivíduo e sociedade. Tradução de Pedro Caldas. Rio de Janeiro: Zahar, 2006., p. 17) compreende a sociedade como o produto das manifestações de contato social, na medida em que “os indivíduos estão ligados uns aos outros pela influência mútua que exercem entre si pela determinação recíproca que exercem uns sobre os outros”. Esse sociólogo entende a interação social como um produto das vivências entre os indivíduos, sendo a comunidade, a escola e a família o espaço em que os atores sociais criam relações de interdependência e estabelecem interações de reciprocidade. Nesse contexto, ao passo que progride, o educando toma consciência de si próprio, do seu lugar na sociedade e das pessoas com quem interage, por escolha ou obrigação de ordem variada. O aspecto social é fator relevante, desde a mais tenra idade da pessoa até o final de sua vida.

O tema das interações sociais é tratado também por Jean Piaget (1973PIAGET, J. Estudos sociológicos. Tradução de Reginaldo Di Pietro. Rio de Janeiro: Forense, 1973. ), que em suas pesquisas epistemológicas salienta essa faceta do ser humano e assim a explica:

Toda interação social aparece assim como se manifestando sob a forma de regras, de valores, de símbolos. A sociedade mesma constitui, por outro lado, um sistema de interações, começando com as relações dos indivíduos dois a dois e se estendendo até as interações entre cada um deles e o conjunto dos outros, e até as ações de todos os indivíduos anteriores, quer dizer, de todas as interações históricas, sobre os indivíduos atuais. (Piaget, 1973PIAGET, J. Estudos sociológicos. Tradução de Reginaldo Di Pietro. Rio de Janeiro: Forense, 1973. , p. 40).

No texto destacado, o autor apresenta a existência de vínculos sociais mediante regras, valores e símbolos. Essas interações se dão no relacionamento entre duas pessoas e se estendem às demais, em um tempo e espaço determinado nos quais, todos, com sua história pessoal e suas experiências, atualizam a dinâmica da sociedade. O campo das interações sociais concorre para o desenvolvimento da afetividade, da vontade e da razão, características estas que se manifestam, principalmente, estimuladas pelo convívio social. Sob tal ótica, interligam-se os aspectos sociais, afetivos, cognitivos e morais. Piaget (1994PIAGET, J. O juízo moral na criança. Tradução de Elzon Lenardon. 4. ed. São Paulo: Summus, 1994. , 2013, 2014) ressalta, de modo semelhante ao filósofo alemão, central em nossa pesquisa, a afetividade e a moralidade ligadas ao desenvolvimento cognitivo e às interações entre os sujeitos, estabelecidas na convivência interpessoal. Também argumenta que a afetividade consiste em uma fonte energética capaz de fazer impulsionar a inteligência.

Comentando acerca da moralidade na criança, o pensador suíço aponta um processo que se constrói desde o primeiro período da infância, denominado anomia, passando pela heteronomia até chegar à autonomia, na fase final da adolescência (Piaget, 1994PIAGET, J. O juízo moral na criança. Tradução de Elzon Lenardon. 4. ed. São Paulo: Summus, 1994. , 2013PIAGET, J. Psicologia da inteligência. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis: Vozes, 2013.). Embora reconheçamos a relevância dos estágios de desenvolvimento cognitivo, o enfoque deste artigo é a afetividade, um tema também de interesse de Piaget (2014PIAGET, J. Relações entre a afetividade e a inteligência no desenvolvimento mental da criança. Organização de Tradução de Cláudio J. P. Saltini e Doralice B. Cavenaghi. Rio de Janeiro: Wak, 2014.), como se observa.

Compreendemos que os valores sociais se relacionam com a dimensão da afetividade no ser humano e surgem a partir de trocas realizadas interiormente pelo sujeito com o exterior, com as pessoas ou outros elementos do seu convívio. Com referência a Jean Piaget e às suas contribuições para a educação, Sucupira Lins (2005SUCUPIRA LINS, M. J. C. Contribuições da teoria de Piaget para a educação. Revista Educação & Cultura Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 2, n. 4, p. 11-29, jul./dez. 2005., p. 23) assinala o valor atribuído por esse filósofo à afetividade: “Há na teoria piagetiana uma preocupação com a elaboração da afetividade, principalmente quando se entende esta como uma construção em complexidade crescente, sob a forma também estrutural”. A autora enfatiza a construção em complexidade crescente, para mostrar a conexão entre o desenvolvimento da afetividade e a progressiva cognição, processo esse que é estimulado pela educação, dentro do ambiente escolar e social.

A essência da educação não consiste somente em adaptação da pessoa às condições e interações da vida social, mas em lhe garantir formação humana. Segundo Maritain (1959MARITAIN, J. Rumos da educação. Tradução de Inês Fortes de Oliveira. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1959. , p. 35), “não se forma um homem a não ser por meio dos vínculos sociais que criam a compreensão e as virtudes cívicas”. Dessa afirmativa, entendemos que a vida social é a raiz de toda a sociedade. Destaca o meio social como ambiente favorável para o desenvolvimento da pessoa, de modo a abranger a dimensão da intelectualidade e de outras características humanas. O ambiente social saudável é condição favorável para a educação, a qual, inversamente, pode transformar o ambiente social do sujeito.

Nessa ótica, segundo a argumentação apresentada, os educadores compreendem a pessoa do aluno enquanto ser humano em contínuo aperfeiçoamento e trabalham no sentido de contribuírem para a realização da educação integral de cada um deles.

Natureza e conceito de afetividade: implicações éticas para a educação

A palavra afetividade é usada segundo variadas conotações, inclusive na filosofia, apresentando divergências quanto a seu significado; por isso, há necessidade de ser compreendida em relação aos termos que a definem ou estão de algum modo relacionados. Mais do que isso, faz-se mister identificar em que sentido é utilizada para que possamos analisar adequadamente seu papel na educação.

Esse procedimento hermenêutico objetiva a compreensão da afetividade que, segundo von Hildebrand (2007VON HILDEBRAND, D. The heart: an analysis of human and divine affectivity. South Bend, Indiana: St. Augustine’s Press, 2007.), foi depreciada ou negligenciada no campo da filosofia e colocada meramente na esfera das paixões. Ao olharmos a história da filosofia, observamos que a ideia da afetividade não é considerada explicitamente como categoria de grande relevância, embora haja alguma referência em Platão (1980PLATÃO. Diálogos: apologia de Sócrates, Critão, Menão, Hípias Maior e outros. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Pará: UFP, 1980. v. 1-2.). Nas obras de Aristóteles (2011ARISTÓTELES. Da alma (De Anima). Tradução de Edson Bini. 4. ed. São Paulo: Edipro, 2011., 2014ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Edson Bini. 4. ed. São Paulo: Edipro , 2014.), a razão é enfatizada de tal modo, que a afetividade não ocupa posição importante em seus escritos.

Entre a Antiguidade e a Modernidade, ressaltamos Aquino (2015AQUINO, T. As paixões da alma. Tradução de Paulo Faitain e Bernardo Veiga. São Paulo: EDIPU, 2015.) - século 13 -, que é destaque não somente na filosofia medieval, mas que permanece na atualidade, ao explicar a afetividade concernente ao tema das paixões da alma. No início da Modernidade, Descartes (2009DESCARTES, R. Discurso do método. Tradução de Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM, 2009., 2017DESCARTES, R. As paixões da alma . Tradução de Ciro Miranda. São Paulo: Lafonte, 2017. (Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal).) - século 17 - se propõe a explicar o funcionamento das partes do corpo, seus movimentos e os fenômenos que ocorrem em sua relação com a alma.

Buscando explicar os fenômenos humanos, Spinoza (2021SPINOZA, B. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.) - século 17 - analisa a natureza dos afetos, sua relação com as paixões e a alma. Entretanto, ambos os filósofos desse período moderno não oferecem uma adequada compreensão de afetividade no sentido que utilizamos neste artigo.

Selecionamos o pensamento do filósofo alemão von Hildebrand (1988VON HILDEBRAND, D. Atitudes éticas fundamentais. São Paulo: Quadrante, 1988. , 1996VON HILDEBRAND, D. Las formas espirituales de la afectividad. Traducción castellana de Juan Miguel Palacios. Madrid: Universidad Complutense, 1996., 2006VON HILDEBRAND, D. Moralidad y conocimiento ético de los valores. Traducción castellana de Juan Miguel Palacios. Madrid: Ediciones Cristandad, 2006. , 2007VON HILDEBRAND, D. The heart: an analysis of human and divine affectivity. South Bend, Indiana: St. Augustine’s Press, 2007., 2009VON HILDEBRAND, D. The nature of love. South Bend, Indiana: St. Augustine’s Press, 2009. , 2011VON HILDEBRAND, D. Deformaciones y perversiones de la moral. Traducción castellana de Constantino Ruiz-Garrido. Madrid: Fundación Emmanuel Mounier, 2011. , 2020VON HILDEBRAND, D. Ethics. Steubenville: Hildebrand Press, 2020.) referente ao seu entendimento filosófico do termo afetividade.

Ao pesquisarmos a ideia de afetividade na história da filosofia (Maritain, 1985MARITAIN, J. Introdução geral à filosofia. 14. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1985. (Elementos de Filosofia 1).; Ponchirolli, 2008PONCHIROLLI, O. Introdução à filosofia grega. Petrópolis: Vozes, 2008. ; Jaspers, 2011JASPERS, K. Introdução ao pensamento filosófico. Tradução de Leônidas Hegerbeg e Octanny Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 2011.; Russel, 2015RUSSELL, B. História da filosofia ocidental: filosofia antiga. Tradução de Hugo Langone. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. v. 1.), encontramos esse conceito relacionado a sentimentos, sensações, paixões e emoções.

As palavras afetividade, afeto, afetar e afetivo são empregadas com pluralidade de significados, o que cria um campo suscetível de muitos equívocos, em virtude dessa polissemia. Considerar afeto como sinônimo de emoção é bem diverso da ideia de von Hildebrand (2007VON HILDEBRAND, D. The heart: an analysis of human and divine affectivity. South Bend, Indiana: St. Augustine’s Press, 2007.). A concepção de afetividade desse filósofo tem o significado de experiência consciente, autêntica e intencional, motivada por valores. As emoções são efêmeras, ao passo que os afetos implicam sentimentos que são caracteristicamente intencionais e duradouros.

Pela etimologia da palavra, conforme Nascentes (1932NASCENTES, A. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: A Encadernadora, 1932., p. 16), “afetividade, afeto, afeição, afetivo e o verbo afetar possuem raiz no latim afficere, em estreita ligação com affectus e affectio, termos que significam ‘o estado, a disposição’”. Embora seja um início adequado à perspectiva filosófica, indica, de modo simples, a ideia de movimento, ato de tocar, que se faz com inteira consciência, ainda não chega a uma explicação concernente à reflexão que pretendemos. A palavra afetividade é também definida por Lalande (1993LALANDE, A. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1993. , p. 34) de modo muito resumido e com sentido amplo: “afetividade: a. característica dos fenômenos afetivos. b. conjunto dos fenômenos afetivos”, o que não explica de maneira precisa o que é afetividade, pois permanece no plano tautológico na formulação da frase. Ao concluir uma extensa explanação de termos ligados à afetividade, o autor propõe uma classificação dos sentimentos com uma interpretação oposta ao que se lê nas obras de von Hildebrand (2007VON HILDEBRAND, D. The heart: an analysis of human and divine affectivity. South Bend, Indiana: St. Augustine’s Press, 2007., 2009VON HILDEBRAND, D. The nature of love. South Bend, Indiana: St. Augustine’s Press, 2009. , 2020VON HILDEBRAND, D. Ethics. Steubenville: Hildebrand Press, 2020.), na medida em que insere paixões no mesmo nível dos sentimentos. Paixões e emoções são usadas como não intencionais por von Hildebrand (2007VON HILDEBRAND, D. The heart: an analysis of human and divine affectivity. South Bend, Indiana: St. Augustine’s Press, 2007.) e, portanto, não poderiam ser equiparadas, em seu modo de pensar, à relevância dos sentimentos estáveis. Insistindo na etimologia, no idioma grego, encontramos a palavra στοργή (storge), entendida como afeto, afeição, de forma que Lewis (2017LEWIS, C. S. Os quatro amores. Tradução de Estevan Kirschner. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017., p. 51) ressalta: “os gregos denominavam esse amor storge (duas sílabas e um ‘g’ com pronúncia forte). Eu o chamarei aqui simplesmente de afeição”. A ênfase na letra “g” indica o sentido grego de intencionalidade. Fundamenta-se na terminologia grega para considerar o termo afeição como amor de pais em relação aos filhos e de filhos para seus pais.

Ao buscarmos esses termos nas obras dos filósofos gregos antigos, não encontramos o sentido direto de afeto e afeição para afetividade. Aristóteles (2011ARISTÓTELES. Da alma (De Anima). Tradução de Edson Bini. 4. ed. São Paulo: Edipro, 2011.) utiliza a expressão πάθη referente a páthe, que, na tradução citada, significa estados passivos. O estagirita, logo no início de sua obra De anima (Da alma), diz que se propõe a investigar a natureza, a substância da alma e suas propriedades.

Os estados passivos da alma implicam um corpo que sente “ardor, brandura, coragem, também a alegria e tanto o amor quanto o ódio; em todas essas situações o corpo experimenta concomitantemente um estado passivo” (Aristóteles, 2011ARISTÓTELES. Da alma (De Anima). Tradução de Edson Bini. 4. ed. São Paulo: Edipro, 2011., livro I, 403a 5-15). Nessas formulações, chama de estados passivos as noções da alma ligadas ao corpo. Não há alma se não houver um corpo. O problema ocorre quando se interpreta a expressão estados passivos por afecções, com a indicação do sentido de páthe, paixões. O risco dessas definições, conforme von Hildebrand (2007VON HILDEBRAND, D. The heart: an analysis of human and divine affectivity. South Bend, Indiana: St. Augustine’s Press, 2007.), é que todos os sentimentos estariam no campo das paixões, o que seria um erro:

Toda a área afetiva, e mesmo o coração, foi vista à luz dos sentimentos corporais, estados emocionais ou paixões no sentido estrito do termo. E o que é negado corretamente a esses tipos de “sentimentos”, é injustamente e erroneamente negado às experiências afetivas, como uma alegria que responde a valores, um amor profundo, um entusiasmo nobre. (Von Hildebrand, 2007VON HILDEBRAND, D. The heart: an analysis of human and divine affectivity. South Bend, Indiana: St. Augustine’s Press, 2007., p. 5).

Em tal situação, entendemos que o sentimento de alegria, que se processa pela consciência daquilo que se faz pelo outro, com amor profundo e que identifica uma pessoa feliz, é negado pela filosofia tradicional, pois é situado no campo das paixões.

De acordo com Aquino (2015AQUINO, T. As paixões da alma. Tradução de Paulo Faitain e Bernardo Veiga. São Paulo: EDIPU, 2015.), ao tratar também das paixões da alma, há uma estreita relação entre afetividade e racionalidade. Segundo sua tese, a razão é capaz de orientar o apetite sensitivo do ser humano em suas inclinações, em um movimento que evita chegar aos extremos de uma paixão, buscando o meio termo, isto é, a virtude e estabelecendo uma retidão e uma constância das ações.

Von Hildebrand (2007VON HILDEBRAND, D. The heart: an analysis of human and divine affectivity. South Bend, Indiana: St. Augustine’s Press, 2007.) desenvolve seu pensamento em perfeita sintonia com a ideia exposta anteriormente.

Voltemos à interpretação do que escreveu Aquino (2015AQUINO, T. As paixões da alma. Tradução de Paulo Faitain e Bernardo Veiga. São Paulo: EDIPU, 2015.), possibilitando uma classificação dos sentimentos do seguinte modo: 1) concupiscível - relacionados aos desejos dos bens sensíveis denominados amor e ódio, desejo e aversão, alegria e tristeza; 2) irascível - caracterizam-se por conter uma força, que leva a se conseguir algo difícil de se alcançar, ou evitar um mal iminente, esperança, audácia, medo, ira, desespero. É interessante lembrar que esses sentimentos são gerados pela natureza humana e, na compreensão tomista, têm a possibilidade de se tornarem bons, se regidos pelas regras da razão, ou maus, quando se afastam dessa orientação, transformando-se em paixões. A desordem das paixões, segundo o filósofo, gera vícios, que são os extremos habituais.

Com essas reflexões, podemos considerar que a razão, a vontade e a afetividade são potencialidades do ser humano que precisam passar por um processo educativo para sua atualização e seu direcionamento ao bem.

Na frase “o coração na ira ferve, mas no temor, de algum modo, esfria-se e se contrai”, Aquino (2015AQUINO, T. As paixões da alma. Tradução de Paulo Faitain e Bernardo Veiga. São Paulo: EDIPU, 2015., p. 72) deixa explícito que sofre os efeitos de sentimentos como a ira ou o temor, mas também com a empatia, o entusiasmo e o amor. Deixa entrever a incidência das paixões ou sentimentos, na relação que se estabelece entre a razão e a esfera afetiva. Aquino (2015, p. 75) argumenta, ainda, que “a tristeza ou a dor estão na parte intelectiva, enquanto o intelecto intelige algo nocivo para o homem, o que repugna a vontade”. Sustenta que tanto a tristeza quanto a dor são sentimentos que incidem no intelecto. A dimensão racional do ser humano busca se livrar de tais sentimentos, pois, sendo entendidos como nocivos, são repugnantes à vontade.

Com base em pesquisas que visam ao tema das relações entre afetividade e inteligência, Piaget (2014PIAGET, J. Relações entre a afetividade e a inteligência no desenvolvimento mental da criança. Organização de Tradução de Cláudio J. P. Saltini e Doralice B. Cavenaghi. Rio de Janeiro: Wak, 2014., p. 39) formula a seguinte definição: “Por afetividade compreendemos: a) os sentimentos propriamente ditos e, em particular, as emoções; b) as diversas tendências, incluindo as ‘tendências superiores’ e, em particular, a vontade”. Essa ideia, referente a sentimentos mais firmes e constantes, e emoções como sentimentos momentâneos, é encontrada em sua obra.

Conforme o epistemólogo, os valores estão relacionados à coerência em uma permanência nas atitudes nobres, decisões e propósitos.

Piaget (2014PIAGET, J. Relações entre a afetividade e a inteligência no desenvolvimento mental da criança. Organização de Tradução de Cláudio J. P. Saltini e Doralice B. Cavenaghi. Rio de Janeiro: Wak, 2014., p. 229) entende vontade como um conjunto de operações afetivas e as explica do seguinte modo: “essas operações se chamam atos de vontade, porque esta é precisamente o instrumento de conservação dos valores, e um instrumento que procede segundo o mesmo método de que procedem as operações correntes da inteligência”. Não concebe a vontade estritamente como afetividade, mas como operações afetivas, regulação dos sentimentos e conservação dos valores. A vontade, nesse sentido, contém um elemento afetivo.

Na mesma obra, Piaget (2014PIAGET, J. Relações entre a afetividade e a inteligência no desenvolvimento mental da criança. Organização de Tradução de Cláudio J. P. Saltini e Doralice B. Cavenaghi. Rio de Janeiro: Wak, 2014., p. 250), argumenta que “a criança, a partir de sete ou oito anos, torna-se capaz de avaliações dos sentimentos e, sobretudo, de ações propriamente ditas”. Trata-se de um processo gradativo, que acontece desde os primeiros anos de vida, realizado por meio de assimilações e acomodações e, à medida que a criança consegue construir raciocínios, começa também a construção da vontade.

Observemos outra análise, com esse mesmo enfoque, relacionada aos afetos. De acordo com Sucupira Lins (2022bSUCUPIRA LINS, M. J. C. Afetividade. Rio de Janeiro, 2022b. 1 vídeo (8min). Publicado pelo Canal Sucupira Lins. Disponível em: <Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lFd7wrtRRo4 >. Acesso em: 2 fev. 2023.
https://www.youtube.com/watch?v=lFd7wrtR...
):

ENT#091;...ENT#093; essa palavra afetividade tem sua raiz no verbo afetar. É uma palavra pouco usada em nosso vocabulário, e por isso às vezes esquecida enquanto raiz para o respectivo verbo. Usa-se ‘afetado’ no sentido pejorativo que é totalmente distante da afetividade.

Afetividade é, nessa compreensão, o ato de ser afetado, de ser tocado, por algo ou por uma pessoa, mas esse ser tocado é entendido por experiências afetivas conscientes e intencionais entre os seres humanos, ou por um ser humano com as realidades que estão à sua volta. Podemos entender essa interação afetiva tanto entre pessoas quanto em relação a objetos, obras de arte ou natureza, desde que se preservem as características de intencionalidade consciente.

A vontade, como integrante da afetividade, tem um sentido adequado, pois, conforme von Hildebrand (2007VON HILDEBRAND, D. The heart: an analysis of human and divine affectivity. South Bend, Indiana: St. Augustine’s Press, 2007.), distancia-se de instintos, processos meramente fisiológicos ou psíquicos. Esse filósofo compreende afetividade como resultante de uma decisão, algo que não acontece por força biológica, mas por um ato voluntário, decorrente da intencionalidade da pessoa humana.

Com base na obra de von Hildebrand (2007VON HILDEBRAND, D. The heart: an analysis of human and divine affectivity. South Bend, Indiana: St. Augustine’s Press, 2007.), organizamos a Figura 1, que interpreta as dimensões interiores do ser humano em seus aspectos mais característicos.

Figura 1
Centro espiritual da pessoa humana

Von Hildebrand (2007VON HILDEBRAND, D. The heart: an analysis of human and divine affectivity. South Bend, Indiana: St. Augustine’s Press, 2007., p. 21) continua a explicar: “Qualquer que seja a natureza de muitas outras experiências, esses três reinos desempenham um papel predominante, e temos plena justificativa para falar de três centros fundamentais no homem”. O filósofo concebe afetividade, razão e vontade como realidades do ser humano em sua interioridade que devem estar em harmonia e inter-relacionadas, embora cada centro espiritual tenha seu próprio modo de ser e de se manifestar.

O termo afetividade é utilizado, no presente artigo, como é possível entender por meio de nossa argumentação, nesse sentido de experiência afetiva autêntica, significativa e consciente. De acordo com von Hildebrand (1996VON HILDEBRAND, D. Las formas espirituales de la afectividad. Traducción castellana de Juan Miguel Palacios. Madrid: Universidad Complutense, 1996., p. 13), “essa relação significativa e consciente pertence às relações espirituais que, desde Husserl, são chamadas de intencionais”. Intencionalidade é o primeiro pressuposto da espiritualidade de uma atitude ou de uma experiência humana. Adicionando às dimensões corporal, volitiva e racional, von Hildebrand (1996VON HILDEBRAND, D. Las formas espirituales de la afectividad. Traducción castellana de Juan Miguel Palacios. Madrid: Universidad Complutense, 1996.) também compreende a afetividade em sua dimensão espiritual.

Nessa perspectiva do filósofo alemão, Morosini (2023MOROSINI, A. O papel da afetividade na perspectiva de von Hildebrand dentro do campo educacional. In: SUCUPIRA LINS, M. J. C.; BRITO, D. H. S. (Org.). Educar para a afetividade: Dietrich von Hildebrand. Formiga, MG: MultiAtual, 2023. p. 13-24.) argumenta que a experiência afetiva, à medida que houver uma resposta-valor, será mais autêntica se maior for a intencionalidade consciente.

Há implicações éticas concernentes à vida afetiva, como se pode ler na seguinte observação de von Hildebrand (2020VON HILDEBRAND, D. Ethics. Steubenville: Hildebrand Press, 2020., p. 355-356):

ENT#091;...ENT#093; há experiências decisivas e únicas na vida de uma pessoa, que desenvolvem determinadas tendências ou deformam outras; que marcam sua natureza de forma específica, criando, por exemplo, um quadro geral de ansiedade.

Esse quadro geral de ansiedade pode ter repercussões no corpo, cuja causa talvez esteja em experiências na vida afetiva. Essas podem também interferir, positiva ou negativamente, na construção da escala de valores da pessoa, levando-a a cometer ações contrárias a uma vida afetiva e virtuosa. Por outro lado, as respostas afetivas, que implicam contrição, amor, esperança, veneração, alegria ou atitudes como perdoar e agradecer, conservam em si o valor moral independentemente de interpretações ou de ações contraditórias de uma pessoa. Não se exige aqui a explicação desses vocábulos por ultrapassarem o escopo deste artigo.

Considerações finais

Ao analisarmos a ideia de afetividade na filosofia, observamos que houve negligência com relação ao tratamento dado aos sentimentos mais relevantes do ser humano. Tal situação impacta a filosofia da educação, na medida em que se privilegia a esfera da razão, minimizando a importância da esfera afetiva.

Ao retomarmos as argumentações para finalizarmos a exposição, destacamos que o termo afetividade se refere às experiências conscientes, autênticas e intencionais, na perspectiva da fenomenologia realista de Dietrich von Hildebrand, conforme nosso objetivo. Enfatizamos que não se confunde com processos fisiológicos, psíquicos ou pela força dos instintos, mas se manifesta pela consciência e conhecimento do objeto motivador dos sentimentos.

Considerando a reflexão que nos guiou neste estudo, podemos afirmar que é relevante a compreensão do significado da afetividade para a educação. Isso porque a formação da pessoa humana se dá mediante um processo educativo integral que deve abranger necessariamente as esferas da afetividade, da razão e da vontade. A totalidade própria e ontológica não pode ser fragmentada.

Foi também observado que o ser humano precisa conhecer a origem dos fenômenos afetivos que ocorrem em sua interioridade. Deve, dessa maneira, identificar, por meio das experiências educativas, a diferença entre os sentimentos mais nobres e aqueles que decorrem meramente de processos fisiológicos e psíquicos. É bom lembrar que a educação consiste não somente em adaptação da pessoa às condições e interações da vida social, mas em lhe garantir formação humana integral, o que nos leva a ressaltar, mais uma vez, o papel indispensável da afetividade nesse processo.

Tendo em vista o levantamento bibliográfico realizado e as nossas reflexões, é possível concluir que afetividade, ao ser compreendida no contexto da educação, pode trazer benefícios à formação holística da pessoa, visto que é uma dimensão fundamental na vida do ser humano.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    13 Set 2023
  • Aceito
    02 Fev 2024
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