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Tráfico humano: uma discussão que precisa da História

Human Trafficking: A Discussion that Needs History

RESUMO

O tráfico humano, assunto fortemente midiatizado na virada dos anos 2000 e 2010, voltou a ter repercussão pública em âmbito nacional durante a campanha política para a presidência da República em 2022, na fala de Damares Alves, correligionária do então candidato à reeleição Jair Bolsonaro. Neste artigo, analisamos a potência sedutora da temática e mostramos o efeito desastroso de entendimentos moralizantes a respeito do deslocamento de mulheres para a inserção no mercado sexual. Nossa perspectiva encontra estudos antropológicos como, por exemplo, os de Jo Doezema, Adriana Piscitelli e Marcia Sprandel. Analisamos inquéritos policiais e processos criminais datados de entre 1995 e 2012 - período em que o tráfico de pessoas para exploração sexual se tornou uma questão no Brasil -, motivados pela seguinte provocação: se todos somos contra a exploração sexual, o que temos em comum com Damares Alves?

Palavras-chaves:
tráfico de pessoas; tráfico de mulheres; tráfico humano; exploração sexual; gênero; feminismos

ABSTRACT

Human trafficking, a subject that was heavily mediatized at the turn of the 2000s and 2010s, once again had public repercussions at the national level during the political campaign for the presidency of the Republic in 2022, in the speech by Damares Alves, a co-religionist of then candidate for re-election Jair Bolsonaro. In this article, we analyse the seductive power of the topic and show the disastrous effect of moralizing understandings about the displacement of women to enter the sex market. Our perspective is based on anthropological studies such as those by Jo Doezema, Adriana Piscitelli and Marcia Sprandel. We analyzed police inquiries and criminal cases dating from 1995 to 2012 - the period in which human trafficking for sexual exploitation became an issue in Brazil - motivated by the following provocation: if we are all against sexual exploitation, what do we have in common with Damares Alves?

Keyword:
Trafficking in persons; Trafficking in women; Human trafficking; Sexual exploitation; Gender; Feminism

Em outubro do ano de 2022, uma ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos no período de 2019 e 2022, no governo de Jair Bolsonaro, afirmou, durante atividades religiosas e sem apresentar quaisquer provas, que teria tomado conhecimento de casos de tráfico de crianças para exploração sexual. Tais afirmações foram registradas em vídeo e circularam pelas redes sociais, causando fortes reações entre internautas. Damares Alves comunicou que sabia de casos de estupros de crianças, que, segundo ela, viveriam sem dentes para praticar sexo oral e comiam alimentos pastosos para ter o intestino livre para praticar sexo anal. Falou também em vendas dessas crianças. Tais situações estariam, segundo ela, ocorrendo no estado do Pará (Gabriel, 2022GABRIEL, João. Promotoria do Pará cobra provas de exploração sexual infantil relatada por Damares. 12 out. 2022. Disponível em: Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/10/promotoria-do-para-cobra-provas-de-exploracao-sexual-infantil-relatada-por-damares.shtml . Acesso em: 2 nov. 2022.
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/...
).

O Ministério Público daquele estado solicitou documentos e esclarecimentos sobre medidas tomadas a respeito dos fatos alegados pela ex-ministra. A Polícia Civil do Pará se manifestou no mesmo sentido. A Secretaria Nacional de Justiça, do Ministério da Justiça e Segurança Pública expediu ofício a organizações de sociedade civil que fazem parte do CONATRAP (Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas), esclarecendo que não havia recebido informação ou tomado conhecimento daqueles casos de exploração sexual de crianças relatados por Damares Alves, que depois seria eleita senadora (Lopes, 2022LOPES, Raquel. Secretaria de Justiça diz que não conhece casos de exploração de crianças como o citado por Damares. 26 out. 2022. Disponível em: Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/10/secretaria-de-justica-diz-que-nao-conhece-casos-de-exploracao-de-criancas-como-o-citado-por-damares.shtml . Acesso em: 2 nov. 2022.
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/...
). Nem o Ministério Público, nem a Polícia e tampouco o governo do estado receberam denúncia formal de tais fatos (Gabriel, 2022GABRIEL, João. Promotoria do Pará cobra provas de exploração sexual infantil relatada por Damares. 12 out. 2022. Disponível em: Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/10/promotoria-do-para-cobra-provas-de-exploracao-sexual-infantil-relatada-por-damares.shtml . Acesso em: 2 nov. 2022.
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/...
). Depois de cobrada por explicações, a ex-ministra passou a dizer que os casos estariam sob inquérito sigiloso e que, por isso, não poderia dar mais informações.

Bradar contra a exploração sexual infantil tem sido gatilho para manifestações acaloradas vindas de todos os espectros políticos. Não importa de que lado estejamos, todos concordamos que as crianças não devem ser submetidas à exploração sexual. Ainda que a partir de diferentes perspectivas, essa ordem de abuso de crianças tem catalisado a atenção de diferentes atores sociais, dos populares aos altamente escolarizados, de religiosos a ateus, de direitistas os mais radicais a esquerdistas convictos.

O mesmo ocorre com relação ao chamado tráfico humano. Parece haver um certo consenso em torno de sua inadmissibilidade, ainda que não se saiba bem o que seja ou do que se trata na realidade. É a partir dessa constatação que propomos um exercício de pensamento. Este artigo problematiza a maneira como o tráfico humano se torna dizível de tempos em tempos. Entendido a partir do vocabulário criminal, seria ação praticada por vilões monstruosos e que não se sabe quem são, contra vítimas entendidas como altamente vulneráveis que são enganadas ou raptadas, como crime atroz que deve ser desvendado pela polícia em investigações sigilosas, porque se trataria de um delito calculado por poderosas organizações. O tráfico de pessoas é alardeado como assunto de polícia, dando a ela o lugar autorizado para dizer sua verdade.

Não é nossa intenção, neste artigo, discutir a perversidade ou o desvario de Damares Alves, tampouco o uso tenebrosamente estratégico de pautas morais para amealhar votos em campanha presidencial. Nosso objetivo é mostrar como a retórica do combate ao tráfico de pessoas para exploração sexual tem fascinado e alucinado, há décadas, tanto pessoas com limitadas instrução e possibilidade de informação quanto funcionários estatais e mesmo alguns intelectuais acadêmicos, tornando difícil ponderar as desvantagens de acolher certas categorias do Direito Penal no debate das Ciências Humanas.

Não estamos, de nenhuma forma negando que extremas explorações e injustiças aconteçam, mas pretendemos explicar como narrativas fantasiosas sobre exploração sexual, ao modo daquelas da ex-ministra, têm efeito catastrófico nas vidas de mulheres que se dedicam voluntariamente à prostituição, nas vidas de famílias pobres que se deslocam de um país a outro, nas vidas das pessoas de regiões empobrecidas, que são, afinal, estigmatizadas ou como incapazes de qualquer autonomia ou como exploradoras desprovidas de humanidade.

O sensacional relato da ex-ministra usou a retórica do tráfico humano ao falar de vendas de crianças para abusos sexuais. O que ela disse não foi exatamente uma invenção particular sua, mas sim o resultado da apropriação de uma narrativa que circula socialmente há muito tempo. E é justamente por isso que sua fala fez tanto efeito. Seu dito, delirante ou não, foi consonante a imagens míticas sobre o tráfico de pessoas para exploração sexual. E ela certamente conhecia a potência sedutora do conteúdo daquelas palavras.

Fatos sem comprovação, estatísticas que se repetem umas às outras sem análise rigorosa, manchetes midiáticas fantásticas sobre a chamada escravidão moderna têm formulado um imaginário compartilhado daquilo que se entende hoje como tráfico de pessoas para exploração sexual. O discurso fica ainda mais inflamado quando se fala em exploração sexual de crianças. Afinal, todos queremos proteger as crianças. E é este ponto que merece cuidado: o que nós, profissionais das Ciências Humanas, compartilhamos com Damares Alves?

1. PRODUÇÃO DE UM CONCEITO

Quando pensamos em tráfico humano para exploração sexual, imaginamos uma mulher sendo levada de um lugar a outro e obrigada a se prostituir. Não nos damos conta, no entanto, de que nossas ideias sobre prostituição, ideias essas que constituem tais imaginários, têm uma história. Constituída como problema social no século XIX, foi apenas nos anos 1980 que a prostituição ganhou legitimidade como objeto de saber das Ciências Humanas. Entre as pesquisas historiográficas pioneiras e que ganharam notoriedade acadêmica estão as publicações de Judith Walkowitz em 1980WALKOWITZ, Judith. Prostitution and Victorian Society: Women, Class, and the State. Cambridge: Cambridge University Press , 1980. , Frances Finnegan em 1979FINNEGAN, Frances. Poverty and Prostitution: A Study of Victorian Prostitutes in York. Cambridge: Cambridge University Press, 1979. , ambas na Inglaterra, e Alain Corbain, em 1978, na França. No Brasil, Margareth Rago publicou sua obra clássica em 1991.

No século XIX, a prostituição foi incorporada aos objetos de saber da comunidade médica. Nessa época, marcada por teorias eugenistas e evolucionistas, constituiu-se uma ciência sexual, e a prostituição foi considerada uma ameaça ao corpo, à família, ao casamento, ao trabalho, à propriedade, foi entendida como “doença” e tornou-se alvo de planos de profilaxia. As prostitutas eram perseguidas por serem consideradas empecilhos à civilização, à “limpeza moral” da cidade, e, por isso, sua circulação deveria ser controlada e suas casas deveriam ser afastadas para espaços confinados definidos por reformas urbanas.

Na segunda metade do século XIX, momento de intensos fluxos migratórios, a prostituição através de fronteiras nacionais foi se tornando um problema específico. Preocupações com o ideal de pureza feminina, apropriadas nas discussões sobre o policiamento de fronteiras nacionais, deram lugar à elaboração da categoria tráfico de brancas. Afinada com o espírito de uma época marcada pela invenção da debilidade feminina, a ideia de que mulheres poderiam ser enganadas e arrastadas de seus países de origem por cafetões oportunistas ganhou credibilidade. Contribuiu também para a emergência e a aceitação de tal categoria o fato de ela trazer consigo um racismo latente: eram as mulheres brancas que deveriam ser protegidas.

A historiografia recente, informada com novas teorias do sujeito, das relações de poder e agência, tem desafiado histórias mais correntes sobre o chamado tráfico de mulheres e mostrado mulheres ativas, autodeterminadas, capazes de fazer escolhas e tomar decisões que transformavam conscientemente suas vidas, ainda que estivessem em lugares de desvantagem social e econômica. Antes assunto tratado na área das Ciências Sociais, o tráfico ganhou análises de profissionais da área da História na última década. Jessica Pliley (2019PLILEY, Jessica R. Trafficked White Slaves and Misleading Marriages in the Campaigns Against Sex Trafficking, 1885-1927. Federal History, pp. 60-82, 2019.) pesquisou como o discurso da época associava casamento e escravidão branca. Ela atenta que o termo escravidão branca tinha significado flexível e instável, quase sempre associado à prostituição, e que o auge das preocupações com tal prática nos Estados Unidos, o início do século XX, coincide com o momento em que o país aceitou grande número de migrantes. A historiadora mostrou como prostitutas faziam acordos de casamento para poderem migrar para os Estados Unidos, para poderem entrar no país livremente desafiando as proibições que recaíam sobre elas. Philippa Hetherington (2014HETHERINGTON, Philippa. Victims of the Social Temperament: Prostitution, Migration and the Traffic in Women from Imperial Russia and the Soviet Union, 1885-1935. Dissertation (PhD in History) - University of Harvard. Cambridge, 2014.) investigou o surgimento do “tráfico de mulheres” como problema social na Rússia, no início do século XX, e percebeu que concepções sobre gênero, sexo e prostituição foram centrais nas discussões de segurança de estado e soberania. Mir Yarfitz (2019YARFITZ, Mir. Impure Migration: Jews and Sex Work in Golden Age Argentina. New Brunswick: Rutgers University Press, 2019.) contou histórias de como homens judeus facilitavam o deslocamento de mulheres judias do leste europeu para a Argentina, desde o final do século XIX e durante primeiras três décadas do XX, período em que a prostituição era uma instituição legal naquele país. Ele mostrou que se tratava de uma população deslocada pelos pogroms e pela discriminação anti-semítica, e que a prostituição era uma maneira consciente de escapar daquela situação em seus países de origem. Camiscioli (2019CAMISCIOLI, Elisa. Choice and Coercion: The “Traffic in Women” between France and Argentina in the Early Twentieth Century. French Historical Studies, v. 42, n. 3, pp. 483-507, 2019.) pesquisou documentação policial de “tráfico de mulheres” entre França e Argentina nas primeiras décadas do século XX e explicou que, enquanto a narrativa dominante enfatizava coerção e exploração, muitas mulheres descreviam a jornada para a Argentina como oportunidade de dinheiro, viagem ou liberdade. Considerando que tais mulheres certamente tiveram vidas precárias tanto em cidades francesas quanto nas argentinas, a historiadora argumenta que explicar o deslocamento delas partindo da ideia de que eram ou forçadas ou levadas por livre escolha é inadequado.

A historiadora Margareth Rago (2019RAGO, Margareth. Os prazeres da noite: Prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (1890-1930). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019 [1991]. ) ensina que as mulheres que desafiaram a ordem de existência restrita ao núcleo familiar foram entendidas e policiadas como manifestação de sexualidades perigosas: aquelas que não se casaram, as mulheres pobres, que sempre trabalharam fora de casa, e, em especial, as prostitutas. Walkowitz (1980WALKOWITZ, Judith. Prostitution and Victorian Society: Women, Class, and the State. Cambridge: Cambridge University Press , 1980. ), Kushnir (1996KUSHNIR, Beatriz. Baile de máscaras: mulheres judias e prostituição: as polacas e suas associações de ajuda mútua. Rio de Janeiro: Imago, 1996.), Pereira (2005PEREIRA, Cristiana Schettini. Lavar, passar e receber visitas: debates sobre a regulamentação da prostituição e experiências de trabalho sexual em Buenos Aires e no Rio de Janeiro, no fim do século XIX. Cadernos Pagu , Campinas, n. 25, pp. 25-54, 2005.), entre tantos outros, também historiografaram resistências ao modelo burguês por parte de mulheres que se dedicavam à prostituição. Portanto, se o imaginário sobre mulheres brancas sendo forçadas a se prostituir deu lugar à invenção da categoria escravidão branca (white slavery trade) e tráfico de mulheres (trata de blancas, trafficking in women), o que a historiografia tem mostrado são mulheres que fizeram da prostituição uma estratégia migratória consciente.

Passado o alvoroçamento com a situação de mulheres integrando o abundante fluxo migratório transnacional em fins do século XIX, época em que elas precisavam de autorização para migrar, a questão do tráfico de mulheres ficou quase esquecida ao longo do século XX. Retornou de maneira sutil nos debates sobre a regulamentação do trabalho sexual em países do norte global nos anos 1980. Ganhou força nos anos 1990, na esteira de preocupações com o novo aumento do número de pessoas se deslocando através de fronteiras nacionais.

No Brasil, a temática do tráfico de mulheres foi incorporada no âmbito das políticas de Estado junto com o debate sobre exploração sexual infantil nos anos 1990. A categoria “tráfico de mulheres” entra em discurso no Brasil como preocupação governamental, agendada em função de acordos internacionais sobre os direitos das crianças, dando espaço para confusões conceituais e configurando relações equivocadas entre prostituição de mulheres adultas e exploração sexual infantil (Sprandel; Mansur, 2010SPRANDEL, Marcia Anita; DIAS, Guilherme Mansur. A temática do tráfico de pessoas no contexto brasileiro. Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, Brasília, v. 18, n. 35, pp. 155-170, 2010.).

Um outro componente importante nessa configuração histórica foi que, em 2000, uma primeira definição supranacional de tráfico humano foi deliberada em Assembleia das Nações Unidas. O contexto era de preocupações com a intensificação de fluxos migratórios através de fronteiras nacionais, e a Assembleia tinha como objetivo discutir o crime organizado transnacional. Foi negociada, em meio a acaloradas disputas, a redação de um conjunto normativo que ficou conhecido como Protocolo de Palermo, em referência à cidade que sediou a Convenção. Tal norma supranacional se compõe de três tratados específicos: um sobre tráfico de pessoas, especialmente mulheres e crianças; outro sobre contrabando de migrantes, para lidar com pessoas que atravessam fronteiras nacionais sem a documentação exigida; e um outro sobre tráfico de armas e munição.

O ambiente da negociação não era favorável a uma discussão sobre Direitos Humanos, já que o objetivo era propor uma resolução para o controle de fronteiras nacionais. A tônica dos debates foi o Direito Penal. Muitos problemas relativos ao texto final do Protocolo foram apontados tanto por pesquisas acadêmicas quanto por ativistas de Direitos Humanos (Gallagher, 2002GALLAGHER, Anne. Trafficking, Smuggling and Human Rights: Tricks and Treaties. Forced Migration Review, Oxford, n. 12, pp. 25-28, 2002.; Davidson; Anderson, 2006DAVIDSON, Julia O’Connell; ANDERSON, Bridget. The Trouble with “Trafficking”. In: ANKER, Christien L. van Den; DOOMERNIK, Jeroen (Orgs.). Trafficking and Women’s Rights. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2006. pp. 11-26.; Ditmore, 2003DITMORE, Melissa; WIJERS, Marjan. The Negotiations on the UN Protocol on Trafficking in Persons. Nemesis, v. 4, pp. 79-88, 2003.; Kempadoo, 2005KEMPADOO, Kamala. Mudando o debate sobre o tráfico de mulheres. Cadernos Pagu, Campinas, n. 25, pp. 55-78, 2005.). No entanto, tal conjunto normativo foi ratificado pelo Brasil em 2004. Entre outros, quase 150 países que o assinaram rapidamente, em função de pressões e sanções econômicas impostas por países do Norte global, especialmente os Estados Unidos1 1 Janie Chuang explicou como os Estados Unidos tentaram impor critérios próprios de combate ao tráfico aos outros países, sobrepondo sua legislação nacional ao já tão frágil consenso de cooperação internacional (Chuang, 2006). De fato, todos os anos, desde o Protocolo de Palermo, o Departamento de Estado dos Estados Unidos produz um relatório classificando os países de acordo com seus esforços de combate ao tráfico. .

No tocante à definição do que seria o tráfico humano, a discussão previa casos em que alguém facilita o deslocamento de uma pessoa, encorajando-a a entrar em acordo quanto ao pagamento de dívidas altas, enganando-a sobre o quanto vai ganhar e sobre as condições de trabalho no lugar de destino. O debate pensava em pessoas que, depois de viajar, se encontram em uma situação em que é impossível pagar tal dívida, submetendo-se, assim, a condições de trabalho altamente exploratórias. O esforço para incluir a categoria tráfico de pessoas no Protocolo que trata de crime organizado foi movido por preocupações, por parte de comissões de direitos humanos, de que todas as pessoas pobres em deslocamento transnacional pudessem ser compreendidas no crime de contrabando de migrantes, percebidas sempre como infratoras. A ideia era construir um dispositivo normativo que compreendesse casos em que migrantes são vítimas de uma situação e não fossem entendidos como criminosos.

Apesar de considerar o tráfico para trabalhos diversos, o texto do Protocolo enfatiza o tráfico para exploração sexual, especialmente de mulheres e crianças, emprestando sentidos inventados no final do século XIX. Além disso, as definições de tráfico e contrabando de migrantes ficaram confusas, tornando praticamente impossível diferenciar uma prática da outra, a não ser que se recorra à ideia de que a prostituição é um problema em si.

O texto original do Código Penal Brasileiro continha uma definição do tráfico de mulheres desde os anos 1940, figurando em meio aos popularmente conhecidos artigos que previam penas para os crimes de facilitação ou favorecimento da prostituição, manutenção de casa de prostituição e rufianismo, que, em conjunto, arrastam um sentido proibitivo da prostituição (Venson; Pedro, 2013VENSON, Anamaria Marcon; PEDRO, Joana Maria. Tráfico de pessoas: uma história do conceito. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 33, n. 65, pp. 61-83, 2013.). O artigo do Código Penal que tratava de tráfico restou sem uso até o final do século XX, passando a ser, nos anos 2000, aplicado para justificar inquéritos policiais direcionados por preocupações internacionais sobre o crime organizado. Estava definido que alguém cometia o crime de tráfico internacional de pessoa quando promovia ou facilitava a entrada no território nacional de alguém que nele viesse exercer a prostituição, ou a saída de alguém que fosse exercê-la no estrangeiro. O emprego de violência, grave ameaça ou fraude e fins de lucro não eram definidores do tráfico, e sim entendidos como elementos adicionais que poderiam levar ao aumento de pena.

Diferentemente do Protocolo, que prevê, ainda que de forma problemática, tráfico para quaisquer trabalhos forçados, a definição nacional se manifestava em relação necessária com a prostituição. E ainda, enquanto o Protocolo, mesmo que também de forma controversa, pensa um processo de mobilidade, um conjunto de atividades concatenadas que resultam violação de direitos humanos, nosso Código Penal previa punição para quem ajudasse ou tentasse ajudar o deslocamento - saída ou entrada - de alguém que exerceria - no futuro imaginado, no destino - prostituição. O entendimento sobre tráfico se arrastou ao longo do século XX, encontrando lugar e efeito em jogo com a noção de que a prostituição deveria ser combatida. Em 2005 e 2009, o Código passou por modificações, que, no entanto, pouco mudaram o sentido de tráfico ou sua aplicação em inquéritos policiais. Em 2016, os artigos que faziam referência ao tráfico de pessoas foram revogados, realocando a noção de tráfico para outros dispositivos penais vários, como aliciamento para o fim de emigração, aliciamento de trabalhadores de um local para outro do território nacional, redução à condição análoga à de escravo, favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual, além de outros crimes relacionados. Contudo, o conjunto legislativo sobre tráfico de crianças e de órgãos foi mantido.

Pouco mais de uma década de aplicação do hoje revogado artigo penal sobre tráfico de mulheres, depois de pessoas, foi suficiente para que certos agentes da Polícia Federal transformassem antigas práticas policiais de combate à prostituição em técnicas de combate ao tráfico para exploração sexual. Como o Código previa também a punição por tentativa do crime, nos anos 2000 era comum ver manchetes midiáticas com delegados de polícia relatando, com ares de heróis e sob luzes e câmeras de aeroportos internacionais, como haviam desbaratado redes de tráfico. Com o gradual esforço governamental de adequação a firmados compromissos internacionais de combate ao tráfico, a Polícia Federal ganhou, pela primeira vez, status internacional, ao criar operações antitráfico que incumbiam agentes de viajarem a países europeus em busca de vítimas. O auge do combate foi a segunda metade da década de 2000. Passado o frenesi, o combate ao tráfico de pessoas foi saindo de cena, enquanto os trabalhos da Polícia Federal ganhavam repercussão em função de assuntos mais nacionais.

Devemos assinalar semelhanças entre o modo como o tráfico de pessoas e a notória operação lava-jato foram midiatizados. Sob o argumento de que se tratavam de crimes de difícil comprovação, ganharam discursividade ao modo do espetáculo. A repercussão da lava-jato está certamente relacionada ao surgimento de novas tecnologias da informação, de plataformas digitais e da produção dos chamados influenciadores, que ganham fama e dinheiro manipulando redes digitais. O ex-presidente Jair Bolsonaro, correligionário da ex-ministra cuja declaração abriu este artigo, venceu as eleições presidenciais baseado no poder estratégico das novas redes sociais, redes essas que catalisaram acusações sem provas, e mesmo mentiras, que são rapidamente divulgadas.

O modo e a circunstância da fala de Damares Alves com a qual abrimos este artigo reeditam sentidos que deram lugar a políticas de combate ao tráfico no Brasil: que seria um crime monstruoso, cuja solução deve ser reservada tão somente à polícia, que não há provas porque acontece às escondidas, que as investigações devem ser sigilosas para que não sejam prejudicadas, mas que, contudo, sua existência deve ser noticiada publicamente.

No entanto, a difusão da pauta antitráfico, movida a partir do vocabulário penal e em corroboração com interesses de securitização, ocorre justamente no momento de governos progressistas no Brasil e na América Latina. Foi a partir de 2006 que vários Planos Nacionais de enfrentamento ao fenômeno, com a adoção de premissas complicadas e com base em pesquisas sem rigor metodológico, foram criados no país. Parece que o “moralismo” e o “enfoque anti-prostituição” da agenda antitráfico não se restringe à extrema-direita (Moraes et al., 2022MORAES, Rodrigo Fracalossi de et al. Uma solução em busca de um problema: repensando o enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil. Rio de Janeiro: Ipea, 2022).

2. PROVAS DE TRÁFICO DE PESSOAS PARA EXPLORAÇÃO SEXUAL

No final da década de 2000, informadas por pesquisas acadêmicas cujos resultados destoavam da imagem midiática do tráfico de mulheres e inteiradas da contrariedade a tal discurso aterrorizante na discussão promovida pelos movimentos organizados de trabalhadoras do sexo, desafiamos, de maneira informal, agentes federais e outros funcionários do Estado a nos responderem os motivos do dissenso. Em algumas ocasiões, chegamos a nominar organizações e autores de pesquisas, que eram claramente desconhecidos dos profissionais da lei. Por exemplo, estudos brasileiros sobre mulheres se deslocando para se inserir no campo laboral sexual, porém, sem trazer aquelas cenas de horror difundidas pelo discurso mais dominante sobre o tráfico (Piscitelli, 2008PISCITELLI, Adriana. Entre as “máfias” e a “ajuda”: a construção de conhecimento sobre tráfico de pessoas. Cadernos Pagu , Campinas, n. 31, pp. 29-63, 2008.; Piscitelli, 2007PISCITELLI, Adriana. Brasileiras na indústria transnacional do sexo: Migrações, direitos humanos e antropologia. Nuevo Mundo-Mundos Nuevos, v. 7, 2007.; Silva; Blanchette, 2005SILVA, Ana Paula da; BLANCHETTE, Thaddeus. “Nossa Senhora da Help”: sexo, turismo e deslocamento transnacional em Copacabana. Cadernos Pagu , Campinas, n. 25, pp. 249-280, 2005.; Teixeira, 2008TEIXEIRA, Flávia do Bonsucesso. L’Italia dei Divieti: entre o sonho de ser européia e o babado da prostituição. Cadernos Pagu , Campinas, n. 31, pp. 275-308, 2008.). Tais pesquisas brasileiras encontravam os resultados produzidos por autores de outros países (Cheng, 2010CHENG, Sealing. On the Move for Love: Migrant Entertainers and the U.S. Military in South Korea. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2010.; Doezema, 1998DOEZEMA, Jo. Forced to Choose: Beyond the Voluntary v. Forced Prostitution Dichotomy. In: KEMPADOO, Kamala; DOEZEMA, Jo (Orgs.). Global Sex Workers: Rights, Resistance, and Redefinition. Nova York; London: Routledge, 1998. pp. 34-50.; Thorbek; Pattanaik, 2002THORBEK, Susanne; PATTANAIK, Bandana (Eds.). Transnational Prostitution: Changing Global Patterns. London; New York: Zed Books, 2002. ; Sanghera, 2005SANGHERA, Jyoti. Unpacking the Trafficking Discourse. In: KEMPADOO, Kamala; SANGHERA, Jyoti; PATTANAIK, Bandana (Orgs.). Trafficking and Prostitution Reconsidered: New Perspectives on Migration, Sex Work, and Human Rights. London: Paradigm, 2005. pp. 3-24.; Mai, 2012MAI, Nick. Embodied Cosmopolitanisms: The Subjective Mobility of Migrants Working in the Global Sex Industry. Gender, Place & Culture, v. 20, pp. 107-124, 2012.).

Entre respostas evasivas, uma foi crucial para a trajetória de nossas pesquisas: “essas antropólogas não têm como chegar nos casos de tráfico, porque esse crime acontece escondido e é muito difícil de provar”. Essa fala produziu, para nós, a urgência de procurar inquéritos policiais e processos-crime sobre tráfico de pessoas para exploração sexual, para que entendêssemos as motivações da convicção daquele agente de Polícia Federal. Afinal, se é tão “escondido”, tão “difícil de provar”, a partir do que aquelas imagens terríveis do tráfico para exploração sexual reverberavam entre nós?

A despeito da suposição de que haveria muitos casos de tráfico sob investigação, encontramos poucos inquéritos e processos, sempre conduzidos sob sigilo. No período entre 2005 e 2011, auge das políticas de combate ao tráfico, 514 inquéritos policiais foram classificados como investigações de tráfico de pessoas. Destes, 344 tratavam de trabalho em condição análoga à de escravo, passando ao largo da questão da exploração sexual. No mesmo período, foram abertos 91 processos-crime a respeito de tráfico internacional, 109 a respeito de tráfico interno e 940 a respeito de trabalho escravo. Tráfico interno não é objeto de análise neste artigo, mas não podemos nos furtar a esclarecer que a definição de tráfico interno era tão ou mais problemática que a de tráfico internacional, pois se confundia absolutamente com o crime de favorecimento da prostituição. Tampouco é o mote deste artigo analisar tais estatísticas, mas devemos informar que, apesar do escândalo em torno do tráfico para exploração sexual, o trabalho escravo parece mais dramático em termos de quantidade e, no entanto, não causa a mesma comoção pública.

Finalmente, posto que tais fontes de pesquisa existiam sob sigilo, tivemos dificuldades para acessá-las. Recorremos a diferentes estratégias, entre elas correspondência com a delegada de Polícia Federal que chefiava o combate ao tráfico em âmbito nacional na época (a mesma que inspirou uma novela global de grande audiência), que nos negou acesso, alegando que poderíamos atrapalhar as investigações. Por graça de dois procuradores do Ministério Público, um trabalhando em Goiás e outra no Ceará, conseguimos consultar 12 processos-crime completos, incluídos os inquéritos policiais, que correram entre os anos de 1995 e 2012. A análise de tais fontes dá a ver o sentido de tráfico para exploração sexual que foi operacionalizado pelos funcionários da lei e sobre o qual se construiu a ideia de que as investigações precisam ser sigilosas. No entanto, encontramos recortes de notícias jornalísticas anexados a inquéritos policiais como supostas provas da existência de crime, notícias essas em que o próprio delegado encarregado da investigação explicava as operações.

O registro policial mais antigo que encontramos sobre o tráfico de mulheres data de meados da década de 1990:

Em 29 de novembro de 1995, [...] Fabiana, Marcela e a menor Bianca [...] uma vez que as duas últimas estavam portando carteira de identidade com dados falsos, e com as mesmas obtiveram passaporte, que também portavam, e, com eles, pretendiam ir para a Espanha, com o fim de se prostituírem, convencidas pela primeira2 2 Os nomes dos envolvidos foram modificados por nós porque, mesmo que inquéritos e processos tivessem corrido sob sigilo, alguns casos foram amplamente noticiados pela mídia, podendo os casos serem facilmente identificados. Preferimos, pelo mesmo motivo, ocultar as cidades de saída e destino. .

O relatório de inquérito da delegacia de polícia, de outubro de 1996, diz: “Este procedimento foi instaurado para apurar o tráfico de mulheres para o exterior, praticado por Fabiana. [...] havendo suspeitas de estar agenciando mulheres para serem levadas para a Espanha, onde se dedicariam à prostituição”. A investigação policial se faz a partir de uma preocupação com “falsificação de documentos”, que teria como fim possibilitar a viagem de uma mulher, Marcela, à época civilmente menor de idade (menos de 21 anos) e penalmente maior de idade (mais de 18 anos). Naquela época, era necessário completar 21 anos de idade para obter o passaporte sem autorização de responsável. Nesse caso específico, Marcela foi, ao mesmo tempo e no mesmo processo, acusada/condenada por falsificação de documentos e apontada como vítima de tráfico de mulheres, já que Fabiana foi condenada por tentativa de tráfico e Marcela nem sequer viajou para o estrangeiro. Em abril do ano 2000, o Ministério Público Federal denuncia um outro caso, confirmando o entendimento da polícia:

Consta do incluso inquérito policial que Raquel foi presa em flagrante delito no aeroporto em Cidade do estado de Goiás, na companhia de Beatriz e Júlia [apontadas como supostas vítimas], quando estas tentavam embarcar para Cidade Francesa, seguindo de lá para Cidade Espanhola, com a finalidade de se prostituírem em casas noturnas ali existentes. [...] a Polícia Federal logrou descobrir que as denunciadas atuam de forma consorciada no tráfico de mulheres levadas ao exterior para se prostituírem na Espanha. [...] Débora, residente atualmente na Espanha, era quem enviava para Raquel os recursos financeiros necessários para que esta aliciasse mulheres no território nacional e as enviasse para aquele país a fim de se prostituírem, como tentaram fazer com as vítimas já mencionadas. [...] as irmãs Raquel e Bruna, e ainda, Débora, conscientes e deliberadamente, tentaram levar Beatriz e Júlia para se prostituírem na Espanha [...].

Até aquela data, encontramos apenas condenações por tentativas do crime. Todo o vocabulário que diz o tráfico é o vocabulário do combate à prostituição: acusada e apontadas como supostas vítimas tentavam embarcar - com a finalidade de se prostituírem. Nada aparece sobre as condições de trabalho no local de destino. Em outro inquérito, que se iniciou com notícia de crime datada de junho de 2003, o agente da Polícia Federal explica que a pretensão é:

[...] investigar notícia crime, noticiada pelo Ministério Público Federal do estado de Goiás, de que o indivíduo de nome Eduardo, está promovendo e envio de Gabriela, Eliane, Vivian, Mônica para a Espanha, para lá exercerem a prostituição. O embarque provavelmente acontecerá entre os dias x a x/06/2003.

Na prática policial, tráfico equivale a favorecimento da prostituição. Assim como o combate ao tráfico se equipara ao combate à prostituição, também se mistura ao combate ao turismo sexual, categoria também de difícil definição e que não constitui crime no Brasil. Em 2003, no estado do Ceará, inicia-se uma investigação no âmbito da Polícia Civil, sendo depois transferido o caso para a Polícia Federal, partindo de confusões elaboradas sobre prostituição e turismo sexual, que legitimam a aplicação da categoria tráfico de mulheres:

Tendo chegado a conhecimento [...] através de boletim de ocorrência [...] a possível incidência de ilícito penal previsto no artigo 228 do Código Penal (favorecimento da prostituição) e após verificada a procedência das informações [...] instauração de inquérito [...] Caio, segundo Débora, é a pessoa responsável pelo agenciamento e “produção” das garotas enviadas para prostituição na Espanha, por “encomenda” de Juliano, o espanhol. Ouvimos diversas pessoas [...]. Juliano já esteve diversas vezes em Cidade do estado do Ceará e, sempre na companhia de Caio, seleciona garotas para trabalhar em sua boate, na Espanha.

Em seguida, lemos o pedido de decretação de prisão preventiva do acusado Caio:

[...] embasadas suspeitas do envolvimento de Caio nos crimes de favorecimento da prostituição, rufianismo e tráfico internacional de mulheres. [...] apresentamos declarações de garotas que haviam sido convidadas pelo espanhol Juliano [acusado traficante, proprietário de boates na Espanha] para viajarem para a Espanha, para trabalharem para o mesmo, sendo em seguida aliciadas pelo indiciado para que aceitassem tal proposta. Agora, apresentamos dois bilhetes deixados por uma garota na casa de Caio, afirmando que queria viajar para a Espanha, para trabalhar com sua irmã, que lá estaria, além de contas telefônicas constando ligações do indiciado para outros países [...].

O fato de que o que chamam de “favorecimento da prostituição” de um minuto a outro passe a ser chamado de “tráfico internacional de mulheres”, simplesmente porque a meta das apontadas como supostas vítimas seria o estrangeiro, nos mostra como se trata da mesma questão. “Convidar” se confunde com “aliciar”, “garotas” se traduz por “prostitutas”, “esquema criminoso” se traduz por “máfia”. E os investigadores do crime continuam:

o caso que investigamos é de extrema relevância de interesse social, uma vez que várias famílias foram lesadas pelo indiciado esquema em que o mesmo desenvolveu e, acreditamos que pela gravidade dos crimes por ele perpetrados, é quase certa sua fuga para se ver livre de tais acusações, razão pela qual, a Polícia Judiciária, como órgão direto do estado incumbido da manutenção da segurança pública requer ao Poder Judiciário meios legais para a viabilização do exercício de sua função - até porque, atualmente, é uma das metas do Governo Estadual o combate ao turismo sexual, à prostituição e todos os seus desdobramentos, razão pela qual apelamos para a vossa valorosa e essencial colaboração, assim como a do Ministério Público.

Turismo sexual não constitui crime no Brasil e tampouco há consenso sobre o que seria tal prática. E, aqui, encontramos uma investigação sobre possível tráfico internacional de mulheres que se justifica com o argumento de que “é uma das metas do governo estadual o combate ao turismo sexual, à prostituição e todos os seus desdobramentos”. Nada está nas entrelinhas: o objetivo da investigação é o “combate à prostituição e todos os seus desdobramentos”. Bem, não é que a categoria tráfico trouxe o combate à prostituição. Há todo um histórico de combate à prostituição no Brasil e o tráfico foi agregado a uma discursividade que já existia. Em junho de 2004, a Justiça Federal se manifesta em outro caso:

Com efeito, o que se tem é a franca atividade delituosa por parte da requerida Amanda, que mantém constante a facilitação do exercício da prostituição de mulheres brasileiras no exterior, as quais, posteriormente, são muitas vezes submetidas a regime de escravidão sexual. As transcrições das interceptações telefônicas demonstram que, além de Camila e Fernanda, outras mulheres poderão ter o mesmo destino mediante “ajuda” da requerida. Desse modo, patente que o fato de Amanda continuar em liberdade apresenta riscos concretos à ordem pública.

Em nenhum momento, durante o processo, se mostra qualquer indicação das condições de trabalho de tais mulheres no estrangeiro. Isso nos obriga a concluir que a colocação da Justiça Federal de que tais mulheres “são muitas vezes submetidas a regime de escravidão sexual” é, de fato, uma repetição irrefletida do difundido e dominante discurso sobre o tráfico e que não necessariamente significa uma análise das alegadas provas construídas no inquérito policial ou no âmbito judicial. Em um “formulário de denúncias”, datado de outubro de 2004, assim encontramos:

O denunciante [que é membro do Ministério Público Federal] informa que Eduardo é muito conhecido naquela cidade [Cidade do estado de Goiás], tem uma irmã que é dona de um prostíbulo na Europa e com certa frequência viabiliza a ida de mulheres para Suíça a fim de serem exploradas sexualmente. Somente que ele tem conhecimento, já foram enviadas 17 mulheres. OBS: o informante noticia que as mulheres estarão indo amanhã e poderão embarcar em Goiânia ou Brasília, sendo certo que antes de irem para a Suíça, passarão pela Itália.

Sob o argumento de proteger as mulheres, o que se está proibindo é a saída do Brasil de mulheres brasileiras trabalhadoras do sexo. Para justificar a abertura do inquérito, colocam o termo de depoimento de soldado/militar, datado de julho de 2004:

que tem conhecimento que Eduardo promove o aliciamento de mulheres para o tráfico internacional, que apresenta nesta oportunidade uma relação de mulheres aliciadas por Eduardo destinadas à prostituição na Suíça [...] responsáveis pelo traslado de mulheres na Suíça [...] que tem conhecimento que Eduardo estará enviando duas mulheres com destino à Suíça nos próximos dias, apontando seus nomes, Daiane e Verônica [...].

Tráfico, tráfego, transporte, traslado, deslocamento - termos que se confundem nessa discursividade. E qualquer pessoa que se envolve nesse processo de deslocamento pode ser acusada de crime, desde que se prove seu conhecimento a respeito das atividades de trabalho planejadas pelas apontadas vítimas no destino de viagem. A ideia é impedir as viagens, desarticular as redes. Por isso, as operações precisam ser feitas em sigilo. Em abril de 2005, o Ministério Público Federal repete o que parece já constituir um certo consenso entre os funcionários da lei:

[...] restou devidamente comprovado que os réus Renato e Júlio foram responsáveis pela tentativa de remessa de pelo menos uma garota nacional para o exterior com o condão de exercer o meretrício [...] os mencionados acusados, em comunhão de ação e unidade de desígnios, empreenderam todos os atos concernentes a facilitar a saída da vítima Lara do território nacional para fins de prostituição no exterior [...] indicativas da tentativa de facilitação do encaminhamento de Lara ao exterior [...] finalidade específica do envio ao exterior (qual seja, a prostituição) e a participação (e função) de cada um dos mencionados agentes na empreitada criminosa [...].

As denúncias do Ministério Público aparecem sempre como autenticação da verdade policial. O texto arranja “facilitar a saída da vítima”, mostrando o entendimento de que ela é vítima simplesmente por sair ou tentar sair. Antes mesmo de sair, ela já é vítima. Em sentença datada de agosto de 2005, lemos: “A acusada enviava dinheiro da Espanha para o Brasil, a fim de proporcionar o envio de mulheres para o exterior. As consequências do crime não são graves, haja vista que as vítimas Beatriz e Júlia não conseguiram viajar para a Europa, onde exerceriam a prostituição.”

Quase todas as investigações às quais tivemos acesso se iniciaram por uma denúncia feita anonimamente por alguém suspeitoso de tais viagens internacionais. Mulher pobre que viaja para o estrangeiro é, afinal, alvo de suspeita. Todas elas estão sob suspeita e é essa a lógica que move as denúncias, como lemos na elaboração da Justiça Federal, em abril de 2006: “A própria ré [...] já foi vítima do mesmo crime em que ora é acusada, pois foi aliciada no final de 2001 para o exercício da prostituição na Espanha. Na ocasião viajaria com a testemunha Natália, sendo que esta, após já adquirida a passagem, desistiu da viagem”. A conclusão de que a acusada é ou foi envolvida no campo laboral sexual serve de reforço de prova para a condenação, já que ela foi, nesse caso, condenada por tentativa de aliciamento de Natália.

Em abril de 2006, tendo por objeto lenocínio e tráfico de pessoas, um inquérito policial mostra como se transformam suspeitas imaginadas em pânicos compartilhados: “informa a prática do tráfico internacional de mulheres e informa denúncia sobre agenciamento de três jovens mulheres para trabalhar na Espanha, podendo as mesmas estarem sendo iludidas e forçadas e se prostituir”. E em meio ao longo processo, encontramos documentos datados de vários anos antes da formalização do inquérito policial, dando a entender que a prática vinha sendo observada há tempos pelo funcionário policial. Entre eles, uma peça datada do ano de 2006, que assim diz:

O Ministério Público Federal requisita instauração de inquérito policial para cabal apuração dos fatos noticiados nos documentos em anexo, à vista de possível prática de crime insculpido no artigo 231 do Código Penal. Ressalto que as supostas vítimas do tráfico já se encontram em território nacional, se preparando para retornar ao exterior, conforme informado ao Ministério Público Federal.

O que é “ressaltado” é o fato de que as “supostas vítimas já se encontram em território nacional, se preparando para retornar ao exterior”. A Polícia e o Ministério Público, de acordo com o estabelecimento do Código Penal e a aprovação do Judiciário, agem juntos e em comunhão de perspectivas para impedir viagens de prostitutas. Para cumprir essa tarefa, colocam em discurso um entendimento embaraçoso, que nos confunde a respeito do alvo do combate: se tais mulheres são as traficantes ou se são as vítimas. Afinal, é sobre essas últimas que recai a ação policial: elas devem ser impedidas de “retornar ao exterior”. Em janeiro de 2009, reiterando as preocupações da Polícia Federal, o Ministério Público Federal denuncia:

Extrai-se do incluso inquérito policial que, nos anos 2003 e 2004, os denunciados Eduardo, Rodrigo, Cristina, Daniela e Daniel, em comunhão de ações e unidades de desígnios, com vontade livre e consciente, mediante associação estável, promoveram e facilitaram a saída do território nacional de Vanessa, Cátia, Caroline, Eliane, Gabriela, Verônica, Daiane para exercerem prostituição na Suíça, com o escopo de lucrar com a exploração sexual dessas mulheres. Os denunciados são membros de uma quadrilha atuante no tráfico de mulheres para o exterior. Em divisão de tarefas, aliciaram várias vítimas brasileiras, mais especificamente residentes no estado de Goiás, para trabalharem em casas de prostituição localizadas na Suíça.

O texto explica que as acusadas “promoveram e facilitaram a saída” das apontadas como supostas vítimas “para exercerem prostituição na Suíça”, país onde a prostituição é atividade profissional regulamentada, com o objetivo de “lucrar com a exploração sexual dessas mulheres”. Então, prostituição e exploração sexual são termos igualados, deixando pouco espaço para consideração da prostituição como trabalho. Viajar, com o intermédio ou a ajuda de alguém, “para exercerem prostituição e para trabalharem em casas de prostituição”, é suficiente para o policiamento e denúncia, ainda que não se tenha ideia das condições de trabalho de tais mulheres em tal ou qual país.

Ainda no mesmo documento, aparece que “a quadrilha já aliciou outras vítimas para o exercício da prostituição no exterior”, ao que por “vítima” subentende-se “prostituta”. A denúncia narra que a “quadrilha” convidava pessoas para trabalharem com prostituição na Suíça, “prometia às vítimas, ganhos e condições irreais para o exercício de prostituição na Suíça”, porém não nos deixa saber quais seriam os ganhos e condições reais naquele país, para que entendamos quais são os critérios desse julgamento; “adiantava despesas de viagens das vítimas” e, no destino, “realizava cobranças das despesas de viagens das vítimas”. A noção de exploração sexual colocada em curso inclui também essa atividade: recuperar, com lucro ou não, o investimento feito no financiamento da viagem de alguém. Menções às condições de trabalho no estrangeiro começam a aparecer nos processos no final dos anos 2000, mas aparecem como reforço acusatório e quase sempre imaginadas e sem comprovação. Mesmo assim, o que parece mais problemático é que qualquer pessoa que se envolva nesse processo de tráfego/deslocamento através de fronteiras, sabendo que se trata de viajantes que eram, são ou serão trabalhadoras do sexo, poderia ser acusada de crime de traficar pessoas, pois prostituição é de regra entendida como submissão. Quem perde direitos e oportunidades, portanto, são as próprias pessoas pobres que precisam da ajuda de alguém para poder viajar. Encontramos um caso de três irmãs, em que uma foi acusada e condenada pelo aliciamento das outras duas.

Apurou-se que, no dia x/04/2009, a denunciada Alice embarcou no aeroporto x, com destino à Cidade Italiana, em companhia de sua irmã Paula, para que esta viesse a exercer prostituição na Suíça. [...] Consta da transcrição [de escutas telefônicas] em apenso, que a denunciada Alice, após chegar à Suíça, no dia x/04/2009, entrou em contato telefônico com sua irmã Gisele, para combinar a viagem desta última à Suíça. Na ocasião, Alice disse a Gisele que enviaria dinheiro para custear as despesas com a passagem aérea [segue a transcrição].

O fato de serem irmãs serve, no entanto, para justificar desaprovação ainda maior, já que se coloca em discurso que estão “submetendo à prostituição” pessoas de suas próprias famílias. No caso de Alice e Gisele, o Ministério Público adiciona à denúncia trechos de suas conversas ao telefone, nos quais Alice dá instruções a Gisele a respeito de como fazer as malas, como se vestir e o que dizer para a polícia de imigração. Isso constituiu “indício” de tráfico.

No auge do combate ao tráfico, fins dos anos 2000, as técnicas de enfrentamento ao deslocamento de prostitutas através das fronteiras nacionais estavam mais sofisticadas que aquelas dos anos antecedentes. No vocabulário policial, redes de ajuda foram traduzidas como “máfias”. Emprestar dinheiro, levar ao aeroporto sabendo que a passageira era ou tinha intenção de se envolver em atividades laborais sexuais, e mesmo dar indicações de trabalho eram práticas entendidas como crime. O que a polícia aprendeu a procurar foram redes de relações, organizações que poderiam ser entendidas como máfias, como quadrilhas, e que são traduzidas/produzidas como tráfico de pessoas. Para caracterizar fraude ou trabalho forçado, o argumento é a alegação de pobreza da suposta vítima. Aquilo que era explicado no século XIX como “fragilidade em função do sexo”, não fazendo mais efeito por si só no final do século XX, é reapropriado e transformado no argumento de que são “vulneráveis em função de sua situação econômica”. E o sigilo necessário não é no intuito de resguardar a identificação das supostas vítimas, já que muitas vezes os próprios delegados de polícia chamaram as mídias locais para acompanhar os flagrantes. O sigilo é tão somente para não atrapalhar tais operações sensacionais.

3. OS PERIGOS DO TRÁFICO HUMANO

Em trabalho anterior, pensamos um problema de pesquisa a partir de resultados estatísticos oficiais que indicavam que o principal destino de mulheres brasileiras traficadas para exploração sexual seria a Espanha. Analisamos, em abordagem comparativa, notícias veiculadas no Brasil e na Espanha e mostramos como o tráfico de pessoas se tornou alvo de investimentos em um momento de preocupação com as fronteiras nacionais, e que foi problematizado como uma questão moral e de polícia. O então denominado tráfico de mulheres ganhou regularidade no discurso midiático na virada dos séculos XX e XXI. A maior parte das notícias sobre tráfico veiculadas na mídia brasileira tratavam de operações policiais de combate a essa prática. Ao mesmo tempo, a mídia espanhola deu visibilidade a contextos em que mulheres estrangeiras estariam sendo obrigadas à prostituição. E falou também de deportações. Pudemos notar que o que se dava a saber do “fenômeno” era, quase sempre, por intermédio de um delegado e de agentes de Polícia Federal mostrando seus serviços à sociedade (Venson; Pedro, 2011VENSON, Anamaria Marcon; PEDRO, Joana Maria. Discursos que instituem o tráfico de mulheres. Tempo, Niterói, v. 17, n. 31, pp. 207-230, 2011.).

Se prestarmos atenção nas falas de pessoas autorizadas para dizer as verdades do tráfico de pessoas, como delegados de polícia, operadores jurídicos, funcionários do governo e de grandes instituições de promoção dos direitos humanos, podemos notar uma reincidência explicativa do fenômeno. Essas pessoas nos fornecem cifras das quantidades de dinheiro envolvido nesse crime, estatísticas, causas e consequências precisas, e se repetem umas às outras, se invocam, se reforçam e quase nunca apresentam as fontes de tais informações. Ao mesmo tempo, nos dizem que não há pesquisas suficientes sobre o assunto, que poucos casos chegam ao Judiciário, que o combate ainda não é eficiente, que precisamos de mais dados, que as denúncias são raras. Não duvidamos das intenções humanitárias dessas pessoas, mas nos sentimos intrigadas com o fato de que esses discursos têm muito mais visibilidade que os discursos produzidos pelos movimentos organizados de trabalhadoras do sexo, que têm também legitimidade para pensar a questão e que apontam entendimentos um tanto diferentes das elaborações oficiais.

Há uma quantidade de estudos acadêmicos mostrando como é possível fabricar e superdimensionar estatísticas de tráfico de pessoas, tanto em função de imprecisões conceituais quanto em função de jogos políticos de governamentalidade (Silva; Blanchette; Bento, 2013SILVA, Ana Paula da; BLANCHETTE, Thaddeus Gregory; BENTO, Andressa Raylane. Cinderella Deceived: Analyzing a Brazilian Myth Regarding Trafficking in Persons. Vibrant: Virtual Brazilian Anthropology, v. 10, n. 2, pp. 377-419, 2013.; Weitzer, 2014WEITZER, Ronald. Miscounting Human Trafficking and Slavery. Open Democracy, London, 2014.; Venson; 2017VENSON, Anamaria Marcon. Tráfico internacional de pessoas para exploração sexual? Uma análise de processos-crime (1995-2012). Revista Estudos Feministas, v. 2, n. 25, pp. 571-591, 2017.). É comum que estudos institucionais que se ocupam de contabilizar os casos de tráfico sejam conduzidos a partir de dados policiais e de quantificações de processos-crime; que sejam movidos por uma ansiedade, um tanto paradoxal, de provar o combate a essa prática mostrando mais e mais denúncias e condenações judiciais. Em nossas fontes, encontramos um documento anexado a inquérito policial pelo Ministério Público Federal, datado de abril de 2001, que assim dizia:

Solicito-lhe o envio dos autos dos inquéritos policiais x e x para fins de colher dados sobre casos de tráfico de pessoas no Ceará, os quais serão enviados ao Ministério da Justiça para compor as informações que farão parte do relatório global da organização das Nações Unidas, relativo ao tráfico de pessoas no Brasil. [...] encaminhar com a maior brevidade possível os autos dos inquéritos acima referidos tendo em vista que o prazo para prestar informações se encerra no dia 02/12/2001.

Uma situação que estava sob investigação, cujas conclusões não eram ainda conhecidas, foi reportada para informar um “relatório global” sobre o tráfico de pessoas. Para além de situações como essa que acabamos de citar e das confusões conceituais em torno da definição do tráfico de pessoas e suas especificações nacionais, certamente que um dos motivos do superdimensionamento, dessa inflação de números que constitui o discurso mais difundido sobre o tráfico, é o modo como tais situações são descritas/produzidas: o sentido da denúncia, que é, por sua vez, reproduzido nos jornais, dá a entender que o que a polícia estaria perseguindo como tráfico é a situação em que há exploração sexual, e que tal elemento está presente na maioria dos casos. Mas não é isso. Violência, ameaça, fraude, fins de lucro não foram, no Brasil, definidores de uma situação de tráfico de pessoas, mas sim entendidos como elementos adicionais que poderiam levar ao aumento de pena. Há casos de condenação em que não há nem mesmo um deles.

O Judiciário condenou situações que são entendidas como tentativa de tráfico, assim como a polícia organizou operações de flagrante nos aeroportos antes das viagens. Essas práticas se justificam por aquela antiga e confusa noção de que prostituição é exploração, escravidão, opressão, abuso, bastando o vislumbre dessa atividade para entender uma viagem como tentativa de tráfico. Afinadas com a perspectiva de reconhecimento da subjetividade e agência pessoal de trabalhadoras do sexo em processos de deslocamento, entendemos tais sujeitos como pessoas capazes de fazer escolhas e tomar decisões que levam a transformações conscientes que mudam suas vidas. Assumir essa posição não significa negar que injustiças e violências recaiam sobre essas mulheres. Ao contrário, nossa pesquisa demonstra que a abordagem geral do problema é equivocada. As adversidades e injustiças enfrentadas por essas mulheres não devem ser tratadas tão somente sob a ótica do Direito Penal, e sim ser combatidas a partir da lógica do Direito Trabalhista. Ela Wiecko V. de Castilho (2015CASTILHO, Ela Wiecko V. de. Human Trafficking in Brazil: Between Crime-based and Human Rights-based Governance. Anti-Trafficking Review, issue 4, pp. 174-185, 2015.) vem chamando a atenção para o fato de que as disposições legais a respeito do tráfico de pessoas são orientadas fundamentalmente por interesses de securitização. Guilherme Dias (2014DIAS, Guilherme Mansur. Migração e Crime: Desconstrução das Políticas de Segurança e Tráfico de Pessoas. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2014. ) tem corroborado essa análise.

A retórica mais pujante do combate ao tráfico não reconhece direitos às mulheres adultas que se inserem voluntariamente no mercado do sexo, afinal, no vocabulário do crime há que se falar ou em vítimas ou em infratoras. Nestes termos, muitas mulheres pobres são certamente convencidas de que devem ter medo de migrar, de se mover. Ou porque podem ser enganadas por máfias inescrupulosas, ou porque trabalham com prostituição e não recebem o mesmo tratamento que outras pessoas, ou porque podem ser confundidas com prostitutas (temor de muitas mulheres). E assim o combate ao tráfico de pessoas tem funcionado como cúmplice de políticas de contenção migratória.

Estamos tratando de uma discussão movida por diferentes interesses, por diversos saberes que se enfrentam numa acirrada disputa. Cuidar do deslocamento de pessoas a partir do vocabulário possível do Direito Penal, a partir da lógica de investigações criminais, significa desprezar outros saberes, como os dos movimentos sociais organizados e os saberes produzidos nas Ciências Humanas.

Uma coincidência interessante é que nossas sensibilidades com relação ao tráfico, comumente entendido como uma forma de escravidão, se deram justamente em um momento em que discutimos acaloradamente as injustiçaas de nosso passado escravista. Parece que produzir um sentido de tráfico associando-o a uma forma de escravidão acaba funcionando como estratégia para que nos sintamos aliviados desse passado terrível, nos absolve, nos distancia dessa vergonha nacional.

Ao mesmo tempo, a armadilha que a fala de Damares Alves nos coloca, ao chamar a nossa atenção para o absurdo, para o bestial, é que o tipo de sentimento que aquelas palavras provocam nos leva a abrandar a gravidade de outros problemas reais e urgentes com relação às crianças de modo geral. Insegurança alimentar, educação sexista, famílias desobrigadas de cumprir o calendário de vacinação, que são problemas prementes que atingem grande parte da população atualmente, saem do foco, tornam-se questões triviais cuja importância é minimizada perante as cenas narradas pela ex-ministra.

Da mesma forma, nos emocionamos com a imagem de mulheres presas em uma casa de prostituição, mulheres enganadas ou raptadas para serem exploradas, mas não conseguimos ver (ou não queremos ver?) que há mulheres que se envolvem voluntariamente em atividades laborais sexuais, e que elas merecem os mesmos direitos trabalhistas e de deslocamento que quaisquer outras pessoas. Nós, profissionais das Ciências Humanas, devemos nos debruçar sobre rumores e histórias irreais envolvendo pessoas traficadas, histórias desprovidas de fundamento, como aquela narrada por Damares Alves, histórias essas que são difundidas a partir de certa estrutura narrativa que não é confrontada com dados científicos e achados de pesquisas acadêmicas rigorosas sobre o assunto. Parece que há certa estrutura narrativa histórica que molda certa percepção das mulheres como incapazes e submissas, certa ideia de que mulheres devem ser salvas, de que devem ser protegidas como se protege crianças. Afinal, o debate sobre a agenda do tráfico de pessoas e sua difusão foi mobilizado a partir daquela ideia do “tráfico de brancas” do século XIX. Condicionar a gravidade de uma situação à inexistência de provas é escorregar no desvario geral que ainda não contagiou as Ciências Humanas. É certo que não podemos perder de vista a complexidade do universo da prostituição. Mas nos entregarmos a discursos dramáticos sem respaldo de pesquisa engajada nos coloca de um certo lado da história.

REFERÊNCIAS

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  • 1
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  • 2
    Os nomes dos envolvidos foram modificados por nós porque, mesmo que inquéritos e processos tivessem corrido sob sigilo, alguns casos foram amplamente noticiados pela mídia, podendo os casos serem facilmente identificados. Preferimos, pelo mesmo motivo, ocultar as cidades de saída e destino.
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    Este artigo foi escrito com recursos do CNPq - bolsa de produtividade 1A, processo número 309875-2021-8.
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    Este artigo foi escrito como resultado da pesquisa de doutorado desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGICH-UFSC), com bolsa CNPq.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    17 Fev 2023
  • Aceito
    02 Out 2023
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