Acessibilidade / Reportar erro

Doença de Creutzfeltd-Jakob esporádica sem demência: relato de caso

Resumo

A doença de Creutzfeldt-Jakob é uma condição rara causada por príons. Embora a forma mais notória da doença seja a infecciosa, a forma mais comum é a chamada esporádica, onde ocorre a transformação de proteínas citoplasmáticas das células gliais em príons. Caracteriza-se por uma demência rapidamente progressiva cujo diagnóstico pode ser feito com grande precisão por meio de sinais clínicos, alterações típicas na ressonância magnética de crânio e o exame Real-Time Quaking-Induced Conversion (Rt-QuIC) no líquido cefalorraquidiano. Relatamos um caso da doença sem distúrbios cognitivos, mas com outros sinais clínicos comuns como anormalidades comportamentais, ataxia, reações extrapiramidais e mioclonia; observamos ainda alterações típicas na ressonância magnética do crânio (alterações de sinal afetando áreas dos lobos parietal e temporal) e um Rt-QuIC fortemente positivo. Entendemos que o relato do caso possa servir de alerta para que outros profissionais de saúde possam reconhecer a doença, aumentando as possibilidades de um diagnóstico mais preciso em casos semelhantes.

Palavras-Chave:
Doença de Creutzfeldt-Jakob; Síndrome de Creutzfeldt-Jakob; Doença por Príons; Relato de Caso

Abstract

Creutzfeldt-Jakob disease is a rare condition caused by prions. Although the infectious form of the disease is the most well-known, the most common form is the so-called sporadic type, where the transformation of cytoplasmic proteins from glial cells into prions occurs. The disease is characterized by rapidly progressive dementia whose diagnosis can be made with great accuracy based on clinical signs, typical changes on magnetic resonance imaging and real-time quaking-induced conversion (Rt-QuIC) testing in cerebrospinal fluid. We report a case of the disease without cognitive disorders in the initial phase, but with other common clinical signs including behavioral abnormalities, ataxia, extrapyramidal features, and myoclonus; typical changes on magnetic resonance imaging of the skull (signal alterations affecting parietal and temporal lobes areas) and strongly positive Rt-QuIC test. This case report can serve to alert other health professionals on recognizing the disease and contribute to a more accurate diagnosis in similar cases.

Keywords
Creutzfeldt-Jakob Disease; Creutzfeldt-Jakob Syndrome; Prion Disease; Case report

INTRODUÇÃO

Doença priônica é uma enfermidade neurodegenerativa intratável, fatal e rapidamente progressiva. Fazer um diagnóstico confiável da doença por príon pode ser desafiador porque ela é raramente encontrada e possui muitos mimetizadores clínicos11 Carneiro AAM, Esmeraldo MA, E Silva DE de L, Ribeiro EML. Creutzfeldt-Jakob disease: literature review based on three case reports. Vol. 16, Dementia e Neuropsychologia. Associacao Arquivos de Neuro-Psiquiatria; 2022. p. 367–72.. Dentre as doenças por príons, a Doença de Creutzfeldt-Jakob (DCJ) tem maior relevância.

Descrito pela primeira vez em 1920 por Hans Gerhard Creutzfeldt e Alfons Jakob na Alemanha22 BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico, v.53, n.39, out. 2022. Disponível em: www.saude.gov.br/svs. Acessado em 01/03/2024.
www.saude.gov.br/svs...
. É uma Encefalopatia Espongiforme Transmissível Humana (EETH) que provoca um conjunto de alterações neuropatológicas cuja causa está ligada à existência e disseminação anormal de uma proteína príon patogênica22 BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico, v.53, n.39, out. 2022. Disponível em: www.saude.gov.br/svs. Acessado em 01/03/2024.
www.saude.gov.br/svs...
. Entre 80% e 95% da DCJ são formas esporádicas, 10% a 15% são formas genéticas (muitas vezes familiares) e menos de 1% são adquiridas. Embora esses últimos sejam os menos comuns, são provavelmente os mais notórios33 Barbosa BJAP, Castrillo BB, Alvim RP, de Brito MH, Gomes HR, Brucki SMD, et al. Second-Generation RT-QuIC Assay for the Diagnosis of Creutzfeldt-Jakob Disease Patients in Brazil. Front Bioeng Biotechnol. 2020 Aug 6;8.,44 Geschwind MD. Prion Diseases. Vol. 21, CONTINUUM Lifelong Learning in Neurology. Lippincott Williams and Wilkins; 2015. p. 1612–38.. O agente infeccioso que causa a doença por príon, conhecido como PrPSc, é incomum porque não possui nenhum ácido nucleico específico; é uma forma patogênica mal dobrada e agregada da proteína príon celular, PrPC11 Carneiro AAM, Esmeraldo MA, E Silva DE de L, Ribeiro EML. Creutzfeldt-Jakob disease: literature review based on three case reports. Vol. 16, Dementia e Neuropsychologia. Associacao Arquivos de Neuro-Psiquiatria; 2022. p. 367–72.

2 BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico, v.53, n.39, out. 2022. Disponível em: www.saude.gov.br/svs. Acessado em 01/03/2024.
www.saude.gov.br/svs...
-33 Barbosa BJAP, Castrillo BB, Alvim RP, de Brito MH, Gomes HR, Brucki SMD, et al. Second-Generation RT-QuIC Assay for the Diagnosis of Creutzfeldt-Jakob Disease Patients in Brazil. Front Bioeng Biotechnol. 2020 Aug 6;8.. Após a transmissão para um hospedeiro ingênuo, os príons semeiam o desdobramento incorreto da PrPC do hospedeiro em um processo autocatalítico, levando a um aumento exponencial de PrPSc no cérebro e na medula espinhal que eventualmente leva à morte neuronal. Na DCJ esporádica, acredita-se que a conversão de PrPC em PrPSc ocorra espontaneamente (ou possivelmente mediante uma mutação somática de PRNP). Nas doenças genéticas do príon, acredita-se que as mutações no gene da proteína do príon, PRNP, tornam o PrPC mais suscetível à alteração da conformação (dobramento incorreto) em PrPSc. Nas formas adquiridas, a PrPSc é acidentalmente transmitida a uma pessoa, fazendo com que a sua PrPC endógena se dobre33 Barbosa BJAP, Castrillo BB, Alvim RP, de Brito MH, Gomes HR, Brucki SMD, et al. Second-Generation RT-QuIC Assay for the Diagnosis of Creutzfeldt-Jakob Disease Patients in Brazil. Front Bioeng Biotechnol. 2020 Aug 6;8.,44 Geschwind MD. Prion Diseases. Vol. 21, CONTINUUM Lifelong Learning in Neurology. Lippincott Williams and Wilkins; 2015. p. 1612–38..

Pacientes com diferentes etiologias de DCJ apresentam diferentes fenótipos clínicos e patológicos. A DCJ é uma doença rara, com uma incidência global de 1–2 casos por milhão de indivíduos anualmente. No Brasil, apenas 359 casos foram confirmados laboratorialmente entre 2005 e 20212. O maior registro de casos da doença foi feito por Uttley et al.55 Uttley L, Carroll C, Wong R, Hilton DA, Stevenson M. Creutzfeldt-Jakob disease: a systematic review of global incidence, prevalence, infectivity, and incubation. Vol. 20, The Lancet Infectious Diseases. Lancet Publishing Group; 2020. p. e2–10., de 1993 a 2018, por meio de estudos publicados a partir de 2005 em diversos países do mundo, especialmente em Europa. A Suíça foi o país com maior incidência ou mortalidade por milhão de pessoas (1,73), seguida pela França (1,60), Áustria (1,52), Dinamarca (1,47) e Eslovênia (1,46); por outro lado, países como Estônia (0,32), Taiwan (0,55) e Grécia (0,62) apresentaram as taxas mais baixas. Sintomas cognitivos e constitucionais (como tontura/vertigem, fadiga/letargia, distúrbios do sono, dor de cabeça, incontinência urinária, perda de peso, distúrbios gastrointestinais e palpitações) são descritos como os primeiros sintomas, seguidos por sintomas cerebelares e comportamentais22 BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico, v.53, n.39, out. 2022. Disponível em: www.saude.gov.br/svs. Acessado em 01/03/2024.
www.saude.gov.br/svs...
.

Em 1998, a Organização Mundial da Saúde (OMS) incluiu uma combinação de sintomas específicos, eletroencefalografia (EEG) e detecção da proteína 14–3-3 do líquido cefalorraquidiano (LCR) nos critérios diagnósticos padrão66 World Health Organization. Global surveillance, diagnosis and therapy of human transmissible spongiform encephalopathies: Report of a WHO consultation Geneva, Switzerland 9Y11 February 1998. Geneva, Switzerland: World Health Organization, 1998.. Anos mais tarde, em 2009, o European MRI-CJD Consortium Criteria77 Zerr I, Kallenberg K, Summers DM, Romero C, Taratuto A, Heinemann U, et al. Updated clinical diagnostic criteria for sporadic Creutzfeldt-Jakob disease. Brain. 2009 Oct;132(10):2659–68. (Quadro 1) incluiu imagens cerebrais para o diagnóstico, sugerindo que achados típicos de ressonância magnética (RM) cerebral (como anormalidades de alto sinal no núcleo caudado e putâmen ou pelo menos dois regiões corticais - temporal-parietal-occipital - seja em DWI ou FLAIR) e um resultado positivo de uma conversão induzida por tremor em tempo real (RT-QuIC) apoiam um diagnóstico altamente provável44 Geschwind MD. Prion Diseases. Vol. 21, CONTINUUM Lifelong Learning in Neurology. Lippincott Williams and Wilkins; 2015. p. 1612–38..

Quadro 1
European MRI-CJD Consortium Criteria. Alemanha, 2009.

A DCJ esporádica é uma doença rara, com incidência de aproximadamente 1-2 casos por 1 milhão de pessoas e é classicamente descrita como uma forma de demência rapidamente progressiva11 Carneiro AAM, Esmeraldo MA, E Silva DE de L, Ribeiro EML. Creutzfeldt-Jakob disease: literature review based on three case reports. Vol. 16, Dementia e Neuropsychologia. Associacao Arquivos de Neuro-Psiquiatria; 2022. p. 367–72.. Não existe tratamento específico eficaz para a doença, conforme publicado por Miranda et al.88 Miranda LHL, de HolandaOliveira AFP, de Carvalho DM, Souza GMF, Magalhães JGM, Cabral Júnior JA, et al. Systematic review of pharmacological management in Creutzfeldt-Jakob disease: no options so far? Vol. 80, Arquivos de Neuro-Psiquiatria. Associacao Arquivos de Neuro-Psiquiatria; 2022. p. 837–44. Descrevemos um caso da doença com característica incomum, que é a ausência de comprometimento cognitivo na fase inicial da doença. O objetivo do nosso artigo é alertar sobre a possibilidade da ausência de comprometimento cognitivo como manifestação inicial dessa doença grave e rara.

RELATO DE CASO

Paciente do sexo masculino, 72 anos, em março de 2023 procurou o pronto-socorro de Maricá (Brasil) com queixa de parestesia à direita. Referia hipertensão arterial sistêmica e diabetes mellitus e fazia uso de Nebivolol 5mg/dia e Metformina 500mg duas vezes ao dia. A tomografia computadorizada (TC) do crânio não revelou alterações agudas. O paciente recebeu alta do pronto-socorro. Porém, como não houve melhora, procurou atendimento médico ambulatorial especializado, que solicitou ressonância magnética (RM) de encéfalo que revelou pequenos focos hiperintensos em T2 e FLAIR na substância branca profunda adjacente às margens dos ventrículos laterais e gliose subcortical nas regiões frontotemporais, sugerindo microangiopatia degenerativa. Duas semanas depois apresentou piora do quadro neurológico, com tremores musculares, dificuldade de marcha, disartria, mioclonia e movimentos balísticos, com controle esfincteriano e cognição preservados. Em abril de 2023, foi realizado eletroencefalograma com mapeamento cerebral, que não apresentou alterações e nova ressonância magnética do crânio, mostrando alterações de sinal afetando o córtex parietal esquerdo na topografia do giro pós-central, lobo parietal superior e lóbulo paracentral, com extensão para a porção adjacente do giro cingulado e da ínsula (Figura 1). Para avaliar o diagnóstico de doença neurológica paraneoplásica, o paciente foi submetido a tomografia computadorizada de tórax, que revelou focos dispersos de enfisema centrolobular e opacidade em faixa no lobo superior esquerdo. Foi realizada punção lombar (coletados 17mL de líquido cefalorraquidiano; pressão inicial = 9cm de água; pressão final = 5cm de água; 1 leucócito por milímetro cúbico; 1 hemácia por milímetro cúbico; proteína = 46mg/dL) com pesquisa de painel para encefalite (Escherichia coli, Haemophilus influenzae, Listeria monocytogenes, Neisseria meningitidis, Streptococcus agalactiae, Streptococcus pneumoniae, vírus Epstein-Barr, citomegalovírus, adenovírus, herpes simplex 1 e 2, varicela-zoster, herpesvírus humano 6 e 7, eritrovírus B19, enterovírus, parechovírus e vírus da caxumba), anticorpos anti-receptores NMDA neuronais (NR1 e NR2), painel paraneoplásico do líquido cefalorraquidiano (ANNA-1/2/3, AGNA-1, PCA-1, PCA-2, PCA-TR, Anti -Anfifisina, CRMP-5 IgG) e painel de anticorpos antineuronais (Anti-Hu, Anti-Yo, Anti-Purkinje Cell, CV2, MA2, Anti-MGT 30, Anti-Recoverin), todos negativos. De março a 19 de maio de 2023, o paciente não apresentou nenhum sinal de comprometimento cognitivo.

Figura 1
Ressonância magnética mostrando alterações de sinal afetando o córtex parietal esquerdo (setas amarelas). 2023, RJ, Brasil.

Em 19 de maio de 2023, o paciente apresentou deterioração neurológica com incapacidade de deambular, grave comprometimento da deglutição, incoordenação motora de membros superiores e foi internado no Hospital Federal do Andaraí. Evoluiu com febre e taquicardia, sendo internado com pontuação 7 na Escala de Coma de Glasgow e evoluiu com dispneia, necessitando de intubação orotraqueal e internação na unidade de terapia intensiva (UTI) daquele hospital. Em 14 de junho de 2023, o paciente foi posteriormente transferido para a UTI do Hospital Universitário Gaffrée e Guinle, apresentando febre, aumento do volume de secreções traqueais e infiltrado pulmonar, sendo diagnosticado com pneumonia associada à ventilação mecânica. Durante essa internação, obtivemos assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido com a filha da paciente. Foi iniciado tratamento com polimixina B + tigeciclina, resultando em remissão da febre e redução do volume de secreções traqueais após 48 horas. Foi realizada nova punção lombar para investigação da proteína 14-3-3 e Rt-QuIC, suspeitando-se de doença príon. No final de junho de 2023, o resultado do Rt-QuIC foi fortemente positivo (Figura 2), confirmando a hipótese de DCJ esporádica. Posteriormente, em 8 de julho de 2023, obtivemos o resultado da investigação da presença da proteína 14-3-3 no LCR coletado, que também foi positivo. O paciente faleceu no dia 23 de julho, em decorrência de sepse grave de origem respiratória.

Figura 2
Resultado do RT QuIC do líquor. 2023, RJ, Brasil.

DISCUSSÃO

O paciente citado acima começou a apresentar sintomas motores em abril de 2023, sendo submetido a exames de imagem (tomografia computadorizada e ressonância magnética de crânio) e estudos de líquido cefalorraquidiano. Os sintomas e sinais neurológicos evoluíram rapidamente, com indicação de internação em terapia intensiva aproximadamente um mês depois. Durante a internação em nosso hospital, foi realizada nova coleta de LCR, com teste Rt-QuIC fortemente positive. O diagnóstico clínico da doença de Jakob-Creutzfeldt é baseado em uma combinação de sintomas e exames auxiliares, incluindo ressonância magnética cerebral, EEG e, talvez o mais importante, análises do LCR. O fenótipo clínico clássico da doença esporádica de Jakob-Creutzfeldt é uma demência rapidamente progressiva com anormalidades comportamentais, ataxia (geralmente marcha), características extrapiramidais e, eventualmente, mioclonia. Os sintomas iniciais podem ser constitucionais e inespecíficos, como tontura/vertigem, fadiga/letargia, distúrbios do sono, cefaleia, incontinência urinária, perda de peso, distúrbios gastrointestinais e palpitações11 Carneiro AAM, Esmeraldo MA, E Silva DE de L, Ribeiro EML. Creutzfeldt-Jakob disease: literature review based on three case reports. Vol. 16, Dementia e Neuropsychologia. Associacao Arquivos de Neuro-Psiquiatria; 2022. p. 367–72.44 Geschwind MD. Prion Diseases. Vol. 21, CONTINUUM Lifelong Learning in Neurology. Lippincott Williams and Wilkins; 2015. p. 1612–38.. Cerca de um terço dos pacientes com DCJ esporádica apresentam sintomas constitucionais iniciais, às vezes considerados características prodrômicas, muitos dos quais são difíceis de classificar neuroanatomicamente11 Carneiro AAM, Esmeraldo MA, E Silva DE de L, Ribeiro EML. Creutzfeldt-Jakob disease: literature review based on three case reports. Vol. 16, Dementia e Neuropsychologia. Associacao Arquivos de Neuro-Psiquiatria; 2022. p. 367–72.44 Geschwind MD. Prion Diseases. Vol. 21, CONTINUUM Lifelong Learning in Neurology. Lippincott Williams and Wilkins; 2015. p. 1612–38.. No caso clínico descrito, observamos inicialmente um predomínio de sintomas cerebelares e movimentos mioclônicos, evoluindo posteriormente para sintomas comportamentais, como alucinações.

Não houve comprometimento cognitivo na fase inicial da doença, característica incomum, embora já citada por outros autores99 Saraceno L, Ricigliano VAG, Cavalli M, Cagol A, Bosco G, Moda F, et al. Sporadic MM-1 Type Creutzfeldt-Jakob disease with hemiballic presentation and no cognitive impairment until death: How New NCJDRSU diagnostic criteria may allow early diagnosis. Front Neurol. 2018 Sep 5;9(SEP).1111 Pauri F, Amabile G, Fattapposta F, Pierallini A, Bianco F. Sporadic Creutzfeldt-Jakob disease without dementia at onset: Clinical features, laboratory tests and sequential diffusion MRI(in an autopsy-proven case). Neurological Sciences. 2004 Oct;25(4):234–7.. Saraceno et al.99 Saraceno L, Ricigliano VAG, Cavalli M, Cagol A, Bosco G, Moda F, et al. Sporadic MM-1 Type Creutzfeldt-Jakob disease with hemiballic presentation and no cognitive impairment until death: How New NCJDRSU diagnostic criteria may allow early diagnosis. Front Neurol. 2018 Sep 5;9(SEP). relataram um caso semelhante ao nosso, atribuindo a ausência de distúrbio cognitivo às áreas afetadas pela doença; houve envolvimento dos gânglios da base sem comprometimento do córtex cerebral, evidenciado pela ressonância magnética, com hiperintensidade dos núcleos caudado e lenticular direito com leve envolvimento cortical e sem atrofia. Marciani et al.1010 Marciani MG, Bernard G, Sancesario G, Gigli GL, Maschio M, Palmier G, et al. RAPIDLY PROGRESSIVE FORM OF CREUTZFELDT-JAKOB DISEASE WITHOUT DEMENTIA: A CASE REPORT. Vol. 84. 1996. mencionaram que a ausência de declínio mental no caso relatado era de difícil interpretação, mas que os resultados histológicos obtidos sugeriam alterações na substância cinzenta, sem perda neuronal. Pauri et al.1111 Pauri F, Amabile G, Fattapposta F, Pierallini A, Bianco F. Sporadic Creutzfeldt-Jakob disease without dementia at onset: Clinical features, laboratory tests and sequential diffusion MRI(in an autopsy-proven case). Neurological Sciences. 2004 Oct;25(4):234–7. relataram um caso em que as alterações cognitivas apareceram apenas nas últimas semanas de evolução da doença e os exames post-mortem mostraram alterações espongiformes e gliose de astrócitos no córtex frontal e outras áreas, o que poderia explicar o aparecimento tardio dessas mudanças. A ressonância magnética realizada anteriormente no caso por eles relatado mostrou inicialmente envolvimento da substância branca periventricular e dos gânglios da base, sendo o envolvimento do córtex frontal apenas evidente em um terceiro exame de imagem, em fase mais tardia da doença.

Historicamente, o EEG foi o primeiro teste in vivo a ser utilizado para apoiar o diagnóstico clínico da DCJ. O padrão típico de EEG mostra descargas epileptiformes periódicas síncronas bilaterais, como ondas bifásicas ou trifásicas, com especificidade de 90% para DCJ, em um cenário clínico compatível. No entanto, a atividade periódica típica do EEG pode estar ausente em pacientes com DCJ, nos estágios iniciais, e é menos comum também nos estágios terminais da doença1212 Wieser HG, Schindler K, Zumsteg D. EEG in Creutzfeldt-Jakob disease. Vol. 117, Clinical Neurophysiology. 2006. p. 935–51.. No caso relatado, o EEG não apresentou alterações, talvez por ter sido realizado nas primeiras semanas após o aparecimento dos sintomas.

Os achados clássicos da doença na RM são hiperintensidade T2-FLAIR e difusão restrita no caudado, putâmen e córtex, presentes em 80% dos casos. Os Critérios Europeus do Consórcio MRI-CJD citam que os achados em pelo menos duas regiões corticais (temporal-parietal-occipital) tanto no DWI quanto no FLAIR também são diagnósticos77 Zerr I, Kallenberg K, Summers DM, Romero C, Taratuto A, Heinemann U, et al. Updated clinical diagnostic criteria for sporadic Creutzfeldt-Jakob disease. Brain. 2009 Oct;132(10):2659–68.,1313 Forner SA, Leonel Takada BT, Bettcher BM, Lobach I V, Carmela Tartaglia M, Torres-Chae C, et al. Neurology ® Clinical Practice Comparing CSF biomarkers and brain MRI in the diagnosis of sporadic Creutzfeldt-Jakob disease. 2015.. Nosso paciente apresentou alterações de sinal afetando áreas dos lobos parietal e temporal.

Além da biópsia cerebral, o RT-QuIC é o único biomarcador antemortem específico da doença para o diagnóstico de doenças por príons que detecta diretamente príons. No estudo de Geschwind44 Geschwind MD. Prion Diseases. Vol. 21, CONTINUUM Lifelong Learning in Neurology. Lippincott Williams and Wilkins; 2015. p. 1612–38., assim como outros estudos1414 Geschwind MD, Josephs KA, Parisi JE, Keegan BM. A 54-year-old man with slowness of movement and confusion NEUROLOGY CLINICAL PATHOLOGICAL CONFERENCE Section Editors. 2007.1919 Tilley BS, Smith C, Pavese N, Attems J. Rare histotype of sporadic Creutzfeldt-Jakob disease, clinically suspected as corticobasal degeneration. BMJ Case Rep. 2019 Mar 1;12(3)., o RT-QuIC demonstrou alta sensibilidade (90,3%) e especificidade (98,5%) para detecção de doença por príon. Nosso paciente apresentou resultado fortemente positivo de Rt-QuIC, confirmando o diagnóstico.

O paciente começou a apresentar alterações de sensibilidade em março de 2023, sendo submetido a exames de imagem (tomografia computadorizada e ressonância magnética de crânio) e estudo do líquido cefalorraquidiano. Foram investigadas múltiplas doenças que faziam parte do diagnóstico diferencial de anormalidades apresentadas pelo paciente, como encefalites infecciosas (Escherichia coli, Haemophilus influenzae, Listeria monocytogenes, Neisseria meningitidis, Streptococcus agalactiae, Streptococcus pneumoniae, vírus Epstein-Barr, citomegalovírus, adenovírus, herpes simplex 1 e 2, varicela-zoster, herpesvírus humano 6 e 7, eritrovírus B19, enterovírus, parechovírus e vírus da caxumba), encefalite paraneoplásica (ANNA-1/2/3, AGNA-1, PCA-1, PCA-2, PCA -TR, Anti-Amphiphysin, CRMP-5 IgG), encefalite autoimune (anticorpos anti-receptor NMDA neuronal - NR1 e NR2) e outras doenças que apresentam produção de anticorpos anti-neuronais (Anti-Hu, Anti-Yo, Anti- Purkinje Cell, CV2, MA2, Anti-MGT 30, Anti-Recoverin) e nenhum dos testes realizados apresentou resultado positivo.

Durante a internação foi realizada nova coleta de LCR, onde observamos teste Rt-QuIC fortemente positivo, possibilitando o diagnóstico etiológico. Conforme observado por Miranda et al. em revisão sistemática sobre opções terapêuticas88 Miranda LHL, de HolandaOliveira AFP, de Carvalho DM, Souza GMF, Magalhães JGM, Cabral Júnior JA, et al. Systematic review of pharmacological management in Creutzfeldt-Jakob disease: no options so far? Vol. 80, Arquivos de Neuro-Psiquiatria. Associacao Arquivos de Neuro-Psiquiatria; 2022. p. 837–44., a DCJ é uma doença incurável e sem tratamento específico capaz de aumentar a sobrevida desses pacientes. Os medicamentos estudados para esse fim incluíram quinacrina, doxiciclina, flupirtina e polissulfato de pentosano, em estudos de séries de casos, estudos clínicos randomizados e não randomizados e até estudos clínicos duplo-cegos randomizados. Passaram-se apenas 5 meses entre o início dos sintomas e o óbito do paciente, demonstrando a rápida evolução da doença, já citada em outras publicações11 Carneiro AAM, Esmeraldo MA, E Silva DE de L, Ribeiro EML. Creutzfeldt-Jakob disease: literature review based on three case reports. Vol. 16, Dementia e Neuropsychologia. Associacao Arquivos de Neuro-Psiquiatria; 2022. p. 367–72.,22 BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico, v.53, n.39, out. 2022. Disponível em: www.saude.gov.br/svs. Acessado em 01/03/2024.
www.saude.gov.br/svs...
,66 World Health Organization. Global surveillance, diagnosis and therapy of human transmissible spongiform encephalopathies: Report of a WHO consultation Geneva, Switzerland 9Y11 February 1998. Geneva, Switzerland: World Health Organization, 1998.,1414 Geschwind MD, Josephs KA, Parisi JE, Keegan BM. A 54-year-old man with slowness of movement and confusion NEUROLOGY CLINICAL PATHOLOGICAL CONFERENCE Section Editors. 2007.,1919 Tilley BS, Smith C, Pavese N, Attems J. Rare histotype of sporadic Creutzfeldt-Jakob disease, clinically suspected as corticobasal degeneration. BMJ Case Rep. 2019 Mar 1;12(3).2121 Kojima G, Tatsuno BK, Inaba M, Velligas S, Masaki K, Liow KK. Creutzfeldt-Jakob Disease: A Case Report and Differential Diagnoses. Vol. 72. 2013..

A DCJ é uma doença incurável sem tratamento eficaz até o momento. O diagnóstico precoce permite que os pacientes e seus familiares se preparem para o curso esperado da doença e recebam cuidados paliativos. É importante fazer um diagnóstico precoce e assertivo porque algumas doenças infecciosas com sintomas e sinais semelhantes são tratáveis2020 Stewart LA, Rydzewska LHM, Keogh GF, Knight RSG. Systematic review of therapeutic interventions in human prion disease [Internet]. 2008. Disponível em: www.neurology.org
www.neurology.org...
,2121 Kojima G, Tatsuno BK, Inaba M, Velligas S, Masaki K, Liow KK. Creutzfeldt-Jakob Disease: A Case Report and Differential Diagnoses. Vol. 72. 2013.. O presente caso indica que o comprometimento cognitivo nem sempre pode estar presente nas fases iniciais da doença e isso deve ser levado em consideração para não atrasar o diagnóstico.

Nosso artigo foi aprovado pelo Comitê de Ética de nossa Instituição sob o número 5.735.062 (Hospital Universitário Gaffree e Guinle/HUGG/UNIRIO).

CONCLUSÃO

A Doença de Creutzfeldt-Jakob é uma doença incurável e sem tratamento geralmente aceito no momento. O diagnóstico precoce permite que os pacientes e seus familiares se preparem para o curso esperado da doença e recebam cuidados paliativos. É importante fazer um diagnóstico precoce e preciso porque algumas doenças infecciosas são tratáveis. O presente caso indica que o comprometimento cognitivo pode nem sempre estar presente nos estágios iniciais da doença.

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem ao Dr. Alessandro Rocha Milan de Souza e ao Dr. Carlos Roberto Nogueira Moraes Cardoso pelo brilhante diagnóstico do caso. Gostaríamos também de agradecer ao Dr. Antonio Rossi Cortes por confiar em nossa equipe para lidar com um caso tão complexo.

  • DISPONIBILIDADE DE DADOS

    O conjunto de dados não está disponível publicamente por conter informações que comprometem a privacidade dos participantes da pesquisa.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Carneiro AAM, Esmeraldo MA, E Silva DE de L, Ribeiro EML. Creutzfeldt-Jakob disease: literature review based on three case reports. Vol. 16, Dementia e Neuropsychologia. Associacao Arquivos de Neuro-Psiquiatria; 2022. p. 367–72.
  • 2
    BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico, v.53, n.39, out. 2022. Disponível em: www.saude.gov.br/svs Acessado em 01/03/2024.
    » www.saude.gov.br/svs
  • 3
    Barbosa BJAP, Castrillo BB, Alvim RP, de Brito MH, Gomes HR, Brucki SMD, et al. Second-Generation RT-QuIC Assay for the Diagnosis of Creutzfeldt-Jakob Disease Patients in Brazil. Front Bioeng Biotechnol. 2020 Aug 6;8.
  • 4
    Geschwind MD. Prion Diseases. Vol. 21, CONTINUUM Lifelong Learning in Neurology. Lippincott Williams and Wilkins; 2015. p. 1612–38.
  • 5
    Uttley L, Carroll C, Wong R, Hilton DA, Stevenson M. Creutzfeldt-Jakob disease: a systematic review of global incidence, prevalence, infectivity, and incubation. Vol. 20, The Lancet Infectious Diseases. Lancet Publishing Group; 2020. p. e2–10.
  • 6
    World Health Organization. Global surveillance, diagnosis and therapy of human transmissible spongiform encephalopathies: Report of a WHO consultation Geneva, Switzerland 9Y11 February 1998. Geneva, Switzerland: World Health Organization, 1998.
  • 7
    Zerr I, Kallenberg K, Summers DM, Romero C, Taratuto A, Heinemann U, et al. Updated clinical diagnostic criteria for sporadic Creutzfeldt-Jakob disease. Brain. 2009 Oct;132(10):2659–68.
  • 8
    Miranda LHL, de HolandaOliveira AFP, de Carvalho DM, Souza GMF, Magalhães JGM, Cabral Júnior JA, et al. Systematic review of pharmacological management in Creutzfeldt-Jakob disease: no options so far? Vol. 80, Arquivos de Neuro-Psiquiatria. Associacao Arquivos de Neuro-Psiquiatria; 2022. p. 837–44.
  • 9
    Saraceno L, Ricigliano VAG, Cavalli M, Cagol A, Bosco G, Moda F, et al. Sporadic MM-1 Type Creutzfeldt-Jakob disease with hemiballic presentation and no cognitive impairment until death: How New NCJDRSU diagnostic criteria may allow early diagnosis. Front Neurol. 2018 Sep 5;9(SEP).
  • 10
    Marciani MG, Bernard G, Sancesario G, Gigli GL, Maschio M, Palmier G, et al. RAPIDLY PROGRESSIVE FORM OF CREUTZFELDT-JAKOB DISEASE WITHOUT DEMENTIA: A CASE REPORT. Vol. 84. 1996.
  • 11
    Pauri F, Amabile G, Fattapposta F, Pierallini A, Bianco F. Sporadic Creutzfeldt-Jakob disease without dementia at onset: Clinical features, laboratory tests and sequential diffusion MRI(in an autopsy-proven case). Neurological Sciences. 2004 Oct;25(4):234–7.
  • 12
    Wieser HG, Schindler K, Zumsteg D. EEG in Creutzfeldt-Jakob disease. Vol. 117, Clinical Neurophysiology. 2006. p. 935–51.
  • 13
    Forner SA, Leonel Takada BT, Bettcher BM, Lobach I V, Carmela Tartaglia M, Torres-Chae C, et al. Neurology ® Clinical Practice Comparing CSF biomarkers and brain MRI in the diagnosis of sporadic Creutzfeldt-Jakob disease. 2015.
  • 14
    Geschwind MD, Josephs KA, Parisi JE, Keegan BM. A 54-year-old man with slowness of movement and confusion NEUROLOGY CLINICAL PATHOLOGICAL CONFERENCE Section Editors. 2007.
  • 15
    Knight R. Clinical diagnosis of human prion disease. In: Progress in Molecular Biology and Translational Science. Elsevier B.V.; 2020. p. 1–18.
  • 16
    Hermann P, Appleby B, Brandel JP, Caughey B, Collins S, Geschwind MD, et al. Biomarkers and diagnostic guidelines for sporadic Creutzfeldt-Jakob disease [Internet]. www.thelancet.com/neurology 2021. Disponível em: www.thelancet.com/neurology
    » www.thelancet.com/neurology
  • 17
    Rhoads DD, Wrona A, Foutz A, Blevins J, Glisic K, Person M, et al. Diagnosis of prion diseases by RT-QuIC results in improved surveillance. Neurology. 2020 Aug 25;95(8):E1017–26.
  • 18
    Sigurdson CJ, Bartz JC, Glatzel M. Cellular and Molecular Mechanisms of Prion Disease. Review in Advance first posted on October [Internet]. 2018;24. Disponível em: https://doi.org/10.1146/annurev-pathmechdis-
    » https://doi.org/10.1146/annurev-pathmechdis-
  • 19
    Tilley BS, Smith C, Pavese N, Attems J. Rare histotype of sporadic Creutzfeldt-Jakob disease, clinically suspected as corticobasal degeneration. BMJ Case Rep. 2019 Mar 1;12(3).
  • 20
    Stewart LA, Rydzewska LHM, Keogh GF, Knight RSG. Systematic review of therapeutic interventions in human prion disease [Internet]. 2008. Disponível em: www.neurology.org
    » www.neurology.org
  • 21
    Kojima G, Tatsuno BK, Inaba M, Velligas S, Masaki K, Liow KK. Creutzfeldt-Jakob Disease: A Case Report and Differential Diagnoses. Vol. 72. 2013.

Editado por

Editado por: Letícia Sampaio Figueiredo

Disponibilidade de dados

O conjunto de dados não está disponível publicamente por conter informações que comprometem a privacidade dos participantes da pesquisa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    02 Nov 2023
  • Aceito
    17 Maio 2024
Universidade do Estado do Rio Janeiro Rua São Francisco Xavier, 524 - Bloco F, 20559-900 Rio de Janeiro - RJ Brasil, Tel.: (55 21) 2334-0168 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revistabgg@gmail.com