Resumos
OBJETIVO: verificar a prevalência e as características clínicas de casais com história de abortos de repetição e anormalidade cromossômica atendidos em nosso serviço. MÉTODOS: foram avaliados retrospectivamente todos os casais encaminhados de janeiro de 1975 a junho de 2008 por história de abortos de repetição. Foram incluídos no estudo somente aqueles casais, em que a análise cromossômica feita com o cariótipo por bandas GTG foi realizada com sucesso. Foram coletados dados clínicos referentes às suas idades, bem como o número de abortamentos, natimortos, crianças polimalformadas, nativivos por casal e resultado do exame de cariótipo. Para comparação da frequência das alterações cromossômicas encontradas em nosso estudo com as da literatura, bem como entre os diferentes subgrupos de nossa amostra, foi utilizado o teste exato de Fisher (p<0,05). RESULTADOS: a amostra foi composta de 108 casais. As idades variaram de 21 a 58 anos entre os homens (média de 31,4 anos) e de 19 a 43 anos entre as mulheres (média de 29,9 anos). O número de abortos oscilou de dois a nove (média de 3,2). Alterações cromossômicas foram observadas em um dos parceiros em dez casais (9,3%) e corresponderam, respectivamente, a três casos (30%) de translocação recíproca [dois de t(5;6) e um de t(2;13)], dois (20%) de translocação Robertsoniana [um de der(13;14) e um de der(13;15)], cinco (50%) de mosaicismo (mos) [dois casos de mos 45,X/46,XX, um de mos 46,XX/47,XXX, um de mos 46,XY/47,XXY e um de mos 46,XY/47,XYY] e um (10%) de inversão cromossômica [inv(10)]. Em um dos casais, a parceira apresentava duas alterações concomitantes: t(2;13) e der(13;14). Anormalidades cromossômicas foram verificadas em 5% dos casais com história de dois abortamentos, em 10,3% com três abortos e 14,3% com quatro ou mais abortos. CONCLUSÕES: a frequência de anormalidades cromossômicas verificada neste estudo (9,3%) foi similar à da maior parte dos trabalhos realizados nos últimos 20 anos, a qual variou de 4,8 a 10,8%. Contudo, nos chamou a atenção o alto percentual de pacientes com mosaicismo. Acreditamos que este achado possa estar associado ao maior número de metáfases rotineiramente analisadas no presente serviço.
Aborto habitual; Aberrações cromossômicas; Análise citogenética; Cariotipagem; Translocação genética; Mosaicismo; Aconselhamento genético
PURPOSE: to asses the prevalence and clinical characteristics of couples with history of recurrent spontaneous abortion and chromosome abnormality, attended at the present service. METHODS: all the couples referred to our service due to history of recurrent spontaneous abortion, from January 1975 to June 2008, were evaluated. Only the ones whose chromosome karyotype analysis by GTG bands has been successfully made were included in the study. Clinical data on their age, as well as on the number of abortions, stillbirth, multiple malformations, livebirth per couple, and the result of the karyotype exam were collected. Fisher's exact test (p<0.05) has been used to compare the incidence of chromosome alterations found in our study, with data in the literature. RESULTS: there were 108 couples in the sample. Their ages varied from 21 to 58 years old among the men (average of 31.4 years old), and from 19 to 43 among the women (average of 29.9 years old). In ten couples, one of the mates (9.3%) presented chromosome alterations, which corresponded respectively to three cases (30%) of reciprocal translocation [two of t(5;6) and one of t(2;13)], two (20%) of Robertsonian translocation [two of der(13;14) and one of der(13;15)], five(50%) of mosaicism (mos) [two cases of mos 45,X/46,XX, one of mos 46,XX/47,XXX, one of mos 46,XY/47,XXY and one of mos 46,XY/47,XYY] and one (10%) of chromosome inversion [inv(10)]. In one of the couples, the female presented two concomitant alterations: t(2;13) and der(13;14). Chromosome abnormalities were found in 5% of the couples with a history of two abortions, in 10.3% with three abortions, and in 14.3% with four or more abortions. CONCLUSIONS: the incidence of chromosome abnormalities seen in our study (9.3%) was similar to most of the studies carried out in the last 20 years, varying from 4.8 to 10.8%. Nevertheless the high percentage of patients with mosaicism in our sample, has called our attention. It is believed that this fact may be associated to the high number of metaphases ordinarily analyzed in the present service.
Abortion, habitual; Chromosome aberrations; Cytogenetic analysis; Karyotyping; Translocation, genetic; Mosaicism; Genetic counseling
ARTIGO ORIGINAL
Anormalidades cromossômicas em casais com história de aborto recorrente
Chromosomal abnormalities in couples with history of recurrent abortion
Andrea KissI; Rafael Fabiano Machado RosaII; Raquel Papandreus DibiIII; Paulo Ricardo Gazzola ZenIV; Juliana Nunes PfeilV; Carla GraziadioVI; Giorgio Adriano PaskulinVII
IGeneticista Clínica da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre - UFCSPA - e do Complexo Hospitalar Santa Casa de Porto Alegre - CHSCPA - Porto Alegre (RS), Brasil
IIPós-graduando do Programa de Pós-Graduação em Patologia da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre - UFCSPA - Porto Alegre (RS), Brasil
IIIPós-graduanda do Programa de Pós-Graduação em Patologia da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre - UFCSPA - Porto Alegre (RS), Brasil
IVProfessor Adjunto da Disciplina de Genética Clínica e do Programa de Pós-Graduação em Patologia da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre - UFCSPA - Porto Alegre (RS), Brasil
VAcadêmica do Curso de Medicina da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre - UFCSPA - Porto Alegre (RS), Brasil
VIProfessora-assistente da Disciplina de Genética Clínica da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre - UFCSPA - Porto Alegre (RS), Brasil
VIIProfessor-associado da Disciplina de Genética Clínica e do Programa de Pós-Graduação em Patologia da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre - UFCSPA - Porto Alegre (RS), Brasil
Correspondência Correspondência: Giorgio Adriano Paskulin Genética Clínica da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre Avenida Sarmento Leite, 245 - sala 403 - Centro CEP 90050-170 - Porto Alegre/RS, Brasil Fone: (51) 3303-8771 Fax: (51) 3303-8810 E-mail: paskulin@ufcspa.edu.br
RESUMO
OBJETIVO: verificar a prevalência e as características clínicas de casais com história de abortos de repetição e anormalidade cromossômica atendidos em nosso serviço.
MÉTODOS: foram avaliados retrospectivamente todos os casais encaminhados de janeiro de 1975 a junho de 2008 por história de abortos de repetição. Foram incluídos no estudo somente aqueles casais, em que a análise cromossômica feita com o cariótipo por bandas GTG foi realizada com sucesso. Foram coletados dados clínicos referentes às suas idades, bem como o número de abortamentos, natimortos, crianças polimalformadas, nativivos por casal e resultado do exame de cariótipo. Para comparação da frequência das alterações cromossômicas encontradas em nosso estudo com as da literatura, bem como entre os diferentes subgrupos de nossa amostra, foi utilizado o teste exato de Fisher (p<0,05).
RESULTADOS: a amostra foi composta de 108 casais. As idades variaram de 21 a 58 anos entre os homens (média de 31,4 anos) e de 19 a 43 anos entre as mulheres (média de 29,9 anos). O número de abortos oscilou de dois a nove (média de 3,2). Alterações cromossômicas foram observadas em um dos parceiros em dez casais (9,3%) e corresponderam, respectivamente, a três casos (30%) de translocação recíproca [dois de t(5;6) e um de t(2;13)], dois (20%) de translocação Robertsoniana [um de der(13;14) e um de der(13;15)], cinco (50%) de mosaicismo (mos) [dois casos de mos 45,X/46,XX, um de mos 46,XX/47,XXX, um de mos 46,XY/47,XXY e um de mos 46,XY/47,XYY] e um (10%) de inversão cromossômica [inv(10)]. Em um dos casais, a parceira apresentava duas alterações concomitantes: t(2;13) e der(13;14). Anormalidades cromossômicas foram verificadas em 5% dos casais com história de dois abortamentos, em 10,3% com três abortos e 14,3% com quatro ou mais abortos.
CONCLUSÕES: a frequência de anormalidades cromossômicas verificada neste estudo (9,3%) foi similar à da maior parte dos trabalhos realizados nos últimos 20 anos, a qual variou de 4,8 a 10,8%. Contudo, nos chamou a atenção o alto percentual de pacientes com mosaicismo. Acreditamos que este achado possa estar associado ao maior número de metáfases rotineiramente analisadas no presente serviço.
Palavras-chave: Aborto habitual; Aberrações cromossômicas; Análise citogenética; Cariotipagem; Translocação genética; Mosaicismo; Aconselhamento genético
ABSTRACT
PURPOSE: to asses the prevalence and clinical characteristics of couples with history of recurrent spontaneous abortion and chromosome abnormality, attended at the present service.
METHODS: all the couples referred to our service due to history of recurrent spontaneous abortion, from January 1975 to June 2008, were evaluated. Only the ones whose chromosome karyotype analysis by GTG bands has been successfully made were included in the study. Clinical data on their age, as well as on the number of abortions, stillbirth, multiple malformations, livebirth per couple, and the result of the karyotype exam were collected. Fisher's exact test (p<0.05) has been used to compare the incidence of chromosome alterations found in our study, with data in the literature.
RESULTS: there were 108 couples in the sample. Their ages varied from 21 to 58 years old among the men (average of 31.4 years old), and from 19 to 43 among the women (average of 29.9 years old). In ten couples, one of the mates (9.3%) presented chromosome alterations, which corresponded respectively to three cases (30%) of reciprocal translocation [two of t(5;6) and one of t(2;13)], two (20%) of Robertsonian translocation [two of der(13;14) and one of der(13;15)], five(50%) of mosaicism (mos) [two cases of mos 45,X/46,XX, one of mos 46,XX/47,XXX, one of mos 46,XY/47,XXY and one of mos 46,XY/47,XYY] and one (10%) of chromosome inversion [inv(10)]. In one of the couples, the female presented two concomitant alterations: t(2;13) and der(13;14). Chromosome abnormalities were found in 5% of the couples with a history of two abortions, in 10.3% with three abortions, and in 14.3% with four or more abortions.
CONCLUSIONS: the incidence of chromosome abnormalities seen in our study (9.3%) was similar to most of the studies carried out in the last 20 years, varying from 4.8 to 10.8%. Nevertheless the high percentage of patients with mosaicism in our sample, has called our attention. It is believed that this fact may be associated to the high number of metaphases ordinarily analyzed in the present service.
Keywords:Abortion, habitual; Chromosome aberrations; Cytogenetic analysis; Karyotyping; Translocation, genetic; Mosaicism; Genetic counseling
Introdução
O aborto espontâneo é o acontecimento adverso mais frequente da gravidez e afeta cerca de 10 a 20% de todas as gestações clinicamente diagnosticadas1-6. Acreditamos que este índice possa ser ainda maior pelo fato de que muitas mulheres podem não reconhecer que estão grávidas, e o aborto pode ser confundido com uma perda menstrual tardia. Com o aumento do uso de testes de gravidez caseiros, os abortos, principalmente os precoces, têm sido cada vez mais reconhecidos, resultando em mais casais procurando avaliação devido a perdas gestacionais. Perdas gestacionais recorrentes (PGR), ou abortos de repetição, são definidos como três ou mais perdas gestacionais, consecutivas ou não, clinicamente reconhecidas que ocorram antes da viabilidade fetal (menos de 24 semanas). Entretanto, na prática, casais com história de dois abortos usualmente já têm a sua avaliação iniciada3. As PGR têm sido descritas em 0,5 a 3% de todos os casais e são um problema frustrante, tanto para a paciente como para o seu médico3-5,7.
Apesar de todos os recursos atualmente disponíveis, em somente cerca de metade dos casos de PGR a etiologia é identificada3,4,7-9. Dentre os fatores de risco conhecidos, que incluem alterações anatômicas uterinas e distúrbios autoimunes e endocrinológicos, são destacadas as anormalidades cromossômicas, observadas em cerca de 3 a 5% destes casais2-5,9-12. Esta taxa é cerca de cinco a seis vezes maior do que aquela observada na população adulta em geral, que é de aproximadamente 0,6%. Quando uma anormalidade cromossômica que predispõe à formação de um zigoto anormal é encontrada, existe indicação do diagnóstico pré-natal em futuras gestações. Além disso, esta identificação é fundamental para um adequado aconselhamento genético do casal e de sua família3.
Assim, frente à importância do tema e à quase inexistência de estudos relacionados em nosso meio13, o objetivo deste trabalho foi verificar a prevalência e as características clínicas e citogenéticas de casais com história de abortos de repetição avaliados em um serviço da região Sul do Brasil.
Métodos
Este estudo incluiu todos os casais encaminhados no período de janeiro de 1975 a junho de 2008 ao Serviço de Genética Clínica da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e ao Complexo Hospitalar Santa Casa de Porto Alegre (CHSCPA) por história de PGR. Foi realizada uma análise retrospectiva das características clínicas e citogenéticas, com a revisão sistemática de suas fichas de atendimento. Foram incluídos no estudo somente os casais no qual a análise cromossômica foi realizada com sucesso por meio do cariótipo por bandas GTG (bandas G por tripsina e giemsa).
Este exame foi feito no Laboratório de Citogenética da UFCSPA e consistiu, resumidamente, na preparação de cultivos de linfócitos a partir de sangue periférico, aplicação de colchicina, choque hipotônico, fixação das células com solução de Carnoy e preparação das lâminas para posterior coloração cromossômica em bandas para análise ao microscópio. Neste estudo, foi verificada a presença tanto de anormalidades cromossômicas com significado patológico como de alterações consideradas variantes da normalidade (polimorfismos). Os últimos estão associados com anormalidades da heterocromatina constitutiva localizada próxima do centrômero de cada cromossomo (em especial os de número 1, 9 e 16), nos braços curtos e regiões de satélite(s) dos cromossomos acrocêntricos (que possuem o seu centrômero próximo à extremidade do cromossomo, ou seja, os cromossomos de números 13, 14, 15, 21 e 22) e na porção distal do braço longo do cromossomo Y (Yqh)1,14. No geral, foram analisadas 25 placas metafásicas por paciente. Em casos com suspeita de mosaicismo, este número foi expandido para cem. A descrição dos cariótipos foi realizada com base no International System for Human Cytogenetic Nomenclature (ISCN-2005), o sistema de nomenclatura padrão atualmente utilizado para descrição das alterações cromossômicas14.
Quanto às características clínicas, foram coletados dados referentes à idade dos pacientes no momento da primeira avaliação, bem como número de abortamentos, de crianças polimalformadas, de natimortos e de nativivos apresentados por cada casal. Os resultados das demais investigações realizadas pelos pacientes não foram incluídos neste trabalho devido à falta de acesso aos mesmos. O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Instituição.
Assim, a amostra final foi composta por 108 casais (216 indivíduos) cuja análise cromossômica foi realizada com sucesso. Suas idades variaram de 21 a 58 anos entre os homens (média de 31,4 anos) e de 19 a 43 anos entre as mulheres (média de 29,9 anos). O número de abortamentos por casal oscilou de dois a nove (média de 3,2), sendo que 41 casais (38%) apresentavam história de dois abortamentos; 39 (36%) de três abortos e 28 (26%) de quatro ou mais perdas gestacionais. Dois dos casais (1,9%) tinham tido um filho natimorto, sete (6,5%) uma criança polimalformada, 17 (15,7%) um filho nativivo e quatro (3,7%) dois filhos nativivos.
O processamento dos dados e a análise estatística foram realizados, respectivamente, com a criação de um banco de dados no programa Excel 6.0 e uso do programa PEPI para Windows. Para comparação da frequência das alterações cromossômicas encontrada em nosso estudo com a literatura, bem como das anormalidades cromossômicas verificada entre os diferentes subgrupos de nossa amostra, foi utilizado o teste exato de Fisher, considerando como significantes os valores de p<0,05.
Resultados
Alterações cromossômicas foram observadas em um dos parceiros em dez casais (9,3% da amostra) e corresponderam, respectivamente, a três casos (30%) de translocação recíproca [dois de t(5;6) e um de t(2;13)], dois (20%) de translocação Robertsoniana [um de der(13;14) e um de der(13;15)], cinco (50%) de mosaicismo (mos) envolvendo linhagens com alteração numérica dos cromossomos sexuais [dois casos de mos 45,X/46,XX, um de mos 46,XX/47,XXX, um de mos 46,XY/47,XXY e um de mos 46,XY/47,XYY] e um (10%) de inversão cromossômica [inv(10)]. Em um dos casais, a parceira apresentava duas alterações cromossômicas concomitantes: t(2;13) e der(13;14). O mosaicismo de menor grau foi observado no paciente com mos 46,XY/47,XYY, em que 3% das células de sua constituição cromossômica eram 47,XYY.
Cinco dos pacientes com anormalidades cromossômicas eram do sexo masculino e cinco do feminino (Tabela 1). Estas alterações foram verificadas, respectivamente, em 5% dos casais com história de dois abortamentos, em 10,3% com três abortos e 14,3% com quatro ou mais abortos, mas não houve diferença significativa entre estas frequências. Em um dos casos de t(5;6), foi realizada a avaliação cromossômica de outros familiares da paciente, com a verificação de que havia mais três pessoas portadoras equilibradas da mesma translocação (Figura 1). Nenhum dos casais com alterações cromossômicas apresentava história de ter tido um filho natimorto ou mesmo polimalformado. Três dos casais que tiveram um filho nativivo (17,6%) eram portadores de anormalidades cromossômicas [um dos pacientes com mos 46,XY/47,XXY, um com mos 46,XY/47,XYY, e o outro com 45,XX,t(2;13),der(13;14)].
Polimorfismos cromossômicos, por sua vez, foram observados em 3 dos 216 pacientes que compuseram o total da amostra (1,4%) e consistiram de um caso com inversão pericêntrica envolvendo a região heterocromática do cromossomo 9 [inv(9qh)], um de aumento da região de satélite do cromossomo 22 (22ps+) e outro de aumento da região de heterocromatina do braço longo do cromossomo Y (Yqh+) (Tabela 1).
Discussão
As anormalidades cromossômicas representam uma das principais causas conhecidas das PGR. Sua identificação é de grande importância, pois permite tanto a definição da etiologia das perdas gestacionais como influencia o manejo clínico e aconselhamento genético a ser ministrado ao casal e sua família. A frequência de anormalidades cromossômicas verificada em nosso estudo (9,3%) foi similar à encontrada na maior parte dos trabalhos realizados nos últimos 20 anos, que descreveram índices que oscilaram de 4,8 a 10,8%1,8,11,15-19. Foram observadas diferenças somente em relação aos estudos que verificaram valores entre 2,1 e 3,9%2,6,20. Muitos autores correlacionam esta variabilidade a diferenças de tamanho amostral e dos critérios de seleção adotados (como número de abortamentos por casal e exclusão daqueles com etiologia já definida)3,15,17. Em nosso caso, a amostra foi constituída de indivíduos previamente avaliados, especialmente pelo Serviço de Ginecologia, e que foram encaminhados para análise cromossômica. A frequência observada no presente estudo foi similar a dos trabalhos que avaliaram as maiores amostras de casais com PGR na literatura (Tabela 2).
De uma forma geral, cerca de metade a um terço das anomalias cromossômicas identificadas em casais com PGR é constituída de translocações recíprocas balanceadas, ou seja, rearranjos nos quais existe troca de segmentos entre cromossomos não-homólogos (diferentes) (Tabela 2). Este índice é concordante com o encontrado em nosso estudo, que foi de 30%. Além disso, a frequência das translocações entre o total de casais de nossa amostra (2,8%) foi muito superior à observada na população em geral, que é de 0,1%. Isto é um achado esperado, uma vez que portadores destes rearranjos apresentam um risco aumentado (de 50% ou mais) para um desequilíbrio cromossômico durante a gametogênese, devido à segregação meiótica desigual da translocação6,17. Apesar de não existirem pontos de quebra preferencialmente envolvidos nestas translocações, alguns deles têm sido mais frequentemente relatados, como 1q32, 2q33 e 2q37, 3p27, 4p15 e 4p16, 7q36, 9p24, 10q22 e 18q2117. Neste caso, contudo, nenhuma das translocações recíprocas identificadas envolveram tais pontos de quebra.
Por sua vez, translocações Robertsonianas (que envolvem dois cromossomos acrocêntricos com perda dos braços curtos e sua fusão pelos centrômeros, ou próximo a eles) têm sido relatadas em cerca de um quarto dos casos (as descrições feitas na literatura variam de 10 a 28%) (Tabela 2). Em nosso trabalho este índice foi bastante semelhante, de 20%. A maior parte destas translocações, tais como as que ocorreram em nossa amostra [der(13;14) e der(13;15)], envolvem os cromossomos do grupo "D", ou seja, os de número 13, 14 e 151,6,8,15,17. Estas translocações foram observadas em 1,9% dos casais de nossa amostra, uma frequência bastante superior à descrita na população em geral, que é de 0,1%. O rearranjo der(13;14) é considerado a translocação Robertsoniana mais comum, tanto entre casais com abortos recorrentes como na população em geral. Por sua vez, a translocação der(13;15) é bem menos frequente8,17.
Ambas as translocações, tanto recíprocas como Robertsonianas, são rearranjos balanceados, ou seja, indivíduos portadores das mesmas não apresentam alterações fenotípicas decorrentes deles (exceção feita somente para casos com microdeleções, ou pequenas deleções envolvendo os pontos de quebra cromossômica nos quais ocorreu a translocação, ou mesmo pela disrupção de genes localizados nestas regiões). Os riscos existentes restringem-se à sua prole, pois, dependendo da segregação ocorrida durante a gametogênese, pode haver a formação de fetos cromossomicamente não-balanceados e, consequentemente, não viáveis. Contudo, é importante estar ciente de que estes riscos são variáveis e dependentes especificamente do rearranjo cromossômico envolvido3,6,17.
A maior prevalência de translocações recíprocas sobre as Robertsonianas em casais com PGR deve-se, fundamentalmente, ao modo de segregação apresentado por estas anomalias durante a gametogênese. Tem sido observado que portadores de translocações recíprocas geram entre 18 a 72% de gametas não-balanceados, em contraste àqueles com translocações Robertsonianas que apresentam este desequilíbrio em somente 12 a 18% dos gametas produzidos19. Por outro lado, ao contrário do que ocorre nas translocações recíprocas, nas Robertsonianas ocorre um predomínio de portadores do sexo feminino sobre o masculino. Acreditamos que isto tenha relação com o fato de que o indivíduo portador do sexo masculino tende a apresentar, mais frequentemente, quadro de esterilidade do que as portadoras mulheres apresentam abortamentos1. Isto se deve à reduzida fertilidade dos espermatozoides não-balanceados produzidos1. Cabe lembrar também que, como vimos no caso da Figura 1, as translocações (tanto as recíprocas como as Robertsonianas) podem não se restringir somente ao casal em avaliação, mas também podem afetar outros membros da mesma família. Estes, da mesma forma, poderão se beneficiar de uma avaliação e aconselhamento genético pelos riscos à sua prole3. Entretanto, cabe salientar que este familiar deve se encontrar em idade suficiente para receber este tipo de informação e ter a possibilidade de optar pela investigação ou não com o exame de cariótipo.
O mosaicismo (situação na qual os indivíduos acometidos são portadores de mais de uma linhagem de células) envolve principalmente os cromossomos sexuais e tem sido descrito em 0 a 30,9% dos casos (Tabela 2), com uma média considerada de aproximadamente 12%10. Contudo, em nosso estudo este índice foi superior, de 50%, tendo sido estatisticamente similar somente aos trabalhos de Carp et al.11 e Elghezal et al.19 que encontraram valores, respectivamente, de 21,2 e 30,9%. Provavelmente este achado está relacionado com o maior número de metáfases rotineiramente analisadas em nosso serviço (25 metáfases) em relação ao preconizado na literatura e realizado na maior parte dos estudos (15 a 20). Esta hipótese é condizente com as descrições feitas na literatura, de que quanto maior o número de metáfases analisadas, maior a chance de se detectar um mosaicismo de menor grau (as análises, por exemplo, de 15, 20 e 25 metáfases são capazes de detectar, respectivamente, um mosaicismo de até 19, 14 e 12%, para um intervalo de confiança de 95%)21. Entretanto, não conseguimos encontrar uma correlação direta entre uma maior contagem de metáfases e índices mais elevados de mosaicismo entre os estudos descritos (Tabela 2).
Dentre os casos de mosaicismo, são destacados aqueles com síndrome de Turner1. Em nosso trabalho, estes foram observados em duas pacientes (40% dos casos de mosaicismo). Apesar de a concepção ser considerada rara nestes indivíduos, os riscos são considerados altos quando a gestação ocorre3. A incidência de aborto espontâneo e natimortos, por exemplo, varia nestas pacientes entre 25 e 30% e entre 6 e 8%, respectivamente. Isto se deve, principalmente, a anormalidades genéticas fetais, diminuição da função ovariana, disfunção autoimune, alteração na anatomia vascular útero-ovariana com perfusão diminuída e hipoplasia do útero, além de anormalidades uterinas subclínicas22,23. Mulheres apresentando mosaicismo para uma linhagem celular normal e outra com triplo X (mos 46,XX/47,XXX) também têm sido descritas em amostras de casais com PGR3,10,17. Contudo, ainda não se sabe qual é a verdadeira correlação deste achado com a etiologia dos abortos.
Apesar de a maioria das mulheres 47,XXX apresentarem um desempenho reprodutivo satisfatório, para alguns a presença de células 47,XXX talvez possa ser um fator adverso para a qualidade dos seus oócitos. Além disso, o mosaicismo pode ser um sinal de controle genético alterado, que pode levar a não-disjunção dos cromossomos23.
No presente estudo foram encontrados dois pacientes com síndrome de Klinefelter em mosaico (com uma linhagem 47,XXY e outra normal) e um com constituição cromossômica mos 46,XY/47,XYY. Indivíduos com síndrome de Klinefeleter usualmente apresentam infertilidade. Contudo, casos com esta síndrome e de pacientes com mos 46,XY/47,XYY têm sido encontrados entre casais com história de PGR2,10,17. Alguns autores têm relatado que estes pacientes possuiriam uma tendência aumentada de formar espermatozoides com anormalidades cromossômicas secundárias ao fenômeno de não-disjunção, o que levaria a uma maior formação de fetos não-viáveis24,25.
As inversões, rearranjos nos quais há uma inversão de um segmento cromossômico que pode (pericêntricas) ou não (paracêntrica) envolver o centrômero, e outras anormalidades esporádicas, como deleções (no qual há deficiência, ou falta de um segmento cromossômico) e cromossomos marcadores (cuja origem não foi identificada), são observadas em cerca de 14% dos casais3. Contudo, este índice está se mostrando bastante variável na literatura, variando de 9 a 67% (Tabela 2). Em nosso trabalho, estas anormalidades foram identificadas em 10% dos casos, e consistiram de apenas uma paciente com inversão pericêntrica do cromossomo 10. Esta não possuía anormalidades fenotípicas, pois este rearranjo, da mesma forma que as translocações recíprocas e Robertsonianas, é usualmente equilibrado. Contudo, sabemos que portadores de inversão podem formar gametas não-balanceados e, consequentemente, terem maiores chances de fetos não viáveis em suas gestações. No momento do pareamento dos cromossomos, durante a meiose, ocorre a formação de uma alça de inversão entre o cromossomo normalmente estruturado e o portador da inversão. Uma recombinação que ocorra na alça invertida poderá levar à formação de novos rearranjos, como um cromossomo dicêntrico e um fragmento acêntrico. O comprimento do segmento cromossômico invertido parece ser um fator decisivo para a determinação da inviabilidade de uma inversão pericêntrica em uma prole, pois gametas geneticamente não-balanceados apresentam maior chance de surgirem a partir de uma grande alça de inversão do que de uma pequena17. Da mesma forma que nas translocações, nestes casos existe indicação da avaliação cromossômica de outros integrantes diretos da família, pois os mesmos também podem ser portadores assintomáticos da mesma inversão e apresentarem riscos para a sua prole.
Apesar da frequência de alterações cromossômicas entre os casais aumentar de acordo com o maior número de abortamentos, em nosso estudo não houve diferença significante entre os diferentes subgrupos. Essa observação é concordante com a maior parte dos trabalhos descritos na literatura, o que justifica o início da avaliação cromossômica de casais com história de pelo menos dois abortamentos1,8,17,19. Apesar de nenhum dos casais com anormalidade cromossômica de nossa amostra ter tido história de uma criança natimorta ou mesmo polimalformada, sabemos que os mesmos apresentam um maior risco para tal fato8,17,19. Por outro lado, o nascimento de uma criança normal, antes ou entre os abortamentos, não exclui a presença de anormalidades cromossômicas8, pois, como vimos em nosso estudo, três dos casais que tiveram pelo menos um filho nativivo (14,3%) eram portadores destas alterações.
A frequência de polimorfismos encontrada (1,4%) foi semelhante à descrita na literatura, que oscila de 1,8 a 2,4%1,8,16,20. A inv(9qh) é considerada a inversão pericêntrica mais frequentemente encontrada em humanos6. Esta foi observada em 0,5% do total de indivíduos que compuseram a amostra (ou seja, um caso em 216), sendo similar à descrita tanto entre casais com PGR como na população em geral (cerca de 1%)1,2,6,8,16,18,20,25. Apesar disso, alguns autores sugerem a associação deste polimorfismo a uma série de situações, incluindo infertilidade, condições clínicas anormais (como transtornos psiquiátricos) e PGR2,20,26-28.
Assim, nossos achados reforçam a importância da análise cariotípica dentro da avaliação de casais com história de PGR. A opção de tentar uma nova gestação e de se realizar o diagnóstico pré-natal com a biópsia de vilosidade coriônica ou amniocentese deveria ser sempre discutida com os casais, se um dos cônjuges for portador de uma anormalidade cromossômica. Nos casos de alterações citogenéticas estruturais (como translocações e inversões com significado patológico), a avaliação cariotípica deveria também se estender a outros membros diretos da família, pois alguns deles podem também ser portadores do mesmo rearranjo cromossômico. Além disso, acreditamos que uma maior contagem de placas metafásicas durante a análise cromossômica poderia levar à identificação de mais casos de mosaicismo. Entretanto, somente estudos futuros, incluindo um número maior de indivíduos, poderão definir a real relevância desta forma de análise.
É importante estar ciente também de que certas alterações cromossômicas identificadas na análise cariotípica representam variantes normais da população (polimorfismos) que não possuem significado patológico. Desta forma, as informações de risco a serem cedidas aos casais deveriam ser sempre realizadas por médicos habilitados, cientes destes conceitos e com ampla experiência na área da citogenética clínica.
Recebido 13/1/09
Aceito com modificações 9/2/09
Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre - UFCSPA e Complexo Hospitalar Santa Casa de Porto Alegre - CHSCPA - Porto Alegre (RS), Brasil.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
22 Abr 2009 -
Data do Fascículo
Fev 2009
Histórico
-
Recebido
13 Jan 2009 -
Aceito
09 Fev 2009