Open-access Violência física pelo parceiro íntimo e uso inadequado do pré-natal entre mulheres do Nordeste do Brasil

RESUMO:

Objetivo:  Analisar a associação entre violência física pelo parceiro íntimo e uso inadequado da atenção pré-natal.

Métodos:  Estudo transversal realizado com 1.026 mulheres participantes de estudo de coorte prospectivo delineado para investigar violência na gravidez entre mulheres cadastradas no Programa Saúde da Família (PSF) do Recife. O uso do pré-natal foi avaliado utilizando a norma do Programa de Humanização do Pré-natal e Nascimento (PHPN), do Ministério da Saúde (MS), considerando a época de início do pré-natal e o total de consultas durante a gravidez. Os dados foram coletados por meio de duas entrevistas presenciais (uma no último trimestre da gravidez, outra no pós-parto) para aplicação de questionário estruturado e a partir dos registros do cartão da gestante. Regressão logística não condicional foi realizada para estimar odds ratio (OR) e valores de intervalo de confiança de 95% (IC95%), a fim de medir a associação entre violência física pelo parceiro íntimo e uso inadequado de cuidados pré-natais, utilizando-se o método stepwise.

Resultados:  A prevalência de uso inadequado do pré-natal foi de 44,1%, e da violência física pelo parceiro íntimo, de 25,6%. Na análise de regressão logística, a violência física pelo parceiro íntimo apresentou-se associada à realização de pré-natal inadequado (OR = 1,37; IC95% 1,01 - 1,85; p = 0,04), após ajuste pelas variáveis confirmadas como confundidoras (paridade, uso de álcool na gravidez e nível de escolaridade).

Conclusão:  Mulheres vítimas de violência física pelo parceiro íntimo têm maior chance de realizar um pré-natal inadequado, seja pelo início tardio, pela realização de menor número de consultas ou mesmo pelas duas condições juntas.

Palavras-chave: Violência contra a mulher; Maus-tratos conjugais; Cuidado pré-natal; Gravidez; Fatores de risco; Estudos transversais

ABSTRACT:

Objective:   To analyze the association between physical violence by an intimate partner (PVIP) and the inappropriate use of prenatal care services.

Methods:  A nested cross-sectional study was conducted with 1,026 women, based on data from a prospective cohort study designed to investigate intimate partner violence among pregnant women enrolled in the Family Health Program (PSF) in Recife, Northeastern Brazil. The use of prenatal care services was assessed with basis on the guidelines from the Program for Humanization of Prenatal Care and Childbirth (Brazilian Ministry of Health) and considered the time of the first prenatal care visit and the total number of visits during the pregnancy. Data were collected through two face-to-face interviews (one in the last pregnancy trimester and the other in the postpartum period), using standardized questionnaires and data on Pregnancy Card records. An unconditional logistic regression was performed to estimate the odds ratio (OR) and the 95% confidence intervals to measure the association between an PVIP and the inappropriate use of prenatal care services, using the stepwise method.

Results:   The prevalence of the inappropriate use of prenatal care services was 44.1% and of an PVIP, 25.6%. In the logistic regression analysis, an intimatePVIP was associated with inappropriate prenatal care (OR = 1.37; 95%CI 1.01 - 1.85; p = 0.04) after adjustment by variables confirmed as confounders (parity, alcohol use in pregnancy, and education level).

Conclusion:   Women who are victims of an PVIP have more chance of receiving inappropriate prenatal care due to late onset of prenatal care, fewer prenatal care visits, or both.

Keywords: Violence against women; Spousal abuse; Prenatal care; Pregnancy; Risk factors; Cross-sectional studies

INTRODUÇÃO

A violência contra a mulher na gravidez constitui um grave problema de saúde pública devido ao elevado risco de morbimortalidade materna e neonatal1. Estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS) evidenciou que a prevalência de violência por parceiro íntimo na gravidez pode variar de 1 a 28% entre países2. Nesse estudo no Brasil, 8% das mulheres da cidade de São Paulo e 11% das da zona rural de Pernambuco relataram ter sofrido alguma forma de violência na gestação2.

A assistência pré-natal (PN) pode prevenir a mortalidade materna, por modificar o curso e o prognóstico de complicações ocorridas na gravidez3, bem como evitar desfechos adversos, como óbitos perinatais e neonatais, sífilis congênita e baixo peso ao nascer4.

No Brasil, a morbimortalidade materna e perinatal permanece em níveis elevados, incompatíveis com o atual nível de crescimento econômico e social do país5.

Em 2000, o Ministério da Saúde (MS) (Portaria nº 569 /GM, 01/06/2000) instituiu o Programa de Humanização ao Pré-natal e Nascimento (PHPN) visando à redução da morbimortalidade materna e infantil, por intermédio da melhoria do acesso, da cobertura e da qualidade da assistência aos períodos de PN, parto e puerpério6.

Alguns fatores são descritos como associados a não realização ou a não utilização de assistência PN; entre eles, pertencer a segmentos sociais com menor renda, ter menor escolaridade formal, pertencer à raça negra, ter mais de 35 anos, ser multípara, ter sintomas depressivos na gravidez, fazer uso abusivo de álcool e/ou drogas ilícitas, ter situação conjugal instável, história de gravidez não pretendida, de insatisfação do companheiro com a gravidez e de violência pelo parceiro7,8,9,10,11,12,13,14.

Mulheres vítimas de violência física pelo parceiro íntimo (VFPI) têm maior dificuldade de comparecer às consultas de PN13 e são mais propensas a iniciar as consultas tardiamente15. Além disso, podem apresentar com maior frequência comportamentos de risco na gravidez, como o consumo de álcool13, tabaco16 e drogas ilícitas17.

Em 2010, o MS propôs que na identificação de fatores de risco gestacionais seja investigada a presença de conflitos familiares, visando à identificação de situações de violência na gravidez5. Os serviços que prestam assistência PN podem representar um espaço de identificação dos casos de violência, pois se pressupõe uma maior vinculação do profissional de saúde com a mulher, além de terem a possibilidade de abordar o tema da violência com as gestantes em atividades educativas18.

Há poucos estudos brasileiros que avaliaram a repercussão da violência pelo parceiro íntimo sobre a adesão ao PN9. O presente estudo teve como objetivo investigar a associação entre violência física infligida pelo parceiro íntimo, antes e/ou durante a gravidez, e uso inadequado do PN entre mulheres cadastradas no Programa Saúde da Família (PSF) do Recife.

MÉTODOS

Trata-se de um estudo transversal realizado com mulheres participantes de estudo de coorte prospectivo delineado para investigar a violência na gravidez, seus determinantes e suas consequências para a saúde da mulher e os resultados perinatais, no período de julho de 2005 a dezembro de 2006. A população de estudo foi constituída por todas as gestantes com idade igual ou superior a 18 anos cadastradas no PSF do Distrito Sanitário II do Recife. Das 1.133 mulheres elegíveis, 1.121 (98,9%) foram entrevistadas na linha de base da coorte e 1.056 foram reentrevistadas no pós-parto. Para a presente análise, foram excluídas 30 mulheres por ausência de registros sobre o PN, totalizando 1.026 (90,6% das elegíveis). Informação mais detalhada sobre o estudo de coorte encontra-se disponível em publicação anterior19.

As mulheres estudadas foram identificadas a partir dos registros do PN de 42 equipes do PSF e dos registros dos agentes comunitários de saúde, para incluir aquelas que não realizaram o PN nas unidades do PSF.

Em razão de a pesquisa abordar mulheres sobre temas e conteúdos sensíveis, entrevistas presenciais foram conduzidas por entrevistadoras (todas com nível superior de escolaridade e devidamente treinadas).

Os dados incluídos na presente análise são oriundos de duas entrevistas realizadas na pesquisa original (uma no terceiro trimestre da gravidez e outra no pós-parto), utilizando questionário estruturado e pré-codificado. As entrevistas foram realizadas em sala reservada na própria Unidade de Saúde da Família (USF), no domicílio ou em local mais conveniente para a mulher. Em sua maioria, as entrevistas foram realizadas nas USFs. Para aplicação do segundo questionário, as mulheres foram contatadas no pós-parto, a partir do agendamento para as consultas de puericultura ou no domicílio, seguindo o mesmo padrão estipulado para as entrevistas na gravidez. Nessa etapa, a maioria das entrevistas foi realizada no domicílio das mulheres.

Os dados sobre o uso do PN foram obtidos na entrevista realizada no pós-parto por intermédio de consulta ao cartão da gestante (33,4%) e, na ausência desse documento, por informação da própria mulher. Considerou-se o uso adequado do PN quando a mulher havia iniciado as consultas no primeiro trimestre da gravidez e realizado seis ou mais consultas, tendo como referências as normas do PHPN. Declarou-se uso inadequado quando o PN foi iniciado após o primeiro trimestre e/ou realizado menos de seis consultas ou, simplesmente, quando a mulher não realizou PN.

As perguntas sobre violência contidas no Questionário da Mulher do Estudo Multipaíses sobre a Saúde da Mulher e Violência Doméstica da OMS2, já validado no Brasil20, foram referidas à gravidez (Quadro 1). Violência física abrangeu as agressões ou o uso de objetos ou armas para produzir lesões físicas. Para identificá-la, foi considerado todo o período de relacionamento com o parceiro atual ou mais recente, antes e/ou durante a gravidez atual, quando a mulher respondeu positivamente a uma ou mais das questões referentes à violência física. Parceiro íntimo foi considerado como o marido, companheiro ou namorado atual ou mais recente, independentemente de união formal, da coabitação e de ele ser o pai da criança esperada.

Quadro 1:
Perguntas sobre violência física aplicadas na entrevista.

Foram analisadas também as seguintes covariáveis: idade (≤ 24/ 25 - 29/ ≥ 30 anos); raça/cor (branca/não branca); anos de estudo (≥ 9/< 9 anos); número de bens duráveis (≥ 5/ ≤ 4), proxy para situação socioeconômica; possuir renda própria (sim/não); situação conjugal na época da entrevista (casada ou vive junto/tem parceiro, mas não moram juntos/sem companheiro); problemas autorreferidos de saúde e hospitalização na gravidez (sim/não); tabagismo (sim/não), uso de álcool (sim/não) e de drogas ilícitas na gravidez (sim/não); paridade (nenhum/um ou dois/três ou mais filhos); pretensão da gravidez atual (sim/não); início do pré-natal (precoce/tardio); número de consultas pré-natal realizadas (≥ 6/< 6); atitude do companheiro em relação ao pré-natal (encorajou/não se interessou, tentou impedir ou impediu) e a presença de transtornos mentais comuns (TMCs) na gravidez.

TMCs incluem sintomas depressivos e de ansiedade e foram avaliados usando o Self-Report Questionnaire (SRQ-20)21, validado no Brasil22. É composto por 20 perguntas, 4 sobre sintomas físicos e 16 sobre distúrbios psicoemocionais, atribuindo-se 1 ponto a cada resposta positiva e 0 ponto a cada resposta negativa. O ponto de corte foi fixado em oito para definir a presença de TMC na gravidez.

Gravidez não pretendida foi classificada a partir da pergunta: "Antes de saber que estava grávida, você": (a) "estava tentando engravidar"; (b) "queria engravidar"; (c) "queria engravidar mais tarde"; (d) "não queria engravidar" ou (e) "não fazia diferença". As respostas classificadas como gravidez indesejada foram as alternativas c e d. As duas primeiras opções foram classificadas como gravidez pretendida.

As entrevistas foram realizadas sem a presença do companheiro ou outra pessoa com idade acima de dois anos. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi apresentado a todas as mulheres e o sigilo das informações foi garantido. As entrevistadas receberam guia com nome e endereço dos serviços de saúde, sociais e jurídico-policiais especializados em atendimento às mulheres em situação de violência disponíveis no Recife. O protocolo da pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

A análise dos dados incluiu descrição da amostra e análise bivariada para identificar a presença de possíveis associações das covariáveis estudadas com a exposição - violência física pelo parceiro íntimo (VFPI) - e com o desfecho principal (inadequação do PN). A medida de associação estimada foi a odds ratio (OR). A significância estatística foi avaliada a partir do χ2 de Mantel Haenzel, com o correspondente valor p ≤ 0,05 e seus valores de intervalo de confiança de 95% (IC95%). Na etapa final realizou-se regressão logística não condicional para medir a associação entre VFPI e adequação do PN, independentemente do efeito das demais covariáveis. No processo de modelagem foram incluídas as covariáveis nível de escolaridade, posse de bens duráveis, tabagismo, ingestão de bebida alcoólica, uso de drogas ilícitas na gravidez, pretensão da gravidez, TMC, atitude do parceiro íntimo com relação ao PN, identificadas como possíveis confundidoras, por sua associação com a VFPI e com o uso inadequado do PN. As variáveis que ajustaram em 10% ou mais a OR bruta para a associação principal foram mantidas no modelo final. Foi utilizado o método stepwise , estabelecido como critério para a entrada das variáveis no modelo o nível de significância alcançado na análise bivariada, em ordem crescente do valor p. Para avaliar a significância estatística, foram utilizados a razão de verossimilhança e o valor p ≤ 0,05. Para a análise dos dados, foi utilizado o software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 17.0.

RESULTADOS

A maioria das mulheres tinha menos de 25 anos de idade (51,7%), referiu ser parda (61%) e ter menos de 9 anos de estudo (62%). Pouco mais da metade possuía menos de 5 bens duráveis (56%), não possuía renda própria (53,8%) e vivia/morava com o parceiro (54%). Cerca de 13,5% afirmou o tabagismo, 17,7%, o consumo de bebida alcoólica, e 2%, o uso de drogas ilícitas na gravidez atual.

A maior parte das mulheres relatou que as gravidezes não foram pretendidas (64,2%), aproximadamente a metade (48,5%) estava na segunda ou terceira gravidez. Cerca de um terço delas (25,7%) mencionou algum problema de saúde na gravidez e 11,3% referiram ter necessitado de internação hospitalar. Do total, 42,8% foram classificadas como caso de TMC na gravidez.

A VFPI ocorreu para 25,4% das mulheres. Dentre essas, aproximadamente a metade (49,8%) referiu VFPI apenas antes da gravidez, 20,1% (53), exclusivamente na gravidez, e 30,1% (79), antes e durante a gravidez.

O PN foi classificado como inadequado em 44% dos casos. Dentre as entrevistadas, quase todas (99,5%) informaram ter feito PN. A maioria (75,4%) fez mais de 6 consultas e 64% iniciaram o PN no primeiro trimestre, porém 35% começaram após esse período. Aproximadamente 18% dos parceiros das mulheres não demonstraram interesse e 4 (0,4%) tentaram impedir ou impediram que a mulher realizasse o PN.

As mulheres com menor escolaridade, as que possuíam menos de cinco bens duráveis e aquelas que não viviam com o parceiro apresentaram maior frequência de uso inadequado do PN. Da mesma forma, ter o hábito de fumar, consumir bebida alcoólica e/ou fazer uso de drogas ilícitas na gravidez, ter a gravidez não pretendida, maior paridade, ter tido TMC na gravidez e a atitude negativa do companheiro em relação ao PN aumentaram a chance do uso inadequado do PN. Problemas de saúde e a hospitalização na gravidez (autorreferidas) apresentaram-se como fatores de proteção ao desfecho. O tabagismo e o consumo de álcool, especialmente quando durante toda a gestação, além do uso de drogas ilícitas, mostraram-se associados à VFPI (Tabela 1).

Tabela 1:
Associação entre uso inadequado do pré-natal, características socioeconômicas e demográficas, comportamentos de risco na gravidez atual e história reprodutiva das mulheres. Recife, Brasil, 2005-2006.

O fato de a mulher relatar VFPI não mostrou associação estatisticamente significante com a não realização do PN. Porém, as mulheres vítimas de VFPI iniciaram o PN mais tardiamente, fizeram menos de seis consultas e tiveram maior chance de realizar o PN inadequado (Tabela 2).

Tabela 2:
Associação da violência física pelo parceiro íntimo com o uso inadequado do pré-natal e comportamentos de risco na gravidez. Recife, Brasil, 2005-2006.

Na etapa multivariada (Tabela 3), embora a OR tenha sido discretamente reduzida, a associação permaneceu estatisticamente significante após ajuste pelas variáveis confirmadas como confundidoras: paridade, uso de álcool na gravidez e nível de escolaridade (OR = 1,37; IC95% 1,01 - 1,85; p = 0,040).

Tabela 3:
Modelo final para a associação entre violência física pelo parceiro íntimo e uso inadequado do pré-natal, odds ratio bruta e ajustada e intervalo de confiança de 95%. Recife, Brasil, 2005-2006.

DISCUSSÃO

Este estudo objetivou abordar a associação entre VFPI e uso inadequado do PN. Embora alguns estudos tenham abordado o impacto da violência pelo parceiro íntimo sobre a realização do PN9,10,11,12,13,14, apenas uma pesquisa foi realizada no Brasil9.

Os resultados revelam elevados percentuais de VFPI antes e/ou durante a gravidez entre mulheres cadastradas no PSF em uma capital da Região Nordeste. Ainda, evidenciaram que as mulheres que vivenciavam ou tinham vivenciado situação de violência física infligida pelo parceiro íntimo iniciaram o PN tardiamente, realizaram número menor de consultas do que o recomendado pelo MS e tiveram maior chance de uso inadequado do PN.

O presente estudo tem algumas limitações. Uma consiste no fato de a informação sobre a época de início e o número de consultas realizadas no PN ter sido referida pelas mulheres e apenas um terço delas portar o cartão da gestante no momento da entrevista, podendo, portanto, ser sujeita a vieses de informação, ainda que as gravidezes fossem recentes. Estudos realizados no Brasil documentaram reduzidos níveis de concordância entre os dados autorreferidos sobre assistência PN e os registrados no cartão da gestante. As informações coletadas dos relatos das mulheres referiam um maior número de consultas e início mais precoce do PN do que o registrado nos seus respectivos cartões de gestante23,24. As diferenças podem resultar tanto da superestimação por parte das mulheres quanto do sub-registro no cartão24. Em consequência, erros classificatórios podem ter ocorrido; todavia, pode-se supor que o erro na aferição do número de consultas e da época de início do PN tenha sido aleatório. Em relação às medidas de associação, o erro não diferencial tende a subestimá-las25. Ainda, parte das mulheres pode ter omitido a VFPI, por constrangimento ou temor de represália por parte do perpetrador26. Por essa razão, há a possibilidade de que a prevalência de VFPI, bem como a associação com o uso inadequado do PN, tenha sido subestimada. É possível que esses fatores tenham contribuído para o valor limítrofe encontrado para o intervalo de confiança estimado para associação entre VFPI e uso inadequado do PN.

Outra limitação é inerente aos estudos transversais, que impossibilitam estabelecer com clareza a precedência temporal de parte dos fatores estudados, comprometendo as evidências de relação causal. Todavia, a violência física na relação com o parceiro foi investigada antes e durante a gravidez, por reconhecer o caráter recorrente da violência pelo parceiro íntimo, sendo, inclusive, mais comum que a mulher agredida na gravidez já o tenha sido anteriormente27. Ainda, mesmo quando a violência é descontinuada, seus efeitos podem ser cumulativos e persistir por longo período28.

O estudo teve como vantagem ter base populacional, abranger uma área geograficamente definida, com número reduzido de perdas, o que minimiza a possibilidade de viés de seleção. Do mesmo modo, ao abranger usuárias do PSF cujas características socioeconômicas assemelham-se às dos outros cinco distritos sanitários, permite generalizar os resultados para as mulheres atendidas pelo PSF do Recife.

A prevalência de VFPI foi de 25,4%, sendo que 49,8% das mulheres referiram VFPI exclusivamente antes da gravidez, e as demais, na gravidez, com ou sem violência física em período anterior. Ainda que bastante elevada, a prevalência de VFPI encontrada foi inferior à identificada por Gomes29, de 35,8%, estudando uma amostra de 2.156 mulheres participantes do PSF do Recife. É possível que essa diferença decorra do fato de que na presente pesquisa as mulheres foram inquiridas sobre VFPI tendo como referência o intervalo de tempo entre o início da relação com o parceiro e o momento da entrevista, enquanto Gomes indagou sobre a VFPI ao longo da vida, podendo incluir parceiros anteriores.

Comportamentos de risco na gravidez - tabagismo, consumo de álcool e uso de drogas ilícitas - foram referidos com maior frequência pelas mulheres que relataram VFPI. Ademais, o consumo de álcool na gravidez mostrou-se associado ao uso inadequado do PN. As gestantes que fazem consumo de álcool têm mais chance de realizar um PN inadequado7, e o consumo de álcool na gravidez pode estar associado à violência pelo parceiro13,17. O consumo de álcool e tabaco e o uso drogas ilícitas levam à discriminação do indivíduo por parte da sociedade, especialmente quando relatados pelas mulheres durante a gravidez. Por isso, algumas mulheres podem ter omitido tal informação ou minimizado a quantidade e a frequência de uso, subestimando a associação encontrada.

A elevada cobertura de PN encontrada foi similar à estimada para a cidade do Recife na época do estudo, que em 2005 foi de 96,4%30. Apesar da cobertura satisfatória, 35% das mulheres iniciaram o PN após o primeiro trimestre e 22% realizaram menos de 6 consultas, situação semelhante àquela descrita no Recife por Carvalho e Araújo31. Esses achados sugerem deficiência na captação precoce das mulheres e que o número de consultas ainda está aquém do preconizado pelo PHPN6 para um contingente expressivo.

A proporção de mulheres que fez uso inadequado do PN entre as que relataram VFPI foi de 55,1%, identificando-se associação entre VFPI e uso inadequado do PN, sendo a chance 37% maior para as mulheres que relataram VFPI, em comparação àquelas sem história de violência, mesmo após o ajuste pelas covariáveis identificadas como confundidoras. Essa associação foi evidenciada em estudos semelhantes realizados no Brasil9, na Índia14, em Bangladesh11 e nos Estados Unidos12. No estudo realizado em três maternidades no Rio de Janeiro, em 2000, a chance de as mulheres terem PN inadequado foi duas vezes maior para as vítimas de VFPI na gravidez do que entre as mulheres que não relataram violência9.

As mulheres em situação de violência pelo parceiro íntimo tendem a iniciar o PN mais tardiamente e a ter menor adesão ao programa por problemas decorrentes da violência, tais como depressão na gravidez, baixa autoestima e maior dificuldade em cuidar da saúde32; também, por ter menos suporte do parceiro, inclusive para a realização do PN33, como evidenciado neste estudo, ou por se tratar de uma gravidez não pretendida8. Ainda, é possível que o constrangimento por expor marcas físicas da violência possa contribuir para a menor adesão às consultas de PN33.

Os achados do presente estudo reiteram a importância da sensibilização dos profissionais da rede básica de saúde para a identificação das mulheres em situação de violência, ainda que existam relatos de dificuldades dos profissionais de saúde em enfocar a violência, por não a reconhecerem como problema de saúde, por não se sentirem preparados para lidar com os casos identificados ou mesmo por serem vítimas ou perpetradores de violência nas relações conjugais34.

O PSF, por desenvolver ações de prevenção e promoção da saúde, pode se constituir em espaço para a abordagem de questões relativas à violência, de acolhimento e escuta35.

CONCLUSÃO

Os achados do presente estudo apontam que as mulheres que não realizam, iniciam tardiamente e/ou têm menor adesão ao PN podem estar vivenciando violência pelo parceiro íntimo. Programas de assistência PN capazes de identificar e encaminhar às instituições que ofertam serviços de apoio as mulheres em situação de violência são essenciais para promover maior adesão ao PN e redução da mortalidade materna e perinatal.

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  • Fonte de financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Tecnológico (CNPq - processo 403060/2004/4) e Departamento de Ciência e Tecnologia da Secretaria de ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (DECIT - 473545/2004-7; 403530/2004-0).

Disponibilidade de dados

Citações de dados

Brasil. Ministério da Saúde. DATASUS. Informações de saúde. Estatísticas vitais. Disponível em http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sinasc/cnv/nvpe.def (Acesso em 20 de janeiro de 2012).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2016

Histórico

  • Recebido
    18 Ago 2014
  • Aceito
    24 Jul 2015
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