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Práticas de letramento no processo de aquisição de língua portuguesa escrita por surdos nas séries iniciais do ensino fundamental

Literacy practices in the process of acquisition of the written Portuguese language by deaf people in the early grades of elementary school

Prácticas de aprendizaje en el proceso de adquisición de la lengua portuguesa escrita por sordos en los años iniciales de la enseñanza básica

Resumo:

O presente artigo resulta de uma pesquisa de pós-doutorado que teve como objetivo analisar as práticas de letramento usadas por professores de salas regulares bilíngues para surdos que se encontram no processo de aquisição da língua portuguesa escrita. No Brasil, ainda são escassas pesquisas que mostram práticas de letramento com estudantes surdos, fato que justifica a importância deste estudo. A investigação foi realizada em três escolas da rede municipal de ensino da cidade de Recife, Pernambuco, nos anos iniciais do ensino fundamental, as quais oferecem essas salas. Participaram deste estudo cinco professores bilíngues. O aporte teórico constou de autores que trabalham com o tema de alfabetização e letramento de surdos na perspectiva bilíngue, destacando-se: Fernandes, Quadros, Schmiedt e Sousa. A pesquisa qualitativa ocorreu em duas etapas: entrevista semiestruturada com os voluntários e observações em sala de aula. Todo o contato com os participantes foi feito de forma remota, em virtude da pandemia do coronavírus, mediante uso de recursos de mídia digital, como Whatsapp, e-mail e Google Meet. Além do perfil dos professores participantes, os dados mostraram o que eles pensam a respeito do processo de aquisição da língua portuguesa escrita por surdos, assim como práticas de letramento utilizadas por eles nesse processo. Entre essas práticas, evidenciamos o uso da Língua Brasileira de Sinais (Libras) como instrução para trabalhar a leitura de mundo e o alfabeto manual como facilitador da apropriação da língua portuguesa escrita.

Palavras-chave:
letramento; língua portuguesa; surdos

Abstract:

This article is the result of a postdoctoral research that aimed to analyze the literacy practices used by teachers of regular bilingual classrooms for deaf people who are in the process of acquiring the written Portuguese language. In Brazil, there are still few studies that show literacy practices with deaf students, which justifies the importance of carrying out this study. The research was carried out in three municipal schools in the city of Recife, Pernambuco, in early elementary school years, which offer these classes. Five bilingual teachers participated in this study. The theoretical contribution consisted of authors who work with the theme of literacy of deaf people from a bilingual perspective, highlighting: Fernandes, Quadros, Schmiedt, and Sousa. The qualitative research happened in two stages: semi-structured interviews with the volunteers and classroom observations. All contact with the participants was made remotely due to the coronavirus pandemic, using digital media resources, such as Whatsapp, email, and Google Meet. In addition to the profile of the participating teachers, the data showed what they think about the acquisition process of the written Portuguese language by deaf people, as well as the literacy practices used by them in this process. Among these practices, we highlight the use of Brazilian Sign Language (Libras) as an instruction to work on the reading of the world and the manual alphabet as an appropriation facilitator of the written Portuguese language.

Keywords:
literacy; Portuguese language; deaf people

Resumen:

Este artículo es el resultado de una investigación posdoctoral que tuvo como objetivo analizar las prácticas de aprendizaje utilizadas por profesores de salas regulares bilingües para sordos en proceso de adquisición de la lengua portuguesa escrita. En Brasil, todavía hay pocas averiguaciones que muestren las prácticas de aprendizaje con estudiantes sordos, hecho que justifica la importancia de este estudio. La investigación se realizó en tres escuelas de la red educativa municipal de la ciudad de Recife (Pernambuco), en los años iniciales de la enseñanza básica, que ofrecen esas salas. En este estudio participaron cinco profesores bilingües. El aporte teórico estuvo compuesto por autores que trabajan el tema de la alfabetización y aprendizaje de sordos desde una perspectiva bilingüe, destacando: Fernandes, Quadros, Schmiedt y Sousa. La investigación cualitativa se realizó en dos etapas: entrevista semiestructurada a voluntarios y observaciones en el aula. Todo el contacto con los participantes se efectuó de manera remota, debido a la pandemia de “coronavirus”, empleando recursos de medios digitales, como: WhatsApp, correo electrónico y Google Meet. Además del perfil de los profesores participantes, los datos mostraron lo que piensan sobre el proceso de adquisición de la lengua portuguesa escrita por sordos, así como las prácticas de aprendizaje utilizadas por ellos en este proceso. Entre esas prácticas, certificamos el uso de la Lengua Brasileña de Signos (Libras) como instrucción para trabajar la lectura de mundo y el alfabeto manual como facilitador de la apropiación de la lengua portuguesa escrita.

Palabras clave:
aprendizaje; lengua portuguesa; sordos

Introdução

Embora já tenhamos avançado com algumas conquistas em relação à educação de surdos - por exemplo, a recente Lei nº 14.191/2021, que altera a Lei nº 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), para dispor sobre a modalidade de educação bilíngue de surdos -, a aquisição da língua portuguesa escrita pelas crianças surdas ainda é um grande desafio para professores, familiares e para elas mesmas. Não é à toa que essa questão tem sido o foco de discussões de diversos profissionais que tentam encontrar uma maneira de tornar o processo de aquisição da escrita mais tranquilo para essas crianças.

De acordo com Silva (2021SILVA, R. A. F. As crianças surdas e a palavra escrita. In: SILVA, R. A. F.; HOLLOSI, M. (Org.). Educação de surdos, linguagens e experiências. Uberlândia: Navegando, 2021. p. 301-328., p. 323), “os surdos não podem compreender o sistema de escrita com o uso de algo que é particular aos ouvintes: a consciência fonológica”. É

válido ressaltar que a criança surda não analisa os sons constituintes das palavras, visto que não há fonetização da escrita. Observamos aqui mais uma especificidade no processo de alfabetização da criança surda: o fato de ela não se apoiar no som quando está aprendendo a escrita da língua portuguesa.

Tendo em conta essa realidade, questionamo-nos: Será que os professores bilíngues têm clareza e consideram as especificidades linguísticas das crianças surdas? De que forma está acontecendo a aquisição da língua portuguesa escrita nas séries iniciais do ensino fundamental, nas salas regulares bilíngues para surdos? A língua de sinais tem sido usada pelos professores durante as aulas como língua de instrução? Que estratégias são utilizadas pelos professores no ensino da língua portuguesa para surdos? Quais são os recursos disponibilizados para os professores ensinarem a língua portuguesa escrita como segunda língua? Quais são os princípios que norteiam os professores nas adequações das atividades para os estudantes surdos?

Logo, o problema central investigado versa sobre as práticas de letramento utilizadas pelos professores de “salas regulares bilíngues para surdos” (denominação atribuída pela rede municipal de educação para essas salas), no processo de ensino da língua portuguesa escrita como segunda língua, nas séries iniciais do ensino fundamental.

Nesses termos, este estudo teve como objetivo principal analisar as práticas de letramento usadas por professores de salas regulares bilíngues para surdos que se encontram no processo de aquisição da língua portuguesa escrita. Além disso, os objetivos específicos foram: a) traçar o perfil dos professores das salas bilíngues para surdos; b) descrever qual o conhecimento dos professores de salas bilíngues para surdos sobre o processo de aquisição da língua portuguesa escrita; c) elencar as dificuldades encontradas pelos professores para ensinar a língua portuguesa escrita como segunda língua; d) verificar e descrever os recursos utilizados pelos professores para ensinar a língua portuguesa escrita nas salas regulares bilíngues para surdos; e) registrar como tem sido o uso da língua de sinais em sala de aula, tanto pelos professores como pelos estudantes surdos; f) identificar e descrever as práticas de letramento utilizadas pelos professores participantes no ensino da língua portuguesa como segunda língua; g) registrar como os estudantes surdos adquirem a língua portuguesa escrita.

Peculiaridades no processo de aquisição de língua portuguesa escrita por crianças surdas

A criança surda usuária da língua de sinais geralmente não faz o mesmo percurso que a criança ouvinte costuma fazer no processo de aquisição da língua portuguesa escrita. Nesse percurso, o professor alfabetizador habitualmente lança mão de diversas estratégias e recursos didático-metodológicos que têm o som como base, uma vez que eles são fundamentais para a apropriação do sistema de escrita da língua portuguesa, já que se trata de uma língua alfabética. Dentre esses recursos, Sousa (2021SOUSA, W. P. A. A criança surda: reflexões sobre o processo de alfabetização e letramento em salas bilíngues. In: SILVA, R. A. F.; HOLLOSI, M. (Org.). Educação de surdos, linguagens e experiências. Uberlândia: Navegando , 2021. p. 383-400., p. 383) destaca, “por exemplo: parlendas, rimas, aliterações, trava-línguas, jogos e músicas destinados às crianças que se encontram em pleno desenvolvimento da alfabetização e letramento”. Essas estratégias têm sido apontadas por diversos autores como exitosas na apropriação da língua portuguesa escrita por crianças ouvintes. Entretanto, tais recursos não surtem o mesmo efeito quando empregados com as crianças surdas, em razão de elas não terem o feedback auditivo.

Nesse sentido, segundo Fernandes (2003FERNANDES, S. F. Educação bilíngue para surdos: identidades, diferenças, contradições e mistérios. 2003. 213 f. Tese (Doutorado em Letras) - Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2003., 2006FERNANDES, S. F. Práticas de letramento na educação bilíngue para surdos. Curitiba: Secretaria de Estado da Educação, 2006.), muitas são as especificidades na alfabetização das crianças surdas sinalizantes de língua de sinais, dentre as quais destacamos a incompatibilidade entre os sistemas de representação linguística da língua falada (língua de sinais) e os da língua escrita (língua portuguesa). Isso, sem dúvida, representa um grande gargalo na aquisição da língua escrita não apenas para a criança surda em processo de alfabetização, mas, também, para os professores alfabetizadores, sobretudo os ouvintes, ainda que eles sejam bilíngues, uma vez que não podem utilizar as diversas estratégias sonoras disponíveis para a criança ouvinte, conforme mencionamos anteriormente.

É importante enfatizar que a criança surda, diferentemente da ouvinte, desenvolve as suas funções psicológicas superiores em uma língua com uma estrutura totalmente distinta da língua cujo sistema de escrita ela está adquirindo. É por meio da língua falada por essas crianças, no caso a de sinais, que elas pensam, comunicam- se e constroem o conhecimento. No entanto, por ser uma língua espaço-visual, não apresenta nenhuma relação com a estrutura da língua portuguesa, que é oral-auditiva. Por essa razão, é necessário compreender as peculiaridades existentes para que o professor alfabetizador possa mediar o processo de aquisição da língua portuguesa escrita das crianças surdas de forma mais eficaz.

A esse respeito, Quadros e Schmiedt (2006QUADROS, R. M.; SCHMIEDT, M. L. P. Ideias para ensinar português para alunos surdos. Brasília: MEC, 2006.) propõem o ensino da língua portuguesa para a criança surda por meio de estratégias que possibilitem que ela encontre sentido e correspondência com algo do seu universo de conhecimento, já que ela parte da

língua de sinais (L1) para a língua portuguesa (L2), que é o seu alvo, estabelecendo uma relação simbólica com o seu significado.

Não obstante, a Lei nº 14.191/2021 estabelece, no artigo 79-C, que:

A União apoiará técnica e financeiramente os sistemas de ensino no provimento da educação bilíngue e intercultural às comunidades surdas, com desenvolvimento de programas integrados de ensino e pesquisa.

§ 1º Os programas serão planejados com participação das comunidades surdas, de instituições de ensino superior e de entidades representativas das pessoas surdas.

§ 2º Os programas a que se refere este artigo, incluídos no Plano Nacional de Educação, terão os seguintes objetivos:

- fortalecer as práticas socioculturais dos surdos e a Língua Brasileira de Sinais;

- manter programas de formação de pessoal especializado, destinados à educação bilíngue escolar dos surdos, surdo-cegos1 1 O termo “surdo-cegos” (como está na Lei nº 14.191/2021, anteriormente citada) não está escrito corretamente. O correto seria “surdocegos”. Não podemos modificar a lei, entretanto, segundo Salvatore Lagati (1995, apudBrasil. MEC, 2010), a expressão surdocegueira entrou em uso pela primeira vez nos anos de 1990 como um substituto para “surdos e cegos”. Percebeu-se que a junção dessas duas palavras deu mais clareza e definiu a condição como uma deficiência única. “Surdocegueira é uma condição que apresenta outras dificuldades além daquelas causadas pela cegueira e pela surdez. O termo hifenizado indica uma condição que somaria as dificuldades da surdez e da cegueira. A palavra sem hífen indicaria uma diferença, uma condição única e o impacto da perda dupla é multiplicativo e não aditivo” (Lagati, 1995, apudBrasil. MEC, 2010, p. 8). Portanto, devemos empregar surdocegos, surdocegueira, citado no Manual do MEC - Saberes e práticas da inclusão (Brasil. MEC, 2006). , com deficiência auditiva sinalizantes, surdos com altas habilidades ou superdotação ou com outras deficiências associadas;

- desenvolver currículos, métodos, formação e programas específicos, neles incluídos os conteúdos culturais correspondentes aos surdos;

- elaborar e publicar sistematicamente material didático bilíngue, específico e diferenciado. (Brasil, 2021BRASIL. Lei nº 14.191, de 3 de agosto de 2021. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), para dispor sobre a modalidade de educação bilíngue de surdos. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 4 ago. 2021. Seção 1, p. 1.).

Conforme observamos no artigo 79-C da Lei nº 14.191/2021, não há um detalhamento claro de como os currículos, métodos e materiais didáticos serão, apenas que se trata de um material bilíngue, ou seja, constará da L1 e da L2, mas não se explicita como deverá ser feito para que o professor tenha uma diretriz. Apesar disso, Sousa (2021SOUSA, W. P. A. A criança surda: reflexões sobre o processo de alfabetização e letramento em salas bilíngues. In: SILVA, R. A. F.; HOLLOSI, M. (Org.). Educação de surdos, linguagens e experiências. Uberlândia: Navegando , 2021. p. 383-400., p. 397) chama a atenção para “os recursos utilizados pelas professoras alfabetizadoras, como o uso de imagens e da estratégia do teatro como elementos facilitadores da compreensão de conceitos pelas crianças surdas”. O fato de usarem os recursos visuais como estratégia ao invés do som mostra o quão consciente as docentes estão das peculiaridades a serem consideradas no processo de aquisição da língua portuguesa escrita pela criança surda.

Provavelmente, esse conhecimento das professoras advém da vivência ao longo dos últimos anos, desde a criação das salas regulares bilíngues para surdos (SRBS), instituídas na cidade de Recife, Pernambuco, por meio do Decreto Estadual nº 28.587/2015, e, posteriormente, normatizadas pela Instrução Normativa Seeduc nº 2/2016.

O percurso metodológico

Trata-se de uma investigação de natureza observacional e de caráter qualitativo, que tem como tipo de delineamento adotado o estudo de campo. Para tanto, realizamos uma pesquisa de campo em três escolas da rede municipal de ensino da cidade de Recife, nas quais existem salas regulares bilíngues para surdos. A escolha dessas escolas se deu por dois motivos: estarem localizadas em bairros de fácil acesso e serem escolas de referência na educação de estudantes surdos.

Inicialmente, foram recrutados oito voluntários com perfil coerente para participar do estudo, entretanto, apenas cinco professores bilíngues se voluntariaram a participar. Para manter o anonimato dos participantes, iremos nos referir a eles como P1, P2, P3, P4 e P5. É importante destacar que as portarias de organização das turmas preveem, no máximo, dez estudantes em cada uma das SRBS. No entanto, por se tratar de um serviço recente, esse número ainda não foi atingido, apresentando, em algumas SRBS, um efetivo de apenas três estudantes por sala.

Como critério de exclusão, não foram selecionados os professores que não trabalham com salas regulares bilíngues para surdos nos anos iniciais do ensino fundamental dessas escolas.

Os docentes foram convidados a participar mediante apresentação, leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Destacamos que foram respeitados os aspectos éticos para pesquisa com seres humanos, conforme a Resolução CNS nº 510/2016. A presente investigação foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa, mediante Parecer nº 4.299.615, da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), e cadastrada na Plataforma Brasil, conforme Certificado de Apresentação de Apreciação Ética (Caae) nº 38033520.4.0000.5206.

Diante do momento de pandemia, bem como do distanciamento social, todo contato com os participantes ocorreu de forma remota, mediante o uso de recursos de mídia digital, como Whatsapp, e-mail e Google Meet. Salientamos que, tendo em vista a suspensão das aulas na rede municipal de ensino de Recife, durante o período deste estudo, não foi possível a observação presencial das práticas de letramento utilizadas pelos professores. Nesse caso, fizemos o levantamento dos dados virtualmente, com base na fala dos participantes por ocasião da entrevista semiestruturada, na qual empregamos os recursos anteriormente descritos. Esclarecemos que o contato por essas mídias não deixou de existir, ao contrário, foram mantidos encontros semanais com professores e estudantes das SRBS, ocasião em que forneciam orientações para os estudantes na produção de pequenos textos, conversavam sobre assuntos diversos, entre outros.

Em relação à coleta, conforme já relatamos, esta aconteceu remotamente, em ambiente virtual, mediante uso de recursos de mídia digital, como e-mail e Google Meet. Os dados foram coletados por meio de uma entrevista semiestruturada, além disso, foram feitas observações em sala de aula virtual. Portanto, a pesquisa foi realizada em duas etapas, descritas na sequência.

Na primeira etapa, após o contato com os professores via e-mail, convidando-os para comporem a pesquisa, foi feita uma entrevista semiestruturada com os participantes, pela plataforma virtual Google Meet, com duração média de 30 minutos para cada um, em dia e horário sugeridos por eles. A entrevista teve como objetivo traçar um perfil acadêmico e profissional dos participantes, além de obter dados que permitiram conhecer o que eles pensam a respeito do processo de aquisição da língua portuguesa escrita como segunda língua por estudantes surdos, como também quais são as práticas de letramento utilizadas no ensino dessa língua.

Na segunda etapa, foram feitas observações em sala de aula, as quais tiveram seu registro por meio de gravação das aulas remotas, acessadas pela plataforma virtual Google Meet, anotações em diário etnográfico e prints de tela de cenas das aulas que corroboravam os objetivos do estudo. Essa etapa visou registrar práticas de letramento utilizadas pelos professores de SRBS no ensino da língua portuguesa como L2, bem como de que forma os estudantes surdos adquirem a língua portuguesa escrita nas séries iniciais do ensino fundamental.

O registro dos dados foi realizado pela primeira pesquisadora mediante gravação e transcrição na íntegra. Com base nos dados coletados, tendo como suporte os objetivos propostos e os resultados obtidos, fizemos a análise e organização das categorizações, seguindo a orientação de análise de conteúdo proposta por Bardin (2016BARDIN, L. Análise de conteúdo. Tradução de Luís Antero Reto e Augusto Pinheiro. São Paulo: Edições 70, 2016.).

A seleção de falas com informações pertinentes será exposta em quadros com base em cinco categorias temáticas: dificuldades no ensino da língua portuguesa escrita; ensino da língua portuguesa escrita nas SRBS; práticas de letramento no ensino da língua portuguesa para surdos; aquisição da língua portuguesa escrita: estudante surdo versus ouvinte; língua de sinais como língua de instrução.

Como benefícios deste trabalho, oferecemos oportunidades aos voluntários para participarem de grupos de estudos com condução das pesquisadoras, nos quais realizamos orientações e discussões acerca de ações pedagógicas facilitadoras do processo de aquisição da língua portuguesa escrita por surdos. Assim, tivemos a participação de alguns docentes em encontros dos grupos, além de formação continuada ofertada a todos os professores das SRBS.

Análise dos resultados

Apresentaremos os resultados referentes ao perfil dos cinco voluntários participantes, construído com base nos dados coletados por meio de entrevista semiestruturada.

Quadro 1
Perfil dos voluntários participantes da pesquisa

De acordo com o Quadro 1, todos os participantes têm nível superior completo e pós-graduação lato sensu em área de conhecimento compatível com a atuação em educação de pessoas surdas. Além disso, o fato de todos saberem Língua Brasileira de Sinais (Libras), embora P3 e P4 possuam nível intermediário, mostra que os professores estão dentro do perfil determinado pelo Decreto nº 28.587/2015, que criou as salas regulares bilíngues para surdos no município de Recife. É importante frisar que o conhecimento dos docentes em Libras permite que as aulas sejam todas ministradas nessa língua, isto é, que a Libras seja usada nessas salas como língua de instrução e não apenas como mero recurso didático-metodológico.

Um fato que nos chama a atenção é que, dos cinco participantes, os dois professores surdos só estão nas SRBS há dois anos, ao passo que os demais estão há cinco anos. Esse dado nos mostra uma preocupação da gestão pública em melhorar a educação das crianças surdas, na medida em que já inseriu pessoas surdas no corpo docente. Conforme aponta Sousa (2021SOUSA, W. P. A. A criança surda: reflexões sobre o processo de alfabetização e letramento em salas bilíngues. In: SILVA, R. A. F.; HOLLOSI, M. (Org.). Educação de surdos, linguagens e experiências. Uberlândia: Navegando , 2021. p. 383-400.), a participação de surdos adultos na equipe pedagógica possibilita a valorização da cultura surda no espaço escolar, além de uma construção de identidade baseada em pessoas de condição sensorial igual no convívio com os seus pares.

Destacamos, ainda, o fato de todos os participantes, antes de lecionarem nas salas regulares bilíngues para surdos, já terem uma vivência de docência para crianças surdas de, pelo menos, cinco anos. Logo, por mais que a situação de educação bilíngue seja nova para eles, a experiência anterior poderá ser facilitadora na condução do ensino, visto que todos também já realizaram formação continuada.

A seguir, apresentaremos e analisaremos as respostas obtidas durante a entrevista com os participantes, as quais estão organizadas em categorias e serão expostas por meio de quadros.

Categoria 1: dificuldades no ensino da língua portuguesa escrita

Em relação às dificuldades no ensino da língua portuguesa escrita, foi possível observar que a maioria dos participantes, três de um total de cinco, responderam ter dificuldades, conforme demonstra o Quadro 2.

Quadro 2
Dificuldades para ensinar a língua portuguesa escrita a estudantes surdos

É interessante observar no Quadro 2 que apenas os professores surdos responderam que não sentem dificuldade para ensinar a língua portuguesa escrita como segunda língua a estudantes surdos. Provavelmente, por viverem a experiência de aprender como surdos e pensar como surdos, eles tenham desenvolvido estratégias de ensino visuais que poderão facilitar a mediação com a criança surda. Contudo, os dois professores surdos que participaram deste estudo não têm uma sala de aula deles, como os professores ouvintes que acompanham uma turma durante um ano. Eles têm contato com os estudantes, participam de tarefas, dão modelo de língua em uso durante as interações, entre outras atividades, mas tudo isso em sala de aula de outro docente.

Enfatizamos que a presença desses professores surdos hoje nas SRBS é resultado de uma conquista da comunidade escolar, após compreender que a educação bilíngue para pessoas surdas não se restringe ao uso de duas línguas. É necessária a presença de pessoas surdas em contato com os estudantes, para propiciar a construção de uma identidade pautada nesses sujeitos; esse dado corrobora as ideias de Fernandes (2003FERNANDES, S. F. Educação bilíngue para surdos: identidades, diferenças, contradições e mistérios. 2003. 213 f. Tese (Doutorado em Letras) - Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2003.) e Quadros e Schmiedt (2006QUADROS, R. M.; SCHMIEDT, M. L. P. Ideias para ensinar português para alunos surdos. Brasília: MEC, 2006.). Nesse sentido, P5 indica a sua situação de ouvinte como um fator de dificuldade encontrado no ensino para estudantes surdos, apesar de ensinar a crianças surdas há 25 anos e possuir nível avançado de Libras, conforme mencionado no Quadro 1.

P3 e P5 apontam a falta de conhecimento de Libras como algo que atrapalha o aprendizado de uma segunda língua para as pessoas surdas, conforme defendem Fernandes (2006FERNANDES, S. F. Práticas de letramento na educação bilíngue para surdos. Curitiba: Secretaria de Estado da Educação, 2006.) e Sousa (2021SOUSA, W. P. A. A criança surda: reflexões sobre o processo de alfabetização e letramento em salas bilíngues. In: SILVA, R. A. F.; HOLLOSI, M. (Org.). Educação de surdos, linguagens e experiências. Uberlândia: Navegando , 2021. p. 383-400.).

Embora ambos, P4 e P5, tenham respondido que têm dificuldade para ensinar a língua portuguesa escrita como segunda língua a estudantes surdos, P4 citou apenas a escassez de material didático, enquanto P5 ressaltou a necessidade de conhecer como o surdo aprende, da mesma forma que a sua condição de sujeito visual como algo crucial para se pensar em estratégias. Logo, o pensamento de P5 corrobora o que Quadros e Schmiedt (2006QUADROS, R. M.; SCHMIEDT, M. L. P. Ideias para ensinar português para alunos surdos. Brasília: MEC, 2006.) defendem.

Categoria 2: ensino da língua portuguesa escrita nas SRBS

O Quadro 3 traz a síntese das respostas dos participantes acerca de quais recursos e materiais eles usam para ensinar a língua portuguesa escrita aos estudantes surdos nas SRBS.

Quadro 3
Recursos e materiais utilizados para ensinar a língua portuguesa escrita nas SRBS

Na categoria 2 (Quadro 3), os participantes apontaram os recursos e materiais usados para ensinar a língua portuguesa escrita nas SRBS baseados em imagens, jogos, teatro, entre outros. Essas estratégias são frisadas por Quadros e Schmiedt (2006QUADROS, R. M.; SCHMIEDT, M. L. P. Ideias para ensinar português para alunos surdos. Brasília: MEC, 2006.) como importantes no ensino da L2 para estudantes surdos. Esses dados nos mostram que, embora três dos cinco participantes tenham apresentado, na categoria 1 (Quadro 2), dificuldades para ensinar a língua portuguesa escrita a estudantes surdos, eles possuem conhecimento e fazem uso de recursos didático-metodológicos apropriados para esse ensino.

Os materiais concretos e as dramatizações, como aponta P5, são recursos também destacados como facilitadores no ensino da língua portuguesa a crianças surdas nos estudos de Sousa (2021SOUSA, W. P. A. A criança surda: reflexões sobre o processo de alfabetização e letramento em salas bilíngues. In: SILVA, R. A. F.; HOLLOSI, M. (Org.). Educação de surdos, linguagens e experiências. Uberlândia: Navegando , 2021. p. 383-400.).

Os professores têm participado de algumas formações continuadas que a primeira pesquisadora promoveu, além de alguns participarem de discussões nos encontros do grupo de pesquisa do qual ela é líder. Observamos que, após as formações por nós proporcionadas e aquelas que a rede municipal promove, em conformidade com o que orienta a Lei nº 14.191/2021, os professores têm conseguido avançar de forma mais segura no ensino dos estudantes surdos.

Categoria 3: práticas de letramento no ensino da língua portuguesa para surdos

O Quadro 4 elenca as sínteses das respostas dos participantes referentes à entrevista. O uso, em suas práticas, de elementos visuais demonstra o conhecimento que eles têm das peculiaridades linguísticas dos estudantes surdos, já que são sujeitos visuais.

Quadro 4
Práticas de letramento utilizadas para ensinar a língua portuguesa como L2 para surdos

Embora a categoria 3 (Quadro 4) seja parecida com a categoria 2, os participantes deram detalhes das suas práticas de letramento e das estratégias utilizadas para ensinar a língua portuguesa como L2 para surdos, ratificando o que defendem em seus estudos Silva (2021SILVA, R. A. F. As crianças surdas e a palavra escrita. In: SILVA, R. A. F.; HOLLOSI, M. (Org.). Educação de surdos, linguagens e experiências. Uberlândia: Navegando, 2021. p. 301-328.) e Sousa (2021SOUSA, W. P. A. A criança surda: reflexões sobre o processo de alfabetização e letramento em salas bilíngues. In: SILVA, R. A. F.; HOLLOSI, M. (Org.). Educação de surdos, linguagens e experiências. Uberlândia: Navegando , 2021. p. 383-400.). É importante salientar que há preocupação em apresentar a língua em uso, seja em contexto de contação de história, seja em outra situação. Não se tem referência ao uso de vocabulário solto. Isso é um avanço na educação de surdos, já que, historicamente, o ensino descontextualizado resultou em fracasso em massa de estudantes surdos e ouvintes.

A contação de histórias, apresentação de imagens e posterior exploração do vocabulário é uma estratégia interessante, uma vez que explora o letramento visual e o uso da Libras como mediadora do processo de aprendizagem da L2, como preconizam Fernandes (2006FERNANDES, S. F. Práticas de letramento na educação bilíngue para surdos. Curitiba: Secretaria de Estado da Educação, 2006.) e Sousa (2021SOUSA, W. P. A. A criança surda: reflexões sobre o processo de alfabetização e letramento em salas bilíngues. In: SILVA, R. A. F.; HOLLOSI, M. (Org.). Educação de surdos, linguagens e experiências. Uberlândia: Navegando , 2021. p. 383-400.).

Destacamos um dado relevante na fala de P4, quando aponta o uso do alfabeto em L2 associado ao alfabeto manual (datilologia). O emprego da datilologia como estratégia de ensino de língua portuguesa escrita tem sido discutido ultimamente entre pesquisadores como Sousa (2021SOUSA, W. P. A. A criança surda: reflexões sobre o processo de alfabetização e letramento em salas bilíngues. In: SILVA, R. A. F.; HOLLOSI, M. (Org.). Educação de surdos, linguagens e experiências. Uberlândia: Navegando , 2021. p. 383-400.).

Categoria 4: aquisição da língua portuguesa escrita - estudante surdo versus ouvinte

O Quadro 5 traz a síntese das respostas dos participantes em relação ao que eles pensam sobre como ocorre o processo de aquisição da língua portuguesa escrita pelo estudante surdo comparado ao ouvinte.

Quadro 5
O processo de aquisição da língua portuguesa escrita pelo estudante surdo comparado ao ouvinte

Ao comparar o processo de aquisição da língua portuguesa pelo estudante surdo e pelo ouvinte (Quadro 5), os participantes mostraram que não apenas têm conhecimento de que se trata de percursos diferentes, como também de que a diferença reflete na escolha de estratégias didático-metodológicas.

É fundamental a consciência que P1 tem de que os ouvintes falam e escrevem a mesma língua, enquanto os surdos, não. Esse dado corrobora Fernandes (2006FERNANDES, S. F. Práticas de letramento na educação bilíngue para surdos. Curitiba: Secretaria de Estado da Educação, 2006.) em relação à incompatibilidade linguística que há com os estudantes surdos no processo de aquisição da língua portuguesa escrita.

Ressaltamos a fala de P4, quando menciona que o surdo faz um percurso lexical ao passo que o ouvinte utiliza a via fonológica, conforme Fernandes (2006FERNANDES, S. F. Práticas de letramento na educação bilíngue para surdos. Curitiba: Secretaria de Estado da Educação, 2006.). Saber essa diferença ajuda muito na escolha das atividades para que o professor não se utilize de som, mas de imagens que sirvam de contexto e da Libras como língua de instrução.

As respostas de P2, P4 e P5 comungam da mesma afirmação de Silva (2021SILVA, R. A. F. As crianças surdas e a palavra escrita. In: SILVA, R. A. F.; HOLLOSI, M. (Org.). Educação de surdos, linguagens e experiências. Uberlândia: Navegando, 2021. p. 301-328.), ao defender que os surdos compreendem a escrita diferentemente dos ouvintes, tendo em vista que não ocorre a fonetização.

Categoria 5: língua de sinais como língua de instrução

O Quadro 6 evidencia a síntese das respostas dos participantes sobre como a língua de sinais é utilizada por eles em sala de aula, ou seja, se é usada como língua de instrução ou apenas, esporadicamente, como estratégia de apoio.

Quadro 6
O uso da língua de sinais em sala de aula

De acordo com os dados registrados no Quadro 6, os participantes foram unânimes em dizer que utilizam a Libras como língua de instrução, ou seja, todos os voluntários se enquadram mais uma vez no perfil de docente estabelecido tanto no Decreto Estadual nº 28.587/2015, que instituiu as SRBS na rede municipal de ensino de Recife, como na Instrução Normativa Seeduc nº 2/2016.

O fato de os professores utilizarem apenas a Libras na comunicação com os estudantes surdos possibilita que o aluno se sinta seguro para participar da aula, questionando, tirando as suas dúvidas e interagindo sem barreira comunicacional durante o processo educacional, como argumenta Sousa (2021SOUSA, W. P. A. A criança surda: reflexões sobre o processo de alfabetização e letramento em salas bilíngues. In: SILVA, R. A. F.; HOLLOSI, M. (Org.). Educação de surdos, linguagens e experiências. Uberlândia: Navegando , 2021. p. 383-400.).

Conforme citamos na metodologia, apresentaremos e analisaremos a seguir os resultados das observações feitas em sala de aula, cujo objetivo foi registrar as práticas de letramento utilizadas pelos professores de SRBS no ensino da língua portuguesa como L2 e de que forma os estudantes surdos adquirem a língua portuguesa escrita nas séries iniciais do ensino fundamental.

Durante as observações feitas em sala de aula, foi possível perceber e registrar a coerência das práticas de letramento utilizadas pelos professores de SRBS no ensino da língua comparadas às respostas dadas por eles durante a entrevista. Assim, embora algumas aulas tenham sido gravadas pelos professores e enviadas aos estudantes para assistirem em casa, registramos momentos de contação de história em Libras e posterior atividade, explorando não apenas o vocabulário, mas também a interpretação, por meio de perguntas sobre a história contada.

O uso de jogos também foi observado durante as aulas síncronas, apesar da dispersão de alguns estudantes, provavelmente porque estavam acompanhando pelo celular. Vejamos na Figura 1 um print de um momento de gravação de uma aula síncrona na escola, em que a professora utiliza um jogo para a criança associar a palavra ao sinal em Libras.

Figura 1
Jogo de associação de palavra - sinal em Libras

Durante as observações e o registro do modo como os estudantes surdos adquirem a língua portuguesa escrita, percebemos um movimento de uso da datilologia nos momentos em que eles estavam refletindo sobre a palavra a ser escrita. Muitas vezes, faziam o sinal em Libras e depois utilizavam o alfabeto manual, fazendo letra por letra e escrevendo-as no papel, a exemplo da criança ouvinte em processo de fonetização. Esse movimento tem sido observado por Sousa (2021SOUSA, W. P. A. A criança surda: reflexões sobre o processo de alfabetização e letramento em salas bilíngues. In: SILVA, R. A. F.; HOLLOSI, M. (Org.). Educação de surdos, linguagens e experiências. Uberlândia: Navegando , 2021. p. 383-400.).

Na Figura 2, temos um print de um momento de gravação durante uma aula síncrona pelo Google Meet, após o retorno à escola, ainda durante a pandemia de covid-19, em que a professora utiliza a datilologia como estratégia para a criança surda escrever.

Figura 2
Uso da datilologia como estratégia mediadora no processo de escrita da língua portuguesa

Na Figura 3, registramos uma situação, em outra sala de aula, em que a criança faz uso da datilologia, ao refletir sobre a leitura e, posteriormente, a escrita de algumas palavras em língua portuguesa.

Nesse sentido, chamamos a atenção para o Quadro 4, pois P4 faz menção ao uso da datilologia como estratégia de ensino da língua portuguesa escrita. Essa prática pode ser agregada às sugestões de estratégias apontadas por Quadros e Schmiedt (2006QUADROS, R. M.; SCHMIEDT, M. L. P. Ideias para ensinar português para alunos surdos. Brasília: MEC, 2006.).

Figura 3
Utilização da datilologia em momento de reflexão sobre a leitura e a escrita da língua portuguesa

As Figuras 2 e 3 revelam como a datilologia se faz presente no momento da escrita da língua portuguesa, tanto pela professora como pelo estudante. Observamos que ambos fazem uso desse recurso como apoio: a professora, para ensinar como se escreve determinada palavra, o estudante, para refletir sobre a escrita. Ao contrário das estratégias criticadas nos estudos de Fernandes (2003FERNANDES, S. F. Educação bilíngue para surdos: identidades, diferenças, contradições e mistérios. 2003. 213 f. Tese (Doutorado em Letras) - Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2003., 2006FERNANDES, S. F. Práticas de letramento na educação bilíngue para surdos. Curitiba: Secretaria de Estado da Educação, 2006.), temos nesse dado um exemplo de prática exitosa, uma vez que o uso da datilologia tem proporcionado ao estudante surdo refletir sobre a escrita da língua portuguesa.

Considerações finais

O processo de aquisição de língua portuguesa escrita por estudantes surdos tem sido tema de diversos estudos nos últimos anos, sobretudo no contexto de discussão da educação bilíngue, a qual se apresenta como possibilidade de se oferecer uma educação de qualidade para as pessoas surdas, considerando não apenas as questões linguísticas, mas, também, as culturais.

Partindo do objetivo central desta investigação, que é analisar as práticas de letramento usadas por professores de salas regulares bilíngues para surdos que se encontram no processo de aquisição da língua portuguesa escrita, constatamos que os professores frequentemente fazem uso de contação de histórias em Libras, e isso reflete positivamente no processo de letramento dos estudantes.

Ao atingirmos os seguintes objetivos - a) traçar o perfil dos professores das salas bilíngues para surdos; b) descrever qual o conhecimento dos professores de salas bilíngues para surdos sobre o processo de aquisição da língua portuguesa escrita; c) elencar as dificuldades encontradas pelos professores para ensinar a língua portuguesa escrita como segunda língua; d) verificar e descrever os recursos utilizados pelos professores para ensinar a língua portuguesa escrita nas salas regulares bilíngues para surdos; e) registrar como tem sido o uso da língua de sinais em sala de aula, tanto pelos professores como pelos estudantes surdos; f) identificar e descrever as práticas de letramento utilizadas pelos professores participantes no ensino da língua portuguesa como segunda língua; e g) registrar como os estudantes surdos adquirem a língua portuguesa escrita -, acreditamos que este estudo poderá contribuir com ações mais efetivas voltadas para a formação continuada dos professores de surdos.

Nesses termos, salientamos a necessidade de estudos mais aprofundados que tenham um alcance maior do que este, a fim de que tenhamos um diagnóstico mais preciso da real situação da educação de surdos nas SRBS, já que, provavelmente, a sua limitação se deu pelo pequeno número de escolas e professores participantes. Entretanto, diante da escassez de publicação na área com o foco que tem esta pesquisa - Práticas de letramento no processo de aquisição de língua portuguesa escrita por surdos nas séries iniciais do ensino fundamental -, consideramos os dados apresentados um avanço para a área, uma vez que temos um panorama de como a educação bilíngue para surdos está acontecendo nas SRBS em Recife, Pernambuco.

Quanto ao perfil dos professores das salas bilíngues para surdos, constatamos que todos têm formação e conhecimento em Libras suficiente para assumir a regência dessas salas. Além disso, os voluntários demonstraram ter bom conhecimento sobre o processo de aquisição da língua portuguesa escrita, na medida em que apontaram alguns recursos para ensiná-la com base em imagens, jogos, teatro, entre outros que consideramos fundamentais. Apesar de três dos cinco participantes terem dito que sentem dificuldade para ensinar a língua portuguesa escrita como segunda língua, essa dificuldade está muito mais relacionada à escassez de material didático, como bem colocou P4, do que à falta de conhecimento dos professores. Também nos chamou a atenção o fato de P5 apontar a necessidade de conhecer melhor como o surdo aprende e como é a sua condição de sujeito visual para se pensar em estratégias.

Durante as observações das aulas, verificamos que há uma boa comunicação entre professores e estudantes, já que a língua de sinais é utilizada como língua de instrução o tempo todo. Provavelmente, esse é um dos motivos que torna a sala bilíngue para surdos um ambiente de interação sem a temida barreira comunicacional enfrentada por esses sujeitos, na sua grande maioria, no próprio ambiente familiar. Ressaltamos, ainda, a forma como os professores trabalham o letramento por meio da língua em uso nos diferentes contextos, tendo a contação de história como um dos principais. Conforme já mencionado, os participantes costumavam apresentar imagens sobre a história e explorar o vocabulário após a contação. Por fim, um fato que nos chamou bastante atenção foi a forma como os estudantes surdos adquirem a língua portuguesa escrita. Além dos jogos utilizados e da mediação da Libras durante todo o processo, verificamos que os estudantes utilizam o alfabeto manual como estratégia de aquisição da escrita da língua portuguesa. O uso da datilologia foi observado tanto por parte dos professores, durante o ensino da escrita, como por parte dos estudantes, na reflexão sobre a escrita de uma palavra.

Portanto, ao tecermos essas considerações finais, resgatamos o problema central que nos levou a investigar as práticas de letramento utilizadas pelos professores de SRBS.

Entretanto, novas questões surgiram a partir dos dados analisados, que poderão ser objeto de estudos futuros. Citamos a constatação de que a formação continuada, embora ainda insuficiente, tem contribuído para a melhoria na educação de estudantes surdos das SRBS. Outra questão a ser salientada diz respeito à formação dos professores surdos para ensinar a língua portuguesa. Apesar de eles relatarem que não têm dificuldade, acreditamos que necessitam de formação para melhorar a fluência nessa língua. As pesquisas mostram que muitos dos professores surdos tiveram pouco contato com a língua portuguesa, e isso reflete no momento de ensiná-la com propriedade. Assim, questionamos: Será que os professores surdos têm mais facilidade para ensinar a língua portuguesa aos estudantes surdos? Em que medida a datilologia auxilia a criança surda na apropriação da escrita da língua portuguesa? Qual será o método mais apropriado para ensinar a escrita às crianças surdas?

Referências

  • BARDIN, L. Análise de conteúdo Tradução de Luís Antero Reto e Augusto Pinheiro. São Paulo: Edições 70, 2016.
  • BRASIL. Lei nº 14.191, de 3 de agosto de 2021. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), para dispor sobre a modalidade de educação bilíngue de surdos. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 4 ago. 2021. Seção 1, p. 1.
  • BRASIL. Conselho Nacional de Saúde (CNS). Resolução nº 510, de 7 de abril de 2016. [Normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais]. Diário Oficial da União , Brasília, DF, 24 maio 2016. Seção 1, p. 44.
  • BRASIL. Ministério da Educação (MEC). Saberes e práticas da inclusão Brasília, DF: MEC, 2006.
  • BRASIL. Ministério da Educação (MEC). A educação especial na perspectiva da inclusão escolar: surdocegueira e deficiência múltipla. Brasília, DF: MEC , 2010.
  • FERNANDES, S. F. Educação bilíngue para surdos: identidades, diferenças, contradições e mistérios. 2003. 213 f. Tese (Doutorado em Letras) - Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2003.
  • FERNANDES, S. F. Práticas de letramento na educação bilíngue para surdos Curitiba: Secretaria de Estado da Educação, 2006.
  • QUADROS, R. M.; SCHMIEDT, M. L. P. Ideias para ensinar português para alunos surdos Brasília: MEC, 2006.
  • RECIFE. Decreto Estadual nº 28.587, 11 de fevereiro de 2015. Institui as salas regulares bilíngues para surdos na Rede Municipal de Ensino do Recife. Diário Oficial da Prefeitura do Recife, Pernambuco, 12 fev. 2015.
  • RECIFE. Secretaria de Educação e Esportes (Seeduc). Instrução Normativa nº 2, de 12 de janeiro de 2016. Dispõe sobre a normatização das Salas Regulares Bilíngues no Município do Recife para Estudantes Surdos, e dá outras providências. Diário Oficial da Prefeitura do Recife , Pernambuco, 12 jan. 2016.
  • SILVA, R. A. F. As crianças surdas e a palavra escrita. In: SILVA, R. A. F.; HOLLOSI, M. (Org.). Educação de surdos, linguagens e experiências Uberlândia: Navegando, 2021. p. 301-328.
  • SOUSA, W. P. A. A criança surda: reflexões sobre o processo de alfabetização e letramento em salas bilíngues. In: SILVA, R. A. F.; HOLLOSI, M. (Org.). Educação de surdos, linguagens e experiências Uberlândia: Navegando , 2021. p. 383-400.
  • 1
    O termo “surdo-cegos” (como está na Lei nº 14.191/2021, anteriormente citada) não está escrito corretamente. O correto seria “surdocegos”. Não podemos modificar a lei, entretanto, segundo Salvatore Lagati (1995, apudBrasil. MEC, 2010BRASIL. Ministério da Educação (MEC). A educação especial na perspectiva da inclusão escolar: surdocegueira e deficiência múltipla. Brasília, DF: MEC , 2010.), a expressão surdocegueira entrou em uso pela primeira vez nos anos de 1990 como um substituto para “surdos e cegos”. Percebeu-se que a junção dessas duas palavras deu mais clareza e definiu a condição como uma deficiência única. “Surdocegueira é uma condição que apresenta outras dificuldades além daquelas causadas pela cegueira e pela surdez. O termo hifenizado indica uma condição que somaria as dificuldades da surdez e da cegueira. A palavra sem hífen indicaria uma diferença, uma condição única e o impacto da perda dupla é multiplicativo e não aditivo” (Lagati, 1995, apudBrasil. MEC, 2010BRASIL. Ministério da Educação (MEC). A educação especial na perspectiva da inclusão escolar: surdocegueira e deficiência múltipla. Brasília, DF: MEC , 2010., p. 8). Portanto, devemos empregar surdocegos, surdocegueira, citado no Manual do MEC - Saberes e práticas da inclusão (Brasil. MEC, 2006BRASIL. Ministério da Educação (MEC). Saberes e práticas da inclusão. Brasília, DF: MEC, 2006.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    30 Ago 2023
  • Aceito
    12 Mar 2024
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