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Olhares para o sanear: as percepções de ribeirinhos sobre uma experiência com tecnologias sociais na Amazônia Oriental

Looks at sanitation: the perceptions of riverside dwellers on an experiment with social technologies in the Eastern Amazon

Resumo

A comunidade ribeirinha do Canal Furo Grande, na Ilha das Onças (Barcarena-Pará), convive com a falta e a ineficiência de serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário. Há mais de dez anos um projeto de pesquisa e extensão da Universidade Federal Rural da Amazônia busca o desenvolvimento de soluções em saneamento junto às famílias locais, unindo conhecimentos científicos aos tradicionais. Essa experiência envolveu a reaplicação de duas Tecnologias Sociais (TS), denominadas Sistema de Aproveitamento de Água de Chuva (SAAC) e Banheiro Ecológico Ribeirinho (BER). O estudo divulga as principais percepções dos atores sociais participantes do projeto. As narrativas sugerem que essa iniciativa contribuiu para incentivar melhorias no cotidiano dos ribeirinhos, em aspectos como qualidade de vida, saúde e convivência com o ambiente. As ações basearam-se no interesse de usuários, na acessibilidade e na eficiência exigida para incorporações em políticas públicas voltadas à promoção da universalização do acesso à água e ao esgotamento sanitário.

Palavras-chave:
Saneamento Ambiental; Tecnologias Sociais; Comunidades Rurais; Água de Chuva; Banheiro Ecológico Ribeirinho; Percepção

Abstract

The riverside communities of canal Furo Grande, on Ilha das Onças (Barcarena-Pará), coexist with the lack and inefficiency of water supply services and sewerage systems. For over ten years one research and extension project of Universidade Federal Rural da Amazônia seeks development of sanitation solutions together with local families, combining scientific and traditional knowledge. This experience involved the reapplication of two Social Technologies (TS), named Rainwater Harvesting System (SAAC) and Ecological Toilet for Riverside Communities (BER). The study discloses the main perceptions of social actors participating in the project. The narratives suggests that this initiative contributed to encourage improvements in daily lifes of the riverside dwellers, in aspects such as quality of life, healthy and coexistence with the environment. The actions were based on user interest, acessibility and the required efficiency for incorporation into public policies aimed at promoting universalization of water access and sanitation service.

Keywords:
Environmental Sanitation; Social Technologies; Rural Communities; Rainwater; Ecological Toilet for Riverside Communities; Perception

1. Introdução

O saneamento básico é elemento fundamental no desenvolvimento de pessoas e de comunidades, para a garantia da saúde, do bem-estar e da qualidade de vida. A falta de serviços regulares e seguros em saneamento está associada à ocorrência de inúmeras doenças, transmitidas pelo solo ou por meio hídrico, e se constitui em uma das principais causas de morte, principalmente nos países subdesenvolvidos (WHO, 2018WHO. World Health Organization. Guidelines on Sanitation and Health. 2018. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/9789241514705 . Acesso em: 18 out. 2022.
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). No Brasil, aproximadamente 33 milhões de pessoas (15,8%) não têm acesso regular a serviços de abastecimento de água e 92 milhões (44,2%) não têm acesso à rede de esgoto (SNIS, 2021SNIS. Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento. Painel do Saneamento 2021. Disponível em: https://www.gov.br/mdr/ptbr/assuntos/saneamento/snis/painel . Acesso em: 24 mar. 2023.
https://www.gov.br/mdr/ptbr/assuntos/san...
).

Apesar dos investimentos do Governo Federal brasileiro no setor nos últimos anos, a dificuldade de acesso a esses recursos básicos persiste, sobretudo nos pequenos municípios (Santos et al., 2018SANTOS, F. F. S. dos et al. O desenvolvimento do saneamento básico no Brasil e as consequências para a saúde pública. Revista brasileira de meio ambiente, v. 4, n. 1, 2018.). As regiões Norte e Nordeste do país são as principais afetadas pela falta e pela ineficiência na oferta de tais serviços. O estado do Pará está entre os destaques negativos, com ênfase nos municípios de Santarém, de Ananindeua e da capital, Belém (SNIS, 2022SNIS. Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento. Diagnóstico Temático Serviços de Água e Esgoto. 2022. Disponível em: https://saneamentoinclusivo.org.br/publicacao/snis-diagnostico-tematico-servicos-de-agua-e-esgoto-ano-referencia-2020/ . Acesso em: 9 fev. 2023.
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).

As áreas rurais são as principais afetadas pelas consequências da precariedade do saneamento, impactando especialmente os povos tradicionais, entre os quais se incluem indígenas, quilombolas, ribeirinhos e outros grupos caracterizados como Populações do Campo, Floresta e Águas (PCFA) (Lobão, 2019LOBÃO, M. Amazônia rural brasileira: aspetos sociodemográficos. GOT: Revista de Geografia e Ordenamento do Território, n. 17, p. 123, 2019.; Resende; Ferreira; Fernandes, 2018RESENDE, R. G.; FERREIRA, S.; FERNANDES, L. F. R. O saneamento rural no contexto brasileiro. Revista Agrogeoambiental, v. 10, n. 1, p. 131-149, 2018.). Essa condição se estende desde a falta de distribuição de água potável e de estruturas de esgotamento sanitário até a destinação inadequada de resíduos sólidos e das águas pluviais.

Quando os direitos de uma população não são garantidos pela iniciativa pública ou privada, restam os modos não convencionais, que são medidas alternativas. Foi nesse cenário que as Tecnologias Sociais (TS) foram desenvolvidas e difundidas. Por definição, elas consistem em um conjunto de técnicas e metodologias transformadoras, desenvolvidas e aplicadas na interação com a população e apropriadas por ela, com a apresentação de soluções voltadas à inclusão social e à melhoria das condições de vida. Assim, as TS assumem dimensões distintas, como relevância social; conhecimento, ciência, tecnologia e inovação; educação, além de participação, cidadania e democracia (ITS, 2007ITS. Instituto de Tecnologia Social. Conhecimento e cidadania: tecnologia social. 2007. 23 p. Disponível em: https://irp.cdnwebsite.com/c8d521c7/files/uploaded/T1.pdf . Acesso em: 12 jun. 2023.
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). Diferentes experiências com TS oportunizaram importantes avanços em áreas rurais, em especial no contexto amazônico das últimas duas décadas (Méndez-Fajardo et al., 2011MÉNDEZ-FAJARDO, S. et al. Metodología para la apropiación de tecnologías de saneamiento básico en comunidades indígenas. Cuadernos de desarrollo rural, v. 8, n. 66, p.153-176, 2011. ; Bernardes; Costa; Bernardes, 2018BERNARDES, R. S.; COSTA, A. A. D. da; BERNARDES, C. Projeto Sanear Amazônia: tecnologias sociais e protagonismo das comunidades mudam qualidade de vida nas reservas extrativistas. Desenvolvimento e Meio Ambiente, v. 48, 2018.; Neu et al., 2018NEU, V. et al. Água da chuva para consumo humano: estudo de caso na Amazônia Oriental. Revista Inclusão Social, Brasília, DF, v. 12, n. 1, p. 183-198, 2018.; Machado; Maciel; Thielen, 2021MACHADO, G. C. X. M. P.; MACIEL, T. M. de F. B.; THIOLLENT, M. Uma abordagem integral para saneamento ecológico em comunidades tradicionais e rurais. Ciência & Saúde Coletiva, v. 26, p. 1333-1344, 2021.; Nascimento; Silva; Souza, 2022NASCIMENTO, A. J. C.; SILVA, V. M. da; SOUZA, C. M. N. Estado da arte das tecnologias sociais de esgotamento sanitário: conceitos e principais alternativas aplicadas na Amazônia. Cadernos UniFOA, v. 17, n. 50, p. 1-11, 2022.).

A Ilha das Onças é um território administrado pelo município de Barcarena, no Pará, e que se encontra próximo à capital Belém. Nessa ilha, a insuficiência/inoperância do Estado, junto ao desinteresse da iniciativa privada, resulta em uma condição precária em estruturas para o saneamento básico. Em um dos canais que a cortam, o Furo Grande, a comunidade local reúne premissas substanciais para a realização de experiências de fomento às tecnologias sociais. Apesar da inabilidade dos entes governamentais e privados, os moradores locais demonstram-se interessados no desenvolvimento de soluções.

Esse foi o contexto encontrado para a realização da iniciativa intitulada “Segurança hídrica e saneamento básico descentralizado, por meio de tecnologias sociais na Região Insular de Belém”. Trata-se de um projeto de pesquisa e extensão universitária que reuniu conhecimentos técnicos e tradicionais para fomentar o saneamento básico na comunidade ribeirinha do Furo Grande. Com mais de dez anos de experiências nesse local, a iniciativa já oportunizou, entre outras diferentes ações, a implementação de duas diferentes tecnologias sociais, voltadas para o abastecimento regular e seguro de água e para o tratamento do esgoto doméstico. Ao todo, foram distribuídas entre as famílias da região dezesseis unidades do Sistema de Aproveitamento de Água de Chuva (SAAC) (Figura 1a) e outras dezesseis do Banheiro Ecológico Ribeirinho (BER) (Figura 1b).

Figura 1
Sistema de abastecimento de água de chuva (a) e banheiro ecológico na Ilha das Onças (b)

Como resultado, dezenas de pessoas foram impactadas direta e indiretamente e passaram a ter acesso garantido à água potável e a estruturas de banheiro, com privacidade e segurança. O projeto é vinculado à Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA) e, de maneira geral, representa o objeto central do presente estudo. O objetivo consiste em identificar e analisar as principais percepções dos participantes do projeto (usuários das tecnologias implementadas) no tocante a diferentes aspectos inerentes à experiência no Furo Grande, incluindo o modo de vida e a governança pública na região.

2. Material e métodos

2.1 Caracterização da área de estudo

A comunidade do Furo Grande está localizada em um dos canais que cortam a Ilha das Onças, no município paraense de Barcarena, situado aproximadamente a 5 km de Belém. Encontra-se no estuário do rio Pará, na margem esquerda da baía do Guajará. A Ilha das Onças é drenada por diversos rios e canais, que permitem a circulação de embarcações pesqueiras e de transporte fluvial (Figura 2) (Neu et al., 2016NEU, V. et al. Sustentabilidade e sociobiodiversidade: alternativas para a região insular de Belém - a experiência da Ilha das Onças. In: NEU, V.; GUEDES, V. M.; ARAÚJO, M. G. S. (org.). Sustentabilidade e sociobiodiversidade na Amazônia: integrando ensino, pesquisa e extensão na região insular de Belém. Belém: Edufra, 2016. p. 65-86.). Segundo pesquisa de campo, os moradores estimam que nela vivam atualmente cerca de 3 mil pessoas, mas não há estimativas populacionais oficiais para o local.

Figura 2
Mapa de localização do Furo Grande, Ilha das Onças - Barcarena, Pará

2.1 Coleta e análise dos dados

O presente artigo, de caráter qualitativo e descritivo, toma como base um estudo de caso e conta com dados primários e secundários. A coleta dos dados foi feita durante três etapas de entrevistas com os moradores do Canal Furo Grande, participantes do projeto e usuários das tecnologias sociais. Foram duas etapas de entrevistas individuais e uma de entrevista coletiva. Os levantamentos foram efetuados in loco e priorizaram diálogos com as mulheres da comunidade. A primeira rodada de entrevistas (individual) aconteceu em junho de 2019, um ano após a última instalação de sistemas na comunidade, em uma parceria com a Universidade de Dundee, da Escócia. A primeira entrevista continha perguntas abertas e divididas entre dois principais temas predefinidos, um específico para o SAAC e outro referente ao BER.

A segunda rodada de entrevistas (individual) aconteceu em setembro de 2022. O intervalo de três anos entre o primeiro e o segundo levantamento de dados se deveu à impossibilidade de acesso à comunidade durante o período de pandemia por Covid-19. Nessa entrevista foram feitas três perguntas abertas, todas definidas de acordo com as lacunas observadas nas primeiras entrevistas. A terceira fase teve caráter coletivo, com a realização de uma roda de conversa com a comunidade, em março de 2023. As perguntas que a compunham também foram feitas de forma a complementar as questões já abordadas nas rodadas anteriores. A conversa foi livre, mas conduzida por meio de perguntas-chave, seguidas por uma dinâmica na qual os participantes ficaram livres para se expressar, com o mínimo de intervenções possível.

Em todas as entrevistas, os respondentes concordaram com a participação nas pesquisas e com os levantamentos de dados, manifestando consentimento ao assinar Termos de Consentimentos Livres e Esclarecidos (TCLE).

Assim, foram realizadas 23 entrevistas individuais entre 2019 e 2022 e uma coletiva em 2023. Esta última contou com a participação de sete moradores. Ao todo, foram entrevistadas 22 pessoas, de catorze residências (famílias) participantes do projeto (Tabela 1). As duas primeiras rodadas de entrevistas foram submetidas aos métodos de análise de conteúdo qualitativo de Bardin (2011BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.) e do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC) de Lefèvre e Lefèvre (2012LEFÈVRE, F.; LEFÈVRE, A. M. C. Pesquisa de Representação Social. 2. ed. Campinas: Liber Livro, 2012. p. 224. (Série Pesquisa).).

Tabela 1
Descrição dos moradores entrevistados

As gravações realizadas nas três etapas de entrevistas foram incorporadas, tratadas e transcritas no software NVivo (2020)NVIVO. Versão 1.0. QSR International Pty Ltd, 2020. com auxílio de recursos do Word (2016)WORD. Versão 2401. Microsoft Office Mono 2016. . A análise do conteúdo foi submetida ao método descrito por Bardin (2011BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.) para dados qualitativos. Dessa forma, os procedimentos de análise seguiram três passos fundamentais, descritos pelo método: (i) organização dos materiais; (ii) codificação dos discursos, isto é, separação de citações e de trechos de depoimentos considerados importantes para a pesquisa; (iii) categorização dos fragmentos, ou seja, atribuição de cada trecho a uma categoria definida pelo pesquisador.

Não foi possível a identificação segura dos autores das falas na roda de conversa (2023), realizada após a análise e a transcrição dos áudios. Por conta disso, tais relatos foram considerados apenas na fase de discussão da pesquisa, como fundamentação dos conteúdos. Ademais, as transcrições de cinco entrevistas, conduzidas com as mesmas pessoas nas duas primeiras etapas (2019 e 2022), foram agrupadas para a elaboração das análises. Em seguida, os documentos tratados e devidamente transcritos foram incorporados ao software ATLAS.tiATLAS.TI. Versão 9.1.3.0. Scientific Software Development GmbH, 2021. https://atlasti.com/.
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.

Foram analisados individualmente dezoito documentos, de acordo com a predefinição de cinco grupos de categorias (grandes temas, mais abrangentes), a saber: (i) A vida e o consumo de água antes do SAAC; (ii) Atuação do Estado; (iii) Percepções gerais sobre o projeto; (iv) Percepções sobre o BER; e (v) Percepções sobre o SAAC. Os temas centrais foram definidos em conformidade com os objetos de interesse investigativo, adotados como base para as perguntas abertas que introduziram as entrevistas. As citações identificadas mediante a interpretação de cada discurso revelaram a existência de subtemas, mais específicos, dentro de cada tema central, os quais passaram a ser considerados no estudo como categorias.

Cada categoria foi submetida ao método do Discurso do Sujeito Coletivo, descrito por Lefèvre e Lefèvre (2012LEFÈVRE, F.; LEFÈVRE, A. M. C. Pesquisa de Representação Social. 2. ed. Campinas: Liber Livro, 2012. p. 224. (Série Pesquisa).). Essa técnica consiste na construção de uma síntese geral entre os discursos atribuídos a determinado tema, com o intuito de ilustrar a percepção coletiva sobre o referido assunto. Para cada DSC, foi divulgado um percentual da frequência de ocorrência dos relatos atribuídos a uma categoria específica, ou seja, demonstrativa da representatividade de cada opinião. A frequência foi determinada pelo produto do número de citações relativas a uma categoria com o número de citações incorporadas ao respectivo grupo de categorias.

As citações que foram associadas a mais de uma categoria representaram conexões entre os temas e, de acordo com elas, foi produzido um gráfico na plataforma Flourish, que ilustrou ainda a intensidade de cada conexão da rede. Informações do banco de dados da UFRA também foram coletadas para fins comparativos e associativos durante as análises.

3. Resultados e discussão

Com base nos cinco grupos de categorias predefinidos, foram identificadas 23 categorias (Quadro 1). No total, foram selecionadas 539 citações, as quais foram submetidas aos métodos de Análise do Discurso e Discurso do Sujeito Coletivo. No Quadro 1 também são apontadas as respectivas frequências de ocorrência das percepções gerais dos entrevistados, de acordo com cada categoria.

Quadro 1
Percepção dos moradores participantes do projeto sobre diferentes temas relacionados à experiência com tecnologias sociais em saneamento

O Gráfico 1 apresenta a rede de conexões entre os temas correlacionados e assume importância significativa enquanto sintetizador do contexto de relações entre os conteúdos abordados. A espessura dos arcos é proporcional à intensidade das correlações.

Gráfico 1
Rede de conexões entre categorias, com as respectivas intensidades.

3.1 Experiências e percepções sobre o projeto

Durante as entrevistas, quando abordados aspectos gerais relativos ao projeto (como um todo, incluindo as etapas de reconhecimento da situação-problema, de identificação das necessidades, assim como de escolha das tecnologias, planejamento, construção e gestão), na maior parte dos relatos coletados verifica-se a atribuição de percepções positivas. No geral, essas concepções são retratadas também pelo volume significativo de solicitações/procura por novas etapas de reaplicação das tecnologias e de expansão da atuação para comunidades vizinhas.

A abordagem do projeto conduzido pela UFRA no Furo Grande assumiu como pontos prioritários a participação social e a integração dos atores acadêmicos junto à comunidade. Essa aproximação certamente foi uma premissa que baseou as manifestações favoráveis à condução e aos resultados do projeto, norteando a relação entre teoria (onde se afirma a técnica) e prática, em que o conhecimento científico se associa aos conhecimentos populares e tradicionais. Trata-se de condição importante para a existência de momentos de reconsideração e reavaliação das ações, contribuindo inclusive para diferentes alterações práticas de projeto, nos momentos de execução. Um exemplo foi a troca de pregos por barras de parafusos para a fixação dos esteios nas construções. Esse aspecto inovador foi evidenciado com frequência entre as narrativas.

A comunicação participativa é determinante para o sucesso de iniciativas envolvendo tecnologias de cunho social. Os estudos de Yábar e Figueroa (2020YÁBAR, G.; FIGUEROA, K. Estrategias de comunicación participativa, saneamiento básico y la salud pública de los pobladores de Paucartambo-Cusco. Revista de la Facultad de Medicina Humana, v. 20, n. 4, p. 651-656, 2020.) e de Garzón-Garzón (2017)GARZÓN-GÁRZON, L. P. ¿El desarrollo local desde y para quién? Análisis de la formulación e implementación de proyectos estatales en comunidades indígenas amazónicas. Gestión y ambiente, v. 20, n. 2, p. 244-252, 2017., na Amazônia peruana e na Amazônia colombiana, respectivamente, apontam a falta de estratégias participativas como a principal causa para os efeitos negativos e para a baixa efetividade em projetos públicos de saneamento. Segundo as autoras, a falta de participação da sociedade civil, desde as fases de diagnóstico até as finais de projeto, principalmente em decorrência da permanente falta de atividades de monitoramento e vigilância, tem papel definitivo nos resultados de insuficiência no que se refere à qualidade de vida e à saúde pública.

Por outro lado, Freitas e Segatto (2014FREITAS, C. C. G.; SEGATTO, A. P. Ciência, tecnologia e sociedade pelo olhar da Tecnologia Social: um estudo a partir da Teoria Crítica da Tecnologia. Cadernos EBAPE.BR, v. 12, p. 302-320, 2014. ) afirmam que percepções positivas são esperadas quando se trata do fomento inclusivo de tecnologias sociais na mediação de problemas públicos. Inovações desse tipo costumam apresentar grande potencial no que tange à relação entre Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) e têm em sua proposta crítica diversos elementos diferenciais. A emancipação dos indivíduos envolvidos, o processo de construção social, a valorização da aprendizagem, o respeito à cultura local, demandas sociais como origem e propósito, a apropriação da tecnologia, a sustentabilidade, a democratização do conhecimento, a transformação social e a multiplicidade de soluções são alguns dos principais aspectos/consequências/produtos vinculados a essa proposta.

Na pesquisa de Veloso (2019VELOSO, N. da S. L. Política pública de abastecimento pluvial: água da chuva na Amazônia, e por que não? 2019. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido, Universidade Federal do Pará, Belém, 2019.) também são apresentadas percepções positivas sobre os resultados de outra iniciativa abarcando tecnologias sociais em saneamento em territórios rurais de diferentes estados amazônicos, o caso do Sanear Amazônia. Os resultados da experiência estudada por essa autora são tidos pelos próprios usufruidores das TS como uma contribuição fundamental para a melhora na qualidade de vida, da saúde e do bem-viver da população envolvida. Resultados similares foram obtidos por Souza et al. (2013SOUZA, C. M. N. et al. Abastecimento de água em comunidades ribeirinhas da Amazônia brasileira e promoção da saúde: análise de modelo de intervenção e de gestão. Novos Cadernos NAEA, v. 15, n. 2, 2013.) em outra experiência realizada na região insular de Belém, com a reaplicação de SAAC.

Percepções adversas/negativas sobre aspectos gerais do projeto foram pouco relatadas durante as entrevistas. No entanto, sugestões de melhorias foram frequentes. A necessidade de maior atenção no que concerne à escolha das madeiras utilizadas na construção de ambos os sistemas foi um dos pontos recorrentes nos relatos sobre aperfeiçoamento, numa projeção de reaplicações futuras. Além disso, os respondentes concordaram com a ideia de que o fortalecimento do vínculo entre os moradores é essencial para o sucesso das ações, para a melhora e a perpetuação dos desfechos positivos.

Outro benefício relatado foi a economia de dinheiro e de custos de oportunidade. Os respondentes alegaram que a menor ocorrência de doenças vinculadas à precariedade no saneamento teria evitado gastos com medicamentos e com deslocamento a postos de saúde (que depende da disponibilidade de combustível e de tempo). Adicionalmente, o recebimento do SAAC teria sido fundamental para a economia com a compra e com os deslocamentos efetuados para a obtenção de água em localidades vizinhas. Os usuários de ambos os sistemas também notaram maior conforto e praticidade ao terem a oportunidade de acessar água e banheiro dentro das próprias residências - prática incomum nas casas do Furo Grande antes do projeto. Para os detentores das tecnologias, essas vantagens tornaram-se motivo de orgulho ao serem compartilhadas com amigos, vizinhos e parentes.

Os relatos sugerem ainda maior adaptação dos usuários ao sistema de água, na comparação com o banheiro ecológico. Na prática, foram observados maiores cuidados com as cisternas, maior interesse em mantê-las; em raros momentos os usuários manifestaram preferência por outros métodos de abastecimento de água. O contrário aconteceu com certa frequência quanto à alternativa para o esgotamento sanitário: algumas pessoas alegaram preferir métodos convencionais, típicos do ambiente urbano (a exemplo das fossas sépticas), apesar de ser uma opção inviabilizada para algumas áreas rurais amazônicas que enfrentam limitações de infraestrutura básica (como o acesso à energia elétrica).

Durante a fase de acompanhamento das tecnologias, parte das famílias demonstrou boa adaptação ao BER, pois foi possível observar que o ambiente estava limpo, sem odor e sem proliferação de larvas e outros vetores. No entanto, outras famílias apresentaram dificuldades com o uso e o manejo adequado do banheiro ecológico, especialmente por não utilizarem serragem, resultando em estruturas com odor desagradável e acúmulo de líquidos (mistura de fezes e urina, sem tratamento). Essa conclusão também foi retratada pelos respondentes. As principais dificuldades foram atribuídas ao tamanho das famílias. Quanto maior o número de usuários, maior a dificuldade em manter a ordem para o funcionamento adequado da tecnologia. As crianças foram as que menos se adaptaram ao sistema. A dificuldade de criação do hábito de adicionar serragem após o uso do banheiro foi uma queixa recorrente. O entrevistado 22, morador da residência 14 do Furo Grande, revelou em setembro de 2022:

O banheiro não ajudou muito aqui, porque aqui tem muita gente. Esse banheiro seco é bom para casas que têm pouca gente, sabe. Mas aqui tem muita gente, aí todo mundo quer usar, e não sabe usar, aí vai ficando uma confusão. Por isso achei melhor fazer uma fossa.

Os benefícios associados ao BER foram menos notados pelos homens, o que possivelmente está relacionado a uma menor percepção de desconforto para a realização das necessidades fisiológicas em locais onde não há acesso a sistemas de esgotamento sanitário, em comparação com a das mulheres. Elas, por sua vez, são as principais usuárias e demonstraram maior satisfação no acesso a essa tecnologia alternativa, além de privacidade e independência, por não haver mais a demanda de companhia para realizar suas necessidades. Destaca-se neste ponto a ênfase dos usuários do BER quanto a não terem de acessar as áreas externas das residências para as práticas habituais de higiene pessoal, sobretudo durante a noite e nos períodos menstruais.

As entrevistadas 14 e 01, moradoras, respectivamente, das residências 05 e 01, comentaram em junho de 2019:

Mudou muito mesmo. O banheiro [estrutura anterior ao BER] era lá pra trás e agora é tudo dentro da casa, entendeu?

Isso trouxe uma melhora, né? Isso me alegra. Chegar alguém e ter uma boa visão, e que a pessoa se sinta bem, tanto nós quanto alguém que chega aqui em casa.

Somente duas famílias alegaram não estar adaptadas ou completamente não adaptadas ao BER. Na prática, das sete residências em que foi implantado o sistema de banheiro ecológico, quatro ainda o utilizam como o principal método de tratamento do esgoto doméstico, e uma residência o faz apenas como opção para visitantes. A importância das tecnologias sociais teve tamanha relevância para algumas famílias que diferentes pessoas alegaram não renunciar aos seus sistemas. Em meados de 2020, por exemplo, os moradores da residência 02 precisaram se mudar para outro ponto da mesma comunidade, e ainda assim optaram por deslocar para a nova residência tanto o BER como a cisterna.

O método de abastecimento de água, apesar de algumas pessoas terem relatado receios sobre o consumo da água de chuva, sobretudo antes da atuação do projeto no Canal Furo Grande, foi bem aceito entre os ribeirinhos. Na realidade, essa é uma prática milenar, com experiências históricas e reconhecidas em diversos lugares do planeta. Em muitos locais e em diferentes tempos, o simplório costume de aparar a água da chuva, em recipientes comuns, era - e continua sendo (Souza et al., 2013SOUZA, C. M. N. et al. Abastecimento de água em comunidades ribeirinhas da Amazônia brasileira e promoção da saúde: análise de modelo de intervenção e de gestão. Novos Cadernos NAEA, v. 15, n. 2, 2013.) - suficiente (ao menos em termos de quantidade) para garantir o acesso à água para as demandas mais básicas das famílias (Tomaz, 2003TOMAZ, P. Aproveitamento de água de chuva. 2. ed. São Paulo: Navegar, 2003, 180 p. ; Gnadlinger, 2000GNADLINGER, J. Coleta de água de chuva em áreas rurais. 2000. FÓRUM MUNDIAL DA ÁGUA, 2., 2000, Haia. Anais eletrônicos [...]. Haia: Fórum Mundial da Água. Tema: Da visão à ação. Disponível em: https://irpaa.org/colheita/indexb.htm . Acesso em: 10 maio, 2023.
https://irpaa.org/colheita/indexb.htm...
; Koutsoyiannis et al., 2008 KOUTSOYIANNIS, D. et al. Urban water management in Ancient Greece: legacies and lessons. Journal of Water Resources Planning and Management, 2008. Disponível em: http://www.itia.ntua.gr/en/docinfo/750 . Acesso em: 10 maio 2023.
http://www.itia.ntua.gr/en/docinfo/750...
).

Para os moradores do Furo Grande, essa novidade representou uma mudança importante nas suas rotinas, mais associada antes do projeto a uma condição de vida difícil, em termos de saúde, comprometimento da renda, hábitos de higiene e outros aspectos. As falas da entrevistada 01 e do entrevistado 03, moradores, respectivamente, da residência 01 e da residência 03, datadas de junho de 2019, comprovam isso:

Hoje temos em casa isso [abastecimento de água], não precisamos ficar correndo de um lado para o outro, com preocupação. Então é muito bom, isso alegra a gente.

Foi uma preocupação a menos. Foi bom, muito bom.

Com uma das relações mais fortes entre as categorias, muitos relatos sobre pontos positivos a respeito das experiências com o sistema de água foram conectados às percepções envolvendo relações interpessoais. Essa circunstância mostrou influência também no próprio uso da água pelas famílias beneficiadas com o SAAC. Em certos casos, os usuários chegam a racionar o recurso, usando-o apenas para as demandas mais básicas, de modo a não haver risco de faltar água para o compartilhamento com os vizinhos - hábito mais frequente durante o período menos chuvoso na região. Os depoimentos a seguir, das entrevistadas 10 e 17, residências 09 e 02, datados de junho de 2019 e setembro de 2022, mostram como isso ocorre.

Uma vez por semana eles vêm pegar, às vezes com aqueles barris de 20 litros, e pegam uns três. Mas a minha caixa é pequena, né? E tem família que é grande. Para banho às vezes a gente não gosta de gastar muito no verão, por causa que às vezes os vizinhos vêm buscar aqui, né? Aí eu já economizo, “não, banho não”, porque, quando eles vêm pegar água aqui, eu não vou negar, né?

Eu dou água para a vizinhança. Tem dias que vêm três ou quatro famílias para pegar água aqui em casa, duas ou três vezes no dia.

Outra sugestão dos usuários, bastante relacionada a esse vínculo entre os moradores, foi o aumento do volume dos reservatórios. Essa medida poderia assegurar uma oferta de água com maior qualidade para outras demandas domésticas e também possibilitar maior compartilhamento, com um número maior de pessoas e/ou em maiores quantidades. Para a entrevistada 07, moradora da residência 06, cujo depoimento data de março de 2023:

É triste quando a gente vê essa água indo embora, depois que a caixa já está cheia. A gente fica olhando assim... pensamos que poderíamos estar aparando pra lavar uma roupa ou fazer outras coisas. Antes [do SAAC] era assim que a gente fazia, aparava nos baldes.

Os relatos dos entrevistados referentes às percepções sobre saúde correlacionaram-se a pelo menos oito outros temas. No Gráfico 1, a categoria 1-A apresentou o maior número de conexões, em conjunto com a categoria que retratou o consumo de água antes do SAAC. Para muitos, o projeto e as tecnologias sociais representam um marco na condição de saúde daqueles que passaram a consumir água de qualidade e a ter uma opção segura e privada para as necessidades sanitárias. Durante a terceira etapa de entrevistas (2023), os depoimentos foram categóricos ao afirmar que, além de terem notado na prática uma redução de doenças como diarreias e náuseas, os resultados dos exames feitos recentemente atestam que houve, de fato, uma mudança na condição de saúde dessas pessoas.

No mesmo sentido, outra observação importante foi atribuída à ocorrência de acidentes domésticos. Antes do recebimento do sistema de água, o acesso ao rio era mais frequente, para ações como coletar água, tomar banho e atender a outras demandas básicas de higiene pessoal e do lar. Esses hábitos foram apontados como a causa de problemas crônicos de saúde e incidentes, por vezes fatais, como se vê no relato da entrevistada 08, moradora da residência 07, dado em junho de 2019:

[...] eu perdi um filho que morreu afogado, meu primeiro filho. Aí eu fiquei assim meio... Era criança, meu filho tinha um ano, caiu e não resistiu, afogou. Essa coisa [o projeto], vou te falar, foi uma das melhores coisas que me aconteceu.

No estudo de Pacífico et al. (2021PACÍFICO, A. C. N. et al. Tecnologia para acesso à água na várzea amazônica: impactos positivos na vida de comunidades ribeirinhas do Médio Solimões, Amazonas, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 37, 2021. ) com comunidades ribeirinhas da região do Médio Solimões, no estado do Amazonas, também foram identificadas nas narrativas dos amazonenses preocupações com o risco de acidentes relacionados às idas ao rio e até de ataques de animais (peçonhentos ou vetores de doenças). Os moradores enfatizaram ser rotineira a ocorrência de afogamentos (principalmente de crianças) durante o exercício dos afazeres cotidianos. O estudo mostrou ainda que, após a replicação de tecnologias sociais para o abastecimento regular de água ao menos em 21 comunidades da região, muitos detentores dos sistemas informaram ter notado uma diminuição significativa na ocorrência dos acidentes, assim como no caso do Furo Grande.

No entanto, apesar de todos os relatos positivos dos participantes do projeto do Furo Grande, também foram indicados alguns pontos desfavoráveis sobre a experiência com o SAAC. Destaca-se o caso de duas residências, onde, ao longo do tempo de acompanhamento dos sistemas, observou-se que a manutenção e a higienização eram mais difíceis, ou mesmo negligenciadas. Na residência 07, a moradora alegou em diferentes momentos que não conseguia acessar a estrutura por conta de problemas de saúde; e ao marido faltaria tempo. Na residência 12, pertencente à entrevistada 13, os relatos, feitos em novembro de 2022, foram similares:

Eu mesma não subo lá. Quem sobe é ele [marido]. Eu tenho dificuldade, eu não aguento. Mas ele tem, só que trabalha muito, tem pouco tempo. Meu filho também trabalha muito. Aí a gente tem que pagar uma pessoa para fazer o serviço.

Em ambos os casos, os moradores afirmaram que a limpeza das suas cisternas e manutenções eventuais são quase sempre feitas por outras pessoas. Contudo, esse tipo de serviço não é realizado com frequência, em decorrência da falta de dinheiro para a contratação.

3.2 Aspectos gerais e percepções sobre vivências, Estado e ambiente

No que diz respeito às dinâmicas e às experiências locais dos ribeirinhos do Canal Furo Grande, os relatos não foram unânimes. Para alguns, a proximidade e a dependência direta da natureza são fatores suficientes para influenciar a percepção de bem-viver, como uma boa e rara oportunidade, onde a permanência interessa muito. Para outros, a carência de recursos básicos para uma vida de qualidade e a improficiência na garantia de direitos são questões ainda mais determinantes, capazes de estimular o interesse em mudanças de direção/vida/espaço/condição.

Para parte dos entrevistados, um dos problemas mais prementes relacionados à vida na comunidade é a escassez de oportunidades de trabalho. Na região, uma das principais fontes de renda dos moradores é o extrativismo do açaí. Porém, os ganhos relativos a essa atividade não garantem o sustento das famílias durante o ano todo. De modo geral, o fruto é extraído e comercializado ao longo do período popularmente considerado o verão amazônico, ou seja, entre meados de junho e novembro. Nos outros meses, as famílias se mantêm por meio da comercialização de outros produtos da floresta, como sementes de andiroba, cacau e frutos de cupuaçu e taperebá, além dos auxílios concedidos pelo Governo Federal, mediante programas de transferência de renda direta.

No estudo de Nascimento, Moura e Teisserenc (2018NASCIMENTO, A. C.; MOURA, E. A. F.; TEISSERENC, M. J. da S. A. Para além do sucesso técnico: rede sociotécnica em pequenas comunidades rurais amazônicas. Novos Cadernos NAEA, v. 21, n. 1, p. 215-241, 2018.), para os moradores de áreas de várzea das margens do rio Solimões, no estado do Amazonas, o período do ano e as condições ambientais consequentes também são retratados como fatores determinantes para as vivências cotidianas. Nessas regiões, a sazonalidade imprime variações nas fontes de renda, nos arranjos domiciliares, nas situações de risco e nas formas de sociabilidade. Segundo os ribeirinhos amazonenses: “Na cheia está todo mundo de bubuia.1 1 Expressão local que indica a ação de estar flutuando na água. Na seca ficamos completamente isolados” (Nascimento; Moura; Teisserenc, 2018NASCIMENTO, A. C.; MOURA, E. A. F.; TEISSERENC, M. J. da S. A. Para além do sucesso técnico: rede sociotécnica em pequenas comunidades rurais amazônicas. Novos Cadernos NAEA, v. 21, n. 1, p. 215-241, 2018., p. 220).

O êxodo rural tem se tornado uma tendência crescente em todo o país, em especial na região amazônica, em um processo migratório que está diretamente relacionado ao inchaço populacional dos centros urbanos, sobretudo em ambientes periféricos (Hein; Silva, 2019HEIN, A. F.; SILVA, N. L. S. da. A insustentabilidade na agricultura familiar e o êxodo rural contemporâneo. Estudos Sociedade e Agricultura, v. 27, n. 2, p. 394-417, 2010.). Na Amazônia, alguns fatores que têm levado as pessoas a abandonar o meio rural são as dificuldades do dia a dia, a falta de água potável, de energia elétrica, de escolas de qualidade e de serviços de saúde, além do aumento da criminalidade. As mulheres são minoria nesses espaços e migram em maior intensidade que os homens (Lobão, 2019LOBÃO, M. Amazônia rural brasileira: aspetos sociodemográficos. GOT: Revista de Geografia e Ordenamento do Território, n. 17, p. 123, 2019.).

Na Amazônia rural, a atuação do Estado é marcada por omissões, insuficiências e ineficiências - condição que retrata o racismo ambiental que renega direitos e exclui grupos minoritários e tradicionais (Oliveira; Freitas, 2020OLIVEIRA, T. B. de; FREITAS, J. da S. G. de. “Esse é o pensamento de um homem capitalista. Meu povo não precisa desse tipo de desenvolvimento”: articulação do racismo ambiental sobre o povo Yanomami no contexto pandêmico. Revista Terena, n. 3, p. 1-400, 2020. ). Quando os entrevistados fizeram referência à atuação do Estado na região, a maioria das falas foi direcionada a reinvindicações e críticas a respeito dos seguintes tópicos:

  1. A necessidade de coleta e destinação adequada para os resíduos gerados na comunidade;

  2. Assistência médica. Para os moradores, a condição do sistema de saúde existente não é suficiente para atender às demandas da população local, o que preocupa principalmente os responsáveis por crianças e adolescentes;

  3. Controle da atuação de empresas e a consequente diminuição de acidentes ambientais na região. A operação de determinadas empresas (mineradoras e outras) nas proximidades do Furo Grande é apontada como razão para mudanças no espaço físico e, por conseguinte, na relação homem-natureza;

  4. Fundação de associações de moradores/produtores locais. Essa proposta objetiva encontrar mecanismos de fortalecimento dos espaços de debates de causas comuns, além de fomentar o desenvolvimento de negócios e comércios locais;

  5. Políticas participativas. De acordo com as narrativas, faltam momentos de discussão e interação entre os tomadores de decisão e os moradores.

Diferentemente dos relatos sobre a vida na comunidade, os quais em certo ponto dividiram as opiniões dos entrevistados, as percepções relativas ao ambiente são concordantes no que se refere a uma condição de alterações crescentes e significativas. Alguns depoimentos apontam que, nos últimos anos, o acúmulo de lixo nas margens dos rios tornou-se cada vez mais intenso e frequente, bem como as consequentes coceiras provocadas pelo contato cotidiano com as águas que circundam a Ilha das Onças. As manchas de óleo, o fluxo de embarcações e tantos outros eventos, na opinião de alguns moradores, interferem diretamente em aspectos sociais como pertencimento e resiliência.

A pesquisa de Santos (2019SANTOS, N.M. . Análise da percepção de riscos ambientais por instituições públicas de Barcarena e do estado do Pará: Estudo de caso para Barcarena. 2019. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Engenharia Ambiental e Energias Renováveis) - Universidade Federal Rural da Amazônia, Belém, 2019.) expõe, em uma linha do tempo, que entre 2000 e 2018 ao menos dezenove acidentes ambientais de grande relevância impactaram direta e indiretamente o município paraense de Barcarena e comunidades próximas. Para Saavedra (2019SAAVEDRA, M. da P. C. Imerys em Barcarena: os efeitos colaterais perversos da mineração nos recursos hídricos do município. In: CASTRO, E.; CARMO, E. do. Dossiê Desastres e Crimes da Mineração em Barcarena. Belém: NAEA: UFPA. 2019. 253 p.), não há dúvida de que a mineração, as hidrelétricas e as rodovias são as principais vilãs das terras de ocupação tradicional na Amazônia. Juntam-se a elas o agronegócio e a grilagem de terras. Para alguns moradores da Ilha das Onças, esses acidentes ambientais foram capazes de influenciar as relações deles com o ambiente, sobretudo com o rio. Para o entrevistado 20, morador da residência 12, em relato de junho de 2019:

A poluição tem. Aqui mudou muito. Depois que esses problemas aqui, que foi vazando essas bacias de contaminação, foi perdendo... Nós tivemos primeiro uma lavagem de balsa aí na frente [próximo à entrada do Furo Grande], que espantou muito camarão. Era óleo queimado... lavavam tudo aí na beira, queria que você visse como ficava aí. Entrava para dentro do igarapé [furo]. Foi um trauma que tivemos.

4. Conclusão

Os moradores do Furo Grande destacam a ineficiência na atuação do Estado na região, sobretudo na comunidade. As poucas ações que chegam até eles são, em geral, consideradas insuficientes. O serviço de distribuição de água não tem garantias quanto à frequência e à qualidade do recurso. Por esses motivos, as falas atribuídas a esse grupo de categorias quase sempre estiveram direcionadas a reinvindicações de direitos, notadamente relacionados ao fornecimento de água e ao esgoto, mas também a melhores condições de trabalho e renda, saúde, mobilidade, infraestruturas e outras.

Apesar dos obstáculos, a maior parte dos ribeirinhos do Furo Grande apontou percepções positivas da comunidade em relação ao projeto. Nos depoimentos, afirma-se que a experiência da UFRA com as tecnologias sociais gerou oportunidades de significativa melhora na qualidade de vida dessa população. No que diz respeito à saúde, os moradores relataram que o uso da água de chuva contribuiu para a diminuição dos casos de doenças como coceiras, alergias, diarreias e verminoses, especialmente entre as crianças.

O uso do SAAC favoreceu o fortalecimento das relações interpessoais entre os moradores da Ilha das Onças. As famílias que o detêm costumam doar com frequência água potável para o abastecimento de outras que ainda não contam com esse sistema. Trata-se de uma prática que garante não só o fortalecimento dos vínculos sociais, como também melhor qualidade de vida para um número maior de pessoas, que passam a ser impactadas indiretamente. O abastecimento de água unifamiliar e próximo à residência evitou deslocamentos, riscos de acidentes e gastos de tempo e dinheiro para a obtenção de água.

O ganho de autonomia, em conjunto com a geração de conforto e comodidade, foi evidenciado em relatos sobre ambos os sistemas. O acesso a uma estrutura segura de banheiro junto à residência foi bem-visto, principalmente pelas mulheres, que demandam maior atenção nos cuidados com a higiene pessoal, em particular nos períodos menstruais. O BER foi associado a vantagens para a maioria das residências que apresentam o sistema implantado.

As narrativas sugerem que, para a maior parte dos moradores locais, as vivências cotidianas, acima de tudo na relação homem-natureza, sofreram alterações significativas ao longo do tempo. As mudanças teriam sido provocadas por novas atividades de uso e ocupação do espaço, que geraram impactos diretos e indiretos no ambiente e na saúde das pessoas. Nesse sentido, a iniciativa da UFRA na comunidade teria contribuído para uma atenuação desses prejuízos. A água, antes quase sempre consumida diretamente do rio (que no decorrer do tempo teve sua qualidade alterada), passou a ser fornecida dentro de casa, a partir de uma nova fonte - a chuva. Os banheiros, quando existentes, direcionavam o esgoto para o rio (também contribuindo para a poluição do corpo hídrico), mas receberam manejo e tratamento para o material orgânico, evitando riscos de patologias.

Entretanto, apesar das vantagens, algumas famílias não conseguiram se beneficiar plenamente das ações do projeto, sobretudo quanto às tecnologias. As práticas frequentes de higiene e as manutenções eventuais exigidas pelos sistemas foram vistas como entraves por algumas pessoas. Em se tratando do BER, em alguns casos o insucesso pode ser associado à preferência de algumas famílias por sistemas convencionais, típicos do ambiente urbano. No que tange ao SAAC, as insatisfações estiveram mais relacionadas com o volume dos reservatórios, que, segundo os usuários, deve ser aumentado em reaplicações futuras.

No geral, essa iniciativa, envolvendo a implementação de tecnologias sociais no Furo Grande, apresenta nuances potencialmente capazes de contribuir com soluções para problemas públicos relativos à escassez e à ineficiência de serviços em saneamento, enfrentados todos os dias por muitas famílias amazônidas. O projeto reuniu o interesse de usuários, acessibilidade e uma eficiência exigida para sua incorporação em políticas públicas voltadas à universalização do acesso à água e ao esgotamento sanitário. De todo modo, é importante não tomar esse modelo como fórmula única para a região. A heterogeneidade social, cultural, climática, geográfica e tantas outras que caracterizam as várias Amazônias fazem com que diferentes soluções sejam possíveis.

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  • 1
    Expressão local que indica a ação de estar flutuando na água.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    17 Ago 2023
  • Aceito
    01 Dez 2023
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