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A caminho de uma “cultura de preprints”?

Towards a “Preprint Culture”?

Com este número encerra-se o período de 2 anos em que fui editor da Revista Brasileira de História. Seria a ocasião para se fazer um balanço desse tempo, chamando atenção para a relevância dos textos selecionados, o êxito das chamadas a dossiês, a diversidade regional dos autores nacionais que aqui publicaram, o bom número de submissões de autores vinculados a instituições estrangeiras, a importante quantidade de artigos publicada em inglês e em espanhol. Pode-se assim dizer que esta gestão cumpriu o seu papel, trazendo para as páginas da RBH os resultados de pesquisas recentes sobre temáticas inovadoras e diversificadas, e que interessam aos membros da Anpuh e ao público acadêmico em geral, publicando seus números quadrimestrais em rigorosa e até adiantada periodicidade, resultando ser, dos periódicos brasileiros de História do SciELO, o segundo mais acessado. No entanto, o cenário dos últimos anos, de transformações no meio de publicação dos periódicos - ou seja, sua passagem ao formato digital -, leva os responsáveis por um veículo como este a continuamente se perguntarem qual o próximo passo a adotar. Mas nesse quesito não foi possível ir além da tomada de consciência,1 1 No editorial do número 80 cheguei a mencionar alguns dos problemas que a transformação havia trazido para a guarda da história da própria RBH (FEITLER, 2019). e é por isso que, despedindo-me, devo também prestar contas desse fato.

Nestes 2 anos colocou-se a questão da implementação de novidades que vêm surgindo no âmbito dos periódicos acadêmicos digitais numa velocidade que pode parecer, por vezes, vertiginosa. Como tem sido o hábito, as publicações mais importantes do ponto de vista financeiro acabam erigindo-se em modelos, mesmo se de especialidades bastante diferentes da nossa. É assim que há algum tempo os periódicos das Ciências Humanas vêm sendo instados a adotar a publicação contínua de artigos, resultando em apenas um número por ano, mesmo que seja possível manter no SciELO, por exemplo, dentro desse volume único, números e dossiês compartimentados. Se a RBH tem publicado artigos em Ahead of print, disponibilizando com celeridade artigos que esperariam mais algumas semanas ou meses para ser lançados, descartei a possibilidade de adotar a publicação contínua desde que assumi o cargo, primeiro por falta de tempo e experiência (seria necessário fazê-lo imediatamente, caso quisesse implantá-la durante a minha gestão), e em segundo lugar por entender que a publicação quadrimestral, com lançamento de três números por ano, auxiliava na divulgação dos textos.

Outras soluções que a princípio pareciam dificilmente aplicáveis ao meio das Ciências Humanas, ou quem sabe mais especificamente ao da História, estão fazendo seu caminho nas nossas áreas. Desde 2017 o SciELO anuncia a criação de um servidor ou repositório de preprints (Packer; Santos; Meneghini, 2017PACKER, Abel L.; SANTOS, Solange; MENEGHINI, Rogerio. SciELO Preprints a caminho. SciELO em Perspectiva [online], 2017. Disponível em: https://blog.scielo.org/blog/2017/02/22/scielo-preprints-a-caminho/.
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), e esse modo de publicação acadêmica foi descrito, junto, por exemplo, aos repositórios de dados, como elementos essenciais da ciência aberta na Conferência SciELO 20 Anos, realizada em São Paulo entre 26 e 28 de setembro de 2018. Os preprints (detenhamo-nos aqui apenas nesta questão) vêm sendo usados há muitos anos no meio da Física de Altas Energias, área onde há mesmo, segundo Alvarez e Caregnato (2015ALVAREZ, Gonzalo R.; CAREGNATO, Sônia E. Preprints na comunicação científica da Física de Altas Energias: análise das submissões no repositório arXiv (2010-2015). Perspectivas em Ciência da Informação [online], v. 22, n. 2, p. 104-117, 2017. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981-5344/2830.
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), uma “cultura de preprints”.

Mas o que é um preprint? Segundo um recente questionário enviado pelo SciELO aos editores dos periódicos nele albergados, trata-se dos

manuscritos que prontos para submissão a um periódico para avaliação são depositados inicialmente em um servidor de Preprints de acesso aberto. O autor pode submeter o manuscrito-preprint imediatamente a um periódico ou posteriormente após melhoramentos advindos de comentários e sugestões recebidos no servidor de Preprints.

De acordo com esse questionário, o preprint é formalmente “o estado inicial do fluxo de comunicação das pesquisas”. O objetivo da adoção dessa prática é “acelerar a comunicação dos resultados de pesquisa e alinhar-se com as práticas mais avançadas internacionalmente”. Segundo o ASAPbio, instituição que tem por objetivo acelerar a ciência e a publicação em biologia, em sua página de “perguntas frequentes”, são estas as vantagens desse tipo de publicação: evidência de produtividade (como modo de conseguir financiamentos ou promoções); possíveis convites para participar em eventos; possíveis comentários a seu trabalho; o estabelecimento de primazia de uma descoberta; a maior potencialidade de novas colaborações; o acesso aberto.2 2 https://asapbio.org/preprint-info/preprint-faq#qe-faq-637.

É sem dúvida salutar e bem-vindo que o SciELO adote práticas inovadoras que deem credibilidade, agilidade e visibilidade à produção acadêmica nele publicada. Mas é igualmente salutar nos perguntarmos o quanto a adoção dos preprints poderá ser útil, inócua ou nociva para a nossa área e para nossos veículos de comunicação e divulgação científica, pois devemos estar todos atentos e informados sobre os impactos de eventuais alterações nos modos de divulgação e submissão de trabalhos científicos. Pelo que toca as revistas, há que se atentar para as adaptações a se fazer quanto às exigências a dois fatores que são atualmente caros a este meio: o ineditismo das submissões e sua avaliação cega por pares. Já pelo que se refere de modo mais amplo ao ofício do historiador, noto apenas sucintamente que a utilização de instrumentos criados e pensados para áreas com métodos e lógicas de obtenção e reprodução de conhecimento em muitos aspectos diferentes das nossas deve ser bem ponderada. Eventos que acontecerão em breve (estamos em começos de junho) no Rio de Janeiro e no Recife serão a ocasião de discutir essas questões de maneira ilustrada.3 3 Acontecerá na COC/Fiocruz, entre os dias 26 e 28 de junho de 2019, o Workshop “Presente e futuro das publicações de História. Debates por ocasião dos 25 anos de História, Ciências, Saúde - Manguinhos”, e no dia 15 de julho do mesmo ano, no Recife, no âmbito do 30º Simpósio Nacional de História, o II Fórum dos Editores de Periódicos Acadêmicos de História. Ensejo ao novo editor da RBH, Valdei Araujo, que assumirá seu cargo em julho próximo, todo o sucesso que sua experiência no cargo prenuncia. Ele, junto ao novo Conselho Editorial, saberá tomar as boas decisões quanto às possíveis modalidades de aceitação de preprints ou de outras práticas vinculadas à ciência aberta pela revista.

A defesa da especificidade e do espaço da História enquanto disciplina e das Ciências Humanas enquanto área de conhecimento essencial para a sociedade, questão premente nos dias atuais, em que o próprio ministro da Educação tem um discurso de enfrentamento em relação a ela, não será, por óbvia, elemento de pauta deste editorial. A questão não pode, no entanto, deixar de ser mencionada quando o Dossiê que ora se publica, organizado por José Augusto Pádua e Rafael Chambouleyron, mostra com clareza a importância da disciplina e sua interface com os modos de percepção de acontecimentos de alto impacto sobre a sociedade e sobre o mundo em que vivemos. O Dossiê “Rios e sociedades” tinha como objetivo chamar a atenção para o papel das vias fluviais na construção do território brasileiro, assim como para sua importância na vida concreta das sociedades que nele habitavam e habitam. O criminoso rompimento da barragem de Brumadinho em 25 de janeiro deste ano trouxe, num movimento reverso, a evidência do enorme impacto da ação das sociedades sobre os cursos d’água, e vários dos artigos do rico Dossiê espelham essa realidade, mostrando a importância do historiador e de suas metodologias para a compreensão da ação humana sobre o meio ambiente.

Completam este número dois artigos avulsos que abordam questões ligadas à História Econômica da segunda metade do século XIX. Hernán Sáez analisa o debate político vigente na Câmara dos Deputados em torno aos projetos relacionados à moeda na conjuntura de crise pós-1864 e Guerra do Paraguai, revelando que, longe de referendar as propostas do Poder Executivo, o Parlamento foi arena de discussões, cobranças, críticas e articulações não raro dentro do mesmo partido. Naquele contexto de instabilidade econômica, a habilidade dos parlamentares era assim efetivamente posta à prova no momento de aprovação de determinada medida. Já Hugo Pereira e Ian Kerr, a partir dos exemplos de construção e operação de duas linhas de ferro exploradas em território português em finais do século XIX (a linha do Tua, no norte do país, e a de Mormugão, na Índia portuguesa), procuram entender diferentes modelos de aplicação do “Fontismo”, programa de obras públicas saint-simoniano luso. Finalmente, como habitual, seguem três resenhas, uma de publicação brasileira e duas de publicações internacionais que acompanham a temática da História Econômica. A destacar, nas resenhas, o agora já estabelecido (e natural) diálogo que seus autores instauram não só com a obra analisada, mas também com a bibliografia pertinente ao tema por ela abordado.

Não podemos encerrar este editorial sem celebrar o 30º Simpósio Nacional que se aproxima, a acontecer no Recife entre os dias 15 e 19 de julho e coordenado por Márcio Vilela, e que, sob a temática “História e o Futuro da Educação no Brasil”, ultrapassou o impressionante número de 5 mil inscrições, resultando em 3.241 trabalhos aprovados e alocados em 113 Simpósios Temáticos. A grande alta de novas filiações à Anpuh sob a presidência de Joana Maria Pedro (biênio 2017-2019) mostra o potencial de mobilização da nossa associação e prenuncia um papel atuante à nova diretoria, a quem desejamos, na pessoa de sua presidente, Márcia Motta, boa sorte!

Finalmente, é com sinceridade que agradeço ao Conselho Editorial, à Editoria Associada Internacional, aos assistentes editoriais Pablo Serrano e Marcus Vinicius Correia Biaggi, assim como à equipe de edição da RBH - Armando Olivetti, Flavio Peralta e Roberta Accurso -, pelo auxílio que me prestaram e pelo cuidado e atenção que sempre dispensam à revista.

A RBH conta com o apoio do Programa de Pós-Graduação em História, Cultura e Práticas Sociais da Universidade do Estado da Bahia (PPGHCPS-Uneb) e do CNPq.

Bruno Feitler

REFERÊNCIAS

  • ALVAREZ, Gonzalo R.; CAREGNATO, Sônia E. Preprints na comunicação científica da Física de Altas Energias: análise das submissões no repositório arXiv (2010-2015). Perspectivas em Ciência da Informação [online], v. 22, n. 2, p. 104-117, 2017. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1981-5344/2830.
    » https://doi.org/10.1590/1981-5344/2830
  • FEITLER, Bruno. Editorial: Retomar a História da RBH. Revista Brasileira de História, 2019, v. 39, n. 80, p. 7-11, 2019.
  • PACKER, Abel L.; SANTOS, Solange; MENEGHINI, Rogerio. SciELO Preprints a caminho. SciELO em Perspectiva [online], 2017. Disponível em: https://blog.scielo.org/blog/2017/02/22/scielo-preprints-a-caminho/
    » https://blog.scielo.org/blog/2017/02/22/scielo-preprints-a-caminho/

NOTAS

  • 1
    No editorial do número 80 cheguei a mencionar alguns dos problemas que a transformação havia trazido para a guarda da história da própria RBH (FEITLER, 2019FEITLER, Bruno. Editorial: Retomar a História da RBH. Revista Brasileira de História, 2019, v. 39, n. 80, p. 7-11, 2019.).
  • 2
  • 3
    Acontecerá na COC/Fiocruz, entre os dias 26 e 28 de junho de 2019, o Workshop “Presente e futuro das publicações de História. Debates por ocasião dos 25 anos de História, Ciências, Saúde - Manguinhos”, e no dia 15 de julho do mesmo ano, no Recife, no âmbito do 30º Simpósio Nacional de História, o II Fórum dos Editores de Periódicos Acadêmicos de História.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019
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