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A democracia na América: perspectivas francesas sobre o governo de Andrew Jackson nos Estados Unidos da década de 1830

Democracy in America: French perspectives on Andrew Jackson’s Government in the United States in the 1830s

RESUMO

Michel Chevalier esteve nos Estados Unidos em viagem oficial, enviado pelo governo francês, no início da década de 1830, ali encontrando, assim como seu contemporâneo Alexis de Tocqueville, um quadro de intensos debates em torno do conceito de “democracia”, à época bastante mobilizado pelo então presidente Andrew Jackson (1829-1837). Embora exaltasse o “homem comum”, a “era de Jackson” era caracterizada pela expansão da escravidão nos Estados do Sul e no Oeste e por uma política violenta em relação aos indígenas. Essa “democracia” dos “homens brancos” inspirou a reflexão não somente acerca da política na república estadunidense, mas forneceu material para a análise das sociedades europeias da primeira metade do século XIX. Isto posto, este artigo tem por objetivo discutir a interpretação de Chevalier do conceito de “democracia” estadunidense, sem perder de vista seu diálogo com as abordagens de Tocqueville.

Palavras-chave:
Democracia; Estados Unidos; Alexis de Tocqueville; Michel Chevalier; América

SUMMARY

Michel Chevalier was in the United States on an official trip, sent by the French government, at the beginning of the 1830s. There, like his contemporary Alexis de Tocqueville, he encountered intense debates around the concept of “democracy”, which was being mobilized by then-president Andrew Jackson (1829-1837). Although it exalted the “common man”, the “Jackson era” was characterized by the expansion of slavery in the Southern and Western states and a violent policy towards the Indians. This “democracy” of “white men” inspired reflection not only on politics in the American republic but also provided material for analysing European societies in the first half of the 19th century. This article therefore aims to discuss Chevalier’s interpretation of the concept of American “democracy”, without losing sight of his dialog with Tocqueville’s approaches.

Keywords:
Democracy; United States; Alexis de Tocqueville; Michel Chevalier; America

O LABORATÓRIO DEMOCRÁTICO1 1 Este artigo é tributário de algumas reflexões presentes na tese de doutorado Utopias industriais, sonhos imperiais: Michel Chevalier entre latinos e anglo-saxões na Europa e nas Américas (1833-1863), defendida em 2019.

Não há como tratar da questão da democracia nos Estados Unidos na primeira metade do século XIX sem ao menos mencionar Alexis de Tocqueville e o seu paradigmático A democracia na América, publicado em dois volumes, respectivamente em 1835 e 1840. Analisada frequentemente como um tratado de ciência política, a obra tocquevilleana não deixa de se configurar como produto - certamente o mais importante - de uma viagem de seu autor àquele país, realizada entre 1831 e 1832, em companhia do também francês Gustave de Beaumont.

Embora muito tenha sido discutido sobre a clássica obra de Tocqueville, poucos sabem que sua viagem à república norte-americana foi resultado de uma encomenda do governo francês que desejava conhecer com mais detalhes o sistema penitenciário dos Estados Unidos. Em 1833, em parceria com Beaumont (1833), publicou, atendendo ao objetivo oficial que os levou à América, o relatório Du système pénitentiaire aux États-Unis et de son application en France, com os dados levantados do outro lado do Atlântico.

Apesar de ter viajado ao Novo Mundo sob outro pretexto, Tocqueville desde sua juventude alimentava a curiosidade de conhecer a originalidade do sistema político e das instituições norte-americanas. Membro da elite aristocrática de seu país, foi profundamente impactado pelos desdobramentos da Revolução Francesa que vinham afetando diretamente sua família desde fins do século XVIII. Do seu ponto de vista, a História vinha marchando, naqueles anos, de forma irreversível na direção da constituição de sociedades cada vez mais alicerçadas sobre os princípios da “democracia” ou, em seus termos, da “igualdade de condições”.

Tocqueville via essa nova forma de organização política e social como inevitável, mas, ao mesmo tempo, como passível de ser moderada, não mais pela nobreza definida pelo nascimento, mas pela aristocracia dos mais bem preparados. Por outro lado, se radicalizada, poderia facilmente conduzir os territórios por ela governados para uma “tirania da maioria” (Furet, 1998FURET, François. O sistema conceptual de A democracia na América. In: TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América: leis e costumes. São Paulo: Martins Fontes, 1998. pp. XI-XLIX.; Jasmin, 2005JASMIN, Marcelo Gantus. Alexis de Tocqueville: a historiografia como ciência da política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.; Quirino, 2004QUIRINO, Célia Galvão. Tocqueville: a realidade da democracia e a liberdade ideal. In: QUIRINO, Célia Galvão; VOUGA, Cláudio; BRANDÃO, Gildo Marçal (Orgs.). Clássicos do pensamento político. São Paulo: Edusp , 2004. pp. 149-160.; Florenzano, 1999FLORENZANO, Modesto. Tocqueville diante da Democracia e da Revolução. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, São Paulo, v. XCV, pp. 25-55, 1999.).

Olhando para a “América”, mas mirando a conturbada política francesa dos últimos anos do século XVIII e das primeiras décadas do XIX, Tocqueville buscava decifrar, por meio da análise da jovem república, os mistérios do irresistível avanço da “democracia” em seu país. Compreender as instituições, leis e costumes norte-americanos não deixava de ser uma via para propor soluções ou apontar possibilidades em um quadro de implosão de uma organização social nobiliárquica baseada em privilégios legais, garantidos pelo direito de nascimento, e, ao mesmo tempo, de ascensão de novos modelos alicerçados na “igualdade de condições”.

Embora concebesse o curso da História, associado aos desígnios da Divina Providência, como irreversível, Tocqueville entendia que a expansão da “democracia” deveria ser, de alguma maneira, regulada e conduzida pelas classes mais ilustradas da sociedade:

Instruir a democracia, reavivar se possível suas crenças, purificar seus costumes, regular seus movimentos, substituir pouco a pouco pela ciência dos negócios sua inexperiência, pelo conhecimento de seus verdadeiros interesses seus instintos cegos; adaptar seu governo aos tempos e aos lugares; modificá-lo de acordo com as circunstâncias e os homens - este é o primeiro dever imposto nos dias de hoje aos que dirigem a sociedade (Tocqueville, 1998TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América: leis e costumes . São Paulo: Martins Fontes , 1998. [1835], pp. 11-12).

Longe de querer copiar o modelo norte-americano, o nobre francês buscava tirar lições da “democracia moderada” dos Estados Unidos para regular o avanço da “igualdade” na França.

Não obstante ter sido o mais celebrado autor francês a viajar aos Estados Unidos na década de 1830, Tocqueville não foi o único e nem tampouco uma exceção. Desde o século XVIII, importantes autores associados ao Iluminismo já demonstravam grande entusiasmo pela “América” (Darnton, 2005DARNTON, Robert. Os dentes falsos de George Washington: um guia não convencional para o século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.). Essa curiosidade em relação aos Estados Unidos conheceu novos desdobramentos nas primeiras décadas do século XIX, quando o desejo de saber mais sobre a então peculiar federação conheceu uma transformação importante, perceptível principalmente nos relatos dos viajantes europeus. Se, em um primeiro momento, buscava-se encontrar, ao atravessar o Atlântico, uma “América selvagem” que servisse de refúgio para uma Europa em meio ao turbilhão revolucionário iniciado em 1789, nas décadas seguintes essa parte específica do Novo Mundo se apresentava como uma espécie de “laboratório” capaz de fornecer pistas sobre o futuro da humanidade (Hartog, 2013HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.).

Em termos econômicos, chamava a atenção dos europeus o rápido crescimento da jovem nação, seu precoce expansionismo, seus investimentos em meios de transporte e em fábricas e seu incentivo à livre iniciativa. No campo político, ressaltava-se a conjugação - a despeito da permanência da escravidão, temática essencial para a compreensão dos Estados Unidos do período - dos princípios da igualdade, da liberdade e da ordem, particularmente na relação entre os homens brancos.

Para um país como a França, que havia vivenciado uma sucessão de revoluções e vários regimes políticos entre 1789 e 1830, e que desejava competir economicamente no novo mundo industrial, a república norte-americana se configurava como um campo de estudos lapidar a ser desbravado por seus letrados (Hartog, 2013HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.). Nesse quadro, os primeiros anos da Monarquia de Julho (1830-1848) - com sua defesa de um liberalismo moderado que se articulava à manutenção de práticas conservadoras do período da Restauração (1814-1830) (Rosanvallon, 2015ROSANVALLON, Pierre. El momento Guizot: El liberalismo doctrinario entre la Restauración y la Revolución de 1848. Tradução de Hernán M. Díaz. Buenos Aires: Editorial Biblos, 2015.) - assistiram a uma renovação do interesse das elites políticas e intelectuais francesas em relação aos Estados Unidos. Não se tratava, entretanto, apenas da realização de viagens por prazer e deleite, mas também da busca por aprender com a originalidade de suas dinâmicas sociais.

Entre os diversos franceses que estiveram nos Estados Unidos nesse período destaca-se a figura de Michel Chevalier (1806-1879). Filho de um funcionário público da cidade de Limoges, capital de Haute-Vienne, cumpriu seus estudos superiores na École Polytechnique de Paris, onde se graduou como engenheiro de minas. Nos anos de sua formação, abraçou com entusiasmo as ideias de Claude-Henri de Rouvroy, o conde de Saint-Simon, tornando-se, ainda jovem, um dos mais relevantes “saint-simonianos” de sua época (Walch, 1975WALCH, Jean. Michel Chevalier, économiste saint-simonien. Paris: Vrin, 1975.).

Bastante influente na França da primeira metade do século XIX, o saint-simonismo foi categorizado, em 1880, em um célebre livro de Friedrich Engels (2005ENGELS, Friedrich. Do socialismo utópico ao socialismo científico. São Paulo: Centauro, 2005.), como uma das principais expressões do chamado “socialismo utópico” na Europa (Russ, 1991RUSS, Jacqueline. O socialismo utópico. São Paulo: Martins Fontes , 1991.). Para os saint-simonianos, a sociedade se dividia essencialmente entre setores produtivos e ociosos, estes últimos concebidos como parasitas e espoliadores dos demais. Partindo do princípio de que a indústria e o trabalho deveriam se constituir como os elementos centrais da atividade humana, procuraram atuar na defesa do desenvolvimento dos meios de comunicação e de transporte não somente em seu país, mas em todo o globo.

Além de participarem ativamente da expansão do sistema ferroviário francês no decorrer do século XIX, estiveram entre os principais teóricos da construção de canais interoceânicos no Egito (Suez) e na América Central (Panamá) (Santos Junior, 2016SANTOS JUNIOR, Valdir Donizete dos. A latinidade e as Luzes: a França, o Oriente e o lugar das Américas nas Lettres sur l’Amérique du Nord , de Michel Chevalier (1836). Dimensões, v. 36, pp. 335-357, 2016. ). A nova sociedade industrial que projetavam deveria se estabelecer sobre três balizas principais: os bancos - que deveriam fornecer o crédito necessário à indústria; os meios de transporte - que deveriam propiciar a circulação de pessoas e mercadorias ao redor do mundo; e a educação - que deveria formar pessoas para a técnica e o trabalho (Picon, 2002PICON, Antoine. Les saint-simoniens: raison, imaginaire et utopie. Paris: Belin, 2002.; Coilly; Régnier, 2006COILLY, Nathalie; RÉGNIER, Philippe (Dirs.). Le siècle des saint-simoniens: du Nouveau chistianisme au canal de Suez. Paris: Bibliotèque Nationale de France, 2006.; Musso, 1999MUSSO, Pierre. Saint-Simon et le saint-simonisme. Paris: PUF, 1999.; 2017MUSSO, Pierre. La religion industrielle: monastère, manufacture, usine. Une généalogie de l’entreprise. Paris: Fayard, 2017.).

Imbuído dessas concepções, Michel Chevalier embarcou para os Estados Unidos, partindo de Liverpool, na Inglaterra, em fins de 1833. Entre 1834 e 1835, percorreu diversas cidades norte-americanas2 2 Michel Chevalier percorreu, entre 1834 e 1835, as cidades norte-americanas de Nova York, Filadélfia, Baltimore, Richmond, Washington D.C., Charleston, Lowell, Boston, Elmington, Pittsburg, Louisville, Memphis, Natchez, Nova Orleans, Buffalo, Lancaster, Sunbury, Johnstown, Bedford-Springs, Augusta e Albany. , com escalas, durante esse período, no México e em Cuba. Assim como Tocqueville, foi enviado como representante oficial do governo francês à América do Norte por Adolphe Thiers, ministro do Interior do governo do “rei burguês” Luís Felipe de Orléans (1830-1848). Durante sua estadia na república estadunidense, embora tenha se debruçado, particularmente, sobre o sistema de transportes daquele país, em especial sobre suas ferroviais e canais fluviais, não deixou de se interessar pelos mais variados aspectos da sociedade norte-americana (Walch, 1975WALCH, Jean. Michel Chevalier, économiste saint-simonien. Paris: Vrin, 1975.; Santos Junior, 2018SANTOS JUNIOR, Valdir Donizete dos. Utopias industriais, sonhos imperiais: Michel Chevalier entre latinos e anglo-saxões na Europa e nas Américas (1833-1863). Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2018. ).

As impressões de Chevalier sobre sua viagem aos Estados Unidos podem ser encontradas nas Lettres sur l’Amérique du Nord, relato que veio à luz em 1836, em Paris, por meio da editora de Charles de Gosselin, a mesma que imprimira um ano antes o primeiro volume de A democracia na América.

Elaborado a partir de textos concebidos entre novembro de 1833, quando o engenheiro se encontrava ainda em Londres, e outubro de 1835, quando, em Nova York, preparava seu retorno à França, Lettres sur l’Amérique du Nord foi publicado em dois volumes que totalizavam cerca de mil páginas. Destaca-se, em termos formais, por se constituir como um conjunto de 34 cartas temáticas, que se iniciavam com a indicação de local e data de redação. Na análise da sociedade norte-americana que perpassava essas missivas, alguns tópicos se sobressaíam, como o papel dos bancos; a importância dos meios de comunicação e transporte; o caráter conquistador e expansionista da jovem nação rumo ao Oeste; o industrialismo e a religiosidade de sua população; e, como seu contemporâneo e compatriota Tocqueville, as venturas e desventuras de sua democracia.

Ao contrário de A democracia na América, obra intensamente debatida pelas ciências sociais, Lettres sur l’Amérique du Nord tem recebido maior atenção dos estudiosos apenas mais recentemente (Jennings, 2006JENNINGS, Jeremy. Democracy before Tocqueville: Michel Chevalier’s America. The Review of Politics, n. 68, pp. 398-427, 2006.; Drolet, 2008DROLET, Michael. Industry, Class and Society: A Historiographic Reinterpretation of Michel Chevalier. The English Historical Review, v. 123, issue 504, pp. 1229-1271, 2008.; Santos Junior, 2018SANTOS JUNIOR, Valdir Donizete dos. Utopias industriais, sonhos imperiais: Michel Chevalier entre latinos e anglo-saxões na Europa e nas Américas (1833-1863). Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2018. ).

De acordo com Jennings (2006JENNINGS, Jeremy. Democracy before Tocqueville: Michel Chevalier’s America. The Review of Politics, n. 68, pp. 398-427, 2006.), para se compreender por que os textos de Chevalier foram, muitas vezes, ofuscados quando comparados com os de seu contemporâneo mais famoso, é preciso, em primeiro lugar, atentar para as diferentes naturezas das duas obras. Enquanto A democracia na América foi escrita somente após o retorno de Tocqueville à França, resultando em uma reflexão mais maturada e densa sobre os costumes e instituições estadunidenses, as cartas de Chevalier foram redigidas no calor da hora, publicadas quase que simultaneamente em periódicos franceses, em especial na Revue des Deux Mondes e no Journal des débats, resultando em descrições mais livres e, ao mesmo tempo, bastante vinculadas às circunstâncias específicas vivenciadas ao longo da viagem. Da mesma forma, na hipótese desse autor, a primazia dos aspectos econômicos em Lettres sur l’Amérique du Nord talvez pudesse ser menos instigante ao público da época que as temáticas políticas abordadas em A democracia na América, resultando em um impacto relativamente menor do relato de Chevalier.

A despeito de suas divergências, ambas as obras guardam paralelos e podem ser vistas não como antagônicas, mas como complementares para aqueles que procuram compreender os diversos aspectos da sociedade, da política, da economia e da cultura dos Estados Unidos na primeira metade do século XIX (Jennings, 2006JENNINGS, Jeremy. Democracy before Tocqueville: Michel Chevalier’s America. The Review of Politics, n. 68, pp. 398-427, 2006.).

Embora ainda estivesse nos Estados Unidos à época da publicação de A democracia na América, Chevalier tomou conhecimento da obra de Tocqueville ao chegar à França, podendo referenciá-la em uma nota de rodapé da edição final de seu relato impressa em 1836:

É impossível falar da democracia americana sem citar a obra recente do Sr. de Tocqueville. Eu a indico àqueles que desejam conhecer em detalhe os aspectos e os instintos dessa democracia, o império que ela exerce sobre a burguesia, assim como as leis pelas quais ela realizou e consolidou esse império (Chevalier, 1836bCHEVALIER . Lettres sur l’Amérique du Nord . Vol. II. Paris: Ed. De Charles de Gosselin , 1836b., p. 420)3 3 Os textos citados de obras publicadas originalmente em francês foram traduzidos para este artigo. .

Antes de prosseguir com a argumentação, é preciso ressaltar que não era coincidência que a abordagem dessa temática tenha mobilizado de forma tão contundente a preocupação de dois viajantes que estiveram nos Estados Unidos do início da década de 1830.

Nesse período, a questão da “democracia” estava na ordem do dia dos debates políticos norte-americanos, em grande medida pela mobilização desse conceito durante o mandato presidencial de Andrew Jackson (1829-1837). Considerado como um dos dirigentes mais destacados da república norte-americana do século XIX, Jackson era representado, no relato de Michel Chevalier, como uma espécie de personificação da democracia norte-americana, merecendo, como será discutido a seguir, um lugar privilegiado em sua interpretação sobre a política dos Estados Unidos na década de 1830.

A DEMOCRACIA JACKSONIANA

Notório presidente dos Estados Unidos do século XIX, Andrew Jackson se constitui como um dos personagens essenciais das Lettres sur l’Amérique du Nord, de Michel Chevalier. Considerado um herói nacional antes mesmo de sua eleição como chefe do poder executivo, Jackson celebrizou-se por atuar de maneira decisiva como general na Guerra de 1812 contra a Inglaterra4 4 Declarada sob o governo de James Madison (1809-1817), a Guerra de 1812 contra a Inglaterra foi iniciada pelos Estados Unidos sob a acusação de que os navios da federação estavam sendo impedidos de circular em alto-mar. Em um contexto em que os britânicos se mantinham engajados na luta contra os exércitos de Napoleão Bonaparte na Europa, a república norte-americana saiu vencedora do conflito (Junqueira, 2018). . Além disso, foi, ao longo de toda sua vida política, um grande incentivador de uma violenta expansão norte-americana em direção ao Oeste, bem como um grande arauto de uma “democracia” que privilegiasse o “homem branco comum” (Baptist, 2019BAPTIST, Edward E. A metade que nunca foi contada: a escravidão e a construção do capitalismo norte-americano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019.; Junqueira, 2018JUNQUEIRA, Mary Anne. Estados Unidos: Estado nacional e narrativa da nação (1776-1900). São Paulo: Edusp, 2018.).

De forma bastante curiosa, Jackson personificava, no relato de Chevalier, as ambiguidades da democracia que se consolidava naquele país. A relevância desse líder político pode ser apreendida, em certa medida, pela relação entre seu nome e esse período específico da história norte-americana: os anos de seu governo são ainda hoje frequentemente tratados pela historiografia como “A era de Jackson”, ou como “democracia jacksoniana” (Schlesinger Jr., 1946SCHLESINGER JR., Arthur M. The Age of Jackson. Boston: Little, Brown and Company, 1946.; Meyers, 1957MEYERS, Marvin. The Jacksonian Persuasion: Politics & Belief. Stanford: Stanford University Press, 1957.; Sellers, 1991SELLERS, Charles. The Market Revolution: Jacksonian America, 1815-1846. New York: Oxford University Press, 1991.).

Para se eleger presidente, Jackson se beneficiou de inúmeras transformações vivenciadas pelos Estados Unidos na década de 1820, impondo, em 1828, uma contundente derrota ao então presidente John Quincy Adams, que tentava a reeleição. A ascensão do general vinculava-se naquele momento, historicamente, a um discurso caracterizado pela defesa da “democracia” e do governo do “homem comum” (Junqueira, 2018JUNQUEIRA, Mary Anne. Estados Unidos: Estado nacional e narrativa da nação (1776-1900). São Paulo: Edusp, 2018.).

A eleição de Jackson não se constituiu, entretanto, como marco inicial de um modelo “democrático” nos Estados Unidos, mas foi, ao contrário, o produto das novas condições que vinham se apresentando ao país, particularmente na década de 1820. Durante esses anos, a república norte-americana vinha conhecendo importantes transformações, particularmente na indústria e nos meios de transporte, proporcionando novas oportunidades na atividade econômica e perspectivas bastante promissoras de ascensão social com a expansão rumo ao Oeste (Baptist, 2019BAPTIST, Edward E. A metade que nunca foi contada: a escravidão e a construção do capitalismo norte-americano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019.).

Em termos políticos, destaca-se, nesse contexto, a adoção do sufrágio universal entre os homens brancos em vários dos novos Estados da federação. Para se ter uma ideia da rápida ampliação da participação de eleitores nos Estados Unidos, enquanto nas eleições de 1824 votaram apenas 355 mil homens, no pleito em que Jackson foi o vitorioso, em 1828, por volta de 1 milhão e 155 mil cidadãos do sexo masculino foram às urnas (Hofstadter, 1974HOFSTADTER, Richard. The American Political Tradition. Nova York: Vintage Books, 1974.).

Entre os eventos simbólicos desse novo tempo “democrático” anunciado pela eleição de Jackson esteve, por exemplo, o dia de sua posse, quando a Casa Branca se abriu literalmente para o ingresso do “homem comum”. Nessa data, não somente poderosos ou membros das elites puderam saudar o presidente eleito, mas também grupos populares tiveram sua entrada permitida na cerimônia que inaugurava o novo governo. Passava-se, dessa forma, a esses novos atores da política norte-americana, a mensagem de que a residência presidencial estaria aberta a todos, desde que obviamente fossem brancos e do sexo masculino (Baptist, 2019BAPTIST, Edward E. A metade que nunca foi contada: a escravidão e a construção do capitalismo norte-americano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019.; Sellers; May; McMillen, 1985SELLERS, Charles; MAY, Henry; McMILLEN, Neil. Uma reavaliação da história dos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.; Junqueira, 2018JUNQUEIRA, Mary Anne. Estados Unidos: Estado nacional e narrativa da nação (1776-1900). São Paulo: Edusp, 2018.).

Politicamente, a ascensão de Jackson também se revelou como um novo marco no sistema partidário norte-americano. Até então, as disputas pelo poder nos Estados Unidos se polarizavam, em linhas gerais, entre, de um lado, os “federalistas”, defensores de um governo mais centralizado e do desenvolvimento do comércio e da indústria; e, de outro, os “republicanos-democráticos” de matriz jeffersoniana, simpáticos à agricultura, ao autogoverno e a um pretenso igualitarismo entre os pequenos proprietários rurais (Izecksohn, 2003IZECKSOHN, Vitor. Escravidão, federalismo e democracia: a luta pelo controle do Estado nacional norte-americano antes da Secessão. Topoi, Rio de Janeiro, v. 4, n. 6, pp. 47-81, 2003.).

No novo contexto proporcionado pelas recentes configurações sociais e políticas da década de 1820, o surgimento do Partido Democrata de Jackson passou a pautar a política norte-americana essencialmente pelo antagonismo entre jacksonianos e antijacksonianos. Embora mais próximo da herança republicano-democrática, o novo presidente mesclava, em seu discurso e em suas práticas políticas, importantes aspectos das duas correntes hegemônicas anteriores. Embora seu entusiasmo pelo Oeste o fizesse um grande arauto da república dos homens brancos comuns e dos pequenos proprietários, aproximando-o da utopia agrícola de Thomas Jefferson, mostrava-se, não obstante, um dirigente bastante centralizador. Para Alexis de Tocqueville (1998TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América: leis e costumes . São Paulo: Martins Fontes , 1998., p. 452), por exemplo, Jackson seria, em síntese, “federal por gosto e republicano por cálculo”.

Hegemônico até a Guerra de Secessão (1861-1865), o Partido Democrata de matriz jacksoniana tinha como sua base de apoio setores sociais heterogêneos que englobavam trabalhadores urbanos, imigrantes e fazendeiros. Além disso, apesar do caráter centralizador de seu líder, os democratas se constituíam como grandes defensores do laissez-faire.

Por sua vez, os antijacksonianos se concentravam no Partido Whig. Em geral, fazendeiros e industriais do Norte e do Sul, defendiam uma participação mais ativa do Estado nos assuntos econômicos, tarifas protecionistas e intervenção em questões sociais como a educação pública e a defesa de leis contra o alcoolismo. A despeito de suas diferenças, ambos os partidos representavam ainda uma nova fase das disputas eleitorais nos Estados Unidos, por marcarem a ascensão ao poder dos chamados “políticos profissionais” e de burocracias partidárias mais organizadas em lugar dos membros de uma elite agrária mais tradicional que havia governado o país na fase anterior (Izecksohn, 2003IZECKSOHN, Vitor. Escravidão, federalismo e democracia: a luta pelo controle do Estado nacional norte-americano antes da Secessão. Topoi, Rio de Janeiro, v. 4, n. 6, pp. 47-81, 2003.).

Como já destacado anteriormente, o governo de Jackson também se caracterizou por ações que mesclavam a expansão em direção ao Oeste, o alargamento da fronteira escravista no sul do país e uma política bastante agressiva em relação às populações indígenas. O presidente democrata, como a maior parte dos defensores do expansionismo norte-americano, exaltava a conquista de novos territórios, o individualismo e a figura do self-made-man. O indígena, nessa perspectiva, era visto como selvagem e empecilho para o desenvolvimento do país, devendo, portanto, ser expulso de terras que poderiam ser aproveitadas pelos homens brancos.

Jackson foi responsável, por exemplo, pela assinatura, em 1830, do Indian Removal Act, que previa a remoção forçada dessas populações para territórios além do Rio Mississipi. Marcadas pela violência, as migrações compulsórias em direção ao chamado Território Indígena, localizado no atual Estado de Oklahoma, ficaram conhecidas por essa razão como Trial of Tears (Trilha das Lágrimas), denominação que receberam das populações Cherokee que foram obrigadas a abandonar suas terras na Geórgia e seguir para as novas reservas determinadas pelo governo federal. Em menos de dez anos, 17 mil indígenas foram removidos. Destes, por volta de 4 mil morreram no percurso e muitos tiveram dificuldades de adaptação nas novas regiões (Junqueira, 2018JUNQUEIRA, Mary Anne. Estados Unidos: Estado nacional e narrativa da nação (1776-1900). São Paulo: Edusp, 2018.; Fixico, 2002FIXICO, Donald. Federal and State Policies and American Indians. In: DELORIA, Philip J.; SALISBURY, Neal (Eds.). A Companion to American Indian History . Malden: Blackwell , 2002. pp. 379-396.; Edmunds, 2002EDMUNDS, David. Native Americans and the United States, Canada and Mexico. DELORIA, Philip J.; SALISBURY, Neal (Eds.). A Companion to American Indian History. Malden: Blackwell, 2002. pp. 397-421.).

Diferente de outras temáticas, a discussão sobre a questão indígena nos Estados Unidos, embora estivesse superficialmente presente, não mereceu grande destaque nas Lettres sur l’Amérique du Nord. Em contrapartida, Michel Chevalier reservou diversas páginas à exposição de suas concepções sobre o governo de Andrew Jackson e à temática da democracia nos Estados Unidos.

As descrições de Chevalier sobre Jackson podem ser divididas, ao longo das Lettres sur l’Amérique du Nord, em dois momentos. Em suas primeiras cartas, embora houvesse determinados pontos de discórdia entre as concepções políticas e econômicas do presidente dos Estados Unidos e as do viajante francês, especialmente a respeito da questão dos bancos, era perceptível, nos textos do engenheiro saint-simoniano, uma certa ambiguidade sobre a federação norte-americana que transitava entre a crítica e a admiração em relação à figura do líder democrata.

Descrevendo o personagem, em um momento inicial do relato, Chevalier apontava, por exemplo, que “os sucessos militares do general Jackson, sua probidade, seu caráter firme até a obstinação, sua rigidez de barra de ferro, lhe valeram uma popularidade imensa”. Além disso, caracterizava “o velho general” como “firme, ágil, audacioso, enérgico” e como “um homem bravo, zeloso pelo bem da pátria, mas muito ágil em relação aos seus oponentes” (Chevalier, 1836aCHEVALIER. Lettres sur l’Amérique du Nord. Vol. I. Paris: Ed. De Charles de Gosselin, 1836a., pp. 66-67, 138).

Mesmo quando críticos, os comentários de Chevalier eram incialmente bastante respeitosos em relação a Jackson. Entretanto, a partir de sua carta de 15 de dezembro de 1834, escrita em Louisville, no Kentucky, e intitulada “Le président Jackson”, nota-se uma mudança no tom das descrições do autor francês sobre o governante norte-americano. Como seu próprio texto deixava entrever, isso se devia à Mensagem Anual ao Congresso proferida por Jackson, em 02 de dezembro de 1834. Nesse discurso, após destacar as boas relações da política externa norte-americana com diversos países da Europa e das Américas, o presidente democrata ressaltava o descumprimento, por parte dos franceses, de acordos diplomáticos com os Estados Unidos, realizados anos antes.

Segundo o “velho general”, o governo norte-americano teria negociado, ainda à época da Restauração bourbônica na França (1814-1830), uma indenização em compensação aos ataques promovidos a navios e propriedades estadunidenses no início do século, em particular durante as Guerras Napoleônicas. Entretanto, tais acordos não vinham sendo cumpridos sob a administração de Luís Filipe de Orléans, resultando na insatisfação dos dirigentes norte-americanos. O presidente exigia nessa mensagem, portanto, o cumprimento dos tratados firmados anteriormente, e ameaçava, em resposta, a taxação de produtos importados da França (Jackson, 1835JACKSON, Andrew. Annual Messages, Veto Messages, Protest & C. of Andrew Jackson, president of United States. Baltimore: Edward J. Coale & Co., 1835.).

De acordo com Chevalier, embora houvesse certa pressão da imprensa para que o presidente se mostrasse enérgico a esse respeito, a Mensagem de Jackson, imprudentemente, teria ultrapassado todas as expectativas, mesmo daqueles que esperavam uma atitude mais altaneira do governante. Para o viajante, se tal discurso tivesse sido proveniente da pena de algum dos presidentes anteriores, de George Washington a Quincy Adams, ele teria sido considerado necessariamente como a expressão dos sentimentos da maior parte do povo norte-americano, dada a ponderação e a cautela com que teriam refletido sobre a temática, debatendo-a com os notáveis da nação e analisando-a profundamente antes de desafiar seu mais antigo aliado no Velho Mundo. Com Jackson, entretanto, a situação havia se transformado.

Segundo Chevalier (1836a)CHEVALIER. Lettres sur l’Amérique du Nord. Vol. I. Paris: Ed. De Charles de Gosselin, 1836a., mesmo que durante seu primeiro mandato Jackson tivesse procurado se manter moderado, paciente e calmo como previa a etiqueta de seu cargo, aos poucos ia revelando seu caráter aventureiro, intrépido, inquieto, obstinado e orgulhoso. Paulatinamente o presidente começava a dar vazão aos seus “apetites belicosos”, mantidos sob controle nos anos anteriores. Próximo de completar 70 anos de idade, Jackson parecia ter a necessidade de novos perigos e novas fadigas. Possuído pelo “demônio da guerra”, o líder do Partido Democrata direcionava, naquele momento, seu arsenal para a França.

Na perspectiva de Chevalier (1836a)CHEVALIER. Lettres sur l’Amérique du Nord. Vol. I. Paris: Ed. De Charles de Gosselin, 1836a., Jackson pecava por mobilizar as massas em prol de suas paixões pessoais. Por conta de seus atos mais exaltados, o presidente havia sido, segundo esse relato, abandonado pelas “classes esclarecidas”. Entretanto, isso não parecia preocupar Jackson. Para o líder do poder executivo dos Estados Unidos, era o apoio dos setores mais populares que importava de fato na democracia. Nas palavras de Chevalier: “O general Jackson perdeu, na verdade, a maior parte dos amigos que lhe restavam ainda nas classes esclarecidas e entre os comerciantes; mas pouco lhe importam alguns indivíduos, tão eminentes quanto possam ser; em virtude do sufrágio universal, é o número que domina aqui” (Chevalier, 1836aCHEVALIER. Lettres sur l’Amérique du Nord. Vol. I. Paris: Ed. De Charles de Gosselin, 1836a., p. 300).

Malgrado suas análises sobre Jackson durante a viagem aos Estados Unidos, foi somente após sua volta à França que Chevalier realizou um balanço definitivo sobre seu mandato presidencial. Às vésperas das eleições de 1836, publicou, na Revue des Deux Mondes, um artigo em que discutia o governo jacksoniano e as perspectivas para o pleito que seria realizado em novembro daquele ano.

O texto, como não podia ser diferente, tinha na figura de Jackson seu protagonista. Além de destacar o favoritismo posteriormente confirmado do candidato da situação, o vice-presidente nova-iorquino Martin Van Buren (1782-1862), demonstrava também as indefinições existentes entre os membros da oposição. Reconstruindo a trajetória biográfica de Jackson, Chevalier não se furtou também a analisar diversas questões candentes dos oito anos em que o general esteve no poder, associando, frequentemente, as ações do presidente às próprias características da democracia norte-americana. Nas palavras de engenheiro francês: “o general Jackson, cujo poder expira, é um dos mais surpreendentes produtos das instituições que regem a América do Norte” (Chevalier, 1836cCHEVALIER . Présidence du général Jackson et choix de son successeur. Revue des Deux Mondes, tome 8, 1836c., p. 129).

Ao tratar das vitórias do presidente em termos da política externa, inclusive em relação ao desafio lançado aos franceses na Mensagem ao Congresso de 1834, Chevalier discutia como o chefe do poder executivo norte-americano era capaz de personificar um “patriotismo democrático” que, embora fosse “pleno de fervor”, tinha algo de “rude”, quando não de “selvagem”. Caracterizando a democracia norte-americana como exigente, altaneira e imperiosa, qualificava seu líder máximo como alguém dotado de “todos os instintos da democracia americana”, sempre disposto a demonstrar a superioridade de seu sistema de governo sobre os modelos dominantes na Europa:

O general Jackson carrega nele todos os instintos da democracia americana. Ele está comprometido com ela como o doge de Veneza estava com o mar. Ele é orgulhoso dos prodigiosos desenvolvimentos de seu país; ele nunca deixa em suas mensagens de citar a unexampled prosperity e a unparelleled energy do povo da União. A maior alegria de seu coração é rebaixar o princípio monárquico e as antigas potências (Chevalier, 1836cCHEVALIER . Présidence du général Jackson et choix de son successeur. Revue des Deux Mondes, tome 8, 1836c., p. 151).

Na perspectiva de Chevalier, a despeito de sua heroica história como militar, Jackson teria legado aos Estados Unidos uma herança funesta, marcada pela submissão da lei às vontades mais imediatas e pela predominância do personalismo na política de seu país. Sobre o primeiro aspecto, destacava que a ascensão do general representava uma profunda transformação na relação entre os interesses republicanos e o respeito à lei na federação norte-americana:

Seu advento à presidência foi um encorajamento ao desprezo à lei. Imbuído de doutrinas ultrademocráticas, homem de sentimento mais que de raciocínio, ele tem sempre agido e falado sob a influência dessa ideia, que o presente, o interesse imediato do povo, deveria unicamente guiar sua conduta; que as leis e os precedentes apenas viriam em segundo ou em terceiro lugar. É uma tese que, filosoficamente, é sustentável. Mas somente há república por meio das leis, dos usos, dos precedentes. O general tem, pois, rejeitado em bloco todas as tradições de seus ilustres predecessores; ele destruiu o modelo de vida que eles haviam adotado (Chevalier, 1836cCHEVALIER . Présidence du général Jackson et choix de son successeur. Revue des Deux Mondes, tome 8, 1836c., p. 154).

Chevalier caracterizava Andrew Jackson como um personagem detentor de ideias “ultrademocráticas”, mais vinculado ao “sentimento” que ao “raciocínio”. Está implícita nessa definição não somente uma descrição particular do presidente, mas também uma concepção acerca do próprio modelo democrático, entendido como menos racional e mais movido pelas paixões e desejos imediatistas das massas populares. Concebe-se, no texto de Chevalier, portanto, uma perspectiva que compreendia que, em um regime no qual os desígnios populares devessem ser rapidamente e de qualquer modo atendidos, o respeito à lei estaria em perigo.

Dessa definição decorre uma segunda interpretação: a incompatibilidade entre as ideias “ultrademocráticas”, marcadas pela passionalidade, e a “república”, concebida como uma forma de governo racional pautada pelo respeito às leis. Na concepção de Chevalier, em um governo guiado pelos desejos da “democracia”, nem sempre seria possível encontrar a virtude e a ação em prol do “bem comum”, características da “república”.

Sobre as relações entre “democracia” e “república”, vale a pena destacar que essa discussão não deixa de estar relacionada a um debate mais amplo existente nas décadas que presenciaram a crise e a dissolução do Antigo Regime e do Antigo Sistema Colonial. Remontando ao “humanismo cívico” das cidades italianas de fins da Idade Média e às ideias de Maquiavel - e passando pela Inglaterra seiscentista convulsionada pelas disputas entre a Coroa e o Parlamento -; as concepções sobre a “república” teriam chegado ao último quartel do século XVIII, se convertendo, por exemplo, na base do pensamento radical de Thomas Paine, na constituição política dos Estados Unidos da América, no discurso jacobino da Revolução Francesa e na política de Robespierre durante a Convenção Nacional (Pocock, 2021POCOCK, John G. A. O momento maquiaveliano: o pensamento político florentino e a tradição republicana atlântica. Rio de Janeiro: EDUFF, 2021.; Florenzano, 2006FLORENZANO, Modesto. República (na segunda metade do século XVIII - História) e Republicanismo (na segunda metade do século XX - Historiografia). Clio (Lisboa), v. 14-15, pp. 33-52, 2006.). Na primeira metade do século XIX, as ideias “republicanas”, embora não tenham desaparecido, passaram a conviver e se articular, nem sempre de maneira harmônica, dos dois lados do Atlântico, com conceitos como os de “liberalismo” e de “democracia”.

Nesse quadro mais geral, Chevalier destacava de forma negativa o personalismo do governo Jackson, sintetizado, entre outras coisas, pela própria imbricação entre o nome do presidente, seu partido (jackson-party) e seus partidários (jackson-men). Retomando a ideia de que o respeito à lei deveria estar acima da submissão aos grandes homens, o saint-simoniano afirmava, primeiramente, que enquanto “o amor à lei não pode entranhar nenhum excesso, o amor a um homem pode precipitar os seres fracos nos desvios mais funestos”. E acrescentava, na sequência, que, “nas repúblicas, os grandes homens são perigosos” (Chevalier, 1836cCHEVALIER . Présidence du général Jackson et choix de son successeur. Revue des Deux Mondes, tome 8, 1836c., p. 156).

Mais uma vez, Jackson teria sido o responsável pela transformação dos costumes nacionais e pela submissão das massas aos interesses do governante:

Se os soldados da Independência tivessem sido qualificados de homens de Washington, eles teriam respondido com indignação que não eram gente de ninguém, que eram homens de seu país. Hoje há os jackson-men e um jackson-party. Diz-se de si mesmo que se é um jackson-man, um completo jackson-man (thorough jackson-man); ninguém fica chocado com essas expressões. Abusou-se, com o general Jackson, de todas as fórmulas de adulação asiática. Ele é o maior e o melhor dos homens (the greatest and the best), o herói de duas guerras, o maior capitão dos tempos passados, presentes e mesmo futuros, o rochedo dos séculos das sagradas Escrituras [...]. A democracia, vendo homens renomados por sua inteligência se prostrarem assim diante do general, foi mais longe que eles. Não há limite à influência do general sobre a massa democrática; para ela, ele é infalível. [...] após o imperador da Rússia, o general Jackson é o soberano que possui mais poder sobre seu povo (Chevalier, 1836cCHEVALIER . Présidence du général Jackson et choix de son successeur. Revue des Deux Mondes, tome 8, 1836c., p. 156).

Ironicamente, os Estados Unidos e a Rússia, considerados por Chevalier como modelos opostos de organização social e política, respectivamente a “democracia” e o “despotismo”, eram representados como os responsáveis por transformar seus líderes políticos nos soberanos mais poderosos do mundo. Sobre a república norte-americana, destacava-se, no texto do analista francês, a constituição, nos Estados Unidos, de uma espécie de “personalismo democrático”. Embora a análise de Alexis de Tocqueville sobre Andrew Jackson, em A democracia na América, não compreendesse o general como alguém que pudesse representar um perigo de centralização política excessiva à federação, não deixa de ecoar, no texto de Chevalier, a tese tocquevilleana da degeneração do poder democrático em uma “tirania da maioria”, personificada pela liderança do general Jackson.

Apesar de algumas qualidades que atribuía à democracia, particularmente, a existência de uma “igualdade” e de uma “abastança generalizada” entre os “homens brancos”, Chevalier sintetizava sua concepção sobre esse modelo político como o avesso da ponderação, do cálculo e da racionalidade. Caracterizava-se, ao contrário, pela passionalidade, pelo exagero e pela virulência tanto contra seus opositores como a favor de seus ídolos:

Em todos os lugares, a democracia tem pouca doçura na voz, pouca flexibilidade nas formas; ela se entende pouco com os cuidados e os desvios; ela está sujeita a confundir a moderação com a fraqueza, a violência com o heroísmo. Pouco hábil a se controlar, ela se entrega aos seus amigos sem reserva e se faz de ídolos que ela incensa; ela exprime rudemente, em tom de ameaça e de cólera, suas queixas e suas suspeitas contra aqueles de quem ela crê ter do que se lamentar (Chevalier, 1836aCHEVALIER. Lettres sur l’Amérique du Nord. Vol. I. Paris: Ed. De Charles de Gosselin, 1836a., pp. 309-310).

Na análise de Chevalier, Jackson constituía-se como a personificação dessa democracia norte-americana, que, por seus instintos e por sua passionalidade, afastava-se da própria ideia de “república”.

Assim como Tocqueville procurou discutir a democracia norte-americana com o objetivo de refletir sobre as questões específicas da política francesa, Chevalier não deixou de olhar para os Estados Unidos, projetando-o como uma espécie de “espelho invertido” da Europa de sua época. Para além da comparação entre as sociedades dos dois lados do Atlântico, não há como não apontar também para uma contradição evidenciada pelo relato: se entre os homens brancos se afirmava a existência de uma democracia de fato, esta era exercida, em essência, às custas de uma desigualdade fundamental proporcionada pelos efeitos do sistema escravista vigente à época na república norte-americana.

A DEMOCRACIA DOS HOMENS BRANCOS

Como tem sido ressaltado ao longo destas páginas, a análise sobre a democracia nos Estados Unidos, tanto em Tocqueville, como em Chevalier, não deixava de manter seu olhar também voltado para a situação europeia da primeira metade do século XIX. A comparação era inevitável, dadas as diferenças explícitas entre seus respectivos sistemas políticos e suas formas particulares de organização social. Ao destacar, por exemplo, o pretenso radicalismo do modelo existente na América do Norte, Chevalier o contrapunha aos republicanos europeus: “Na política, o radicalismo está aqui à moda: a palavra democracia, que em outros lugares daria medo mesmo aos republicanos, é aqui buscada, saudada com aclamações” (Chevalier, 1836aCHEVALIER. Lettres sur l’Amérique du Nord. Vol. I. Paris: Ed. De Charles de Gosselin, 1836a., pp. 159-160).

Ir aos Estados Unidos era perceber o quanto as ideias e as perspectivas aristocráticas estavam ainda, a despeito da onda revolucionária iniciada na França em 1789, intrinsecamente entranhadas nos costumes europeus, mesmo entre aqueles que se pretendiam opositores dessas concepções. Ao se deparar com uma democracia “radical”, presente cotidianamente em todos os aspectos da vida social dos norte-americanos, o viajante europeu terminaria por se descobrir como alguém profundamente impregnado pelos ideais aristocráticos:

A sociedade europeia [...] é aristocrática, nesse sentido que ainda hoje, mesmo após as grandes mudanças advindas há cinquenta anos, ela repousa de uma maneira mais ou menos predominante sobre o princípio da desigualdade e da hierarquia. A sociedade americana é essencial e radicalmente uma democracia, não de palavras, mas de coisas. Nos Estados Unidos, o espírito democrático está infiltrado em todos os hábitos nacionais, em todos os costumes da vida. Ele cerca, ele importuna por todos os poros o estrangeiro que não supunha, antes de desembarcar, a qual ponto a educação europeia havia impregnado de aristocracia sua fibra e seus nervos (Chevalier, 1836aCHEVALIER. Lettres sur l’Amérique du Nord. Vol. I. Paris: Ed. De Charles de Gosselin, 1836a., pp. 309-310).

Grande crítico da nobreza ociosa e da lógica militar do Antigo Regime, Chevalier era capaz de descobrir-se, em sua viagem aos Estados Unidos, como alguém impregnado, em suas “fibras” e “nervos”, por um senso “aristocrático”, resultante de sua “educação europeia”. Em outras palavras, o “radicalismo” da democracia poderia provocar incômodo mesmo a um francês não necessariamente reacionário e acostumado às inflexões políticas de seu país.

Essa tensão provocada no viajante europeu pela democracia norte-americana resultava, entre outras coisas, em uma reflexão sobre a diferença entre os significados da “opinião pública” nos dois lados do Atlântico.

Antes de voltar aos escritos de Chevalier, é importante destacar que esse conceito tem se constituído nas Ciências Humanas como essencial para a compreensão do processo da modernidade capitalista no Ocidente. Associado, em grande medida, à ideia de “esfera pública”, cristalizada pela clássica análise de Habermas (2014HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Tradução de Denilson Luís Werle. São Paulo: Editora da Unesp, 2014.), estaria relacionado, nessa abordagem, a um espaço destinado ao debate público autônomo, fora do controle do Estado, que teria se formado a partir da ascensão política e econômica da burguesia europeia. Presente na imprensa, nos circuitos literários, nos salões etc., não estaria vinculado nem à corte, domínio do poder político, e nem ao povo, considerado por esses setores como incapaz do debate crítico.

Embora se configurem como categorias mais complexas que na definição acima, inclusive por não serem, na maior parte das vezes, exclusivamente burguesas, as noções de “espaço público” e ainda de “opinião pública” faziam ecoar, no texto de Chevalier, uma discussão que remetia aos debates acerca da participação política existentes nas décadas anteriores a sua viagem aos Estados Unidos e, especificamente, ao Iluminismo.

Como sintetizou Chartier (2009), a ideia de “público”, no debate ilustrado do século XVIII, não se confundia com uma concepção de “povo”, mas referia-se, em contrapartida, às chamadas “classes esclarecidas”, aos letrados, participantes dos circuitos literários, frequentadores dos salões, dotados do poder da palavra, particularmente da palavra escrita. Nessa perspectiva, esses grupos seriam autorizados, por se configurarem como portadores da “razão”, a participar do debate político, ao contrário das “multidões” populares que, não bastasse sua pretensa “ignorância”, se deixavam guiar, na visão das classes iluminadas, mais facilmente pelas paixões e pelo instinto.

Ressoando essas discussões, enraizadas em meados do século anterior e persistentes na década de 1830, Chevalier afirmava que:

A opinião pública não tem aqui os mesmos árbitros que em nossas sociedades europeias: o que se chama na Europa de opinião pública é a opinião geralmente afiançada entre as classes burguesas e as classes nobres, onde ainda persiste uma nobreza; é aquela dos negociantes, dos manufatureiros, dos letrados, dos homens de estudo e de negócios, daqueles que, tendo recebido de seus pais uma existência assegurada, consagram seu tempo às artes, às letras ou às ciências, e frequentemente também, por infelicidade, ao ócio. Eis o mundo que, na Europa, regula a opinião. É ele que se senta às Câmaras, ocupa os empregos e dirige os órgãos mais influentes da imprensa. É um mundo polido e culto, habituado a se conter, em guarda contra o entusiasmo, mais inclinado ao ceticismo que à exaltação; a quem todo extremo violento repugna, que toda grosseria revolta; amam, frequentemente em excesso, a moderação, as meias medidas e os termos médios (Chevalier, 1836aCHEVALIER. Lettres sur l’Amérique du Nord. Vol. I. Paris: Ed. De Charles de Gosselin, 1836a., pp. 306-307).

Em contraposição, a “opinião pública” nos Estados Unidos, como uma espécie de “Europa de cabeça para baixo”, era a representação das vontades de categorias sociais que, no Velho Continente, sequer eram levadas em consideração pelas “classes esclarecidas”:

A massa, que na Europa está habituada a carregar o fardo e a receber a lei, aqui colocou o fardo sobre as costas das classes esclarecidas e educadas, que são entre nós as classes superiores e fazem a lei à sua vontade. O farmer e o mechanic são os senhores do Novo Mundo; a opinião pública é a sua opinião; a vontade pública é a sua vontade; o Presidente é o seu eleito, seu mandatário, seu servidor (servant). Se é verdade que as classes depositárias do poder na Europa tenham se mostrado muito dispostas a usá-lo em seu proveito, sem consultar os interesses e os desejos da multidão que se agita abaixo delas, é preciso reconhecer que, na América, as classes que têm o cetro não são mais isentas de egoísmo e têm menos dificuldade de disfarçar. Em uma palavra, a América do Norte é a Europa de cabeça para baixo e os pés para o alto (Chevalier, 1836aCHEVALIER. Lettres sur l’Amérique du Nord. Vol. I. Paris: Ed. De Charles de Gosselin, 1836a., pp. 307-308).

Em outro momento de seu relato sobre os Estados Unidos, Chevalier apresentava, acerca da democracia, uma definição complementar:

Aqui [...], é simples à democracia fazer duramente a lei aos capitalistas, aos fabricantes e aos negociantes. Ela possui ao mesmo tempo a força física e o poder político. A burguesia não lhe inspira nem temor nem respeito. O equilíbrio está completamente rompido. Há garantia nos Estados Unidos contra os caprichos populares apenas no bom senso do povo mais bem informado. É preciso dizer que aqui esse bom senso é admirável na massa; mas ele não é infalível. A autocracia popular é fácil de se enganar pelos aduladores como toda outra autocracia (Chevalier, 1836aCHEVALIER. Lettres sur l’Amérique du Nord. Vol. I. Paris: Ed. De Charles de Gosselin, 1836a., pp. 54-55).

Embora concebesse certo bom senso na massa popular norte-americana, Chevalier preferia confiar principalmente nas classes “mais bem informadas” do país, menos suscetíveis, segundo ele, aos perigos da “autocracia popular”. Note-se, em primeiro lugar, a recorrência de uma oposição nos Estados Unidos entre, de um lado, os setores mais “esclarecidos” ou mais “bem-informados” da sociedade e, de outro, as “massas” ou “multidões” democráticas.

Acerca dos primeiros, eram, de maneira bastante evidente, denominados a partir de critérios que remetiam a uma herança iluminista: eram banhados pelas luzes da razão e, por meio da cultura letrada, recebiam os saberes necessários para podem julgar com mais ponderação os fatos da política nacional. Sobre os segundos, não tinham rosto, eram mais imediatistas, egoístas e movidos pelos sentimentos, mais que pela racionalidade. Constituía-se, nesse contexto, como imagem e semelhança do governo que, em todos os sentidos, a representava naquele momento: era, portanto, o espelho de seu mais importante líder, o presidente democrata Andrew Jackson.

Essa “democracia”, como se evidencia em diversos pontos do relato de Chevalier, não pode ser compreendida em sua essência sem que se tenha em conta a relevância das temáticas étnico-raciais e, particularmente, da escravidão nos Estados Unidos. Ao tratar das classes sociais existentes nos Estados do Norte da federação, o engenheiro afirmava, por exemplo, que:

Nos Estados do Norte da União americana, a sociedade é muito menos complexa que na França. Fazendo abstração da casta dos homens de cor, há somente duas classes: a burguesia e a democracia [...].

A burguesia se compõe aí dos industriais, dos comerciantes, dos advogados, dos médicos. Os agricultores não estão nessas esferas em número apreciável, não mais que os homens devotados exclusivamente à cultura das ciências, das letras e das artes.

A democracia compreende os farmers e os mechanics, os cultivadores e os artesãos. Em geral, o cultivador é o proprietário de sua terra (Chevalier, 1836aCHEVALIER. Lettres sur l’Amérique du Nord. Vol. I. Paris: Ed. De Charles de Gosselin, 1836a., pp. 354-355).

Para Chevalier, a democracia não era somente um tipo de cultura política ou de organização da sociedade, mas tratava-se também de uma classe social específica oposta, no caso norte-americano, à burguesia. Em outras palavras, a “democracia” remeteria não somente a um modelo político em que o poder é exercido pela maioria, mas a uma massa de farmers e mechanics, pequenos agricultores e artesãos, cuja influência se fazia sentir intensamente na vida política nacional.

Para além dessa definição mais geral, uma evidente fissura se deixava entrever nesse aparentemente sólido edifício social descrito por Chevalier. Em meio a essa sociedade de classes dominante nos Estados do Norte, em que a burguesia e a democracia disputariam espaço político, mantinha-se viva uma “casta de homens de cor”. Mesmo sem partilhar das mesmas condições de vida dos trabalhadores escravizados das plantations algodoeiras do Sul, os negros nortistas não participavam dessa efusão democrática da década de 1830, pertencendo a uma subcategoria social, excluída dos direitos da cidadania e da participação política (Baptist, 2019BAPTIST, Edward E. A metade que nunca foi contada: a escravidão e a construção do capitalismo norte-americano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019.).

Por outro lado, em contraponto aos Estados do Norte:

Nos Estados do Sul, a democracia branca tem um pedestal, a escravidão. Para se sentir alta, ela não tem a necessidade de rebaixar continuamente a burguesia; ela exerce sua autoridade por baixo e sonha menos em atacar o que está acima dela. No Sul, a sociedade se divide em mestres e escravos; a distinção da burguesia e da democracia é ali secundária, hoje sobretudo, quando a condição inquietante dos negros obriga todos os brancos a permanecerem unidos (Chevalier, 1836bCHEVALIER . Lettres sur l’Amérique du Nord . Vol. II. Paris: Ed. De Charles de Gosselin , 1836b., p. 375).

A escravidão constituía-se, nesse sentido, particularmente nos Estados do Sul, como um fator de “ordem social”. Mesmo em regiões não baseadas nas práticas escravistas, seus resquícios não deixavam de representar também um “pedestal” que garantiria a unidade da população branca, a despeito de sua condição social, diante de um “perigo” maior, representado, em todas as regiões do país, por uma “casta” de homens, fossem eles cativos ou livres.

Se entre os brancos chamava a atenção uma quase inexistente clivagem social, na relação destes com a população negra abria-se um profundo fosso, em que as ideias de liberdade e igualdade só faziam sentido para alguns grupos sociais a partir de uma lógica racialista. Na perspectiva do viajante francês, a democracia nos Estados Unidos “desfaz todas as diferenças, salvo as diferenças de cor; pois aqui uma nuance na pele coloca entre dois homens mais distância que em qualquer outro país do mundo” (Chevalier, 1836bCHEVALIER . Lettres sur l’Amérique du Nord . Vol. II. Paris: Ed. De Charles de Gosselin , 1836b., p. 309).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Analisado como um tratado político, A democracia na América, de Alexis de Tocqueville, não pode ser pensado apenas como um texto teórico, dissociado da época em que foi escrito e das condições imediatas que resultaram em sua produção. Elaborado no contexto das intensas transformações que as sociedades europeias vinham vivenciando desde a segunda metade do século XVIII, com a dissolução das sociedades aristocráticas do Antigo Regime, a obra nasceu também da experiência de Tocqueville em meio à “democracia” durante sua viagem ao Estados Unidos. O mesmo pode ser dito a respeito das Lettres sur l’Amérique du Nord, de Michel Chevalier.

Ambos os autores estiveram nos Estados Unidos na primeira metade da década de 1830, enviados pelo governo francês - Tocqueville para analisar o sistema penitenciário; Chevalier, os sistemas de comunicação e transporte da república norte-americana. Embora seus objetivos oficiais fossem outros, a análise acerca da questão da “democracia”, entendida como forma de organização social, como cultura política e como classe social específica, se impôs aos dois autores. Não somente em razão de se evidenciar como uma chave para se compreender os Estados Unidos, mas de provocar uma reflexão sobre uma Europa que vivenciava há décadas um quadro de transformações estruturais.

Como ressaltado no início do texto, a federação da América do Norte era vista por muitos europeus e, em particular, pelos franceses, como uma espécie de “laboratório” da modernidade naquele início do século XIX. A questão da “democracia” aparecia, portanto, a Tocqueville e a Chevalier, não somente como um prenúncio, mas também, caso não fosse moderada pelas chamadas “classes esclarecidas”, como uma ameaça.

Se, por um lado, as obras de Tocqueville e Chevalier se apresentam como fundamentais para um melhor entendimento sobre o período jacksoniano, não há como se compreender também, em contrapartida, os sentidos mais profundos de A democracia na América e das Lettres sur l’Amérique du Nord, sem que se levem em conta as transformações da sociedade norte-americana das décadas de 1820 e 1830 e a ascensão de Andrew Jackson à presidência dos Estados Unidos.

A “democracia jacksoniana”, com seu aparente radicalismo, foi capaz de provocar intensas reflexões sobre as concepções, vivências e os conflitos existentes em meio a um processo de emergência de uma modernidade política dos dois lados do Atlântico. Suas ambiguidades, sua relação com as transformações das dinâmicas sociais e suas implicações étnico-raciais podem, ainda hoje, contribuir para um debate acerca das contradições históricas da formação dos Estados Unidos da América. Da mesma forma, explicitam as dinâmicas da constituição de uma “democracia” que, mais que um paradigma ou consenso estabelecido sob os escombros do Antigo Regime e do Antigo Sistema Colonial, se evidencia, cada vez mais, como perene objeto de disputa na práxis política contemporânea.

Em suma, em tempos em que a “democracia” e a “liberdade” dos “homens brancos comuns” têm voltado à baila nos debates políticos contemporâneos, retomar “A Era de Jackson”, com sua violenta política em relação aos indígenas e com sua estrutura social escravista e racista, se apresenta como uma demanda fundamental para os historiadores de nossa época.

REFERÊNCIAS

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  • CHEVALIER. Lettres sur l’Amérique du Nord. Vol. I. Paris: Ed. De Charles de Gosselin, 1836a.
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  • WALCH, Jean. Michel Chevalier, économiste saint-simonien. Paris: Vrin, 1975.
  • 1
    Este artigo é tributário de algumas reflexões presentes na tese de doutorado Utopias industriais, sonhos imperiais: Michel Chevalier entre latinos e anglo-saxões na Europa e nas Américas (1833-1863), defendida em 2019.
  • 2
    Michel Chevalier percorreu, entre 1834 e 1835, as cidades norte-americanas de Nova York, Filadélfia, Baltimore, Richmond, Washington D.C., Charleston, Lowell, Boston, Elmington, Pittsburg, Louisville, Memphis, Natchez, Nova Orleans, Buffalo, Lancaster, Sunbury, Johnstown, Bedford-Springs, Augusta e Albany.
  • 3
    Os textos citados de obras publicadas originalmente em francês foram traduzidos para este artigo.
  • 4
    Declarada sob o governo de James Madison (1809-1817), a Guerra de 1812 contra a Inglaterra foi iniciada pelos Estados Unidos sob a acusação de que os navios da federação estavam sendo impedidos de circular em alto-mar. Em um contexto em que os britânicos se mantinham engajados na luta contra os exércitos de Napoleão Bonaparte na Europa, a república norte-americana saiu vencedora do conflito (Junqueira, 2018).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    12 Dez 2023
  • Aceito
    10 Jun 2024
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