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Inquérito domiciliar de cobertura vacinal: a perspectiva do estudo das desigualdades sociais no acesso à imunização básica infantil

Vaccination coverage household survey: perspective of the study of social inequalities in the access to basic child immunization

ARTIGOS

Inquérito domiciliar de cobertura vacinal: a perspectiva do estudo das desigualdades sociais no acesso à imunização básica infantil

Vaccination coverage household survey: perspective of the study of social inequalities in the access to basic child immunization

Eduardo Mota

Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia - UFBA

Correspondência Correspondência: Eduardo Mota Instituto de Saúde Coletiva, UFBA E-mail: emota@ufba.br

Das avaliações das coberturas vacinais alcançadas pelas ações do Programa Nacional de Imunização (PNI), sabe-se que, nacionalmente e nos Estados, os resultados são historicamente adequados às metas estabelecidas, sobretudo no grupo infantil, e têm respondido pela redução progressiva da incidência das doenças imunizáveis ainda não eliminadas, e isto demonstra a trajetória excepcional desse programa no âmbito das políticas de saúde no Brasil1. Todavia, a distribuição dessas coberturas entre os municípios revela baixo grau de homogeneidade. A propósito, as comparações feitas entre os dados administrativos, oriundos da produção dos serviços de vacinação, e aqueles que se obtêm em inquéritos de cobertura vacinal têm indicado diferenças importantes entre essas fontes de informação que apontam para a existência de falhas no registro de doses aplicadas. Além disso, as questões relativas às desigualdades sociais no acesso às ações básicas de saúde permanecem em aberto para estudos mais amplos.

Por um lado, inquéritos localizados e os dados do PNI apontam que há áreas onde as coberturas vacinais ultrapassam 100% e, por outro, são observadas baixas coberturas em municípios de uma mesma região. Essas contradições têm suscitado no Ministério da Saúde a necessidade de se realizar um inquérito nacional de cobertura vacinal em 2007, visando traçar um quadro da condição de imunização que subsidie a avaliação do PNI e reoriente a execução de ações mais efetivas. Por esta razão, este tema foi apropriadamente incluído no Seminário Inquéritos populacionais: aspectos metodológicos, operacionais e éticos, promovido pela Comissão de Epidemiologia da ABRASCO, a Faculdade de Saúde Pública da USP e o Departamento de Medicina Social da FCMSCSP, realizado em São Paulo no período de 17 a 19 de abril de 2007, e que neste momento está sendo submetido a amplo debate. A apresentação feita durante aquele Seminário e o texto de referência intitulado Desigualdades sociais e cobertura vacinal: uso de inquéritos domiciliares, de autoria de Moraes & Ribeiro2, lançam as bases conceituais e metodológicas que orientam a realização de um inquérito de cobertura vacinal a ser realizado em todas as capitais. Faz-se aqui uma breve avaliação crítica de alguns elementos metodológicos propostos.

A motivação desta iniciativa não se apóia somente na necessidade de produzir dados que possibilitem aumentar a precisão das estimativas de cobertura vacinal em crianças menores de quatro anos. É certo que o conhecimento do estado vacinal da população infantil oferece informações valiosas para a programação, ação e avaliação em vigilância epidemiológica das doenças imunizáveis. Isto possibilita conhecer a situação de homogeneidade da cobertura da vacinação no nível local, realizar uma estimativa do grupo de suscetíveis e, por comparação com as informações sobre a incidência dessas doenças, monitorar o grau de efetividade do PNI. Em conseqüência, é possível, como se diz, "aquilatar até que ponto a imunidade de massa está se constituindo em barreira efetiva para a interrupção da transmissão das doenças preveníveis por imunização"2.

Contudo, o inquérito acrescenta ainda um elemento essencial para ampliar o conhecimento sobre os fatores relacionados com o acesso aos serviços de imunização, propondo realizar uma abordagem dos determinantes da condição de vacinado no grupo infantil. Esta informação está na base do estudo das desigualdades sociais em saúde e não se encontra disponível nos dados de registro contínuo do número de doses captados pelo sistema de informação de avaliação do programa de imunização (SI-API) do PNI. Além disso, pode oferecer elementos que consolidem informações e ampliem o entendimento sobre a situação de focalização de baixas coberturas vacinais e que expliquem a heterogeneidade local na suscetibilidade à transmissão e ocorrência dos problemas de saúde associados.

O texto de referência citado traz ainda outros elementos que justificam a realização do inquérito de cobertura vacinal e que são conhecidos das avaliações feitas sobre o SI-API: o cálculo da cobertura vacinal baseia-se no número de doses aplicadas nas salas de vacina em serviços de saúde do SUS, que depende da qualidade das anotações inclusive quanto à seqüência de doses por criança no caso de vacinas de doses múltiplas; utilizam-se as estimativas populacionais do IBGE ou o número de nascidos vivos de acordo com os dados do SINASC, o que também representa fonte de imprecisão das estimativas de cobertura vacinal para alguns municípios, seja por subenumeração da população infantil seja pelo subregistro de nascimentos. Ademais, o registro de doses vacinais é feito por local de vacinação o que dificulta a avaliação da cobertura vacinal entre municípios de acordo com a procedência ou área de residência das crianças.

A metodologia de "estimativa rápida", que será utilizada no inquérito para obter a cobertura vacinal, tem oferecido resultados válidos quando aplicada em áreas delimitadas, para as quais se disponha de adequada definição dos conglomerados a serem incluídos no processo amostral. Sobre este aspecto, a adoção de critérios uniformes para o estabelecimento dos conglomerados nas capitais pode se constituir em dificuldade, uma vez que não há um padrão único de divisão de subáreas administrativas ou de saúde para esses municípios. A acertada opção de utilizar informações dos setores censitários do IBGE para a composição dos conglomerados, além de viabilizar a estratificação de áreas de acordo com indicadores gerais de condição social, possibilitará formar os conglomerados com um ou mais desses setores para a comparação de áreas no estudo de desigualdades.

Recomenda-se que sejam incluídas no estudo sete crianças de cada idade detalhada, ou em faixas restritas de idade, para cada um dos 30 conglomerados sorteados, considerando-se que todas as vacinas do esquema básico serão pesquisadas. Nota-se adicionalmente que não se deve desconsiderar um possível "efeito conglomerado" ou efeito-desenho diferente de um, que guarde alguma relação com maior ou menor homogeneidade na distribuição das condições de acesso aos serviços de vacinação em cada conglomerado, ou melhor, em cada "quadra" escolhida para iniciar o itinerário da seleção de participantes, ainda que se considere a hipótese de distribuição independente das características de imunização e sociais entre indivíduos ou domicílios. Considere-se ainda que no estudo das desigualdades sociais existam, entre as capitais, diferentes características e graus de variação na distribuição de variáveis como renda e escolaridade do chefe da família que serão utilizadas no projeto para discriminar condições sociais de cada domicílio. Estes e outros aspectos metodológicos do inquérito domiciliar com amostragem de estrutura complexa representam de fato um desafio especial para a análise, mensuração e avaliação das desigualdades de acesso aos serviços do PNI como declararam os autores da proposta.

A definição da condição de vacinado por imunobiológico e por faixa etária é outro aspecto que merece atenção especial em inquéritos vacinais. Neste ponto há dificuldades relativas à qualidade do registro de doses de vacina em caderneta, em cartão vacinal ou em outro documento próprio; a existência de mais de uma caderneta de vacinação por criança - uma ocorrência freqüente quando o comparecimento aos serviços de saúde se faz sem o documento de acompanhamento do estado vacinal infantil, e até mesmo a inexistência de documento de registro de doses. Durante inquérito para a estimativa da cobertura vacinal contra febre amarela realizada em Estados da região Norte, 62,9% dos indivíduos não apresentaram cartão de vacinação3. Na avaliação do registro da vacina BCG comparado à cicatriz vacinal, Pereira e colaboradores4 observaram também problemas semelhantes da falta do cartão vacinal e de registros incompletos. A obtenção de dados sobre a vacinação informada por pais ou responsáveis é uma alternativa a ser considerada na análise, inclusive para possibilitar a avaliação desses aspectos operacionais do programa de imunização.

A perspectiva que este inquérito apresenta para abordar as questões de aceitabilidade dos serviços de imunização é promissora. O estudo das razões para não vacinar e de vacinação incompleta para a idade é especialmente importante para a avaliação das estratégias adotadas localmente pelos programas de vacinação, quer das ações de rotina ou das atividades de campanha vacinal. Diferentes motivações que revelam aspectos da percepção dos pais e responsáveis quanto à necessidade de vacinar as crianças pequenas podem também indicar os obstáculos presentes para o acesso aos serviços. Com efeito, em inquérito de cobertura vacinal realizado por estimativa rápida na Bahia foram observadas, para crianças com vacinação incompleta para a idade, razões que em maior freqüência foram: "unidade não tinha a vacina", "criança doente" e "criança muito nova"5. Estes problemas simples, que são recorrentes e atuais nos serviços básicos de saúde, relacionam-se com as limitações da oferta da vacinação, com as rotinas e processos de trabalho e com as relações entre os prestadores de serviços e seus usuários que podem igualmente ser examinados no inquérito.

A importância dos inquéritos populacionais em saúde tem sido enfatizada6-8, em especial sobre a necessidade de integrar os dados obtidos de registros contínuos dos sistemas nacionais de informação em saúde, que podem ser obtidos a partir de inquéritos domiciliares, realizados em bases padronizadas e com periodicidade regular. Os subsídios que essas informações oferecem à tomada de decisões em políticas e planejamento em saúde são essenciais, sobretudo para orientar a oferta de serviços pelas necessidades da população, corrigir distorções e promover a superação de obstáculos ao acesso universal aos serviços públicos de saúde. A metodologia de estimativa rápida para o estudo da cobertura vacinal e das desigualdades sociais no acesso à vacinação poderá ser aplicada regularmente pelos municípios. Os autores resumiram em sua proposta de investigação o elemento central da importância da aplicação das informações obtidas de um inquérito de cobertura vacinal e dos sistemas de informação do SUS à gestão de programas e serviços, quando enfatizaram a necessidade de identificar os grupos sociais com baixas coberturas vacinais para aperfeiçoar as estratégias que promovam sua inclusão na rede de prevenção e promoção da saúde, reduzindo-se dessa maneira o risco de transmissão de doenças imunizáveis nos segmentos populacionais socialmente mais vulneráveis.

  • 1. Temporão JG. O Programa Nacional de Imunizações (PNI): origens e desenvolvimento. História, Ciências, Saúde-Manguinhos 2003: 10 (Supl. 2): 601-17.
  • 2. Moraes JC, Ribeiro MCSA. Desigualdades sociais e cobertura vacinal: uso de inquéritos domiciliares. São Paulo: Janeiro de 2007. Mimeo. 25 p.
  • 3. Mota E, Maia MLS, Diniz MHM, Almeida MG, Pereira SF. Relatório do Inquérito de Cobertura Vacinal contra a Febre Amarela nos Estados das Regiões Norte e Centro Oeste e no Maranhão ISC/UFBA, Cenepi/Funasa/MS: 2002. Mimeo. 41 p.
  • 4. Pereira SM, Bierrenbach AL, Dourado I et al. Sensibilidade e especificidade da leitura da cicatriz vacinal do BCG. Rev Saúde Pública 2003; 37(2): 254-9.
  • 5. Silva LMC, Mota E. Estudo por Inquérito Domiciliar da Cobertura Vacinal no Estado da Bahia. Rev Baiana Saúde Pública 1990; 17(1/4): 45-79.
  • 6. Viacava F. Informações em saúde: a importância dos inquéritos populacionais. Ciência & Saúde Coletiva 2002; 7(4): 607-21.
  • 7. Viacava F, Dachs N, Travassos C. Os inquéritos domiciliares e o Sistema Nacional de Informações em Saúde. Ciência & Saúde Coletiva 2006; 11(4): 863-9.
  • 8. Mota E. Inquéritos populacionais integrados ao Sistema Nacional de Informações em Saúde. Ciência & Saúde Coletiva 2006; 11(4): 884-5.
  • Correspondência:

    Eduardo Mota
    Instituto de Saúde Coletiva, UFBA
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Maio 2008
    • Data do Fascículo
      Maio 2008
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