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A história importa

History Matters

THOMPSON, E. P.. A miséria da teoria e outros ensaios. Tradução de Sobral, Adail. . Petrópolis, RJ: Vozes, 2021.

Era ansiosamente esperada a volta de A miséria da teoria às livrarias brasileiras, visto que os últimos exemplares de uma primeira edição da antiga Zahar Editores já há muito tempo tornaram-se raridades. Foram quarenta anos de espera! Sirva de consolo termos agora uma edição mais completa e melhor traduzida. Desta vez, a Editora Vozes não descuidou de incluir todos os ensaios reunidos por E. P. Thompson (1924-1993) para a edição original inglesa de 1978. Na verdade, o novo exemplar baseou-se numa edição mais recente, lançada em 1995, pouco tempo após a morte do autor, sob os cuidados da companheira Dorothy Thompson (1923-2011). É dela o revelador prefácio também inserido na nova edição brasileira.

Sabe-se bem que A miséria da teoria, ensaio apaixonado e de grande inspiração, constitui a mais potente declaração de princípios teóricos e políticos da vasta obra de Thompson. Seu surgimento deveu-se à emergência da filosofia estruturalista de Louis Althusser (1918-1990), intelectual ligado ao Partido Comunista Francês cuja leitura da obra de Marx adquiriu um grande número de adeptos em vários países. Para o filósofo francês, haveria na trajetória intelectual de Karl Marx um verdadeiro corte epistemológico fundante de uma nova filosofia revolucionária: o materialismo dialético. Althusser rejeitava os temas humanistas e hegelianos presentes especialmente nas obras de juventude de Marx. Somente em sua maturidade, especialmente quando escreveu O Capital, Marx teria se livrado das influências ideológicas dos primeiros anos, tornando o materialismo dialético uma verdadeira ciência. Althusser delimitava o marxismo como uma “prática teórica” avessa às pressões da realidade. O conhecimento histórico nada mais seria que um conteúdo de empirismo banal (Cf.Althusser, 2015ALTHUSSER, Louis. Por Marx. Tradução de Maria Leonor F. R. Loureiro. Campinas: Editora Unicamp, 2015.).

De início, Thompson não reconheceu importância no surgimento da filosofia althusseriana. Considerava-a como mais um modo platônico de pensamento, uma concepção religiosa que, por meios exegéticos, procurava extrair a verdade das obras de Karl Marx como uma escritura sagrada. Mas, como Dorothy Thompson registra no prefácio, aquela perspectiva de repente ganhou força entre alunos de pós-graduação e alguns jovens historiadores e estudiosos da literatura, que “começaram a declarar que a história é uma não disciplina e que seu estudo não tem valor algum” (Thompson, 2021THOMPSON, E. P. A miséria da teoria e outros ensaios. Tradução de Adail Sobral. Petrópolis, RJ: Vozes, 2021., p. 10). Numa curta temporada de duas semanas de isolamento às margens do Lago de Garda (na Itália), Edward e Dorothy redigiram A miséria da teoria como um ataque implacável e mordaz, compondo uma paródia bem-humorada do edifício teórico de Althusser. Obviamente, o título escolhido seguia a inspiração polêmica de Karl Marx quando escreveu A miséria da filosofia contra a Filosofia da miséria de Proudhon.

O ensaio de Thompson demonstrou como a prática teórica de Althusser era de fato idealista, que sua noção de causalidade estruturalista era abstrata, que sua concepção de formação social era estática e mecânica, infensa a mudanças ou transformação social. Contra a noção de uma realidade epistemologicamente neutra e inerte proposta por Althusser, enfatizou o quanto a experiência real e viva interferia nos processos do conhecimento. Eis uma passagem incisiva:

A experiência entra sem bater à porta e anuncia mortes, crises de subsistência, guerras de trincheira, desemprego, inflação, genocídio. Pessoas morrem de fome: seus sobreviventes pensam o mercado de novas maneiras. Pessoas são presas: na prisão, pensam de novos modos sobre as leis. Diante dessas experiências gerais, antigos sistemas conceptuais podem ruir e novas problemáticas insistir em impor sua presença. Essa apresentação imperativa de efeitos do conhecimento não está prevista na epistemologia de Althusser, que é a de um recipiente - um fabricante que não se importa com a origem de sua matéria-prima, desde que ela chegue a tempo (Thompson, 2021THOMPSON, E. P. A miséria da teoria e outros ensaios. Tradução de Adail Sobral. Petrópolis, RJ: Vozes, 2021., p. 30).

Para Thompson, uma concepção materialista da história não poderia ser reduzida à captura de um procedimento teórico abstrato e validado no isolamento do pensamento filosófico. Pelo contrário, enfatizava a importância do “discurso relevante de comprovação” característico do conhecimento histórico que, por sua natureza própria, era provisório e seletivo (mas não, por isso, inverídico). Afinal, a história constitui um conhecimento “limitado e definido pelas perguntas feitas às evidências” (Thompson, 2021THOMPSON, E. P. A miséria da teoria e outros ensaios. Tradução de Adail Sobral. Petrópolis, RJ: Vozes, 2021., p. 74) da realidade. Nesse sentido, muitas vezes se afasta dos paradigmas científicos convencionais. Mas, dessa forma incompleta e imperfeita, a história como disciplina mostrava-se apropriada à investigação racional dos processos do passado. Tendo uma lógica própria (a lógica histórica, a lógica derivada do diálogo entre hipóteses explicativas e evidências do passado), a história só poderia ser um saber alicerçado em categorias elásticas e abertas a grandes irregularidades. Afinal de contas, asseverou Thompson, a própria história “não conhece verbos regulares” (Thompson, 2021THOMPSON, E. P. A miséria da teoria e outros ensaios. Tradução de Adail Sobral. Petrópolis, RJ: Vozes, 2021., p. 84).

Ainda que pudesse contar com consistentes referências nos escritos de Marx e Engels para sustentar suas objeções a Althusser, Thompson negou-se a transformar seu ensaio num novo tratado de “marxologia”. Não obstante, é notável como as ideias dos fundadores do materialismo histórico são abordadas em A miséria da teoria. Thompson compreende que Marx e Engels, uma vez tendo esboçado sua concepção materialista da história na década de 1840, dedicaram-se, pelo resto de suas vidas, a encontrar, nos mais diferentes campos do conhecimento, não a confirmação de uma verdade irretocável, porém, antes, novas evidências e descobertas.

E. P. Thompson compreendeu que a obsessão de Marx na escrita de O Capital o aprisionou durante vinte anos num hercúleo esforço de refutação às leis e categorias da Economia Política. Mas a fatura cobrou seu preço. Ainda que Marx tenha, por diversas vezes, ridicularizado as pretensões da ciência econômica burguesa de revelar leis fixas e eternas, independentes das especificidades históricas, terminou prisioneiro da crítica a essas mesmas categorias aistóricas, naquilo que Thompson chamou de uma “anti-estrutura”, somente superada a muito custo.

O materialismo histórico não deveria ser identificado (como queria Althusser) com esse que era, na verdade, apenas um momento de um processo de desenvolvimento na investigação de Marx. As categorias de O Capital não esgotavam todas as possibilidades do materialismo histórico. Marx e Engels, segundo Thompson, basicamente apenas formularam as hipóteses gerais que uma tradição marxista aberta e exploratória haveria de enriquecer. Para tanto, o materialismo histórico necessitou se apropriar de novos conhecimentos e formular novos conceitos. Necessitou enfrentar determinados “termos de junção” situados entre diferentes disciplinas analíticas ou na zona de fronteira entre as estruturas e os processos.

Os historiadores marxistas, como sujeitos ativos desse movimento, viram-se confrontados com um termo ausente em Marx: a experiência.

O que descobrimos está (em minha opinião) em uma expressão que falta: “experiência humana”. É exatamente essa expressão que Althusser e seus seguidores desejam expulsar, com injúrias, do clube do pensamento, sob o nome de “empirismo”. Os homens e mulheres também retornam como sujeitos no âmbito dessa expressão - não como sujeitos autônomos, “indivíduos livres”, mas como pessoas que vivenciam suas situações e relações de produção determinadas como necessidades, interesses e antagonismos, e em seguida “lidam” com essa experiência em sua consciência e sua cultura (dois outros termos excluídos pela prática teórica) das mais complexas maneiras (sim, “relativamente autônomas”) e então (frequentemente, mas nem sempre, mediante as estruturas de classe resultantes) agem, por sua vez, sobre sua situação determinada (Thompson, 2021THOMPSON, E. P. A miséria da teoria e outros ensaios. Tradução de Adail Sobral. Petrópolis, RJ: Vozes, 2021., pp. 253-254).

O estruturalismo abraçado por Louis Althusser pareceu a Thompson uma nova versão do stalinismo, com “um vocabulário burguês, uma apologia do status quo, bem como um ataque aos hereges ‘utópicos’ e ‘mal-adaptados’.” (Thompson, 2021THOMPSON, E. P. A miséria da teoria e outros ensaios. Tradução de Adail Sobral. Petrópolis, RJ: Vozes, 2021., pp. 125-126). Era uma teoria ossificada, “produto daquele momento […] de estase ideológica polarizada no auge da Guerra Fria” (Thompson, 2021THOMPSON, E. P. A miséria da teoria e outros ensaios. Tradução de Adail Sobral. Petrópolis, RJ: Vozes, 2021., p. 132). O pensamento de Althusser prestava-se à recuperação de uma ordem interessada em evitar o debate e a crítica radical. Como enfatizou o professor Marcelo Badaró Mattos, o projeto intelectual sustentado por E. P. Thompson visava, bem pelo contrário, fomentar a crítica ativa do materialismo histórico (Mattos, 2012MATTOS, Marcelo Badaró. E. P. Thompson e a tradição de crítica ativa do materialismo histórico. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2012.).

Apenas uma leitura integral de A miséria da teoria permite perceber o alcance abrangente da diretiva polêmica contra o estruturalismo de Althusser. E. P. Thompson visava ainda confrontar uma nova geração de acadêmicos - “mais segregados do que nunca com relação à prática” e que “trabalham em instituições complexamente estruturadas, segundo ‘horários’ e programas” (Thompson, 2021THOMPSON, E. P. A miséria da teoria e outros ensaios. Tradução de Adail Sobral. Petrópolis, RJ: Vozes, 2021., p. 174) -, intelectuais muito pouco afeiçoados aos procedimentos da observação e ao engajamento empírico. Eram essas as características de certa parcela de acadêmicos de esquerda, tal como Thompson encontrou numa primeira geração pós-1968.

A miséria da teoria foi um ensaio com o qual o autor visava especialmente constituir um artefato destinado à polêmica, pois era no franco e aberto confronto de ideias que Thompson encontrava-se mais à vontade. Como ressaltaria Bryan D. Palmer, “o debate era algo como uma metodologia imperativa” para Thompson (Palmer, 2013PALMER, Bryan D. A História enquanto debate: a análise contestadora de “A Formação da Classe Operária Inglesa”. Revista Mundos do Trabalho, Florianópolis, v. 5, n. 10, pp. 13-35, jul./dez. 2013., p. 13). Ou, como o próprio Thompson confessou, “é somente enfrentando a oposição que tenho condições de definir meu pensamento” - comparando-se a uma abetarda que, por “uma lei bem conhecida da aeronáutica, só pode levantar voo contra um forte vento de proa” (Thompson, 2021THOMPSON, E. P. A miséria da teoria e outros ensaios. Tradução de Adail Sobral. Petrópolis, RJ: Vozes, 2021., p. 558).

Afinal de contas, a polêmica não era nenhuma novidade na trajetória engajada de Thompson. Na verdade, A miséria da teoria representou uma retomada pública do autor após a dispersão de uma primeira geração de ativistas que haviam formado a chamada Nova Esquerda britânica no decênio após os acontecimentos de 1956 - a crise do movimento comunista internacional ocasionada pelas revelações dos crimes de Stalin no XX Congresso do PCUS e pela sangrenta repressão soviética contra a Revolução Húngara. O declínio da primeira geração da Nova Esquerda marcou, para Thompson, o “momento de o pensar se encerrar em sua cabana” (Thompson, 2021THOMPSON, E. P. A miséria da teoria e outros ensaios. Tradução de Adail Sobral. Petrópolis, RJ: Vozes, 2021., p. 14), tamanha a “sensação de isolamento” que se tornou dominante. Quando resolveu “sair da cabana”, na segunda metade da década de 1970, sentiu a necessidade de explicar sua trajetória, recuperando seus passos.

Eis a motivação para Thompson reunir, na publicação de A miséria da teoria, outros três de seus ensaios mais corrosivos: “Fora da baleia” (originalmente publicado na coletânea Out of apathy, de 1960), “As peculiaridades dos ingleses” e “Carta aberta a Leszek Kolakovski” (ambos publicados na revista Socialist Register, respectivamente em 1965 e 1973)1 1 Já existiam edições brasileiras em separado de As peculiaridades dos ingleses e Carta Aberta a Leszek Kolakowski. Cf. Thompson (2001) e Müller; Duayer (2019). . Três momentos diferentes, em que a intervenção polêmica saiu a campo contra argumentações que visavam desacreditar o engajamento intelectual e adequar o pensamento crítico a padronizações conformistas.

No caso de Fora da baleia, o argumento voltou-se contra George Orwell (1903-1950) e seus escritos da fase do segundo pós-guerra. Orwell, como outros importantes expoentes da geração de 1930, formada no vívido espírito das lutas antifascistas, canalizou suas desilusões com a emergência da Guerra Fria para uma perspectiva cética e niilista. Tratava-se de uma postura que, durante uma década inteira, “contaminou toda a confiança do homem social e prendeu Orwell nas negações de 1984” (Thompson, 2021THOMPSON, E. P. A miséria da teoria e outros ensaios. Tradução de Adail Sobral. Petrópolis, RJ: Vozes, 2021., p. 324). Para Thompson, semelhante perspectiva estava associada ao tempo em que prevaleceu “uma polarização da consciência humana que correspondia à polarização do poder mundial” (Thompson, 2021THOMPSON, E. P. A miséria da teoria e outros ensaios. Tradução de Adail Sobral. Petrópolis, RJ: Vozes, 2021., p. 302).

À ortodoxia soviética, definida pela censura, pelas instituições repressivas e pelo endosso (confirmado ou revisado) à figura de uma autoridade guia do proletariado, correspondia a variedade ideológica do “mundo livre” que reivindicava a diversidade de tendências intelectuais, o caráter indeterminado e mutante dos limites do pensamento e a liberdade da divergência (incluindo a conveniente oposição ao stalinismo), moldando “a ilusão central da cultura ‘otanopolitana’” (Thompson, 2021THOMPSON, E. P. A miséria da teoria e outros ensaios. Tradução de Adail Sobral. Petrópolis, RJ: Vozes, 2021., p. 303) - um neologismo com o qual Thompson ironizava o polo de poder ordenado pela Organização do Tratado do Atlântico Norte, a OTAN. Enxergando na ideologia um “componente ativo da apatia”, Thompson sintetizou:

Percorria toda a Europa não só a fronteira do poder, como também uma falha cultural. E essa falha se manifestou no âmbito da mente de homens individuais de ambos os lados da divisão. Ela vai ocupar sua posição entre aquelas suposições sobre a natureza do homem, e sobre a maneira pela qual os homens fazem, ou não podem fazer, sua própria história que constituem a base da maioria das disciplinas. E embora as pressões que induzem à conformidade pareceram de vez em quando esmagadoras dos dois lados, nunca foi inevitável que as mentes individuais devessem submeter-se a elas (Thompson, 2021THOMPSON, E. P. A miséria da teoria e outros ensaios. Tradução de Adail Sobral. Petrópolis, RJ: Vozes, 2021., p. 304).

Acusando a apostasia como uma “abdicação da responsabilidade intelectual diante de toda experiência social”, Thompson via, nos novos quietistas dos anos 1950, a adesão a certo pensamento doutrinário maniqueísta pronto a condenar qualquer “projeto de demolição em grande escala” como “blasfêmia”. A “grande verdade otanopolitana” teria sido há muito anunciada por Henry Ford, quando declarou que “a história é uma bobagem”, uma expressão vista por Thompson como “uma moral determinista não menos rígida do que o stalinismo ortodoxo” (Thompson, 2021THOMPSON, E. P. A miséria da teoria e outros ensaios. Tradução de Adail Sobral. Petrópolis, RJ: Vozes, 2021., p. 315).

As peculiaridades dos ingleses, de 1965, traz a marca das mudanças de trajetória do movimento da Nova Esquerda britânica. Composto em estilo indignado e malicioso, o ensaio voltava-se contra a tendência assumida pela New Left Review após a transferência da direção editorial para as mãos do então jovem Perry Anderson (1938-). A “nova” versão da revista abandonava os assuntos que marcaram os debates dos primeiros anos pós-1956, provocando o alinhamento ao que Thompson encarava como uma matriz teórica fechada do marxismo ocidental. O ensaio concentra-se na refutação dos argumentos de Perry Anderson e Tom Nairn (1932-), que atribuíam a crise britânica e de seu movimento operário às raízes históricas nacionais de um país cuja burguesia nunca fora revolucionária, nunca convivera com os estímulos de um ambiente iluminista, restando-lhe uma cultura de classe tradicionalista, religiosa e orientada por um empirismo filosófico mesquinho e provinciano. A limitada ideologia burguesa na Inglaterra teria deixado seu legado num movimento operário que nunca fora revolucionário, nunca constituíra uma tradição marxista autêntica, entrincheirando-se num lamentável conservadorismo sindical.

E. P. Thompson, que rejeitava tudo isso, esgrimiu, em As peculiaridades dos ingleses, um largo conhecimento historiográfico em defesa da história inglesa e de suas tradições radicais. Aqui, a lógica histórica assume uma importante função na polêmica. Em mais de cem páginas de um texto repleto de nuances, recursos retóricos e construção de imagens, Thompson buscou derrubar visões esquemáticas da histórica, sustentando que o processo social inglês não se prestava a uma linha de interpretação calcada no modelo de revolução proposto por Anderson e Nairn. Como o autor revelou numa entrevista, As peculiaridades dos ingleses trazia uma “espécie de mapa esquemático” para diversos estudos posteriores (Merril, 2014MERRIL, Michael. Uma entrevista com E. P. Thompson (1976). Revista História & Perspectivas, Uberlândia, n. especial, pp. 417-445, jan./jun. 2014., p. 434).

Por último, ali está a Carta aberta a Leszek Kolakowski, ensaio de 1973 com acentuado tom pessoal. Kolakowski (1927-2009), filósofo polonês que havia tido participação destacada na Nova Esquerda, chegava à Inglaterra naquele momento como exilado do Leste Europeu, mas revelava-se, numa postura antimarxista, como um renegado do socialismo que desferia ataques à esquerda tanto do Leste quanto do Oeste, numa linha partidária de direita. Em sua carta aberta, Thompson dizia-se atingido pelas “injúria e traição” de Kolakowski, mobilizando antigos argumentos do próprio filósofo polonês contra os conteúdos de seus escritos recentes, que passavam a considerar a “visão unitária de homem” de Marx como um prenúncio totalitário. Dos muitos e variados assuntos abordados, destaca-se o entendimento de Thompson a respeito das diferentes posturas intelectuais possíveis em relação ao marxismo, dentre as quais reivindica aquela que via, no escopo de conhecimentos originalmente formulados por Marx, uma “tradição” à qual o autor reivindicava pertencer. Era essa uma modalidade de relação com o marxismo capaz de evitar tanto o dogmatismo quanto o ecletismo dissoluto. Situar-se numa tradição marxista seria, para Thompson, estabelecer um diálogo privilegiado com a obra e os conceitos de Marx (e as apropriações dos marxistas) sem recair num campo de ideias autovalidadas.

Thompson via o (e se via no) marxismo como uma tradição criativa, avessa à ortodoxia e que se renovava a cada desafio apresentado pelo fluxo histórico. Dizia: “A questão (para quem se diz pertencente a esta tradição) é menos a de definir a tradição em si do que a de definir a posição que ocupa em seu âmbito” (Thompson, 2021THOMPSON, E. P. A miséria da teoria e outros ensaios. Tradução de Adail Sobral. Petrópolis, RJ: Vozes, 2021., p. 461). E é o que fez quando escreveu:

Ser historiador marxista na Grã-Bretanha significa trabalhar no âmbito de uma tradição fundada por Marx, enriquecida por formulações independentes e complementares de William Morris e ampliada em épocas recentes de maneiras especializadas por homens e mulheres como V. Gordon Childe, Maurice Dobb, Dona Torr e George Thomson, bem como ter como colegas estudiosos como Christopher Hill, Rodney Hilton, Eric Hobsbawm, V. G. Kiernan (Thompson, 2021THOMPSON, E. P. A miséria da teoria e outros ensaios. Tradução de Adail Sobral. Petrópolis, RJ: Vozes, 2021., p. 469).

É notável como Thompson tomava a tradição marxista num processo de expansão em que “uma tradição fundada por Marx” era “enriquecida por formulações independentes e complementares”. Trata-se de um modo de pensar aberto a revisões.

Seria a própria Dorothy Thompson quem reconheceria que, como trabalho teórico definitivo, A miséria da teoria era um ensaio com muitas falhas: “muito mais uma defesa da história do que uma exposição de uma alternativa à visão althusseriana do marxismo” (Thompson, 2021THOMPSON, E. P. A miséria da teoria e outros ensaios. Tradução de Adail Sobral. Petrópolis, RJ: Vozes, 2021., p. 11). E a reação afetada demonstrada pelos primeiros leitores de A miséria da teoria confirma a capacidade que Thompson tinha em fazer de seus escritos verdadeiros artefatos de provocação. Em plena Guerra Fria, Thompson desafiava as ortodoxias e estimulava o não-alinhamento do pensamento. Libertário e utópico, não se furtava ao combate das ideias, enfatizando sempre a importância da experiência humana nas lutas de classe e defendendo que a história importa e pode se constituir numa de nossas principais armas. Hoje, tempo em que o pensamento hegemônico pós-Guerra Fria se revelou ainda mais anticomunista do que no passado, as ideias de E. P. Thompson continuam desconcertantemente atuais:

Eis um mal momento em que viver a mente racional: para uma mente racional da tradição marxista, trata-se de uma época insuportável. […] A experiência do fascismo, do stalinismo, do racismo e do fenômeno contraditório da “afluência” da classe operária em setores de economias capitalistas está irrompendo e exigindo de nós a reconstrução de nossas categorias. Mais uma vez, testemunhamos o “ser social” determinando a “consciência social”, à medida que a experiência se impõe ao pensamento e o pressiona. […] Eis uma época em que a razão deve ranger os dentes. Conforme o mundo se altera, devemos aprender a alterar nossa linguagem e nossos termos. Mas nunca deveríamos mudá-los sem razão (Thompson, 2021THOMPSON, E. P. A miséria da teoria e outros ensaios. Tradução de Adail Sobral. Petrópolis, RJ: Vozes, 2021., pp. 53-53).

A nova publicação de A miséria da teoria permitirá que uma nova geração finalmente conheça uma das obras que estiveram na base de formação da história social brasileira nas últimas décadas. Oxalá possa novamente estimular nossa razão a ranger os dentes no enfrentamento dos imensos desafios de nossa sociedade.

REFERÊNCIAS

  • ALTHUSSER, Louis. Por Marx. Tradução de Maria Leonor F. R. Loureiro. Campinas: Editora Unicamp, 2015.
  • MATTOS, Marcelo Badaró. E. P. Thompson e a tradição de crítica ativa do materialismo histórico. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2012.
  • MERRIL, Michael. Uma entrevista com E. P. Thompson (1976). Revista História & Perspectivas, Uberlândia, n. especial, pp. 417-445, jan./jun. 2014.
  • MÜLLER, Ricardo Gaspar; DUAYER, Mario (Orgs.). A carta aberta de E. P. Thompson a L. Kolakowski e outros ensaios. Tradução de Taís Blauth. Florianópolis: Editora Em Debate, 2019.
  • PALMER, Bryan D. A História enquanto debate: a análise contestadora de “A Formação da Classe Operária Inglesa”. Revista Mundos do Trabalho, Florianópolis, v. 5, n. 10, pp. 13-35, jul./dez. 2013.
  • THOMPSON, E. P. A miséria da teoria e outros ensaios. Tradução de Adail Sobral. Petrópolis, RJ: Vozes, 2021.
  • THOMPSON, E. P. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Organização de Antonio Luigi Negro e Sergio Silva. Campinas: Editora da Unicamp, 2001
  • 1
    Já existiam edições brasileiras em separado de As peculiaridades dos ingleses e Carta Aberta a Leszek Kolakowski. Cf. Thompson (2001THOMPSON, E. P. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Organização de Antonio Luigi Negro e Sergio Silva. Campinas: Editora da Unicamp, 2001) e Müller; Duayer (2019MÜLLER, Ricardo Gaspar; DUAYER, Mario (Orgs.). A carta aberta de E. P. Thompson a L. Kolakowski e outros ensaios. Tradução de Taís Blauth. Florianópolis: Editora Em Debate, 2019.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    22 Abr 2022
  • Aceito
    01 Ago 2022
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