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A redenção do cativeiro pelos irmãos crioulos

Redemption from Captivity by the Creole Brothers

TEIXEIRA, Vanessa Cerqueira. . A quebra dos grilhões: devoção mercedária e crioulização em Minas Gerais (1740-1840). Belo Horizonte: Páginas Editora, 2022.

Consistindo, em sua versão original, numa tese de Doutorado defendida na Universidade Federal de Ouro Preto em 2021, classificada, no início de 2023, em primeiro lugar no 8º Prêmio de Teses da ANPUH Nacional, a excelência do trabalho de Vanessa Cerqueira torna premente a sua discussão pelo público interessado no campo de estudos em que está situado. Em primeiro lugar, serão pontuadas algumas contribuições no âmbito dos estudos da vida associativa religiosa da América portuguesa. Em seguida, será visto o modo como a obra se insere no referido campo, ao qual agrega novas contribuições e perspectivas.

A historiografia a respeito das irmandades religiosas estabelecidas na América portuguesa constitui um campo fértil de estudos. Há sessenta anos, apareceu a primeira edição da obra de Fritz Teixeira de Salles. Dedicando-se às irmandades e ordens terceiras fundadas no século XVIII na Capitania das Minas, é possível afirmar que coube ao autor o pioneirismo de analisá-las em função das questões próprias da História Social. Dentro desse leque, cabe destacar um ponto em particular: a análise das hierarquias sociais existentes entre as diferentes irmandades, estabelecidas predominantemente em função de barreiras étnicas (Salles, 1963SALLES, Fritz Teixeira de. Associações religiosas do ciclo do ouro: introdução ao estudo do comportamento social das irmandades de Minas no século XVIII. Belo Horizonte: Universidade de Minas Gerais, 1963.; Salles, 2007SALLES, Fritz Teixeira de. Associações religiosas do ciclo do ouro. 2ª Ed. rev. e ampl. São Paulo: Perspectiva, 2007.). Ocupando uma posição privilegiada, irmandades e ordens terceiras eram reservadas a brancos de nascimento, sem “máculas” na ascendência. No campo oposto concentravam-se irmandades cujo recrutamento estava reservado a homens e mulheres de origem africana. Por fim, oriundas da profunda miscigenação racial ocorrida no território das Minas, existiam as irmandades compostas por “homens pardos” e “crioulos”, em que figuravam em lugar de destaque as numerosas associações locais dedicadas ao culto de Nossa Senhora das Mercês, enfocadas pelo estudo de Vanessa Teixeira.

Na década de 1970, a análise das irmandades segundo a perspectiva da estratificação social foi renovada a partir de outros enfoques. Podem ser destacadas as contribuições de dois autores: A. J. R. Russell-Wood e Julita Scarano. O primeiro autor afirmou que as irmandades coloniais atuaram como “amortecedores de choques sociais, absorvendo os excessos de cada setor, fornecendo um ponto de convergência para elementos semelhantes, e criando um órgão vocal para defender a atuação de cada grupo contra interesses opostos” (Russell-Wood, 1970RUSSELL-WOOD, Anthony John R. Aspectos da vida social das irmandades leigas da Bahia no século XVIII. Universitas, Salvador, n. 6/7, pp. 189-204, 1970., p. 193). Anos mais tarde, o autor desenvolveu esse argumento em outro texto, detalhando os aspectos da vida social que foram objeto de ação das irmandades de negros e de mestiços: a educação religiosa ou o socorro espiritual; a assistência médica e funerária; e a busca de identidade étnica (Russell-Wood, 1974RUSSELL-WOOD, Anthony John R. Black and Mulato Brotherhoods in Colonial Brazil: A Study in Collective Behavior. Hispanic American Historical Review, Durhan, v. 54, n. 4, pp. 567-602, 1974.; Russell-Wood, 2005RUSSELL-WOOD, Anthony John R. Comportamento coletivo: as irmandades. In: RUSSELL-WOOD, Anthony John R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. pp. 191-231.). Quase simultaneamente, em uma obra de caráter mais monográfico, Julita Scarano dedicou-se também à análise dos referidos aspectos, com destaque para o caráter assistencial e identitário assumido pela irmandade negra do Distrito Diamantino (Scarano, 1978SCARANO, Julita. Devoção e escravidão: a irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Distrito Diamantino no século XVIII. 2ª Ed. São Paulo: Editora Nacional, 1978.). Nos estudos mencionados nesse parágrafo, as irmandades são abordadas predominantemente segundo a perspectiva das solidariedades horizontais forjadas pelos seus membros.

Na década seguinte, a contribuição de Caio César Boschi acentuou um dos elementos analisados inicialmente por Russell-Wood: o de que as irmandades teriam funcionado para suavizar tensões na sociedade colonial. Sob o pano de fundo da política colonizadora desenvolvida no século XVIII pelo Estado português na Capitania das Minas, Boschi argumentou que “o governo lusitano passou a delas se utilizar como instrumentos de neutralização das tensões sociais. Nessas circunstâncias, o Estado as transformava em dócil e leal aliado” (Boschi, 1986BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder: irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986., p. 180). A crítica a Boschi foi levada a cabo por Sérgio da Mata que, entre outros aspectos, chamou a atenção para a pequena consideração, dirigida pelo primeiro autor, ao fator devocional presente na vida associativa do Antigo Regime (Mata, 1997MATA, Sérgio da. Religionswissenschaften e crítica da historiografia da Minas colonial. Revista de História, São Paulo, n. 136, pp. 41-57, 1997.).

A lacuna deixada pelo trabalho de Boschi foi preenchida por diversos trabalhos publicados nas décadas seguintes, que dedicaram mais atenção aos aspectos propriamente religiosos das irmandades coloniais. Célia Maia Borges aborda a experiência devocional das irmandades do Rosário estabelecidas na região das Minas a partir dos símbolos e das práticas construídas pelos devotos em suas experiências. Ao lado de Sérgio da Mata, argumentou que tal religiosidade não pode ser (des)classificada como “superficial” em função da exuberância dos rituais de culto. Do mesmo modo, observou que é problemática a análise das práticas devocionais das confrarias negras a partir de adjetivos como “tradicional” ou “popular”, que acentuam o afastamento em relação à doutrina católica (Borges, 2005BORGES, Célia Maia. Escravos e libertos nas irmandades do Rosário: devoção e solidariedade em Minas Gerais, séculos XVIII e XIX. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2005.). De modo análogo podem ser situadas as críticas apresentadas por Anderson Oliveira no livro em que enfocou o culto aos santos Elesbão e Efigênia, praticado por associações de devotos nas Minas e no Rio de Janeiro setecentista. Rejeitando as análises de Bastide a respeito do “sincretismo” dos devotos negros, que teria permitido a estes “preservarem, de forma ‘dissimulada’, as religiões africanas no Brasil”, Oliveira chama a atenção para a importância de “refletir sobre a existência histórica de múltiplas vivências do catolicismo no mundo colonial e, entre essas vivências, situar as apropriações do catolicismo” (Oliveira, 2008OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Devoção negra: santos pretos e catequese no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Quartet; Faperj, 2008., pp. 30-34).

A historiografia acerca das irmandades de negros, pardos e crioulos na América portuguesa recebeu significativas contribuições de africanistas e de estudiosos que, ao tratarem das práticas do catolicismo na diáspora, levaram em conta a bagagem cultural dos povos transplantados pelo tráfico. A respeito dos padrões devocionais dos povos centro-africanos, que compunham o maior quantitativo de cativos trazidos para a América portuguesa, Mary Karasch assinalou que era “tradicional” entre aqueles povos “aceitar novos rituais, símbolos, crenças e mitos”, sem abandonar a religião de origem (Karasch, 2000KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2000., p. 355). Essa flexibilidade levou a autora a concluir que “os nativos da África Central que usavam santos católicos, entravam para irmandades religiosas e participavam de procissões católicas, não se convertiam necessariamente ao catolicismo romano, nem adotavam necessariamente uma religião sincrética” (Karasch, 2000KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2000., p. 361). A flexibilidade das religiões da África Central encontra explicação na prática de revelações contínuas recebidas do mundo dos mortos. A forma como essas revelações interagiam com o catolicismo e eram legitimadas “determinou a natureza da religião resultante: o cristianismo africano” (Thornton, 2004THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo atlântico, 1400-1800. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004., p. 334). Sobre o papel assumido pelo culto aos santos no catolicismo afro-brasileiro, James Sweet indicou que, “embora os santos não substituíssem os espíritos ancestrais africanos, assumiam um lugar adjacente, o que criou um ponto de contato entre as crenças africanas e o Catolicismo” (Sweet, 2007SWEET, James H. Recriar África: cultura, parentesco e religião no mundo afro-português (1441-1770). Lisboa: Ed. 70, 2007., p. 242).

As identidades étnicas africanas, em parte reproduzidas e em parte reconstituídas no Novo Mundo, segundo processos em que as irmandades negras atuaram de modo ativo, foram aprofundadas pela historiografia nos últimos vinte anos. A contribuição de João José Reis foi fundamental dentro dessa perspectiva. Atuando como uma espécie de “família ritual” para “africanos desenraizados”, as irmandades negras converteram-se em forte instrumento de solidariedade coletiva, vindo a constituir um espaço de relativa autonomia “através da africanização da religião dos senhores” (Reis, 1996REIS, João José. Identidade e Diversidade Étnicas nas Irmandades Negras no Tempo da Escravidão. Tempo, Niterói, v. 2, n. 3, pp. 7-33, 1996., p. 12). Ao lado disso, o autor foi um dos primeiros a examinar a existência de clivagens étnicas no âmbito de uma mesma irmandade, em que grupos com maior contingente dominavam os menores: “bem cedo crioulos e angolas, por exemplo, uniram-se, sem abolir suas diferenças, para exercer o poder sobre irmãos de outras origens étnicas” (Reis, 1996REIS, João José. Identidade e Diversidade Étnicas nas Irmandades Negras no Tempo da Escravidão. Tempo, Niterói, v. 2, n. 3, pp. 7-33, 1996., p. 13). Essas ideias foram aprofundadas na obra de Mariza Soares. Em primeiro lugar, a autora mostra como, na segunda metade do século XVIII, os irmãos do Rosário do Rio de Janeiro, onde se destacavam os angolanos, solicitaram ao Marquês do Lavradio a incorporação de “várias irmandades de pretos com igrejinhas indignas e indecentes”, constituídas por outros grupos étnicos africanos (Soares, 2000SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2000., p. 160). Em resposta, a Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia, onde predominavam os africanos de origem mina, havia estabelecido em seu compromisso a interdição do ingresso de angolas, crioulos e mestiços (Soares, 2000SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2000., p. 186). Na Bahia, em análise acerca da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário das Portas do Carmo, Lucilene Reginaldo identificou o controle exercido pelos africanos de origem angolana sobre a associação. Dentro da perspectiva dessa autora, merece destaque a percepção da etnia como “sistema de classificação e relação social”, na medida em que “identificações atribuídas aos africanos no circuito do tráfico foram posteriormente assumidas por estes como identidades de origem” (Reginaldo, 2011REGINALDO, Lucilene. Os Rosários dos Angolas: irmandades de africanos e crioulos na Bahia setecentista. São Paulo: Alameda, 2011., p. 18).

Na pesquisa que dedicou às irmandades de pardos na América portuguesa, com foco naquelas estabelecidas na cidade do Rio de Janeiro, Larissa Viana mostrou que a referida identidade de cor era usada “para qualificar homens e mulheres livres de ascendência africana que já estavam relativamente distanciados do mundo da escravidão, mas não eram necessariamente mestiços” (Viana, 2007VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem: as irmandades de pardos na América portuguesa. Campinas: Ed. da Unicamp, 2007., p. 36). Ao mostrar o apelo assumido em relação aos pardos pelo culto de São Gonçalo Garcia, e por várias denominações do culto mariano, “como as Virgens de Guadalupe, do Amparo, do Terço e da Conceição” (Viana, 2007VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem: as irmandades de pardos na América portuguesa. Campinas: Ed. da Unicamp, 2007., p. 131), a autora completa a análise do qualificativo pardo: “indicava o distanciamento da condição de africano, ao designar homens e mulheres de cor nascidos no espaço colonial, para os quais o termo crioulo, muito associado ao mundo da escravidão, já não se aplicava mais” (Viana, 2007VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem: as irmandades de pardos na América portuguesa. Campinas: Ed. da Unicamp, 2007., p. 159). Esse afastamento entre pardos e crioulos também foi apurado na análise feita por Daniel Precioso sobre associações fundadas na região das Minas. Neste território, a devoção à Nossa Senhora das Mercês atraiu importante contingente de crioulos, isto é, “forros nascidos no Brasil”. Sob a referida denominação, opunham-se aos africanos cativos que, de modo geral, reuniam-se nas irmandades do Rosário. Por vezes, esses irmãos forros apareciam também identificados como “pardos” (Precioso, 2019PRECIOSO, Daniel. Os “pretos crioulos” das Minas Gerais e a fundação de ordens terceiras mercedárias (Vila Rica/Cidade de Ouro Preto, c. 1750-1847). In: MARTINS, William de Souza (Org.). Ordens terceiras no mundo luso-brasileiro (séculos XVI-XIX). Rio de Janeiro: Gramma, 2019. pp. 151-184., pp. 156-157).

Nesse balanço historiográfico seletivo é importante mencionar, por fim, o trabalho em que Leonara Lacerda Delfino analisou crenças relativas à morte em irmandades negras estabelecidas na Freguesia do Pilar de São João Del-Rei. Apoiando-se em autores africanistas já citados, como também em estudiosos atentos aos processos de hibridismo cultural, como Nestor Canclini e Stuart Hall, a autora afirma que as identidades culturais não podem ser vistas como processos “puros”. Em contraste, “a construção identitária só se faz diante da diferença, das relações de contraste, das ambivalências frente às contradições vividas, permanentemente re-significadas” (Delfino, 2017DELFINO, Leonara Lacerda. O Rosário das Almas Ancestrais: Fronteiras, identidades e representações do “viver e morrer” na diáspora atlântica. Freguesia do Pilar, São João Del-Rei (1787-1841). Belo Horizonte: Clio Gestão Cultural e Editora, 2017., p. 23). Dessa maneira, ao lado de outros autores, mostra a expressiva participação de mulheres forras de origem mina na Irmandade do Rosário de São João Del-Rei, constituindo a maioria das irmãs agregadas.

Composto por sete densos e extensos capítulos, o livro de Vanessa Teixeira apresenta um conhecimento profundo sobre a historiografia dedicada à vida religiosa e associativa da América portuguesa. Esse fator permitiu à autora posicionar-se de modo maduro nos debates, dando continuidade às tendências mais recentes de pesquisa, no que tange às complexidades que envolviam as identidades e distinções étnicas e sociais no contexto atlântico. Por outro lado, trouxe de volta a dimensão política da atuação das irmandades, elemento que se encontrava até certo ponto ausente das discussões, desde as abordagens de Caio Boschi e de João José Reis. A indissociabilidade e, até mesmo, a indistinção entre a política e a religião no Antigo Regime constitui um aspecto muito bem pontuado pela autora. A esfera da ação política das irmandades de “crioulos” foi examinada pela autora a partir de lentes inovadoras. Antes de detalhá-las aqui, será necessário dirigir a análise, primeiramente, para a questão das identidades culturais.

Dando continuidade aos estudos de Daniel Precioso, Marcos Aguiar e de outros autores, A quebra dos grilhões examina a vida associativa e devocional das irmandades que, dedicadas ao culto de Nossa Senhora das Mercês, atraíam na região das Minas especialmente o segmento dos “pretos crioulos”. À diferença dos autores citados, Vanessa Teixeira não restringiu o seu estudo aos confrades mercedários de Vila Rica, abrangendo também outras comarcas daquela capitania. Fundada no século XIII com a finalidade de libertar cativos cristãos aprisionados em territórios muçulmanos, a Ordem de Nossa Senhora das Mercês da Redenção dos Cativos estabeleceu conventos na América portuguesa, nas cidades de Belém e de São Luís, durante o século XVII. Na região das Minas, os mercedários realizaram missões em princípios do século XVIII, mas não puderam fundar estabelecimentos conventuais, por causa de restrições que a Coroa portuguesa impôs a todas as ordens regulares naquele território. Essa atuação prévia pode explicar em parte a ampla difusão entre os fiéis da devoção a Nossa Senhora das Mercês: na região das Minas foram fundadas ao todo 21 associações mercedárias, ficando atrás apenas, em termos quantitativos, das irmandades sob a denominação do Santíssimo Sacramento, das Almas do Purgatório e de Nossa Senhora do Rosário. A autora realizou uma pesquisa extensa e meticulosa: além da documentação disponibilizada online pelo Arquivo Histórico Ultramarino e pela Torre do Tombo, consultou oito arquivos situados em Minas.

A respeito da questão das identidades, o primeiro ponto a ressaltar é a divergência da autora em relação à análise de Mariza Soares, para quem a identidade “crioula” assumiria um caráter apenas provisório (Soares, 2000SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2000., p. 100). Em contraste, para Vanessa Teixeira, os crioulos agregados às irmandades das Mercês “possuíram uma identidade pautada por critérios de pertencimento, fortemente atrelada à devoção mercedária no contexto confraternal, unindo a simbologia da libertação à aquisição de benefícios espirituais próprios de sua religião, mas também por convergirem sua busca por distinção, mobilidade e reconhecimento social” (Teixeira, 2022TEIXEIRA, Vanessa Cerqueira. A quebra dos grilhões: devoção mercedária e crioulização em Minas Gerais (1740-1840). Belo Horizonte: Páginas Editora, 2022., p. 39). No primeiro capítulo, intitulado “Redentores de corpo e de alma: associações religiosas e apropriações crioulas”, a autora concentra o exame do debate historiográfico baseado no entendimento que possui acerca da “crioulização”. Apoiando-se em estudiosos africanistas como Luís Nicolau Parés e Roquinaldo Ferreira, a autora constata que o processo em questão se iniciou na África, nos territórios onde havia ocorrido algum tipo de proselitismo católico, particularmente no âmbito das populações envolvidas pelo tráfico (Teixeira, 2022TEIXEIRA, Vanessa Cerqueira. A quebra dos grilhões: devoção mercedária e crioulização em Minas Gerais (1740-1840). Belo Horizonte: Páginas Editora, 2022., pp. 75-77).

No segundo capítulo, intitulado “Para além da libertação dos cativos, a salvação das almas”, a autora examina as celebrações litúrgicas e os rituais fúnebres praticados pelas irmandades das Mercês na capitania das Minas. A sua análise principia nos compromissos, documentos que continham as diretrizes básicas para o funcionamento de cada irmandade. Na segunda metade do século XVIII, a Mesa da Consciência e Ordens, tribunal régio a quem tocava a administração dos assuntos eclesiásticos no território sob a jurisdição do padroado do rei de Portugal, passou a exigir com mais ênfase a apresentação ou a confirmação de compromissos por parte das irmandades. Esse processo, discutido antes por Caio Boschi, também foi examinado num recorte temporal um pouco posterior na dissertação de Sergio Chahon, que merecia ser referida no texto (Chahon, 1996CHAHON, Sergio. Aos pés do altar e do trono: as irmandades e o poder régio no Brasil, 1808-1822. Dissertação (Mestrado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 1996.). De modo geral, os párocos das freguesias eram defendidos pela Mesa nas frequentes disputas que mantinham com as irmandades, por causa de cobranças de taxas feitas para a realização de determinadas cerimônias de culto e para o sepultamento de corpos dos irmãos.

No terceiro capítulo, intitulado “Rogai à Senhora das Mercês pela remissão dos pecados: privilégios espirituais e festivos”, a autora continua a desenvolver questões ligadas à prática do culto divino e aos conflitos com os párocos motivados pela realização de diferentes cerimônias. Um dos aspectos tratados consiste na busca efetuada pelas irmandades das Mercês para se elevarem à condição de arquiconfrarias e ordens terceiras. Essa ação, bem-sucedida em alguns casos, estendia à irmandade um “tesouro” quase infinito de indulgências e de benefícios espirituais concedidos pela Santa Sé à Ordem de Nossa Senhora das Mercês da Redenção dos Cativos. Além disso, a vinculação às ordens regulares tinha o potencial de ampliar a autonomia das irmandades em relação à jurisdição espiritual dos párocos territoriais. As alianças forjadas entre os irmãos crioulos e os representantes das ordens regulares atraiu profunda antipatia dos vigários de diversas freguesias do bispado de Mariana. Em 1777, diversos párocos de Minas queixaram-se ao monarca que “as irmandades de pretos ou pardos e as ordens terceiras eram responsáveis por formar um ‘cisma’ em cada freguesia e, por isso, eram extremamente prejudiciais ao Estado, à Igreja, à Fazenda Real e ao Padroado Régio” (Teixeira, 2022TEIXEIRA, Vanessa Cerqueira. A quebra dos grilhões: devoção mercedária e crioulização em Minas Gerais (1740-1840). Belo Horizonte: Páginas Editora, 2022., p. 222). Ao lado de Daniel Precioso, Vanessa Teixeira foi responsável por inovar a abordagem das ordens terceiras na América portuguesa, cuja análise era basicamente restrita a associações que só permitiam o ingresso de brancos que provavam “limpeza de sangue” (Martins, 2009MARTINS, William de Souza. Membros do corpo místico: ordens terceiras no Rio de Janeiro (c. 1700-1822). São Paulo: Edusp, 2009.).

Nos capítulos 4 e 5, Vanessa Teixeira discute, respectivamente, o perfil social e étnico e os locais de moradia dos irmãos das Mercês. A análise baseia-se predominantemente nos livros de entradas de irmãos em suas respectivas associações. Em comentário elaborado a partir do conceito de “cidadania local” (vecindad), de autoria de Tamar Herzog, Teixeira conclui que “as irmandades seriam meios de participação, organização e integração a uma comunidade política, que, em uma sociedade dinâmica e fluida, estavam articuladas a outros vínculos e experiências, como residência continuada, matrimônio, desempenho de ocupações e serviços necessários ao ‘bem comum’ (mérito) e posse de bens de raiz” (Teixeira, 2022TEIXEIRA, Vanessa Cerqueira. A quebra dos grilhões: devoção mercedária e crioulização em Minas Gerais (1740-1840). Belo Horizonte: Páginas Editora, 2022., p. 333).

O sexto capítulo, que se intitula “Os crioulos em comunhão: ecos da ilustração e novos horizontes de liberdade”, ocupa uma posição central na argumentação de Vanessa Teixeira. Com base na percepção da “abertura à concessão de direitos a afrodescentes egressos do cativeiro”, processo que foi apurado por Luiz Geraldo Silva, Russell-Wood, Didier Lahon e outros autores na passagem do século XVIII ao XIX, a autora vai procurar identificar a atuação das irmandades das Mercês nesse novo cenário (Teixeira, 2022TEIXEIRA, Vanessa Cerqueira. A quebra dos grilhões: devoção mercedária e crioulização em Minas Gerais (1740-1840). Belo Horizonte: Páginas Editora, 2022., p. 390). As irmandades tiveram um papel ativo na manumissão individual de alguns irmãos escravos, como também na indicação de “fiadores no sistema de coartação, na prestação de suporte jurídico para casos de conflitos em acordos firmados entre senhor e escravo” (Teixeira, 2022TEIXEIRA, Vanessa Cerqueira. A quebra dos grilhões: devoção mercedária e crioulização em Minas Gerais (1740-1840). Belo Horizonte: Páginas Editora, 2022., p. 402). Na década de 1750, uma representação conjunta assinada por diferentes irmandades das Mercês estabelecidas nas Minas solicitou ao monarca a concessão de privilégios concedidos a duas irmandades do Rosário, uma fundada em Lisboa e outra na Bahia. A mercê régia consistia em “poderem pagar aos senhores dos escravos [...] o seu justo valor quando os seus proprietários os quisessem mandar para fora do reino. A irmandade poderia, assim, libertar ou buscar compradores para os que não desejassem ser vendidos, bem como para os que passassem por áspero e cruel trato” (Teixeira, 2022TEIXEIRA, Vanessa Cerqueira. A quebra dos grilhões: devoção mercedária e crioulização em Minas Gerais (1740-1840). Belo Horizonte: Páginas Editora, 2022., p. 410).

Avançando do século XVIII para o XIX, no último capítulo Vanessa Teixeira desenvolve o processo institucional, sucedido em algumas irmandades mercedárias, de passagem à condição de ordens terceiras, o que lhes garantiria maiores benefícios espirituais. Uma das primeiras associações a experimentar esse processo foi a que se achava estabelecida na freguesia de Antônio Dias, em Ouro Preto. Em 1823, quando a referida associação passou a se reconhecer como Ordem Terceira, os dirigentes aprovaram a exclusão de irmãos cativos da cerimônia de profissão. Essa mudança, segundo a autora, pode ser explicada porque “a elevação à ordem terceira poderia representar, para crioulos e forros livres, novos significados de liberdade e cidadania” (Teixeira, 2022TEIXEIRA, Vanessa Cerqueira. A quebra dos grilhões: devoção mercedária e crioulização em Minas Gerais (1740-1840). Belo Horizonte: Páginas Editora, 2022., p. 450). Em contraste, naquele mesmo momento, na ordem constitucional implantada pelo Império, os “libertos adquiriam direitos civis, mas não possuíam pleno acesso aos políticos, como o direito de votar e ser votado” (Teixeira, 2022TEIXEIRA, Vanessa Cerqueira. A quebra dos grilhões: devoção mercedária e crioulização em Minas Gerais (1740-1840). Belo Horizonte: Páginas Editora, 2022., p. 454). A autora retoma também o célebre conflito entre as duas irmandades das Mercês fundadas em Antônio Dias e em Ouro Preto, retratado desde o estudo pioneiro de Fritz Teixeira de Sales. De certo modo, o sétimo capítulo traz para o leitor uma impressão de dispersão, ao tratar de vários tópicos relativos à vida associativa das Mercês em princípios do século XIX. De modo análogo, um aspecto que fragilizou a análise foi a inclusão de elementos iconográficos constituídos por imagens de Nossa Senhora das Mercês, ex-votos, representações do forro dos templos e das fachadas dos mesmos. Esse material acabou sendo pouco explorado, faltando conexões entre o mesmo e os capítulos em que a autora tratou das questões devocionais. Não obstante, em seu conjunto, o saldo apresentado pelo livro é extremamente positivo, ao mostrar como os crioulos das mercês definiram e redefiniram as suas identidades étnicas e sociais na busca de afirmação política em contextos extremamente excludentes.

REFERÊNCIAS

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  • CHAHON, Sergio. Aos pés do altar e do trono: as irmandades e o poder régio no Brasil, 1808-1822. Dissertação (Mestrado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 1996.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    11 Out 2023
  • Aceito
    30 Abr 2024
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