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A história oral e seus lugares

GROSSEYE, J.; STEAD, N.; VAN DER PLAAT, D.. . (org.) Speaking of Buildings: Oral History in Architectural Research. New York: Princeton Architectural Press, 2019.

Sua data de nascimento - cada vez mais disputada - é 1948. Foi naquele ano que o historiador estadunidense Allan Nevins criou um escritório de pesquisa, na Columbia University, devotado à prática de documentação que se valeria dela como instrumento central: a história oral. Método de pesquisa baseado em entrevistas abertas com pessoas que viveram ou testemunharam eventos com significado histórico, desde então a história oral transformou-se e aperfeiçoou-se a tal ponto que a herança de Nevins (baseada na premissa de registrar testemunhos no presente para arquivamento e uso de pesquisadores no futuro) é uma dentre as muitas das raízes que a alimentam.

Aprimorado com a contribuição oferecida por saberes oriundos de diferentes campos disciplinares - a História, a Arquivologia, as Ciências Sociais, a Comunicação, os Estudos Culturais, a Psicologia Social -, o método da história oral também se espraiou para uma miríade de áreas, em abordagens que podem ou não tangenciar aquelas dos estudos históricos e sociológicos, que tradicionalmente o empregaram. Nas últimas duas décadas, volumes sobre o uso da história oral nas artes visuais, na educação física, na educação matemática, no serviço social, na saúde, entre outros, têm renovado um fenômeno que parece inevitável: o cíclico redescobrimento da história oral e sua aclamação como uma novidade bem-vinda, e potencialmente transformadora, para cada uma dessas áreas.

Somente até o ano de 2019 a arquitetura esteve imune a essa dinâmica: o livro Speaking of Buildings: Oral History in Architectural ResearchGROSSEYE, J.; STEAD, N.; VAN DER PLAAT, D. (org.) Speaking of Buildings: Oral History in Architectural Research. New York: Princeton Architectural Press, 2019., organizado por Janina Gosseye, Naomi Stead e Deborah van der Plaat, vem se unir a títulos desse perfil. Figura entre os melhores dele, demonstrando de maneira arguta a indissociabilidade entre pesquisa empírica e reflexão teórico-metodológica na prática de história oral, e evidenciando a capacidade desse método de promover um enriquecimento epistemológico nos estudos de arquitetura e urbanismo.

Publicado pela Princeton Architectural Press, o livro é composto de doze capítulos divididos em três partes: “Constructing History” [Construindo história]; “Restitution Histories/Disrupting History” [Histórias de restituição/Disrupcionando a história, com a licença do neologismo] e “The Unspoken and the Unspeakable” [O não dito e o indizível]. Os capítulos são abraçados por uma introdução de Janina Gosseye e uma conclusão da lavra das três organizadoras (que também assinam aberturas para cada uma das seções), entrançando os princípios que levaram à publicação, as contribuições de cada capítulo, bem como o debate sobre o potencial e os limites do método na historiografia da arquitetura, delineando assim uma relação íntima e orgânica entre os textos.

Em diálogo com seu próprio tempo - mas também com a retórica que caracteriza boa parte da literatura de história oral desde os anos 1970 -, a publicação visa dar um passo adiante na construção de uma historiografia da arquitetura que não seja “dominada pelas elites, principalmente ocidentais e masculinas”, e enxerga na história oral um modo de oferecer “abordagens, métodos e estratégias para quebrar esse silêncio, para contar histórias diferentes” (p. 10).1 1 Todos os trechos reproduzidos do livro Speaking of Buildings: Oral History in Architectural Research foram traduzidos pelo autor da resenha. Oportunamente, reconhece a si mesma como mais um gesto - e não como um movimento inaugurador - na construção de contranarrativas, em um plantel que incluiria biografias de arquitetas mulheres, trabalhos de micro-história, abordagens das relações entre arquitetos e agentes antes marginalizados, assim como livros baseados em testemunhos, como o canônico Lived-In Architecture, de Philippe Boudon, de 1972, valioso por contrastar a história do conhecido complexo habitacional de Pessac, de Le Corbusier, na cidade francesa de Bordeaux, com a experiência narrada por seus habitantes.

A disposição do livro é justamente esta: a de evidenciar que os produtos do trabalho arquitetural não permanecem congelados ao longo do tempo, e que a historiografia da arquitetura deve abraçar com mais vigor o caráter dinâmico e a projeção no tempo de seus objetos, bem como as vozes e as narrativas geralmente negligenciadas. Ambiciona-se, assim, uma historiografia da arquitetura polivocal, inclusiva e multifacetada - termos e conceitos que permeiam a obra. Expandir “o mapa da história arquitetural e de sua historiografia”, escreve Grosseye (2019)GROSSEYE, J.; STEAD, N.; VAN DER PLAAT, D. (org.) Speaking of Buildings: Oral History in Architectural Research. New York: Princeton Architectural Press, 2019. na introdução, é algo que os pesquisadores podem fazer “reconhecendo que aqueles que usam, ocupam e constroem edifícios possuem um conhecimento espacial singular”; “adotando uma postura mais inclusiva diante dos narradores [...] que transmitem histórias dos, e sobre os, edifícios”; e, antes de mais nada, “ouvindo”. “Conseguir falar de edifícios é uma coisa, ser ouvido é outra” (p. 19).

A primeira parte do livro é composta de quatro ensaios reunidos pela inspiração de construir histórias sobre pessoas, sujeitos e eventos alegadamente ausentes do registro da história da arquitetura. Jesse Adams Stein e Emma Rowden inauguram os textos do livro com um mergulho interessante na história do Centro Correcional Maitland, na Austrália, de especial interesse para os estudiosos dos chamados patrimônios marginais ou difíceis. Elas recuperam os depoimentos registrados em um projeto de história oral sobre a prisão pouco depois de seu fechamento, em 1998, revisitando-os de maneira tão poderosa quanto singela: revelam que, não tendo sido conduzidos com essa preocupação, os depoimentos são ricos em dados sobre os parâmetros arquiteturais da prisão. Como as analistas mostram, algumas das falas emulam quase visitas guiadas à construção: “A primeira coisa que você percebe são os grandes muros de arenito...”, diz um oficial penitenciário cuja narrativa é permeada de referências espaciais, em contraste com sua própria afirmação sobre seu desinteresse em relação à arquitetura da prisão.

Os dois artigos seguintes trazem ao centro da cena historiográfica personagens fundamentais para a realização e para a crítica da arquitetura. Christine Wall desafia o protagonismo do arquiteto na arquitetura moderna, entrevistando empreiteiros e operários da construção civil londrina dos anos 1960 e 1970 que trabalharam em obras brutalistas. “Suas histórias de vida coletivas criam um meio para escrever uma história alternativa da arquitetura - uma que inclui as relações e lutas entre diferentes atores” (p. 72), escreve Wall, em perspectiva ecoada no texto seguinte, sob nova perspectiva. Jessica Kelly discute o papel da história oral no estudo biográfico sobre J. M. Richards, crítico, escritor e editor da revista inglesa The Architectural Review. “Críticos e jornalistas têm sido percebidos como profissões auxiliares” (p. 77), aponta Kelly como um dos motivos para as poucas remissões ao seu personagem, somado à perda de seu arquivo na revista que editou. Tendo iniciado suas entrevistas de maneira exploratória e como estratégia para acessar outros fundos documentais, a autora reposicionou o lugar delas na pesquisa à medida que a “personalidade” de Richards se tornou seu foco de interesse.

Destoando dos textos que lhe fazem companhia nesta primeira parte, o ensaio “Action Archive: Oral History as Performance” [Arquivo Ação: História oral como performance], de Helena Mattson e Meike Schalk, propõe uma revisão do conceito de arquivo: como outros autores e autoras, elas o entendem não como coleção estática de documentos, mas como uma “ferramenta ativa” para a escrita da história. Insatisfeitas com as lacunas dos arquivos oficiais acerca de projetos participativos de regeneração urbana em Estocolmo, Mattson e Schalk criaram o projeto “Action Archive”, baseado em testemunhos abertos, jantares de conversação e discussões públicas - para elas, tais ações configuram-se como “extensões” do formato da entrevista de história oral, em narrações distintas que podem “revelar diferentes comunidades imaginadas e as histórias comuns construídas que reproduzem a identidade de grupo” (p. 109).

A segunda parte do livro erige o argumento de que certas pessoas e grupos não estiveram apenas ausentes da história da arquitetura mais canônica: foram, com efeito, dela intencionalmente excluídos, em razão de classe, raça, gênero e suas intersecções. O sujeito que emerge como protagonista do cânone é o arquiteto homem e branco - e, por esse motivo, afirma-se a necessidade de uma restituição que, por alterar as tais bases, seria disruptiva. Ironicamente, o primeiro artigo, de autoria de Karen Burns, intitulado “Oral History as Activism: The Public Politics of Spoken Memory” [História oral como ativismo: A política pública da memória falada] redimensiona a grandiloquência de afirmações como essa, ao concordar com Despina Stratigakos a respeito de que a lacuna de gênero na historiografia da arquitetura persiste, apesar dos esforços de inúmeros pesquisadores. Obliquamente, Burns sugere que ações públicas de rememoração - como os projetos Parlour e Voices of Experience, da Austrália e da Escócia, respectivamente -, e não pesquisas acadêmicas strictu senso, pressionariam de maneira mais eficaz a memória coletiva.

O artigo seguinte chega a conclusões similares: Sandra Parvu e Alice Sotgia tratam das ações de coletivos ativistas e de antigos moradores do complexo habitacional de Boyle Heights, em Los Angeles, contra sua demolição, em 1996. Nesse caso, a militância dos moradores foi incapaz de impedir a destruição dos prédios modernistas dos anos 1940 e a subsequente expulsão da pobre (e violenta) comunidade mexicano-americana dali, substituída por uma classe média de origem asiática. No entanto, as autoras insistem em que as ações públicas - notadamente, a gravação de entrevistas com moradores e sua disseminação nacional, feita por um coletivo artístico e por uma organização sem fins lucrativos - contribuíram para “ativar um debate crítico sobre o papel do lugar dos residentes na transformação arquitetural e urbana” (p. 136) e para desfazer a percepção pública negativa sobre a comunidade local.

Já em “Taking my place/Talking your place”, Kelly Greenop segue outro caminho. Em sua pesquisa sobre comunidades aborígines nos subúrbios de Brisbane, na Austrália, ela defrontou-se com forte resistência, oriunda de experiências prévias negativas: pesquisas nas quais essas comunidades se sentiram exploradas e prejudicadas, em função das relações de poder nelas presentes. Greenop levanta questões importantes, como as diferentes estratégias de controle sobre sua pesquisa mobilizadas por membros centrais da comunidade e viabilizadas, em certa medida, pela combinação que promoveu entre a história oral e as técnicas de observação participante. Sem negligenciar tais questões, a autora defende a legitimidade e o valor de pesquisas nas quais a identidade do grupo e a identidade do pesquisador não coincidem. “Por meio de histórias orais inspiradoras, outsiders podem alimentar relacionamentos melhores com comunidades e indivíduos e podem continuar trabalhando em busca de objetivos de pesquisa importantes que iluminam as histórias da arquitetura e que levam experiências e vozes indígenas autênticas a uma audiência mais ampla” (p. 169), conclui.

A segunda parte é fechada pelo artigo de Thomas-Bernard Kenniff, que argumenta em favor da compreensão da arquitetura como um campo dialógico, caracterizado por vozes múltiplas, por intersubjetividade, por “encontros situados que desafiam os modos como as histórias da arquitetura são construídas” (p. 174) - e, consequentemente, da compreensão do saber arquitetônico como um tipo de conhecimento gerado pelo diálogo. Trazendo à cena dois projetos de regeneração urbana - um em Londres, outro em Toronto - de que participou, Kenniff chega a uma conclusão singela, mas ainda assim metodologicamente significativa para a comunidade de referência do livro: um projeto arquitetônico é construído por uma polifonia de vozes, a ser desejavelmente recuperada também na construção de sua narrativa.

A terceira e última parte do livro reúne quatro ensaios que - por uma ironia própria ao método - lidam com o silêncio, com a omissão, com o indizível. Atenta à fala, a história oral também desenvolveu formas específicas (distintas daquelas da historiografia tradicional ou de recursos como os da análise de discurso) de lidar com seus diferentes modos de se ausentar: pessoais, grupais institucionais; deliberadas, involuntárias; biológicas, psicológicas, culturais; permutadas por invenções, mitos, meias-verdades.

Apontando para a insuficiência dos dados demográficos no estudo da migração e do refúgio, Ceren Kürüm discorre sobre seu trabalho com mulheres do Chipre rural, as quais, desde a invasão turca, tiveram que abandonar e recriar seus lares, continuamente, em uma situação de abrigo temporário caracteristicamente permanente. A autora somou entrevistas de história oral à sua pesquisa de documentação fotográfica e desenhística das práticas espaciais de refugiadas. Kürüm demandou-lhes rememorar suas experiências de deslocamento forçado, defrontando-se com uma barreira inesperada. Todas iniciavam a conversa perguntando, e não respondendo; elas queriam saber sobre seu estado civil. Kürüm faz uma análise de cunho sociológico interessante sobre os efeitos de sua condição de mulher solteira sobre as falas - relutantes e compactas - de suas narradoras.

Outra ordem de imprevisto aparece no trabalho de Ashley Paine: ele procurou o prestigiado arquiteto suíço Mario Botta para uma entrevista que foi marcada, adiada, cancelada e posteriormente substituída por um breve relato escrito. Ainda que sem grande fôlego especulativo, Paine entende que a situação consistiu em uma oportunidade de renovar suas perguntas de pesquisa, que passaram a girar em torno dos silêncios de Botta em uma situação de não interação.

Igea Troiani, no texto subsequente, obtém melhor êxito teórico ao discutir a presença do rumor e da fofoca - elementos a que se acede por meio de entrevistas informais, off the record - na construção de histórias alternativas críticas. Remetendo aos próprios trabalhos monográficos sobre a história da arquitetura moderna, Troiani valoriza a qualidade do rumor e da fofoca como fontes de informação que se contrapõem a narrativas de arquitetos heroicos e de projetos de sucesso; que permitem expor práticas ou performances socialmente deploradas, como as ameaças e as formações de grupos; que ajudam a compreender como as redes sociais de um arquiteto impactam sua carreira. Trata-se, sem dúvida, de uma perspectiva polêmica, além de uma forma curiosa de encaminhar a finalização de um livro devotado a um tipo de entrevista conglutinado a práticas de registro e arquivamento bastante estreitas.

Talvez estejamos diante, de fato, de uma composição anticlimática, interpretação que o último artigo do livro fortalece. “When Subjects Cry” [Quando os sujeitos choram], de Andrea J. Merrett, sucede textos que - em sua maioria - endossam o argumento do uso da história oral na historiografia da arquitetura, demonstrando, sob uma perspectiva que não dissocia empiria e teoria, o enriquecimento da última com as fontes geradas pela primeira. A contribuição de Merrett posiciona-se um degrau abaixo, dotando-se das falhas comuns de outras áreas, nas já comentadas situações de redescobrimento cíclico da história oral como método de pesquisa. No fervor de sua própria descoberta, Merrret oferece uma reprise tardia de um enquadramento metodológico já repisado no âmbito da história oral: “O sujeito que chora lembra o pesquisador das complexidades emocionais, psicológicas e encarnadas de um indivíduo, complexidades que não podem ser suavizadas, nem nas próprias narrativas nem no relato final do historiador”. O argumento é apropriado, mas sobressai a desproporcionalidade entre a grandeza da afirmação e a fraqueza na abordagem teórica do tema - em nada distando da mais consolidada literatura de história oral.

Afortunadamente, o texto final das organizadoras - “Ways to Listen Anew: What Next for Oral History and Architecture? [Novas formas de ouvir: O que está por vir para a história oral e a arquitetura?]” -, na verdade uma enriquecedora conversa a três vozes, retoma a trilha do livro: uma discussão metodológica, não metodologista, que se volta à história oral como possibilidade de expansão para a historiografia da arquitetura e examina alguns de seus desafios técnicos, teóricos e epistemológicos, atinentes ao seu desejado enraizamento na prática historiadora no campo da arquitetura. De forma mais interessante, as organizadoras confirmam, nesse livro diverso, o caráter mobilizador da história oral no disparo de reflexões que estão para além dela própria - a história oral como uma bússola, como um laboratório epistemológico, de acordo com as palavras de Marieta de Moraes Ferreira. As outras possibilidades de alcançar a alteridade e a polifonia na construção do saber, o caráter eminentemente público do conhecimento e as intersecções entre ação, reflexão e política são alguns dos temas da conversa sobre um livro de conversas que, espera-se, seja capaz de ressoar para todos aqueles que investigam e que constroem os espaços onde se vive.

Referência

  • GROSSEYE, J.; STEAD, N.; VAN DER PLAAT, D. (org.) Speaking of Buildings: Oral History in Architectural Research. New York: Princeton Architectural Press, 2019.
  • 1
    Todos os trechos reproduzidos do livro Speaking of Buildings: Oral History in Architectural Research foram traduzidos pelo autor da resenha.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Out 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    06 Abr 2020
  • Aceito
    24 Jun 2020
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