Open-access A percepção de idosos sobre sofrimentos ligados à sua fragilização

Resumo

Objetivo:  Compreender como a pessoa idosa percebe aspectos subjetivos ligados a sofrimentos atuais e outros experimentados ao longo da vida e que se remetem ao processo de fragilização.

Método:  Estudo qualitativo, ancorado na Antropologia interpretativa. Foram selecionados idosos participantes no banco de dados da Rede FIBRA - entre aqueles classificados como robustos ou pré-frágeis em 2009, no polo Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, segundo o referencial do fenótipo de fragilidade de Fried et al. Foram entrevistados 15 idosos, de diferentes sexos, idades, renda, religião, condição funcional. Foi utilizado o modelo de análise “Signos, significados e ações que possibilitam a compreensão dos elementos significativos para uma população ler uma determinada situação e se posicionar diante dela”.

Resultados:  Da análise emergiram as categorias: a) o sofrimento ao longo da vida e b) adoecimentos e os recursos para lidar com eles.

Conclusão:  Os entrevistados narram sofrimentos de diferentes aspectos que constituem a sua vida, do nascer ao envelhecer, conforme experiências que significam dores, perdas, aprendizado. A percepção de fragilização atual remete à história de vida marcada por sofrimentos físicos e/ou mentais, insidiosos ou pontuais - bem como aos adoecimentos, como se manifestam hoje, e à falta de recursos financeiros e de segurança urbana. As narrativas nos aproximam da percepção da fragilidade como sendo constitutiva do ser humano - que pode facilmente trincar.

Palavras-chave: Idoso Fragilizado; Percepção; Fragilidade; Antropologia Médica.

Abstract

Objective:  To understand how elderly persons perceive subjective aspects linked to current and other life experiences related to the process of becoming frail.

Method:  A qualitative study, anchored in interpretative anthropology, was performed. The elderly were selected from the FIBRA Network database from those classified as robust or pre-frail, according to the frailty phenotype of Fried et al., in Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil in 2009. We interviewed 15 elderly people of different genders, ages, income, religion and functional status, in 2016. In data collection and analysis, the "signs, meanings and actions" analysis model was used, which allows the understanding of the elements that are significant for a population to read a given situation and to position themselves in relation to it.

Results:  From the analysis the following categories emerged: a) suffering throughout life and b) suffering and the resources to deal with them.

Conclusion:  The interviewees described sufferings of different aspects that constitute their life, from birth to aging, according to experiences related to pain, loss and learning. The perception of current frailty refers to their life history, marked by physical or mental suffering, whether insidious or temporary - as well as illnesses, how they manifest themselves today, and a lack of financial resources and urban security. The narratives bring us closer to the perception of frailty as being constitutive of human beings, who can easily break.

Keywords: Frail Elderly; Perception; Fragility; Medical Anthropology.

INTRODUÇÃO

A fragilidade é um estado clínico no qual há um aumento na vulnerabilidade do indivíduo para a dependência ou a mortalidade diante de um evento estressor1. Vários grupos de pesquisadores chegaram ao consenso de que essa síndrome médica multifatorial pode ser potencialmente rastreada, prevenida ou tratada com ações específicas; e que todos os indivíduos maiores de 70 anos e/ou com perda involuntária de peso devem ser investigados.

Um grande marco conceitual é o fenótipo de fragilidade proposto por Fried et al.2, baseado em cinco critérios: perda de peso não intencional, exaustão autorreportada, fraqueza física, redução na velocidade de caminhada, baixa atividade física. A presença de três ou mais critérios configura a fragilidade; 1 ou 2, a pré-fragilidade e a ausência de todos define uma pessoa robusta. De acordo com a literatura, a prevalência da síndrome é maior entre as mulheres e aumenta com a idade - variando de 2,5% entre idosos na faixa etária entre 60 e 70 anos, e mais de 30% entre os idosos octogenários1. No Brasil, baseado nos mesmos critérios, foi desenhado um estudo epidemiológico de caráter transversal, multidisciplinar e multicêntrico para investigar o perfil e a prevalência dessa síndrome em idosos e seus fatores associados - a Rede de Estudo sobre Fragilidade em Idosos Brasileiros (rede FIBRA, composta por quatro polos: Universidade Federal de Minas Gerais, Universidade de Campinas, Universidade de São Paulo-Ribeirão Preto e Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Entre os idosos belorizontinos, foi encontrada uma prevalência de fragilidade de 8,7%3.

Quando investigado em sua esfera física, os estudos de enfoque marcadamente biomédico e positivista descrevem o processo de fragilização, embora dinâmico, usualmente segue uma lógica unidirecional: do estágio robusto, passando pelo pré-frágil, e culminando no frágil. Uma melhor compreensão sobre como ocorrem essas transições poderia favorecer o cuidado, a prevenção e a intervenção4.

Na busca de uma compreensão mais ampla sobre o que compõe a fragilização de uma pessoa idosa, faz-se necessário uma abordagem que possibilite uma aproximação de outras questões: culturais, psíquicas e sociais, inter-relacionadas e variáveis de indivíduo para indivíduo5, que incluam questões subjetivas sobre a saúde, a doença e os incômodos que as pessoas vivenciam ao longo da vida.

A experiência de fragilidade engloba também uma perspectiva existencial, em que o indivíduo sofre ao se deparar com a própria finitude6, diante das contingências da vida. Reconhecendo-se a importância dos determinantes sociais no modo como as pessoas envelhecem7 - e considerando que as desordens, sejam elas orgânicas ou psicológicas, somente são acessíveis por meio da mediação cultural8.

O presente trabalho objetiva compreender como a pessoa idosa percebe aspectos subjetivos ligados a sofrimentos atuais e outros experimentados ao longo da vida que remetem ao processo de fragilização.

MÉTODO

Esta abordagem qualitativa, ancorada na Antropologia Interpretativa, assume a cultura enquanto uma constelação de significados que se torna o mapa a partir do qual as pessoas de um grupo leem cada situação da vida9. Essa compreensão permitiu distinguir entre “doença processo” (disease) - o processo biológico de adoecimento - e “doença experiência” (illness), que corresponde a uma construção cultural local, a qual cada pessoa em questão atribui sentidos próprios10. Ademais é preciso considerar que o conjunto de valores e práticas que configuram o saber biomédico pode divergir do conjunto de valores e práticas que constitui a cultura popular local, inclusive a experiência de vida no mundo dos usuários dos serviços11.

Em 2009, os 601 idosos participantes da Rede FIBRA-Polo Belo Horizonte foram avaliados e classificados em robustos, pré-frágeis ou frágeis, segundo os critérios do fenótipo de fragilidade de Fried et al.2. Contudo, após 24 meses de seguimento, foram reavaliados todos os 40 idosos considerados frágeis na linha de base4. Dezoito deles (45%) haviam falecido ou apresentavam processos demenciais, bem como a piora da fragilidade física que inviabilizava a realização de entrevistas. Por isso, para o presente trabalho, executado seis anos após a coleta inicial, foram convidados apenas aqueles classificados como robustos ou pré-frágeis, uma vez que o grupo de idosos considerados frágeis muito provavelmente já não mais estaria elegível para entrevistas.

A escolha da Rede FIBRA deveu-se à possibilidade de acesso a um grupo de idosos já investigados sobre o tema. Porém, uma vez que o escopo da pesquisa adentrava a esfera subjetiva desse processo de fragilização, a metodologia utilizada foi diversa daquela do FIBRA - baseado em medições objetivas físicas. Os idosos identificados como pré-frágeis e robustos foram selecionados aleatoriamente na lista dos participantes da rede FIBRA. Para garantir a heterogeneidade dos participantes, foram incluídas pessoas de diferentes sexos, idades, renda, religião, condição funcional e local de moradia em regiões da cidade de níveis de Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) díspares12. Não foram elegíveis para o estudo aqueles que apresentaram sequelas graves ou algum outro motivo que os incapacitassem para responder ou participar de uma entrevista.

Todos foram contatados por telefone e agendada entrevista no domicílio. Informados sobre o estudo e, após ciência e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, foram entrevistados presencialmente. O critério de saturação regulou o tamanho da amostra13.

Nas entrevistas, não foram apresentados e/ou explicitados aos idosos quaisquer conceitos de fragilidade, visto que buscava-se compreender a percepção dos participantes sobre esse fenômeno e identificar nos relatos de experiências das pessoas se elas, de algum modo, coincidiam ou não com os critérios propostos no fenótipo de fragilidade de Fried et al.2. Todos os idosos foram incentivados a falar sobre a vida e sobre si, mais especificamente sobre suas condições de saúde, sobre quais são seus incômodos e como fazem para lidar com eles.

A coleta e análise dos dados foram fundamentadas no modelo de “Signos, significados e ações”9 que possibilita a compreensão dos elementos significativos para uma população ler uma determinada situação e se posicionar diante dela. Essa metodologia parte da pragmática, observando os comportamentos dos atores sociais, o que possibilita conhecer as formas de interpretação de uma situação concreta. Os relatos permitem reconstruir os comportamentos, os significados dados a eles e a práticas assumidas a partir disso9. A interpretação busca identificar as configurações centrais semiológicas, em uma intertextualidade, a partir da leitura das narrativas pessoais no contexto das grandes narrativas culturais9. Esse modelo permite maior sistematização dos diferentes elementos do contexto (dinâmica social, códigos culturais centrais, conceito de pessoa, etc.) que intervêm efetivamente na identificação do que é problemático, na decisão de tratar ou não um problema e na escolha do terapeuta apropriado9. Nesta perspectiva, deixa-se o objeto reificado da medicina - a doença - e entra, em seu lugar, o sujeito, considerado como cidadão de direito e capaz de reflexividade, bem como escolha acerca dos modos de levar a vida10.

Todas as entrevistas foram gravadas, transcritas, cuidadosamente lidas e relidas e feita uma categorização das narrativas.

Esta pesquisa é parte do projeto “Fragilidade em idosos: percepções, mediação cultural, enfrentamento e cuidado”, aprovado pelo Comitê de Ética do Instituto René Rachou/Fiocruz (CAE: 49173415.8.0000.5091).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Foram entrevistados 15 idosos (69 a 86 anos), sendo duas, também cuidadoras de seus maridos incapacitados.

Emergiram da análise, duas categorias: O sofrimento ao longo do curso da vida; O adoecimento e a falta de recursos.

O sofrimento ao longo do curso da vida

Nesta categoria, os entrevistados relataram sofrimentos advindos de eventos pessoais e familiares que ocorreram de forma abrupta ou insidiosa ao longo da vida. Uma entrevistada narra a sua experiência de ruptura com a realidade que resultou na sua aposentadoria precoce e no estigma que carrega até hoje:

“Quando tinha 30 anos e tive minha terceira filha, (...) eu saí do ar, (...) de tanta coisa que eu sofri, e na época que eu tava fazendo mestrado fora, (...) Depois quando eu voltei, tinham me aposentado.” (...) “Eu sofri muito bullying pela vida afora, na vida acadêmica então, você não imagina.”; “o preconceito é muito grande, o estigma é muito grande, todo mundo te chama doida. Eu sofri muito com isso" (E8, F, 72).

Para Graham et al.14, o estigma deriva de um processo por meio do qual certos indivíduos e grupos de pessoas são impelidos a se sentir envergonhados, excluídos, discriminados. A maneira como a pessoa que passou por uma crise, um surto psiquiátrico, é rotulada traz uma série de sofrimentos que chegam de várias formas, limitando as possibilidades de viver confortavelmente diante de si e do outro15. Se a crise e o surto podem ser resultantes de um processo de pressões sociais, em um contexto individual específico, os tratamentos médico e psicoterápico podem trazer bons resultados. Porém, eles não devem em nenhuma hipótese acrescentar outros sofrimentos advindos do reforço à estigmatização e/ou iatrogenias oriundas de olhares normatizadores - sofrimento tão ou mais doloroso do que a condição psiquiátrica em si (doença processo).

Segundo Cabral16, há contextos em que sofrimentos de diferentes naturezas se repetem e continuam, passando a fazer parte do dia a dia, de forma que ficam muito difíceis de digerir. Trata-se de um excesso de informações que mobilizam toda a pessoa e não encontram escoamento ou elaboração, imobilizando as possibilidades criativas. Isso gera estados que comportam sentimentos de impotência para lidar com um cotidiano sufocante. Por sua vez, os familiares de quem porta algo como uma “doença mental” mostram sentimentos como vergonha e constrangimento, tristeza e piedade diante da pessoa; e medo de que a pessoa apresente comportamentos agressivos17. O estigma está presente na sociedade, na própria família, e a pessoa mesma pode introjetá-lo. Uma pessoa considerada “doente” pode ser malvista ou apontada como estando em crise, devido a um comportamento que, se estivesse presente - exatamente igual - em outra pessoa, considerada “normal”, não seria visto como problemático. Ferreira et al.18 enfatizam que o estigma internalizado traz repercussões negativas na saúde - a pessoa se autodiscrimina, autorrecrimina, sente-se culpada por ter tido a crise, ou por “ser assim”.

Perdas de familiares e outros eventos - identificados pelos entrevistados como sofrimentos agudos que persistem até o presente - incluíram o afastamento dos pais na infância, a morte de um filho e a viuvez. Este senhor narra perdas na infância decorrentes do adoecimento de sua mãe - em uma época em que não havia recursos para tratar a tuberculose:

“(...) sofri de uma mãe e de um pai, que em 1947, com sete filhos, (...) distribuiu os filhos, porque minha mãe ficou tuberculosa. (...) Então eu saí de casa, com cinco anos, e não voltei mais (...) Eu fui me tornando uma pessoa muito dependente." (E12, M, 74).

As dificuldades foram muitas: mudança da zona rural para Belo Horizonte, falta de moradia, restrições alimentares devido à carência de recursos, doenças - “manchas nos pulmões” (ele nunca foi tabagista); toxoplasmose, tendo perdido 50% da visão em um olho, e 90% em outro, o que levou a sua aposentadoria precoce aos 40 anos, por recomendação médica. O processo existencial desse homem pode ser compreendido como uma sucessão de sofrimentos, em conformidade com o que Kleinman19 descreve como “a dor de viver” - uma vida onde a dor é um pano de fundo e/ou primeiro plano constantes, o que acontece em pacientes crônicos.

Dentre os sofrimentos decorrentes de perdas de pessoas muito significativas, duas senhoras enfatizam a morte de um filho e a viuvez:

“Assim que ele saiu da igreja, (...) ele falou: hum, meu braço tá doendo. Aí falou, deixa eu sentar aqui, (...) quando ele fez assim, caiu pra trás, morreu. Aí, menino... ah, este pedacinho, não vou te contar o resto mais não.” (E1, F, 83 anos).

“Porque eu perdi meu marido... eu morava no interior, então, eu (fiquei) muito nervosa, porque ia ficar sem o meu marido e meus filhos, porque os três moram aqui. Então meu filho disse; ‘não mamãe, a senhora não vai ficar sozinha, a senhora vai morar com um de nós, em Belo Horizonte’, então eu vim, morei... quatro anos com meu outro filho... e com ela já estou há mais tempo”. (E2,F, 83 anos).

Mudanças nos papéis e arranjos familiares relacionam-se com o processo de fragilização. O estado conjugal de viuvez pode contribuir para o começo da fragilidade, especialmente para homens, bem como dar origem a novos arranjos familiares20. No Brasil, observa-se o aumento do número de domicílios multigeracionais: mais por necessidade dos mais novos, que ainda dependem financeiramente dos idosos. Contudo, a noção de reciprocidade de cuidados entre pais e filhos, ou avós e netos, e a expectativa de cuidado dos idosos por parte desses membros da família pode não se confirmar na velhice21.

Assim, outra condição relacionada ao processo de fragilização foi o ato de cuidar de idosos dependentes. Em razão da necessidade de cuidados, uma pessoa idosa pode ser levada a habitar com um dos filhos, geralmente uma filha. Uma mulher que cuida da mãe com muito carinho esclarece:

“Mas família não é a que a gente quer, é a que a gente tem. (...) você tem que conviver, mas não toca no assunto, não tenta consertar, porque isso não tem jeito, é assim.” (...) Mas a minha mãe sofre com isso (...).” (E5, F cuidadora E2,83).

Enquanto esta mulher expressa o seu sofrimento traduzido em sentimentos de ressentimento e raiva do “marido cuidado”:

“Eu me ofusco, pra olhar o meu marido. (...) parei de fazer minhas atividades físicas, de sair, de dançar, parei de tudo - por causa de meu marido. (...) Meu digníssimo esposo, porque ele teve enfarto, é diabético, (...) Não é, senhor? (...) Eu cuido de você direitinho, né? (E10, F, 72).

Ao longo da entrevista, ela deixa claro que precisa “cuidar” de quem não ama e culpa o esposo pelas infelicidades - dela e dele - de forma repetitiva e torturante. O marido não tem o que fazer, a não ser escutar uma fala raivosa: está de tal forma fragilizado, que em um certo sentido encontra-se indefeso também diante da esposa. O clima relacional é angustiante, o desamor exala pelas expressões verbais e não verbais do casal. O ambiente físico, um apartamento pequeno, está cheio com a presença de dois filhos, a nora e vários netos adolescentes. O conflito conjugal transborda.

No caso específico de idosos cuidadores, inseridos em contextos de alta vulnerabilidade, as condições para o cuidado são ainda mais críticas, pois a falta de suporte social e de políticas de cuidado institucionais afetam a coesão social e a habilidade das famílias de responderem a situações adversas. Esses contextos podem fragilizar ainda mais a saúde dos cuidadores, além de comprometer a qualidade de vida de todos envolvidos1.

Na velhice, conflitos familiares ganham visibilidade, são expostos, desnudados. A família, enquanto um sistema interativo complexo, demanda acomodações constantes, a depender de situações estressoras externas e de modificações nos padrões internos de relacionamento22. Na família, a realidade é definida por uma história que vem sendo contada desde sempre, transmitida de geração em geração - constituída pela linguagem, modificada socialmente, e repassada membro-a-membro, como um processo narração oral e gestual, verbal e não-verbal. Cada grupo familiar cria sua mitologia, que se constitui como regras para a vida, pautas existenciais seguidas por cada membro, sem que se tenha clara consciência de que as está seguindo. Uma pessoa, naquele contexto, pode - a partir de suas reflexões - seguir as pautas e/ou construir caminhos próprios, com maior ou menor liberdade para isso22. Em cada família, a fragilidade na velhice transborda como um desfecho de toda a construção pessoal, inserida na narrativa familiar particular que se assenta em um contexto cultural comum.

Adoecimentos e a falta de recursos

Nesta categoria, os entrevistados identificaram diversos tipos de doenças que atravessam as narrativas (artrose, câncer, doenças do coração, hipertensão arterial, Alzheimer, baixa de visão e audição, quedas, dores, entre outras) e como a presença ou a falta de recursos influi em seu processo.

Este homem reconhece que sua saúde física é boa, mas é portador de uma doença psicológica:

“Agora, existem doenças que são psicológicas, como eu tenho, por exemplo, eu sou vítima, por exemplo, de vez em quando eu tenho uma tristeza profunda, falta alguma coisa." (E12, M, 74).

Outras doenças crônicas são relatadas por um homem e uma mulher:

"A saúde tá... mais ou menos... Eu trato uma leucemia mielosa crônica, tá sob controle, sabe comé que é? Já fiz cirurgia de próstata... Já tá... tudo dentro das medidas... Faço tratamento né... Mas tá sob controle... Todas elas... é isso aí..." (E4,M,69).

"Tenho 74 anos, e já tive internada três vezes por problema de coração. (...) (...) fui desenganada, e tal, mas... a gente não vai antes da hora." (E11,F,74).

A presença de comorbidades e a fragilidade são entidades sabidamente relacionadas4 e devem ser colocadas em destaque no cuidado à saúde do idoso. Porém, nestes excertos, os entrevistados discorrem sobre como a falta de recursos compromete esse cuidado:

“... a gente tá pagando tudo muito caro, com o mesmo salário. (...) tenho netos, filhos, tenho filha que tá desempregada já há oito meses, esse meu irmão não trabalha [mora com ela, portador de sofrimento mental]. O salário é só o meu. E eu ainda ajudo a minha neta, que mora em São Paulo, que paga aluguel (...). E ajudo a outra que mora perto (...) tô com conta de luz atrasadas, conta de água atrasada. " (E11, F, 74).

“É assim, tá difícil. Não posso pagar uma pessoa pra me ajudar (a cuidar do marido com Alzheimer). Ganho um salário. O que me ajuda é meus biscates. Mas fixo mesmo, só nosso salário. “(E1, F, 83).

Verifica-se, em todas as entrevistas que, para lidar com os sofrimentos e as limitações que remetem à fragilização, a categoria recursos materiais é fundamental como base de sustentação para garantir os cuidados. Uma mulher explica assim o sofrimento por não ter recursos para proporcionar mais conforto ao marido ou a si mesma:

"Tá encostado, tá doente. Tá aí" (...) há uns dois anos na cama. (...) Eu cuido dele também. Os meninos me ajudam a cuidar dele (...) eu não tava aguentando comprar fraldas pra ele, e eu fui na Defensoria Pública e consegui, e consegui alimentação - alimentação não, suplementos, luvas e lenço umedecido. (...) Eu quero correr atrás, porque não aguento mais lavar roupa de cama. (...) tem dia que ele tá bom, tem dia que não tá,... vamos levando, é isto.” (E1, F, 83).

No universo pesquisado, revela-se ausência de recursos materiais, emocionais e sociais para fazer frente a cuidados crônicos é um tema que merece vários estudos e demanda soluções, o que se harmoniza com as conclusões de Giacomin e Firmo23: torna-se urgente a necessidade da proposição e implementação de uma política de cuidados prolongados ao idoso no Brasil.

Além disso, a concepção idealizada de que o idoso deveria ser capaz de preservar sua saúde, culpabilizando-o pela própria fragilidade como se fosse um “fracasso”, revela-se um cruel corolário da visão de que envelhecimento se equipara a adoecimento. Ao mesmo tempo em que a ideologia de “construir-se por si mesmo” desresponsabiliza a família, o Estado e a sociedade de propiciarem condições favoráveis ao cuidado e à proteção na velhice23. A culpabilização pela doença, a partir de uma visão normativa, caracteriza em parte a abordagem biomédica - que busca proporcionar uma forma de atenção e tratamento, mas pode se tornar uma forma de violência e coerção, o que se depreende também da pesquisa de Moraes et al.24.

Dois idosos enfatizam que modificaram suas atividades cotidianas em razão da falta de segurança na cidade:

“Deslocar na cidade sem carro, enfrentando ônibus, pessoas indiscretas na rua, já seria um risco à saúde, à própria saúde, então eu decidi parar. (...) você não pode ficar na rua (...). Então, procuro levar uma vida mais quieta (...) (E12,M,74).

"A vida fora de casa é diferente da vida dentro de casa - é onde a gente fica mais em casa do que sair, e não é bom" (E10,F,72).

Os entrevistados percebem a cidade como fonte de riscos. A falta de recursos financeiros e de segurança urbana foram apontadas como fonte de desconfortos que dificultam uma boa qualidade de vida e compromete a saúde dos indivíduos, o que corrobora o estudo de Danielewicz et al.25.

Os entrevistados não utilizaram em nenhum momento os termos fragilidade”, “frágil” ou “fragilização”. Eles falam de um mundo próprio, o mundo experiencial, que se constitui como uma realidade antropológica - histórica, social, psíquica, do ser humano idoso. Se tomado como referência o fenótipo de fragilidade proposto por Fried et al.2, os idosos enfatizaram apenas dois, entre os cinco critérios propostos: os aspectos da mobilidade e de perda de energia - que vem traduzida como “falta de ânimo”, como nestes excertos:

"Eu venho percebendo, uma queda, uma... ao longo dos anos, vem tendo uma perda de, de atividade, cada dia mais. Cada ano mais do que o outro, uma atividade física, tem mais limitação (...). Tinha mais facilidade de locomover. Porque, vai chegando na idade que eu estou, acho que o meu equilíbrio não está tanto igual naquela época. Não sei se é por causa dos desgastes.” (E10,F,72).

"Eu tava muito assim, abatida. Mas não, agora eu tô me sentindo melhor (...). Eu tava muito pra baixo”. (E2, F, 83)

A marcação da passagem do tempo corresponderia um processo “natural” de fragilização que se confunde com a velhice, quase sempre associada à doença e enfraquecimento, ideias que fazem parte do imaginário histórico ocidental23,24. Embora admitam que haja “doenças de velho”, ao narrar suas dificuldades para compreender porque certas doenças não têm tratamento medicamentoso, explicita-se uma insuficiência do instrumental farmacológico e biomédico para resolver a experiência de adoecimento e de tristeza de pessoas idosas. A dor que a medicina não cura pode também ser compreendida como “dor de viver”19, e a característica de fragilidade - o ser humano e sua “essência de vidro”6.

Moraes et al.24 confirmam que os idosos percebem o saber biomédico também como faltoso, como um saber que medica, prescreve, mas não valoriza a experiência da pessoa. Portanto, não cuida de fato, pois não dá conta do sofrimento que escapa aos diagnósticos e protocolos de tratamento, além de naturalizar o adoecimento como sendo sinônimo de velhice. Kleinman19 explicita esse distanciamento entre biomedicina e vida cotidiana do “paciente”. Os contextos entre academia médica e vida local do idoso são mundos distintos, assim como são distintas a percepção sobre saúde e doença em diferentes culturas.

O sofrimento atravessa o viver, na história de cada pessoa, em cada etapa da vida. Contudo, somente quando se é escutado e compreendido, em atitude de estar ao lado19, é possível buscar estratégias para lidar com os incômodos e tentar, se possível, superá-los.

CONCLUSÃO

Embora não seja possível alcançar um conceito unívoco de fragilidade, os entrevistados narram sofrimentos de diferentes aspectos que constituem a sua vida, do nascer ao envelhecer, conforme experiências que significam dores, perdas, aprendizado. A percepção de fragilização atual remete à história de vida, marcada por sofrimentos físicos e/ou mentais, insidiosos ou pontuais - bem como aos adoecimentos, como se manifestam hoje, e à falta de recursos financeiros e de segurança urbana.

As narrativas nos aproximam da percepção da fragilidade como sendo constitutiva do ser humano - que pode facilmente trincar. No envelhecimento, cresce a percepção de si mesmo como frágil - ainda que a fragilidade sempre se faça presente desde o nascimento. Ao sentir-se portador de uma “natureza que pode se estilhaçar, cresce a consciência da importância de se cuidar e abre-se a possibilidade de se realizarem sínteses mais abrangentes da própria vida.

A escuta cuidadosa da experiência do idoso possibilita que as estratégias de cuidado e promoção da saúde tornem-se mais respeitosas e eficazes garantindo uma maior adesão às propostas de fomento de boa qualidade de vida. Neste sentido, fica patente a importância de construir recursos educacionais na formação dos profissionais de saúde, de apoio às famílias, e de inserção em manifestações culturais - a nível social amplo - com a otimização de recursos que contribuam para uma visão mais real, humanizada e ampliada da pessoa idosa, com sua riqueza e potenciais criativos - a fim de que a qualidade de vida da pessoa envelhecida melhore.

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  • Financiamento da pesquisa:
    Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG) (APQ-00703-17), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Bolsa de produtividade - 303372/2014-1.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    08 Ago 2017
  • Revisado
    18 Nov 2018
  • Aceito
    08 Fev 2018
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