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A tecnificação das Ciências Humanas nas políticas curriculares para o ensino médio: pedagogização do conhecimento escolar e instituição de uma nova economia moral

The technification of Human Sciences in curricular policies for secondary education: the pedagogizing of educational knowledge and the institution of a new moral economy

La tecnificación de las Ciencias Humanas en las políticas curriculares para la educación secundaria: pedagogización del saber escolar y la institución de una nueva economía moral

Resumo:

As reformas educacionais têm atribuído centralidade ao currículo, afirmando-o como lugar que tem a função de diminuir os problemas e eliminar as desigualdades educacionais e disseminando um discurso que opõe a organização disciplinar ao ensino renovado. Com apoio na noção de governamentalidade, temos abordado esses documentos como dispositivos que projetam condutas desejadas e tencionam produzir subjetividades neoliberais por meio da propagação de valores que promovem a esfera privada e as noções do campo econômico ao status de fonte dos princípios que devem não mais só regular a ação do Estado, mas modificar sua função. O excerto de análise apresentado neste texto, que recai sobre os Parâmetros Curriculares Nacionais e a Base Nacional Comum Curricular voltados ao ensino médio, provém de pesquisa qualitativa e documental e fundamenta-se na perspectiva pós-fundacional, objetivando discorrer sobre os sentidos que se tenta fixar para a área de Ciências Humanas mediante o apagamento das disciplinas escolares e a pedagogização do currículo. Ressaltamos que esse processo, caracterizado pela tentativa de fixação de um sentido de conhecimento escolar como sinônimo de competências, fundamenta-se na lógica de uma economia moral, que exacerba interesses pessoais e desejos individuais, depreciando o igualitarismo e o ponto de vista impessoal, contexto no qual as Ciências Humanas, ressignificadas nessas bases, assumem um papel-chave.

Palavras-chave:
competências; BNCC; currículo; formação de professores; ensino médio.

Abstract:

Educational reforms have been ascribing centrality to the curricula, further affirming them as a place capable of reducing issues and stamping out educational inequality, as well as propagating a viewpoint that opposes pedagogical discipline in regard to educational renewal. Supported by the notion of governmentality, we have been addressing these documents as devices that project the desirable conduct and tensely produce neoliberal subjectivities through the propagation of values that endorse the private sphere and economical concepts related to the status of the source of tenets that must not only regulate the State, but also modify its purpose. The excerpt analysis covered in this study, concerning the National Curriculum Guidelines and the Common National Curriculum Base oriented towards secondary education, stems from a documental and qualitative research, substantiated by a post-foundational perspective, and it seeks to ponder over the paths taken that, ultimately, limit Human Sciences, due to the deterioration of school subjects and the pedagogizing of the curriculum. We emphasize that such process, depicted as an attempt to give meaning akin to synonyms of competencies for educational knowledge, is grounded in a moral economy logic that exacerbates personal interests and individual desires, thus depreciating egalitarianism and impersonal standpoints, a context in which Human Sciences, if resignified, assume a pivotal role.

Keywords:
competencies; Common National Curriculum Base; curriculum; teacher education; secondary education.

Resumen:

Las reformas educativas han dado centralidad al currículo, afirmándolo como un lugar que tiene la función de reducir los problemas y eliminar las desigualdades educativas y difundir un discurso que opone la organización disciplinaria a la renovación de la enseñanza. Apoyados en la noción de gubernamentalidad, hemos abordado estos documentos como dispositivos que proyectan conductas deseadas y pretenden producir subjetividades neoliberales a través de la propagación de valores que promueven la esfera privada y nociones del campo económico al estatus de fuente de principios que ya no solo debe regular la acción del Estado, sino modificar su función. El fragmento de análisis presentado en este texto, que se centra en los Parámetros Curriculares Nacionales y la Base Nacional Curricular Común dirigidos a la educación secundaria, proviene de una investigación cualitativa y documental y se fundamenta en la perspectiva posfundacional, con el objetivo de discutir los significados que se intentó fijar para el área de Ciencias Humanas mediante la supresión de materias escolares y la pedagogización del currículo. Destacamos que este proceso, caracterizado por el intento de establecer un sentido del conocimiento escolar como sinónimo de habilidades, se basa en la lógica de una economía moral, que exacerba los intereses personales y los deseos individuales, despreciando el igualitarismo y el punto de vista impersonal, contexto en que las Ciencias Humanas, redefinidas sobre estas bases, asumen un papel clave.

Palabras clave:
habilidades; Base Nacional Curricular Común; currículo; formación de profesores; educación secundaria.

Introdução

A conformação do ensino médio em áreas com o apagamento das disciplinas escolares não é algo novo. Associadas, cada vez mais fortemente, às ideias de inovação e de qualidade, as reformas iniciadas na década de 1990 fundamentaram-se em um discurso que opunha organização disciplinar ao ensino renovado. No contexto de reformas, o ensino médio tradicional, leia-se disciplinarizado, conteudista, enciclopédico, distanciado das demandas dos jovens, entre outros, foi significado como ameaça ao desenvolvimento social e econômico do País.

Desde aquele momento, o currículo vem sendo erigido como o centro do investimento, posicionado nessas políticas como o lugar que tem a função de diminuir os problemas e eliminar as desigualdades educacionais.

Nesse viés, diante da perspectiva da razão do Estado, conforme propõe Foucault (2008FOUCAULT, M. O nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008.), mobilizando a noção de governamentalidade, tem-se abordado os documentos curriculares como práticas e não meramente como documentos estéreis ou superados. Assume-se, nesse contexto, a concepção de biopolítica definida como gestão da população (Laval, 2020LAVAL, C. Foucault, Bordieu e a questão neoliberal. São Paulo: Elefante, 2020.), instrumental por meio do qual Foucault procurou identificar o processo de surgimento de certo tipo de racionalidade na prática governamental.

O aparato conceitual concebido por Foucault torna-se potente na medida em que, na obra mencionada, esse autor procurou “compreender o modo pelo qual foi possível conciliar na prática uma arte de governar especificamente liberal - cujo princípio é a limitação de seu exercício - e uma política que estende suas tecnologias à população, aos espaços de vida, a múltiplas atividades e domínios da existência” (Laval, 2020LAVAL, C. Foucault, Bordieu e a questão neoliberal. São Paulo: Elefante, 2020., p. 49, grifos da autora).

Sob esse ponto de vista, tem-se problematizado o lugar que as Ciências Humanas vêm assumindo no contexto do discurso que circula nas políticas curriculares desde a década de 1990. Considera-se que esses têm sido espaços privilegiados de disseminação de um ideário de cunho neoliberal, em que a utilização reiterada de alguns significantes induz o campo educacional a almejar a mesma lógica posta no mercado (Franzi, 2020FRANZI, J. Projeto de vida das juventudes brasileiras na reforma do ensino médio: analisando a proposta. Revista Educação e Linguagens, Campo Mourão, v. 9, n. 18, p. 49-67, 2020. Edição especial.), incidindo na produção de subjetividades neoliberais, o que ofusca, de maneira preocupante, projetos erguidos sobre outros referenciais e paradigmas.

A proposta leva em consideração que os efeitos dessas políticas na reconfiguração e no processo de apagamento dos componentes curriculares do campo das Ciências Humanas do currículo da educação básica, como alguns de nossos estudos vêm observando (Santos, 2021SANTOS, M. A. L. Ensinar História na Base Nacional Comum de Formação de Professores: a atitude historiadora convertendo-se em competências. Educar em Revista, Curitiba, v. 37, e77129, 2021.; Navarro, 2022NAVARRO, D. L. R. M. Ensino de História na educação infantil: sentidos de pensamento histórico-social em documentos curriculares. 2022. 331 f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul, Campo Grande, 2022.), acontecem no contexto de disputas pela ressignificação do que se concebe por conhecimento, escola e docência (Gabriel; Castro, 2013GABRIEL, C. T.; CASTRO, M. M. Conhecimento escolar: objeto incontornável da agenda política educacional contemporânea. Revista Educação em Questão, Natal, v. 45, n. 31, p. 82-110, jan./abr. 2013.).

Ao longo deste texto, discorre-se sobre os sentidos que se tenta fixar para a área de Ciências Humanas nos documentos curriculares e como esse processo tem promovido o afastamento dos fundamentos das Ciências de Referência dos processos de seleção de conteúdos e de ensino.

Para isso, abordam-se, primeiramente, alguns dos fundamentos teórico-metodológicos assumidos nesta pesquisa. Em seguida, apresentam-se sentidos de área de Ciências Humanas que circulam nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), destacando sua relação com princípios provenientes de projetos de matriz neoliberal. Encerra-se elencando alguns dos efeitos possíveis para a formação de professores e para a produção do conhecimento diante da hegemonização de sentidos provenientes de projetos que valorizam a mercantilização da educação.

Fundamentos teórico-epistemológicos: a perspectiva pós-fundacional e a teoria social do discurso

Esta pesquisa de abordagem qualitativa (Ghedin; Franco, 2011GHEDIN, E.; FRANCO, M. A. S. Questões de método na construção da pesquisa em educação. São Paulo: Cortez , 2011.) e de caráter documental (Silva et al., 2009SILVA, L. R. C. et al. Pesquisa documental: alternativa investigativa na formação docente. In: CONGRESSO NACIONAL DE EDUCAÇÃO: EDUCERE, 9.; ENCONTRO SUL BRASILEIRO DE PSICOPEDAGOGIA, 3., 2009, Curitiba. Anais... Curitiba: Pontifícia Universidade Católica do Paraná, 2009. p. 4555-4566.) possibilita identificar sentidos e significados com base na concepção que considera o discurso uma prática articulatória, compreendendo a noção de articulação no diálogo com a teoria do discurso e definindo-a como “uma prática estabelecida entre elementos que, a partir de um ponto nodal1 1 Considera-se a conceitualização operada por Laclau e Mouffe (1987) para ponto nodal. De acordo com os autores, “la imposibilidad de fijación última del sentido implica que tiene que haber fijaciones parciales. Porque, en caso contrario, el flujo mismo de las diferencias sería imposible. Incluso para diferir, para subvertir el sentido, tiene que haber un sentido. Si lo social no consigue fijarse en las formas inteligibles e instituidas de una sociedad, lo social sólo existe, sin embargo, como esfuerzo por producir ese objeto imposible. El discurso se constituye como intento por dominar el campo de la discursividad, por detener el flujo de las diferencias, por constituir un centro. Los puntos discursivos privilegiados de esta fijación parcial los denominaremos puntos nodales (Laclau; Mouffe, 1987, p. 191). , articulam-se entre si” (Laclau; Mouffe, 1985 apudMendonça; Rodrigues, 2014MENDONÇA, D.; RODRIGUES, L. P. Em torno de Ernesto Laclau: pós-estruturalismo e teoria do discurso. In: MENDONÇA, D.; RODRIGUES, L. P. (Org.). Pós-estruturalismo e teoria do discurso: em torno de Ernesto Laclau. 2. ed. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2014. p. 47-57., p. 50).

Em perspectiva pós-fundacional, propõe-se que o social seja percebido por meio da lógica do discurso (Burity, 2008BURITY, J. A. Discurso, política e sujeito na teoria da hegemonia de Ernesto Laclau. In: MENDONÇA, D.; RODRIGUES, L. P. (Org.). Pós-estruturalismo e teoria do discurso: em torno de Ernesto Laclau. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2008. p. 28-42.), a qual reposiciona o papel da linguagem na tessitura do real e se orienta pela noção do discurso “percebido como categoria teórica - e não descritiva ou empírica - [procurando], assim, dar conta das regras de produção de sentido pelas quais um determinado fenômeno encontra seu lugar no mundo social e em uma determinada formação discursiva” (Gabriel; Castro, 2013GABRIEL, C. T.; CASTRO, M. M. Conhecimento escolar: objeto incontornável da agenda política educacional contemporânea. Revista Educação em Questão, Natal, v. 45, n. 31, p. 82-110, jan./abr. 2013., p. 83-84).

Depreende-se desses fundamentos a ocorrência de um processo de natureza discursiva de identificação e de constituição de identidades para as Ciências Humanas, no qual “toda identidade se constrói dentro desta tensão entre a lógica da diferença e a lógica da equivalência” (Laclau, 2005LACLAU, E. La razón populista. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2005., p. 94), em um movimento de busca de hegemonia.

Considerar a perspectiva pós-fundacional em seu questionamento das leituras essencialistas de mundo não significa aderir à ideia de que “tudo vale”, pois “o que está sendo problematizado não é a possibilidade de operar com fundamentos, mas sim o seu estatuto ontológico” (Marchart, 2009, p. 29 apudGabriel; Castro, 2013GABRIEL, C. T.; CASTRO, M. M. Conhecimento escolar: objeto incontornável da agenda política educacional contemporânea. Revista Educação em Questão, Natal, v. 45, n. 31, p. 82-110, jan./abr. 2013., p. 83).

Portanto, a problematização das identidades das Ciências Humanas interpelou o discurso não somente como texto, mas como ontologia do social. Dessa forma, interessa aqui observar as práticas articulatórias produzidas no interior dessas políticas curriculares.

Assim, trabalhou-se com a perspectiva da não existência de uma identidade em essência, enfatizando relações dentro das quais essas identidades são instituídas, precária e provisoriamente, na busca da constituição de hegemonia. Operou-se, para tanto, com a noção de discurso no interior das políticas curriculares, observando que o currículo é, antes de tudo, parte de uma tradição seletiva.

Nas Ciências Humanas, pela dimensão fortemente política que envolve os campos disciplinares que a compuseram ao longo do tempo, pode-se reiterar uma invenção da tradição (Hobsbawn; Ranger, 1997HOBSBAWN, E.; RANGER, T. (Org.). A invenção das tradições. Tradução de Celina Cardim Cavalcante. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.). O ensino dos conteúdos provenientes dos campos disciplinares que historicamente compõem a área é repleto de tradições inventadas, sendo o currículo da educação básica o repositório e, simultaneamente, o espaço de criação dessas tradições.

Ressalta-se ainda que, nas Ciências Humanas, identidades são permanentemente disputadas, uma vez que os currículos, em geral, e aqueles destinados a essa área de conhecimento, em particular, expressam visões e escolhas, revelam tensões, conflitos, acordos, consensos, aproximações e distanciamentos e devem ser vistos como prática cultural, como lugares de enunciação contextualizados em disputas (Macedo, 2006MACEDO, E. Currículo: política, cultura, poder. Currículo sem Fronteiras, [s. l.], v. 6, n. 2, p. 98-113, jul./dez. 2006. ). Nesse quadro, os sentidos produzidos nos mais diferentes contextos são hibridizados na medida em que se tem buscado “pensar o currículo como espaço-tempo de fronteira, permeado por relações interculturais e por um poder oblíquo e contingente” (Macedo, 2006, p. 106). Assim, entendidos como espaços de poder, é lícito afirmar que os documentos curriculares funcionam como um sistema de significações dentro do qual os sentidos são produzidos (e disputados) pelos sujeitos (Lopes; Macedo, 2011LOPES, A. C.; MACEDO, E. Teorias de currículo. São Paulo: Cortez, 2011. ).

Ao operar com a noção de que as políticas curriculares entrelaçam vários discursos, ressignificando certos termos, mobilizou-se, igualmente, a ideia de que os discursos, nessas políticas, passam por recontextualizações e hibridação, de forma que “os princípios curriculares são refocalizados e ressignificados, sendo muitas vezes orientados para finalidades diversas daquelas estabelecidas inicialmente” (Lopes, 2005LOPES, A. C. Discursos curriculares na disciplina escolar Química. Ciência e Educação, [s. l.], v. 11, n. 2, p. 263-278, 2005., p. 264).

Destarte, nas políticas de currículo, identifica-se a tentativa de produzir consensos em torno de um currículo nacional como parte de um projeto econômico global. No entanto, a negociação de demandas que ocorre no âmbito da produção de textos é necessária para que tal projeto consiga institucionalizar-se, obtendo certa legitimidade (Lopes, 2008LOPES, A. C. A articulação entre conteúdos e competências em políticas de currículo para o ensino médio. In: LOPES, A. C. et al. (Org.). Políticas educativas e dinâmicas curriculares no Brasil e em Portugal. Petrópolis: DP et Alii; Rio de Janeiro: Faperj, 2008. p. 189-213. , p. 194).

Nessa conjuntura, a pedagogia das competências, por exemplo, assume o papel de fundamento pedagógico do currículo em reformas realizadas tanto no Brasil quanto em outros países do mundo. Como parte de uma globalização imaginada (Garcia Canclini, 2007), comunidades epistêmicas projetam “maneiras de se imaginar o mercado, o conhecimento, as tecnologias e a ciência, constituindo o que se espera da educação” (Lopes, 2008LOPES, A. C. A articulação entre conteúdos e competências em políticas de currículo para o ensino médio. In: LOPES, A. C. et al. (Org.). Políticas educativas e dinâmicas curriculares no Brasil e em Portugal. Petrópolis: DP et Alii; Rio de Janeiro: Faperj, 2008. p. 189-213. , p. 196).

Por esse motivo, a análise dos sentidos e ressignificações, produzidos nos PCN e na BNCC, passa necessariamente por delinear o lugar que o significante competências assume na narrativa desses documentos, uma vez que essas vêm assumindo, gradativamente, o espaço do próprio conhecimento em si, sendo convertido em estrato epistemológico da concepção de área de conhecimento, o que a torna um elemento-chave no processo de instituição de novos valores, conforme apontaremos.

Dos PCN à BNCC: flutuação dos sentidos de “área”

As considerações tecidas neste texto decorrem da investigação contextualizada em projetos de pesquisa2 2 Projetos de Pesquisa: “A Base Nacional Comum Curricular e o discurso da qualidade de ensino como indutor de políticas da educação básica e de formação de professores no Brasil” (2022/2025), sob coordenação da Profa. Dra. Carla Busato Zandavalli, financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) - Código de Financiamento 001/2022; “A formação de professores no contexto das políticas educacionais: a implementação e as relações entre o Novo Ensino Médio, a BNCC e a BNC-FP” (2023/2026), sob coordenação da Profa. Dra. Maria Aparecida Lima dos Santos, com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) - Edital nº 10/2023 Universal. Ambos os projetos, interinstitucionais, de abrangência regional e nacional, respectivamente, contam ainda com apoio da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). sobre os processos de apagamento dos conteúdos dos campos disciplinares alocados na chamada “área de Ciências Humanas” dos documentos curriculares no período de 1997 a 2018. As decorrências desse processo para o ensino e para a formação de professores, observadas especialmente nos PCN, na BNCC e no Novo Ensino Médio (NEM), precisam ser analisadas, tendo em vista seu profundo caráter reestruturador.

Para este artigo, de um recorte das fontes documentais reunidas pelos projetos supracitados, foram selecionados dois documentos: os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM) e a BNCC para o Ensino Médio (BNCC-EM). Objetivou-se desenvolver uma reflexão em torno da seguinte problemática: Quais mecanismos discursivos operam o apagamento dos fundamentos dos conteúdos relacionados aos campos disciplinares no bojo da reconfiguração dos sentidos de área de Ciências Humanas nos documentos curriculares? Quais as decorrências desse processo para o ensino e para a produção de conhecimento nesses campos?

Sabe-se que os PCN são o primeiro documento curricular concebido com o objetivo de uniformizar os currículos no Brasil. É neles que se encontra uma concepção de “área”, em perspectiva homogeneizante, que servirá de parâmetro para a documentação curricular produzida a partir de então, convertendo a organização dos conteúdos em áreas em algo pressuposto. Desse ponto de vista, torna-se relevante observar um processo de flutuação de sentidos, quando se confronta a nomenclatura que a área recebe em diferentes documentos produzidos ao longo do período de 1998 a 2018, conforme elencado no Quadro 1.

Quadro 1
Nomenclatura da área de Ciências Humanas em documentos curriculares no período de 1998 a 2018

Entende-se ser pertinente realizar uma análise comparativa dos sentidos de “área” nos PCNEM e na BNCC, partindo de alguns indícios presentes neste último documento, no qual se identifica, pela primeira vez, a organização por área também para todo o segmento do ensino fundamental, como é possível observar no gráfico constante da página 27 da BNCC (Figura 1), em que se identificou a área de Ciências Humanas composta apenas por História e Geografia, nomeadas pelo documento como componentes curriculares. No ensino médio, atribui-se à área o nome de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, sem menção a componentes curriculares.

Figura 1
Estrutura da organização curricular do ensino fundamental e do ensino médio na BNCC

O apagamento dos fundamentos e das especificidades da História, da Geografia, da Sociologia e da Filosofia no ensino médio foi naturalizado progressivamente pela narrativa da BNCC. No Quadro 2, realçam-se trechos que nos chamaram a atenção nesse processo.

Quadro 2
Contextos narrativos da BNCC em que o significante disciplina(s) aparece

De “não exclui a disciplina” a “romper com a centralidade das disciplinas”, opera-se uma articulação discursiva que produz o apagamento como algo natural e necessário dentro do contexto que é pressuposto pelo documento. Some-se a isso o fato de que, em toda a versão final da BNCC (com 599 páginas), encontram-se apenas cinco recorrências com a palavra disciplina(s), instituindo o uso naturalizado de componentes curriculares para referir-se aos campos disciplinares das áreas.

Retomando a análise comparativa, percebe-se, no trecho 3 do Quadro 2, a passagem: “é preciso destacar a necessidade de ‘romper com a centralidade das disciplinas nos currículos e substituí-las por aspectos mais globalizadores’...” (Brasil. MEC, 2018BRASIL. Ministério da Educação (MEC). Base Nacional Comum Curricular: educação é a base. Brasília, DF, 2018. Disponível em: <Disponível em: https://www.gov.br/mec/pt-br/escola-em-tempo-integral/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal.pdf >. Acesso em: 14 maio 2024.
https://www.gov.br/mec/pt-br/escola-em-t...
, p. 479). A assertiva “romper com a centralidade das disciplinas” traz uma ideia que não é nova em termos curriculares, uma vez que já aparecia como pressuposto instituído nos PCNEM do ano de 2000. Conforme se abordou anteriormente (Quadro 1), nos PCNEM, a área foi nomeada de Ciências Humanas e suas Tecnologias, como se nota no sumário destacado na Figura 2.

Figura 2
Sumário dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio - Volume IV - Ciências Humanas e suas Tecnologias

O sumário que aparece na Figura 2 traz um indício dos sentidos de área que estão sendo constituídos, bem como das relações estabelecidas com os campos disciplinares e seu ensino, uma vez que os itens intitulados “conhecimentos de ...” integram o capítulo nomeado de “Competências e habilidades”, cujo preâmbulo, já em seu primeiro parágrafo, traz algumas passagens significativas para esta análise, as quais foram destacadas no Quadro 3.

Quadro 3
Parágrafo introdutório do item Competências e habilidades do Volume de Ciências Humanas dos PCNEM

Na redação do primeiro trecho em destaque, há o verbo conhecer, e não o substantivo conhecimento, mobilizado em uma cadeia de equivalências em que se hipervaloriza o fazer (a ação de conhecer). Nesse contexto discursivo, o ato de conhecer “[...] prepara o indivíduo e a sociedade para os desafios futuros, em um mundo em constante e acelerada transformação [...]”.

Ao apresentar a aceleração do tempo como motor das transformações da sociedade e como algo natural, delineia-se um projeto societário fundamentado em pressupostos da modernidade capitalista, cuja concepção de tempo é marcada pela abertura do futuro e pelo progresso, como pontua Koselleck (2006KOSELLECK, R. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; PUC-Rio, 2006.). Esse sentido pode ser encontrado também no Relatório Delors, publicado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), que instituiu os chamados “quatro pilares da educação”: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser, como fórmula curricular associada à ideia de melhoria da qualidade da educação (Delors et al., 1998DELORS, J. et al. Educação: um tesouro a descobrir: relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI. São Paulo: Cortez ; Brasília, DF: Unesco, 1998.).

Esse elemento sublinha como as políticas para o ensino médio passam a disseminar noções de investimento, inovação e empreendedorismo, questionando-se modelos pedagógicos pautados pela lógica fordista, vistos como ultrapassados. Nessas políticas, a narrativa reforça “a necessidade de aumentar a competitividade dos indivíduos para manterem-se ativos no mercado profissional, a perspectiva de ampliar os níveis de capital humano da sociedade brasileira de modo a torná-la mais apta aos investimentos internacionais” (Silva, 2016SILVA, R. R. D. Investir, inovar e empreender: uma nova gramática curricular para o ensino médio brasileiro? Currículo sem Fronteiras, [s. l], v. 16, n. 2, p. 178-196, maio/ago. 2016. , p. 180).

Na continuidade da narrativa dos PCNEM, o pragmatismo identificado no verbo conhecer é expandido para os componentes curriculares pela sua aproximação do sentido de competências, como é possível verificar no parágrafo subsequente, inserido no Quadro 4.

Quadro 4
Trecho do item Competências e habilidades do Caderno de Ciências Humanas dos PCNEM

Nessa narrativa, os conteúdos são totalmente subordinados às competências, uma vez que são alçadas a critérios de seleção, além de objetivos centrais das práticas educativas.

Ainda no Quadro 4, produz-se, no segundo parágrafo, uma cadeia de equivalências em que o trabalho norteado pelas competências (como critério e como objetivo das práticas educativas) é afirmado pela negação do mecanismo de memorização, associado à quantidade de informações, ao trabalho com a escrita e o livro didático, bem como aos mecanismos de avaliação.

Sem definições mais precisas ou referências, o documento opera com lugares comuns que ocultam outra lógica temporal, instituída pelo conceito de competências, que circula na narrativa como um híbrido ou “um tempo e espaço intervalar que irrompe dos fluxos e ambivalências fronteiriças” (Frangella; Oliveira, 2017FRANGELLA, R. C. P.; OLIVEIRA, M. E. B. (Org.). Currículo e formação de professores: sobre fronteiras e atravessamentos. Curitiba: CRV, 2017., p. 12).

Bernstein (2003BERNSTEIN, B. A pedagogização do conhecimento: estudos sobre recontextualização. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 120, p. 75-110, nov. 2003. ) enumerou algumas das principais características desse híbrido, que é o conceito de competências, ao analisar o que chamou de pedagogização do conhecimento. Segundo ele, a análise da lógica social do conceito revela a polissemia de sentidos que povoa esse significante mediante a contribuição de diferentes campos do saber, como a Linguística, a Antropologia, a Psicologia da Aprendizagem e a Sociologia.

Dentre os elementos que Bernstein (2003BERNSTEIN, B. A pedagogização do conhecimento: estudos sobre recontextualização. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 120, p. 75-110, nov. 2003. , p. 79) enumera, destaca-se a ideia de que a lógica das competências ocasiona uma “mudança da perspectiva temporal para o tempo presente. O tempo apropriado procede do ponto de realização da competência, uma vez que é esse ponto que revela o passado e prenuncia o futuro”.

Dessa forma, com o conceito de competências, que assume centralidade na trama narrativa dos PCNEM, promove-se a naturalização de uma concepção de tempo marcada pelo presentismo, na perspectiva que é apresentada por Hartog (2003HARTOG, F. Régimes d´historicité: présentisme et expériences du temps. Paris: Éditions du Seuil, 2003.), qual seja, a concepção de que se promove um alargamento do tempo presente a ponto de torná-lo algo onipresente. Ao apresentar essa categoria, Hartog (2003HARTOG, F. Régimes d´historicité: présentisme et expériences du temps. Paris: Éditions du Seuil, 2003.) propõe compreender esse fenômeno como o processo em que certo grupo (em determinado tempo) passou a adotar a categoria presente como uma chave de explicação, ou mesmo que essa chave se tornou preponderante para caracterizar certa sociedade.

Até aqui, foi possível observar que a aceleração do tempo e o presente eterno são dois elementos centrais na estruturação da concepção de tempo sobre a qual o sentido de área de Ciências Humanas é erigido. Grosso modo, já se pode indicar que a função social do ensino dos conteúdos provenientes dos diferentes campos disciplinares que compõem a área não é mais determinada pelos princípios constituídos no diálogo e enfrentamento dos diferentes grupos sociais, como reivindica, por exemplo, o movimento de trabalhadores em Educação ou os especialistas que investigam as especificidades do ensino de. Tampouco, esses princípios são explicitados, fundamentados e referenciados nas Ciências de Referência. Eles emergem, naturalizados, no interior das políticas educacionais, em clara articulação com a narrativa disseminada pelos documentos produzidos por organizações multilaterais, como a Unesco e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que têm assumido como função central, nas últimas décadas, a disseminação de princípios de projetos fundamentados em preceitos neoliberais no meio educacional, justificados pelo discurso da modernização, associado à ideia de qualidade. Ball (2006BALL, S. J. Sociologia das políticas educacionais e pesquisa crítico-social: uma revisão pessoal das políticas educacionais e da pesquisa em política educacional. Currículo sem Fronteiras, [S.l.], v. 6, n. 2, p. 10-32, jul./dez. 2006. ) afirma que os discursos sobre excelência, efetividade e qualidade são pontos-chave na compreensão do redirecionamento ético do setor público, na transformação de valores e culturas a ele subjacentes e na concomitante formação de novas subjetividades.

Ao vislumbrar as políticas educacionais como esse espaço privilegiado de disseminação de um ideário, está-se considerando sua inserção na lógica de uma nova economia moral, que vem se tornando reguladora da máquina pública (Ball, 2014BALL, S. J. Sociologia das políticas educacionais e pesquisa crítico-social: uma revisão pessoal das políticas educacionais e da pesquisa em política educacional. In: BALL, S. J.; MAINARDES, J. (Org.). Políticas educacionais: questões e dilemas. São Paulo: Cortez, 2014. p. 21-53.) e promovendo a esfera privada e as noções do campo econômico ao status de fonte dos princípios que devem não mais só regular a ação do Estado, mas modificar sua função. É o mercado, então, que passa a instalar esse novo ambiente moral no interior do Estado, por meio da disseminação de noções associadas à “cultura dos interesses do self”. Nas palavras de Ball (2014BALL, S. J. Sociologia das políticas educacionais e pesquisa crítico-social: uma revisão pessoal das políticas educacionais e da pesquisa em política educacional. In: BALL, S. J.; MAINARDES, J. (Org.). Políticas educacionais: questões e dilemas. São Paulo: Cortez, 2014. p. 21-53., p. 26),

[...] o mercado celebra a ética do “ponto de vista pessoal” - pautada por interesses pessoais e desejos individuais. Essa ética obscurece e deprecia o igualitarismo relacionado ao “ponto de vista impessoal”. Dessa forma, investe-se na pauperização das concepções morais na esfera pública, e “a ideia de deliberar e planejar almejando o ‘bem comum’ torna-se sem sentido”.

Nos PCNEM, a título de exemplo, uma das competências inseridas antes da apresentação do que o documento nomeia como conhecimentos de História fornece mais indícios das noções de tempo e dos princípios que se tenta hegemonizar.

Nessa narrativa, os conhecimentos circunscritos às Ciências Humanas assumem uma tarefa muito clara: possibilitar o controle por meio da manutenção da ordem diante de um contexto em que “culturas e processos políticos e econômicos parecem fugir ao controle”. Os conhecimentos da área são afirmados como condição “imprescindível ao prosseguimento da vida social” e como recursos para evitar “formas de reação violentas e destrutivas”.

Mais uma vez, em uma ordem do tempo naturalizada (“em um mundo globalizado”), as Ciências Humanas são instituídas, sem questionamentos, naturalizadas nos documentos curriculares, uma entre as várias instâncias em que se projeta a ideia de que “o setor público não é mais visto como tendo qualidades especiais que o distingam de um negócio” (Ball, 2014BALL, S. J. Sociologia das políticas educacionais e pesquisa crítico-social: uma revisão pessoal das políticas educacionais e da pesquisa em política educacional. In: BALL, S. J.; MAINARDES, J. (Org.). Políticas educacionais: questões e dilemas. São Paulo: Cortez, 2014. p. 21-53., p. 25).

A complexidade e a longevidade desse projeto podem ser notadas quando se aproxima a concepção de área dos PCNEM àquela inserida na BNCC. Neste último documento, encontramos a seguinte assertiva: “é preciso destacar a necessidade de ‘romper com a centralidade das disciplinas nos currículos e substituí-las por aspectos mais globalizadores e que abranjam a complexidade das relações existentes entre os ramos da ciência no mundo real’ (Parecer CNE/CEB nº 5/2011)” (Brasil. MEC, 2018, p. 479). A afirmativa, que estabelece um fluxo contínuo de tempo em que a BNCC aparece como o ápice, justifica a materialização de uma organização curricular que prescinde da identificação das especificidades das disciplinas escolares.

Figura 3
Sumários dos PCNEM (Volume IV - Ciências Humanas) e da BNCC, respectivamente

Nesse sumário, os aspectos mais globalizadores são as competências, às quais aparecem subordinados aqueles elementos referentes aos “ramos da ciência no mundo real”. Os significantes, que poderiam trazer algo relacionado às especificidades disciplinares que figuravam ainda nos PCNEM, desaparecem por completo na narrativa do documento atual.

Mediante os indícios apresentados, desenha-se, dos PCNEM à BNCC-EM, uma narrativa que pode ser vislumbrada como parte de um processo de subordinação dos conteúdos provenientes dos campos disciplinares à pedagogia das competências. De um documento ao outro, pode-se inferir que há um movimento em que, de meio para conhecer e desenvolver competências, os conhecimentos que compõem a área se transformam em sinônimos de competências.

Com base em investigações de nossa equipe de pesquisa, tem sido possível observar que o significante competências ocupou, gradativamente, o lugar de diversos outros significantes. Associado a ele, o significante habilidades tornou-se também sinônimo de conteúdos, substituindo-o em todas as áreas.

Na síntese esquemática exposta na Figura 4, ressalta-se que, no interior das políticas curriculares, como a BNCC, as competências substituíram, ao longo do tempo, uma série de significantes relacionados à formação de professores e à questão do direito à educação, por exemplo, assumindo o status de conhecimento e equivalendo-se a ele.

Figura 4
Relação entre diferentes significantes e o ponto nodal competências, no período de 2000, por ocasião da homologação dos PCNEM, até 2018, com a publicação da Resolução nº 4/2018, que instituiu a BNCC-EM

Esse processo acompanha um movimento que ocorre nesses documentos normativos de apagamento de elementos cruciais na estruturação e na fundamentação dos projetos societários que se enfrentam na arena das políticas educacionais para a educação básica, nodais para pensar a formação de professores e o ensino. Tais afastamentos/apagamentos ocultam princípios díspares, que exacerbam a existência de projetos em disputa.

Muito embora esses princípios estejam ocultos, eles se tornam fundamentais quando são analisados os processos de implementação e de financiamento dessas políticas, para se compreender como vem sendo instituída uma lógica cultural marcada pelos princípios e fundamentos do projeto societário defendido por grupos empresariais, aspecto demonstrado por uma série de estudos3 3 A esse respeito, ver Albino e Silva (2019); Macedo (2019); Santos (2021); Lopes (2008); Oliveira e Krawczyk (2022); Galzerano (2022). .

O requinte e a racionalidade desse processo podem ser identificados quando são aproximadas as passagens destacadas nos trechos de três diferentes marcos legais inseridos no Quadro 6. Nota-se um processo articulado de tentativa de fixação de sentidos por reconceitualizações: as competências definem e são a expressão das “aprendizagens essenciais”; são definidas como mobilização de conhecimentos, habilidades, atitudes e valores, e, por fim, equivalem a direitos e objetivos de aprendizagem (“a expressão ‘competências e habilidades’ deve ser considerada como equivalente à expressão ‘direitos e objetivos de aprendizagem’”).

Quadro 6
Recontextualização do significante competências na legislação

A articulação dos elementos que compõem a definição que se tenta fixar é um indício do funcionamento das políticas de caráter neoliberal em que a função do Estado vem sendo reposicionada. Torna-se visível aqui o que Foucault (2008FOUCAULT, M. O nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008., apudLaval, 2020LAVAL, C. Foucault, Bordieu e a questão neoliberal. São Paulo: Elefante, 2020., p. 49) define como “governamentalidade”, ao apontar que “governar [...] é estruturar o eventual campo de ação dos outros”, considerando que o Estado, na perspectiva neoliberal, assume o papel de constituir condições que se desdobrem nas condutas desejadas.

Considerações finais

A repetição exaustiva do significante competências na narrativa dos documentos curriculares acontece articulada a uma cadeia de equivalências que, paulatinamente, ao longo de mais de duas décadas, vai gradualmente apagando os indícios da existência de projetos díspares que se enfrentam na arena das políticas educacionais, como já se apontou.

Os princípios desses projetos, que circulam de forma híbrida e por recontextualização em documentos como as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica, por exemplo, vão sendo apagados dos documentos e, simultaneamente, articulados em torno do significante competências, que, erigido a ponto nodal

[...] ou significante-mestre, implica a noção de um elemento particular assumindo uma função estruturadora “universal” dentro de um certo campo discursivo - na verdade, qualquer organização que este campo venha a ter é apenas o resultado daquela função -, sem que a particularidade do elemento per se determine tal função. (Laclau; Mouffe, 2015LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios; Brasília, DF: CNPq, 2015., p. 38)

Voltadas quase que inteiramente para as questões da prática em perspectiva tecnicista, instaura-se nessas políticas aquilo que Biesta (2013BIESTA, G. Para além da aprendizagem: educação democrática para um futuro humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. ) chamou de império da linguagem da aprendizagem, sequestrando das docentes e dos docentes a função de educar e transformando alunas e alunos em consumidores, em uma lógica na qual o desejo e o consumo passam a ser os elementos norteadores do ato educativo.

Por meio de documentos como os PCNEM e a BNCC-EM, que possibilitam a disseminação pelas mídias, pelas pesquisas acadêmicas, por documentos produzidos por institutos privados, fundações e organizações multilaterais, a exemplo da Unesco, assistimos a um processo efetivado e consolidado:

[...] um processo de internalização consciente ou inconsciente de valores, princípios e símbolos que vão sendo operados através de mecanismos, tecnologias e artefatos de atuação de seus agentes com o objetivo da naturalização da sociedade de mercado. (Vianna; Souza, 2022VIANNA, R. B. V.; SOUZA, N. C. L. A. Ensino médio de tempo integral: notas sobre o neoliberalismo escolar no Brasil. In: SILVEIRA, E. S. et al. (Org). Ensino médio, educação integral e tempo ampliado na América Latina. Curitiba: CRV, 2022. p. 201-211., p. 203)

Diante desse cenário, em que a área de Ciências Humanas é tecnificada e subordinada à pedagogia do capital, a produção acadêmica precisa, apoiando-se em uma compreensão mais profunda, produzir outros circuitos de afeto, propondo projetos de superação e não de adaptação à lógica instalada pela economia moral e pelo mecanismo refinado da governamentalidade neoliberal.

A defesa da permanência não de componentes curriculares, mas das disciplinas escolares em suas especificidades nos documentos voltados ao currículo da educação básica, associada à reconfiguração do sentido de área de Ciências Humanas sobre outros fundamentos, que não aqueles da lógica mercantil capitalista, torna-se uma tarefa crucial para impedir a privação a que estão sendo submetidas crianças, adolescentes e jovens do contato com um conhecimento científico sistematizado e apresentado em perspectiva crítica, que lhes subsidie na construção de novas maneiras de existir para além da normatividade neoliberal.

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  • 1
    Considera-se a conceitualização operada por Laclau e Mouffe (1987LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemonía y estrategia socialista: hacia una radicalización de la democracia. Madrid: Siglo XXI, 1987.) para ponto nodal. De acordo com os autores, “la imposibilidad de fijación última del sentido implica que tiene que haber fijaciones parciales. Porque, en caso contrario, el flujo mismo de las diferencias sería imposible. Incluso para diferir, para subvertir el sentido, tiene que haber un sentido. Si lo social no consigue fijarse en las formas inteligibles e instituidas de una sociedad, lo social sólo existe, sin embargo, como esfuerzo por producir ese objeto imposible. El discurso se constituye como intento por dominar el campo de la discursividad, por detener el flujo de las diferencias, por constituir un centro. Los puntos discursivos privilegiados de esta fijación parcial los denominaremos puntos nodales (Laclau; Mouffe, 1987LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemonía y estrategia socialista: hacia una radicalización de la democracia. Madrid: Siglo XXI, 1987., p. 191).
  • 2
    Projetos de Pesquisa: “A Base Nacional Comum Curricular e o discurso da qualidade de ensino como indutor de políticas da educação básica e de formação de professores no Brasil” (2022/2025), sob coordenação da Profa. Dra. Carla Busato Zandavalli, financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) - Código de Financiamento 001/2022; “A formação de professores no contexto das políticas educacionais: a implementação e as relações entre o Novo Ensino Médio, a BNCC e a BNC-FP” (2023/2026), sob coordenação da Profa. Dra. Maria Aparecida Lima dos Santos, com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) - Edital nº 10/2023 Universal. Ambos os projetos, interinstitucionais, de abrangência regional e nacional, respectivamente, contam ainda com apoio da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).
  • 3
    A esse respeito, ver Albino e Silva (2019ALBINO, A. C. A.; SILVA, A. F. BNCC e BNC da formação de professores: repensando a formação por competências. Retratos da Escola, Brasília, DF, v. 13, n. 25, p. 137-153, jan./maio 2019.); Macedo (2019MACEDO, E. Fazendo a Base virar realidade: competências e o germe da comparação. Retratos da Escola , Brasília, DF, v. 13, n. 25, p. 39-58, jan./maio 2019. ); Santos (2021SANTOS, M. A. L. Ensinar História na Base Nacional Comum de Formação de Professores: a atitude historiadora convertendo-se em competências. Educar em Revista, Curitiba, v. 37, e77129, 2021.); Lopes (2008LOPES, A. C. A articulação entre conteúdos e competências em políticas de currículo para o ensino médio. In: LOPES, A. C. et al. (Org.). Políticas educativas e dinâmicas curriculares no Brasil e em Portugal. Petrópolis: DP et Alii; Rio de Janeiro: Faperj, 2008. p. 189-213. ); Oliveira e Krawczyk (2022OLIVEIRA, T.; KRAWCZYK, N. A financeirização da vida cotidiana através da educação. In: KÖRBES, C. et al. (Org.). Anais do I Colóquio da Rede Nacional em Pesquisa. Curitiba: CRV, 2022. p. 33.); Galzerano (2022GALZERANO, L. S. Educação à venda: ação empresarial e financeirização no Brasil. Marília: Lutas Anticapital, 2022.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    22 Abr 2023
  • Aceito
    07 Abr 2024
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