Resumos
Objetivo: Analisar a concordância entre a causa básica de morte infantil informada na Declaração de Óbito (DO) e a definida após investigação pelo Comitê Municipal de Prevenção da Mortalidade Materna e Infantil (CMPMMI), em Londrina, Paraná, nos biênios 2000/2001 e 2007/2008.
Método: Foram obtidas as DO e as fichas de investigação do CMPMMI de óbitos infantis. As causas de morte informadas em ambos os documentos foram transcritas para um formulário, sendo posteriormente codificadas segundo a Classificação Internacional de Doenças, décima revisão (CID-10), com seleção das respectivas causas básicas. As concordâncias entre as causas básicas das DO e as do CMPMMI foram verificadas pelo teste Kappa (k), para capítulos e agrupamentos da CID-10, em ambos os períodos.
Resultados: Em 2000/2001, observou-se ótima concordância para o capítulo das afecções do período perinatal (k = 0,85) e para o das causas externas (k = 0,84), e boa concordância para o das malformações congênitas (k = 0,71). Em 2007/2008, a concordância entre os registros da DO e os do CMPMMI foi considerada ruim ou fraca para todos os capítulos de causas. Em relação aos agrupamentos, observou-se concordância boa ou ótima apenas no primeiro biênio para "malformações do aparelho circulatório" (k = 0,78) e "outras causas externas acidentais" (k = 0,91).
Conclusão: Observou-se diminuição da concordância entre as fontes pesquisadas no período estudado, o que indica melhora do processo de investigação dos óbitos infantis pelo CMPMMI e/ou piora na qualidade da informação original na DO.
Mortalidade infantil; Causa básica de morte; Declaração de óbito; Sistemas de informação; Reprodutibilidade dos testes
Objective: To analyze the agreement between underlying causes of infant deaths obtained from Death Certificates (DC) with those defined after investigation by the Municipal Committee for the Prevention of Maternal and Infant Mortality (CMPMMI), in Londrina, Paraná State, in the biennia 2000-2001 and 2007-2008.
Methods: DC of infants and records of investigations were obtained from the CMPMMI. The causes of death registered in both sources were coded according to the International Classification of Diseases, tenth revision (ICD-10), and the underlying causes of deaths were selected. Agreement between underlying causes of deaths was verified by Kappa's (k) test and analyzed according to ICD-10 chapters and blocks of categories in both biennia.
Results: In 2000/2001, according to ICD-10 chapters, high agreement rates were observed for conditions originated in the perinatal period (k = 0.85) and for external causes (k = 0.84), while, for congenital malformations, there was a substantial agreement (k = 0.71). In 2007/2008, agreement was considered poor for all analyzed chapters. For blocks of categories, high or substantial agreement rates were observed only in the first biennium for "congenital malformations of the circulatory system" (k = 0.78) and for "other external causes of accidental injury" (k = 0.91).
Conclusions: A decrease in agreement between the sources during the study period indicates either an improvement in the process of investigation of infant death by the CMPMMI and/or a worsening in the quality of the DC information.
Infant mortality; Underlying cause of death; Death certificates; Information systems; Reproducibility of results
INTRODUÇÃO
A causa básica de morte constitui uma das informações mais importantes para avaliação de programas de saúde e análises de tendências temporais e de diferenças geográficas na mortalidade1. Todas as causas que levam à morte devem ser descritas na Declaração de Óbito (DO) pelo médico que atendeu o falecido em mortes por causas naturais, e por legista em causas acidentais ou violentas. O registro dessas causas deve seguir a sequência lógica e temporal dos eventos mórbidos, desde a causa inicial (natural ou externa) até a final, que ocasionou diretamente a morte. A causa básica de morte refere-se à doença ou ao tipo de acidente ou violência responsável pelo início desse processo (causa inicial)2.
A análise da mortalidade infantil segundo causa básica de morte é essencial para a prevenção do óbito infantil, pois permite direcionar ações para prevenir as causas iniciais do processo que leva ao óbito1. Não obstante, é recorrente a indicação, na DO, de doenças que causaram diretamente a morte (causa final) ou que atuaram como mediadoras entre a causa inicial e a final, sem menção da causa básica de morte.
Diversos estudos têm avaliado a qualidade da informação sobre as causas básicas de morte infantil descritas na DO3 - 9. Comparações dessas causas informadas originalmente nas declarações com as definidas após investigação em prontuários hospitalares, em resultados de autopsias médicas e em entrevistas com familiares representam as formas de avaliação mais utilizadas.
Os registros de Comitês de Prevenção do Óbito Infantil são ainda pouco utilizados como fonte de dados para estudos sobre mortalidade. Configuram possíveis limitações a ausência desses comitês em todo o território nacional, a indisponibilidade de um sistema de informação nacional que agregue esses registros e os disponibilize em meio eletrônico, e dificuldades relacionadas à organização de comitês e à vigilância da totalidade dos óbitos infantis10 , 11. Todavia, quando adequadamente estruturados, os comitês colaboram para a compreensão das circunstâncias de ocorrência dos óbitos infantis e possibilitam melhorias na qualidade das estatísticas de mortalidade10 , 12 - 14.
Em Londrina, Paraná, o Comitê Municipal de Prevenção da Mortalidade Materna e Infantil (CMPMMI) foi criado em 1999 e, desde então, vem aprimorando suas ações na investigação de mortes infantis e de mulheres em idade fértil. O processo dessa investigação envolve entrevistas com familiares e/ou profissionais de saúde e consultas a prontuários hospitalares e ambulatoriais em registros das Unidades Básicas de Saúde (UBS) ou do Instituto Médico Legal (IML). O município é o 38o mais populoso do Brasil e registra uma das menores taxas de mortalidade infantil (9,54 por mil nascidos vivos em 2011), porém, em números absolutos de óbitos, ocupa a 66a posição entre os mais de 5 mil municípios brasileiros15.
No final de 2001, houve expansão da Estratégia Saúde da Família (ESF) para a zona urbana de Londrina, atingindo cobertura de cerca de 70% da população residente nessa área16. Nesse contexto de ampliação do acesso à atenção básica, da existência de um CMPMMI atuante e da importância de estudos que avaliem a qualidade da informação sobre as causas de morte infantil, a presente pesquisa teve por objetivo analisar a concordância entre a causa básica de morte infantil informada na DO e a definida após investigação pelo CMPMMI nos biênios 2000/2001 e 2007/2008. Identificar mudanças no padrão de qualidade dessa informação colabora para o entendimento do processo de produção da informação sobre mortalidade e para que sejam adotadas ações visando à sua qualificação.
METODOLOGIA
O estudo foi realizado em Londrina, Paraná, município com população de 506.645 habitantes em 201017. Dois biênios dos anos 2000 foram pesquisados: um subsequente à criação do CMPMMI e antecedente à expansão da ESF para a zona urbana do município (2000/2001) e outro representativo de período mais recente (2007/2008), com dados disponíveis sobre óbitos infantis à época da coleta de dados.
As fontes de dados para a pesquisa foram as DO de crianças menores de um ano residentes em Londrina e os registros de investigação do óbito infantil do CMPMMI. Inicialmente, foram identificados os óbitos infantis de ambos os biênios registrados no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e, posteriormente, por meio de pesquisa manual nos arquivos do CMPMMI, foram obtidas as DO e as fichas de investigação dos óbitos com correção das causas de morte. As causas informadas em ambos os documentos foram transcritas para um formulário de estrutura semelhante à da DO, mantendo a sequência causal informada nesses documentos.
As causas básicas de morte foram definidas por uma pesquisadora com formação em Seleção de Causa Básica, com apoio do programa de Seleção da Causa Básica (SCB) do Ministério da Saúde (MS), e codificadas com base na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, Décima Revisão (CID-10). Posteriormente, foram digitadas em planilha do programa Microsoft Excel e agrupadas em capítulos e agrupamentos da CID-10.
Na análise, foram comparados os perfis das causas básicas de morte infantil por capítulos da CID-10, antes e após investigação do óbito, por meio do cálculo da frequência relativa e da Variação Percentual (VP). A VP refere-se à diferença percentual entre o número absoluto de óbitos em cada capítulo da CID-10 antes (x) e após investigação (y), sendo calculada, para cada biênio, pela seguinte fórmula: [(y-x)*100]/x.
A concordância entre a causa básica da DO e a informada pelo CMPMMI foi analisada para os capítulos e agrupamentos da CID-10. Usou-se o teste Kappa (k) e Intervalos de Confiança de 95% (IC95%), calculados no programa WinPepi 3.06, para aferição dessas concordâncias. A classificação proposta por Landis Jr. e Koch adaptada por Pereira18 foi usada para a interpretação do teste Kappa: valor de k < 0,00 (concordância ruim), de 0,00 a 0,20 (fraca), de 0,21 a 0,40 (sofrível), de 0,41 a 0,60 (regular), de 0,61 a 0,80 (boa), de 0,81 a 0,99 (ótima) e igual a 1,00 (perfeita).
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Londrina.
RESULTADOS
Foram identificados no SIM, em 2000/2001 e em 2007/2008, respectivamente, 198 e 148 óbitos de crianças menores de um ano residentes em Londrina. O CMPMMI investigou 97% dos óbitos ocorridos no primeiro biênio e 100% dos ocorridos no segundo. As principais causas, segundo capítulos da CID-10, não foram modificadas após investigação em ambos os biênios. No entanto, destaca-se aumento de óbitos por doenças infecciosas e parasitárias, malformações congênitas e causas externas. Por outro lado, houve diminuição dos óbitos por doenças do aparelho respiratório, Afecções originadas no Período Perinatal (APP) e causas mal definidas (Tabela 1).
Em 2000/2001, em torno de 90% dos óbitos por APP, malformações congênitas e causas externas apresentaram equivalência de capítulo após investigação pelo CMPMMI (Tabela 2).
Em 2007/2008, todos os óbitos por causas externas, mais da metade dos por malformações congênitas e cerca de um terço dos por APP tiveram causa básica modificada para uma de capítulo diferente após investigação (Tabela 3).
A análise de concordância por pares de registros, no primeiro biênio estudado, revelou ótima concordância para o capítulo das APP (k = 0,85) e para o das causas externas (k = 0,84), e boa concordância para o das malformações congênitas (k = 0,71). Em 2007/2008, observou-se diminuição da concordância entre os registros da DO e os do CMPMMI, e esta foi considerada ruim ou fraca para todos os capítulos de causas (Tabela 4).
A análise por agrupamentos da CID-10 revelou frequência elevada de óbitos que tiveram causa básica modificada, porém que permaneceram no mesmo capítulo. Destacaram-se os capítulos das APP nos dois biênios (66 causas básicas modificadas entre 101, em 2000/2001, e 35 entre 57, em 2007/2008) e das malformações congênitas no período mais recente, em que todos os óbitos que permaneceram neste capítulo tiveram a causa básica modificada após investigação (16 óbitos).
Assim, observou-se concordância boa ou ótima apenas no primeiro biênio e para os seguintes agrupamentos: "malformações do aparelho circulatório" (códigos Q20 - Q28), k = 0,78 [IC95% 0,62 - 0,95], e "outras causas externas acidentais" (códigos W00 - X59), k = 0,91 [IC95% 0,79 - 1,00].
Em 2000/2001, embora a concordância entre DO e CMPMMI para o capítulo das APP tenha sido ótima, observou-se concordância fraca para o agrupamento "transtornos respiratórios e cardiovasculares específicos do período perinatal" (P20 - P29), k = 0,10, que passou de 46 para 6 causas após investigação, e concordância sofrível para o agrupamento "feto ou recém-nascido afetado por fatores maternos e por complicações da gravidez, do trabalho de parto e do parto" (P00 - P04), k = 0,29, que passou de 28 para 86 causas após investigação.
Em 2007/2008, como a concordância por capítulos da CID-10 já era ruim ou fraca, verificou-se tendência semelhante na análise por agrupamentos.
DISCUSSÃO
Estudos a respeito da qualidade da informação sobre a causa básica de morte infantil por comparação entre registros originais e após investigação detalhada são ainda raros no Brasil e somente podem ser viabilizados em contextos locais, como os realizados em Porto Alegre e Pelotas3, regiões metropolitanas do Rio de Janeiro4 e de Belo Horizonte5, Blumenau6, Montes Claros8 ou em serviços específicos7 , 9. Os resultados do presente estudo são consistentes com os dessas investigações, pois, em geral, os índices de concordância variam de acordo com o capítulo da CID-10 analisado, e maiores concordâncias têm sido descritas para o capítulo das APP e o das malformações congênitas5 , 6 , 8 , 9.
Em 2000/2001, os índices de concordância foram semelhantes aos de estudos baseados somente em revisão de prontuários hospitalares4 - 8, com concordância ótima para o capítulo das APP e o das causas externas, e boa para o das malformações congênitas. Porém, Mendonça, Goulart e Machado5 afirmam que a boa concordância de causas por capítulos da CID-10, após investigação do processo que culminou no óbito, ocorre por compensação interna das discordâncias. Por exemplo, no capítulo das APP, mesmo havendo mudança de causa após investigação, é recorrente sua permanência nesse mesmo capítulo.
De fato, para os agrupamentos da CID-10, observou-se concordância fraca para "transtornos respiratórios e cardiovasculares específicos do período perinatal" e para "feto ou recém-nascido afetado por fatores maternos e por complicações da gravidez, do trabalho de parto e do parto", ambos do capítulo das APP, por diminuição na indicação do primeiro agrupamento e aumento na do segundo após investigação.
Esses resultados revelam que a atuação do Comitê possibilita maior especificidade da informação sobre causas de mortes infantis, pois o agrupamento referente aos fatores maternos e às complicações da gravidez e do parto aproxima-se mais do início da cadeia de eventos que leva à morte e, portanto, da definição de causa básica1 , 10 que os transtornos respiratórios e cardiovasculares do recém-nascido. A redução de óbitos por causas mal definidas e por doenças do aparelho respiratório reforça a importância do CMPMMI na qualificação da causa básica de morte.
Em 2007/2008, observaram-se índices de concordância fracos ou ruins para todos os capítulos analisados. Entre os períodos pesquisados, houve ampliação importante do número de equipes atuantes na ESF16. Acredita-se que essa medida possa ter colaborado para que o levantamento de dados sobre a ocorrência da morte infantil, por meio de entrevistas com familiares e com profissionais da atenção básica, tenha ocorrido de modo mais efetivo, impactando positivamente na especificidade da causa básica de morte descrita pelo CMPMMI.
É possível que a piora nos índices de concordância em anos recentes deva-se à melhora no processo de investigação do óbito infantil. No entanto, deve-se considerar também a possibilidade de piora na qualidade da causa básica de morte informada na DO. Sabe-se que a qualidade da informação registrada na DO também depende do acesso a serviços de saúde, de tecnologias para diagnósticos e da capacidade técnica do profissional que a preenche para reconhecer a dinâmica dos eventos que participaram da cadeia causal do óbito, bem como de seu comprometimento com a produção de estatísticas confiáveis8 , 19.
Estudos referentes à qualidade da informação sobre causas de morte apontam a não incorporação do conceito de causa básica por médicos e a valorização de aspectos legais em detrimento de aspectos epidemiológicos como fatores contribuintes para a indicação de causas de morte genéricas ou terminais na DO4 , 7. Grande quantidade de campos da DO, carência de informações para a definição do diagnóstico e falta de instruções sobre o preenchimento desse documento foram outros motivos, alegados por médicos, para o preenchimento parcial e/ou inconsistente da DO20. A declaração de causas de morte pode ainda estar sujeita a modismos, por exemplo, a frequente utilização de termos como "parada cardíaca" e "falência de múltiplos órgãos"1.
Nesse contexto, a capacitação de médicos e de estudantes de Medicina para o registro completo e coerente de informações na DO é medida indispensável à melhora da qualidade de estatísticas de mortalidade1 , 21 , 22. Comitês de Investigação do Óbito Infantil podem colaborar nesse sentido, por apresentarem, entre suas atribuições, a sensibilização de profissionais para o preenchimento adequado desses registros10 , 14.
CONCLUSÃO
Os resultados revelam diminuição da concordância entre a informação da causa básica na DO e a definida após investigação pelo CMPMMI no biênio mais recente (2007/2008). Esse achado parece indicar melhora do processo de investigação dos óbitos infantis pelo Comitê. No entanto, não se pode descartar piora na qualidade da informação original na DO no período pesquisado. Estudos que avaliem os motivos dessa maior discordância em anos mais recentes são, portanto, necessários. Independentemente da necessidade de mais estudos, destaca-se a importância de adotar medidas educativas visando estimular o preenchimento correto desse documento1 , 8 , 21 , 22.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Jun 2014
Histórico
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Recebido
19 Ago 2013 -
Aceito
13 Nov 2013