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O terror da branquitude: violência e racismo contra os indígenas da Amazônia (século XIX)

The Terror of Whiteness: Violence and Racism Against the Indigenous People of the Amazon (19th Century)

RESUMO

O artigo analisa as representações da branquitude na imaginação indígena, aspecto pouco abordado pela historiografia. Para tal, faço uso de relatos de viajantes que estiveram na região amazônica no século XIX. Partindo das análises críticas de teóricos e teóricas negras sobre a branquitude, pretendo apontar o quanto os contatos das populações indígenas com brancos eram vivenciados como experiências aterrorizantes que se expressavam, inclusive, fisicamente. Os registros desses contatos revelam múltiplas formas de violência e racismo contra os povos indígenas da região, constituindo importante dimensão da constituição histórica do privilégio branco no Brasil.

Palavras-chave:
Povos indígenas; Racismo; Branquitude; Amazônia

ABSTRACT

The paper analyzes the representations of whiteness in the indigenous imagination, an aspect rarely addressed by historiography. For this purpose, I use reports from travelers who visited the Amazon region in the 19th century. Based on the critical analysis of black theorists on whiteness, I intend to point out how the contact between indigenous populations and white people was experienced as a terrifying experience, even physically. The records of these contacts reveal multiple forms of violence and racism against the indigenous peoples of the region, constituting an important dimension of the historical constitution of white privilege in Brazil.

Keywords:
Indigenous Peoples; Racism; Whiteness; Amazon

PACTO NARCÍSICO E INDIGETUDE1 1 Esse artigo é resultado do projeto de pesquisa “Escravidão ilegal e trabalho compulsório de índios na Amazônia (século XIX)”, financiado por bolsa de produtividade do CNPq. Versão inicial desse texto foi apresentada no 32º Simpósio Nacional de História - ANPUH Nacional, São Luís, Maranhão, em julho de 2023, e no VII Seminário do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Amazonas, Manaus, em setembro de 2023. Agradeço as contribuições de Adriana Dias de Moura, Karina Moreira, Maria Regina Celestino, Martha Abreu, Soraia Dorneles e Vânia Maria Losada Moreira.

A inspiração para esse texto surgiu da leitura do livro Killing rage: Ending racism (1995HOOKS, bell. Killing Rage: Ending Racism. New York: Hand Holt and Company, 1995. ), da pensadora e feminista norte-americana bell hooks. A autora afirma que pessoas negras sempre vivem com a possibilidade de serem aterrorizadas pela branquitude. Debate semelhante é feito por Grada Kilomba no livro Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano (2019KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.)2 2 A autora nasceu em Lisboa, mas tem raízes em Angola e São Tomé e Príncipe. Artista interdisciplinar, psicóloga, escritora e teórica. . No capítulo “A palavra N. e o trauma”, a autora aborda a dor indizível do racismo, o modo como a agonia do racismo se expressa por meio de sensações corporais que geram traumas e dores: “a branquitude torna-se assim um sinal de ameaça e terror” (2019, p. 162).

Faço uso da noção de branquitude a partir das três dimensões apontadas por Ruth Frankenberg (1993FRANKENBERG, Ruth. White Women, Race Matters: The Social Construction of Whiteness. Mineapolis: University of Minneasota Press, 1993. ). Em primeiro lugar, trata-se de um lócus de vantagem estrutural, de privilégio racial. Em segundo, é um “ponto de vista”, um lugar a partir do qual os brancos olham para si mesmos, para os outros e para a sociedade. E, por fim, a branquitude se refere a um conjunto de práticas culturais que geralmente não são marcadas nem nomeadas. Conforme Maria Aparecida da Silva Bento, a branquitude estabelece uma comunidade de negação, que nega e exclui da realidade o que não a interessa. Diz a autora que “a identidade racial é profundamente ideológica, porque auxilia a identificação do quem são o ‘eles’ e quem são o ‘nós’. Sobre o ‘eles’ ficará depositado o pior do ‘nós’. E esse pior do ‘nós’ justificará a rejeição, a preterição, a exclusão e o genocídio” (2018BENTO, Maria Aparecida da Silva. Notas sobre a branquitude nas instituições. In: SILVA, Maria Lúcia da et al. (Orgs.). Violência e sociedade: o racismo como estruturante da sociedade e da subjetividade do povo brasileiro. São Paulo: Escuta, 2018. pp. 115-136., p. 121)3 3 O sociólogo norte-americano William Edward Burghardt Du Bois é apontado como um dos precursores dos estudos sobre branquitude, com a publicação de Black Reconstruction (1935). Ao analisar a situação do trabalhador branco norte-americano do século XIX, o autor concluiu que mesmo quando esse trabalhador recebia um salário baixo era compensado com um “salário público e psicológico” que resultava em ganhos reais. Outro precursor é o martinicano Franz Fanon, que em Pele negra, máscaras brancas (2008 [1952]) analisou o racismo como mecanismo colonial de distribuição de privilégios em sociedades marcadas pela desigualdade: “é o racista que cria o inferiorizado” (2008 [1952], p. 90). .

De imediato, essa associação da branquitude com o terror me remeteu a diversas narrativas sobre o contato entre indígenas e brancos na Amazônia do século XIX. A propósito, é importante lembrar que o Regulamento das Missões de 1845, legislação indigenista do Império brasileiro, preconizava a brandura no trato com os indígenas (Henrique, 2021HENRIQUE, Márcio Couto. O regulamento das missões de 1845. In: ARENZ, Karl Heinz; HENRIQUE, Márcio Couto (Orgs.). Em linhas tortas: os regimentos tutelares e os indígenas amazônicos (séculos XVII-XIX). Ananindeua: Editora Cabana, 2021. pp. 178-192.; Sampaio, 2009SAMPAIO, Patrícia Melo. Política Indigenista no Brasil Imperial. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (Orgs.). O Brasil Imperial: 1808-1831. 1ª Ed. Vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. pp. 175-206.). Por outro lado, a defesa da pedagogia do terror como instrumento de civilização dos indígenas está presente na obra de Adolfo Varnhagen, considerado o “Heródoto brasileiro” (Cezar, 2007CEZAR, Temístocles. Varnhagen em movimento: breve antologia de uma existência. Topoi, Rio de Janeiro, v. 8, n. 15, pp. 159-207, jul. 2007. ). Varnhagen cita uma série de autores e religiosos que, desde o início da colonização do Brasil, defendiam o uso da força e do temor no processo de sujeição dos indígenas, comungando com eles a ideia de que era melhor que os brancos garantissem tal sujeição pela imposição do temor e da força do que por palavras (1877VARNHAGEN, Adolfo. História Geral do Brasil, antes da sua separação e independência de Portugal. Tomo Primeiro. 2ª Ed. Rio de Janeiro: E. & H. Laemmert, 1877., p. 213), ou de que os indígenas “por temor se hão de converter mais que por amor” (1877VARNHAGEN, Adolfo. História Geral do Brasil, antes da sua separação e independência de Portugal. Tomo Primeiro. 2ª Ed. Rio de Janeiro: E. & H. Laemmert, 1877., p. 216), frase atribuída ao jesuíta Anchieta.

Faço uso da noção de “brancos” para me referir aos não-indígenas, estando tal noção relacionada muito mais ao lócus de privilégio racial apontado por Frankenberg do que a um tipo racial específico. Muitos daqueles que causavam terror aos indígenas não seriam propriamente definidos como brancos, mas compartilhavam, em alguma medida, dos privilégios da branquitude. Em várias situações, é possível identificar como a proximidade dos brancos era vivida como uma experiência aterrorizante pelos indígenas. Da mesma forma, os discursos construídos acerca das populações indígenas desse período apontam para uma comunidade de negação, que negava a esses sujeitos atributos de humanidade, relegando-os à condição de selvagens, antropófagos, violentos, traiçoeiros, preguiçosos, em uma evidente projeção do pior do “nós” sobre o “eles”, utilizada para justificar a rejeição, o racismo e o genocídio.

Assim como bell hooks e Grada Kilomba afirmaram com relação às pessoas negras, penso que a documentação sobre os indígenas da Amazônia no século XIX indica que, àquela época, homens e mulheres indígenas viviam com a possibilidade de serem aterrorizados pela branquitude, seja de modo direto, seja de maneiras mais sutis. Da mesma forma, o contato aterrorizante dos indígenas com a branquitude também se expressava por meio de sensações corporais reveladoras de traumas e dores inscritas no corpo. Segundo Schucman, “no Brasil, de maneira geral, a questão da negritude tem sido mais investigada do que a dos indígenas e dos orientais, e esses estudos mostram que o contrapondo (sic) do branco no imaginário coletivo tem sido o negro” (2018SCHUCMAN, Lia Vainer. Branquitude e privilégio. In: SILVA, Maria Lúcia da et al. (Orgs.). Violência e sociedade: o racismo como estruturante da sociedade e da subjetividade do povo brasileiro . São Paulo: Escuta , 2018. pp. 137-150., p. 139). Esse artigo constitui um esforço de nomeação de práticas culturais de violência e racismo contra as populações indígenas da Amazônia no século XIX, permitindo refletir sobre a branquitude enquanto uma posição de privilégios simbólicos e materiais. Partindo das análises sobre a branquitude, pretendo apontar o quanto as representações sobre os indígenas se configuram como elemento igualmente constituinte da construção do privilégio branco no Brasil. Seguindo a trilha de bell hooks, não se trata de analisar o fascínio contínuo com a forma como as mentes brancas percebem os indígenas, mas sim as representações da branquitude na imaginação indígena, aspecto pouco abordado pela historiografia.

Trato, portanto, do que estou definindo como indigetude, prática de nomeação e de denúncia do racismo praticado pela branquitude contra as populações indígenas, contrapondo à violência colonial o ponto de vista indígena, o protagonismo e a afirmação política dessas populações em sua diversidade e, ao mesmo tempo, em torno dos elementos comuns às suas lutas.

Os relatos de viajantes constituem fonte fundamental para o registro do terror da branquitude. Por certo, trata-se de documentação não escrita pelos próprios indígenas, expressando o ponto de vista dos viajantes, sejam eles estrangeiros ou nacionais. Assim, a percepção do terror da branquitude é captada de modo indireto. De todo modo, a quantidade de registros sobre as representações de terror da branquitude na imaginação indígena, em espaços e temporalidades variadas, não deixa dúvida quanto à veracidade desses relatos4 4 Entre a vasta bibliografia sobre os relatos de viajantes, conferir Hartmann (1975); Leite (1996); Kury (2001); Alves (2011); Sanjad (2022). . Conforme bell hooks, “por mais fantástico que pareça, os brancos racistas acham fácil imaginar que os negros não podem vê-los se dentro de seu desejo eles não quiserem ser vistos pelo Outro sombrio” (hooks, 1995HOOKS, bell. Killing Rage: Ending Racism. New York: Hand Holt and Company, 1995. , p. 35, tradução minha). O mesmo pode ser dito em relação aos indígenas. Enquanto o pacto narcísico da branquitude levava os brancos a acreditarem que apenas eles produziam conhecimento antropológico sobre o outro, é possível perceber, por meio de seus registros, “um mundo de etnografia generalizada”, em que todos observam e são, ao mesmo tempo, observados (Clifford 1998CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998., p. 19)5 5 De acordo com Cida Bento, o pacto narcísico é “uma herança inscrita na subjetividade do coletivo, mas que não é reconhecida publicamente. O herdeiro branco se identifica com outros herdeiros brancos e se beneficia dessa herança, seja concreta, seja simbolicamente; em contrapartida, tem que servir ao seu grupo, protegê-lo e fortalecê-lo” (2022, p. 24). . É essa postura dialógica diante das fontes que nos permite quebrar “o silêncio da oficina etnográfica” (Clifford, 1998CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998., p. 22), indicando insistentes vozes heteroglotas e o ruído da escrita de outras penas, conforme sugere o autor. Nesse caso, vozes e penas indígenas.

EXPERIÊNCIAS DE TERROR

Em viagem percorrendo o rio Arinos, no Mato Grosso, até Santarém, no Pará, em 1812, Miguel José de Castro registrou que, na passagem pelo rio Juruena, se deparou com quatro canoas que transportavam 27 indígenas, “os quais embicaram em umas pedras logo que perceberam a minha tropa”. Ao se dirigir ao grupo, diz ele, “receberam-nos com alegria misturada com temor” (Castro, 1812CASTRO, Miguel José. Roteiro do rio Arinos; Seção de Manuscritos, 22.2.13. Rio de Janeiro (Fundação Biblioteca Nacional, FBN). 1812., p. 13). Mais à frente, outra canoa transportava oito indígenas, mas estes “embicaram e meteram-se ao mato logo que perceberam a tropa sem quererem aparecer por mais que se chamou” (1812CASTRO, Miguel José. Roteiro do rio Arinos; Seção de Manuscritos, 22.2.13. Rio de Janeiro (Fundação Biblioteca Nacional, FBN). 1812., p. 13-14). Outro grupo, com 22 pessoas em três canoas, “tanto que perceberam a tropa puseram-se em retirada com toda a força, e por mais que se chamou não quiseram chegar nem esperar e passaram-se para o lado esquerdo de onde deram alguns gritos” (1812CASTRO, Miguel José. Roteiro do rio Arinos; Seção de Manuscritos, 22.2.13. Rio de Janeiro (Fundação Biblioteca Nacional, FBN). 1812., p. 15). Embicar a canoa ao perceber a tropa, expressar alegria misturada com temor, meter-se no mato, pôr-se em retirada com toda a força são expressões que registram o medo indígena diante da chegada de brancos em seus territórios.

Em 1847, o viajante francês Laurent Saint-Cricq, mais conhecido pelo pseudônimo Paul Marcoy, afirmava que o ódio e a aversão dos Mura contra os brancos eram tão grandes que “a simples vista de um branco os faz fugir” (2001 [1869]MARCOY, Paul. Viagem pelo rio Amazonas. Manaus: Edições Governo do Estado do Amazonas; Editora da Universidade do Amazonas, 2001 [1869]., p. 132). No mesmo ano, Rufino Theotonio Segurado realizou viagem entre Goiás e o Pará, pelo rio Araguaia. Ao chegar em uma aldeia de indígenas Carajás, registrou ele: “estes índios estavam bem medrosos, tanto assim que se tinham ocultado, ficando apenas dois na aldeia: estes a muito custo consentiram que se aportasse na praia em que estavam [...]” (Segurado, 1848SEGURADO, Rufino Theotonio. Viagem de Goiaz ao Pará. Revista Trimensal de História e Geografia, Rio de Janeiro: Typ de João Ignacio da Silva , tomo x (1870), 2ª ed. pp. 178-212, 1848., p. 206).

Relato semelhante fizeram os viajantes alemães Spix e Martius, em viagem pelo rio Japurá, partindo de Ega (atual Tefé), na primeira metade do século XIX. Ao chegarem à povoação de São João do Príncipe, no atual Estado do Amazonas, registraram eles que “só existiam ali algumas familias de Juris e Coretus e, mesmo estes, à notícia de nossa vinda, se escondiam ou se refugiavam nas casas dos vizinhos, que vivem nas roças, afastados do povoado” (1981 [1831] SPIX ; MARTIUS . Viagem pelo Brasil: 1817-1820. Vol. III. Belo Horizonte: Itatiaia , 1981 [1831]., p. 217)6 6 Optei por manter a grafia dos etnônimos indígenas tal qual eles aparecem na documentação. Com relação ao termo “índio”, ele aparecerá quando se tratar de citações de documentos da época ou de outros autores e obras. Fora disso, farei uso da expressão “indígenas”, acompanhando a compreensão mais recente de que esse termo é mais adequado para se referir à diversidade existente entre esses povos. Com relação aos documentos de época, optei por atualizar a grafia. . Para os viajantes, os trabalhos forçados aos quais eram submetidos “tornavam os índios receosos ante a chegada de qualquer branco” (1981 [1831] SPIX ; MARTIUS . Viagem pelo Brasil: 1817-1820. Vol. III. Belo Horizonte: Itatiaia , 1981 [1831]., p. 217), fato que revela a extensão da associação entre branquitude e terror. Por outro lado, Ega era o grande centro de saída de expedições de caça aos indígenas na Amazônia do século XIX, especialmente mulheres e crianças, que eram raptadas, vendidas ou distribuídas para moradores das cidades do Pará e Amazonas (Sampaio; Henrique, 2019SAMPAIO, Patrícia Melo; HENRIQUE, Márcio Couto. História, memória e escravidão ilegal dos índios. Brasil, século XIX. In: IVO, Isnara Pereira; FERREIRA, GUEDES, Roberto (Orgs.). Memórias da escravidão em mundos ibero-americanos (Séculos XVI- XXI). 1ª Ed. Vol. 1. Rio de Janeiro: Alameda, 2019. pp. 223-248.; Henrique, 2022HENRIQUE, Márcio Couto. Escravidão ilegal e trabalho compulsório de índios na Amazônia (século XIX). In: MOREIRA, Vânia Maria Losada et al. (Orgs.). Povos indígenas, independência e muitas histórias. Curitiba: Editora CRV, 2022. pp. 501-530.). Outra razão para o temor, nesse caso, era a presença do italiano Francisco Ricardo Zani na comitiva, a quem os viajantes pediram que convencesse os Juris e Coretus do “infundado de seu medo”. Ora, Zani era conhecido na região por sua participação em tropas de escravização de indígenas (Lisboa, 1848LISBOA, José Antonio. Notícias geographicas da capitania do Rio Negro no grande rio Amazonas, exornadas com várias notícias históricas do paiz, do seu governo civil e politico, e de outras coisas dignas de attenção: dedicadas ao imperador do Brasil o senhor D. Pedro I pelo cônego André Fernandes de Souza. Revista Trimensal de História e Geographia, Rio de Janeiro: Typ de João Ignacio da Silva, tomo x (1870), 2ª. ed., pp. 411-504, 1848.).

A cena se repetiu quando Spix e Martius chegaram à missão Novo Monte Carmelo do Canomá, administrada pelo missionário Antônio Jesuíno Gonçalves, que reunia certo número de Mundurucus. Disseram eles que

A notícia de minha chegada logo espalhou terror entre os neófitos do bondoso padre, supondo eles que eu os vinha prender para o serviço público. Havia-se, ultimamente, apesar dos protestos do vigário, começado a recrutar cada trimestre um certo número de Mundurucus para trabalhos forçados, motivo pelo qual os índios já se haviam tornado difíceis, ameaçando voltar às matas. O meu hospedeiro se apressou logo, portanto, a desfazer a errônea má impressão e despachou uma montaria às malocas acima do Canomá, para informar os selvagens da verdade e, ao mesmo tempo, mandando ajuntarem curiosidades etnográficas para mim (Spix; Martius, 1981 [1831] SPIX ; MARTIUS . Viagem pelo Brasil: 1817-1820. Vol. III. Belo Horizonte: Itatiaia , 1981 [1831]., p. 274).

Os Mundurucus desse aldeamento trataram de fugir tão logo tiveram notícia de que uma comitiva de brancos estava se aproximando, e as palavras utilizadas pelos viajantes não deixam dúvida quanto à sensação que sua chegada causou entre eles: “espalhou terror”, sendo a comitiva associada a recrutadores de indígenas para trabalhos forçados. Nesse episódio, nota-se outra razão de pânico com a chegada de viajantes brancos nas aldeias: o desejo branco pelas intituladas “curiosidades etnográficas”, fato que nem sempre era visto com bons olhos pelos indígenas. Veja-se o que disse o viajante inglês Alfred Russel Wallace, que esteve na Amazônia entre 1848 e 1852, sobre sua visita a uma aldeia no rio Uapés:

consegui comprar um bonito murucu ornamentado, que é a principal insígnia de um tuxaua (chefe). O índio que me vendeu o murucu ficou muito aborrecido de ter de desfazer-se dele, só o fazendo porquanto eu lhe ofereci em troca um machado e um facão, coisas de que ele estava muito precisado (Wallace, 1979 [1853]WALLACE, Alfred Russel. Viagens pelos rios Amazonas e Negro. Belo Horizonte: Itatiaia ; São Paulo: EDUSP, 1979 [1853]., p. 180).

Nesse caso, não se tratava de um objeto qualquer, mas de um murucu ornamentado que era o principal signo de poder de um tuxaua, o que explica o aborrecimento do indígena em ter que se desfazer dele em troca de um machado e um facão, avatares dos brancos bastante valorizados nessas trocas. Conforme Henrique, “sentir-se obrigado a vender não significava necessariamente ser submetido à violência física. Em muitos casos, a violência simbólica era mais efetiva, ao seduzir os índios com objetos valorizados por eles e de difícil acesso” (2018HENRIQUE, Márcio Couto. Sem Vieira nem Pombal: índios na Amazônia no século XIX. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2018., p. 204). Foi o que aconteceu com o Mundurucu que mantinha consigo a cabeça mumificada de uma Parintintin que ele havia matado em campo de batalha. Primeiramente, Gonçalves Tocantins afirma que esse indígena “me fez presente da cabeça mumificada” (1877TOCANTINS, Antonio Manuel Gonçalves. Estudo sobre a tribu Mundurucú. Revista Trimensal do Instituto Histórico Geographico e Ethnographico Brasileiro, Rio de Janeiro: B. L. Garnier, tomo XL, pp. 73-161, 1877., p. 83), mas depois admitiu que havia oferecido por essa cabeça uma espingarda de dois canos, pólvora, chumbo e outros objetos. Mesmo assim, o Mundurucu só a entregou ao viajante quando este já estava embarcado, de partida, e, no ato da entrega, ainda se lamentou: “mas, eu a queria para mim!”. Na aldeia de Nicodemos havia outra cabeça mumificada de um guerreiro Parintintin, mas “o Mundurucu que a possuía, já bastante idoso, não quis mostrar-ma nem conversava sobre ela. Também eu não insisti” (1877VARNHAGEN, Adolfo. História Geral do Brasil, antes da sua separação e independência de Portugal. Tomo Primeiro. 2ª Ed. Rio de Janeiro: E. & H. Laemmert, 1877., p. 85). Tocantins registrou que o indígena dono da cabeça mumificada a tratava com todo cuidado: “punha-a sobre o colo, penteava-lhe com os dedos os longos cabelos e, acariciava-a como se fosse uma filha querida” (1877VARNHAGEN, Adolfo. História Geral do Brasil, antes da sua separação e independência de Portugal. Tomo Primeiro. 2ª Ed. Rio de Janeiro: E. & H. Laemmert, 1877., p. 85). Compreende-se assim, a tristeza com que ele se viu obrigado a se desfazer de seu troféu de guerra, que Tocantins doou para o Museu Nacional do Rio de Janeiro. Para não correr esse risco, o tuxaua Calisto, dos indígenas Tarianas, no rio Uapés, se recusava a mostrar aos viajantes seu acervo pessoal de ornatos de dentes de onça e de penas. Segundo Wallace, o tuxaua “não mostra tais preciosidades aos brancos, temeroso de que estes o obriguem a vendê-las” (1979 [1853]WALLACE, Alfred Russel. Viagens pelos rios Amazonas e Negro. Belo Horizonte: Itatiaia ; São Paulo: EDUSP, 1979 [1853]., p. 182).

No livro Arte primitiva em centros civilizados, Sally Price afirmou que “é recente a transformação em tema de reflexão ou de debate da questão dos sentimentos dos indígenas a respeito da coleta de objetos materiais por visitantes Ocidentais” (2000PRICE, Sally. Arte primitiva em centros civilizados. Tradução de Inês Alfano. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2000., p. 105). Até os anos de 1930, os manuais de instruções para a coleta de objetos etnográficos orientavam sobre o valor científico da coleta, os critérios para a seleção de objetos, os dados a serem registrados para cada item, a identificação, a classificação, o registro fotográfico e o acondicionamento das peças, assim como a ortografia e os símbolos fonéticos a serem usados para o registro da terminologia nativa. Mas tais manuais não mencionavam assuntos como uma compensação adequada da oposição dos indígenas à coleta científica ou de outras questões pertinentes às relações pessoais e à ética do empreendimento. Segundo Price, “a coleta de objetos de Arte Primitiva baseia-se no princípio Ocidental de que ‘o mundo é nosso’” (2000PRICE, Sally. Arte primitiva em centros civilizados. Tradução de Inês Alfano. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2000., p. 116). Assim, o furto de objetos da chamada “arte primitiva” ocorria livremente e sem quaisquer preocupações éticas, sob a justificativa de que tal “coleta” constituía uma contribuição ao conhecimento humano. Da mesma forma, em vários registros os viajantes comemoravam o fato de terem adquirido produtos das culturas indígenas em troca de objetos ocidentais de pouco valor. Muitos desses objetos iriam compor acervos etnográficos de museus espalhados pelo mundo.

Ao chegar à povoação de Magdalena, na Amazônia peruana, em 1827, a comitiva do viajante Henrique Lister Maw se deparou com uma procissão de mulheres e crianças que entoavam uma música triste e revelavam estar bastante atribuladas. Um homem da povoação, bastante agitado, confundiu com uma cruz a figura de uma âncora que Maw tinha bordada em seu barrete de lã e, ao pensar que se tratava de um padre, lhe tomou a bênção. A causa da agitação dos moradores era o fato de que o governo havia exigido um certo número de recrutas. Dizia o viajante que “assim que souberam que não éramos eclesiásticos, tomaram-nos por oficiais peruvianos, e as mulheres principiaram a exclamar que vínhamos buscar mais recrutas” (Maw, 1989 [1831]MAW, Henrique Lister. Narrativa da passagem do Pacífico ao Atlântico através dos Andes nas províncias do norte do Peru e descendo pelo rio Amazonas até ao Pará. Manaus: Associação Comercial do Amazonas; Fundo editorial, 1989 [1831]., p. 37).

De todo modo, a presença de um padre nem sempre evitava o sentimento de terror causado pela aproximação dos brancos. Dizia o cônego André Fernandes de Souza que os indígenas

São mui ciosos demasiadamente dos seus filhos pequenos, não querendo vê-los muito apartados de si. O Sr. Arcebispo de Braga pretendeu alguns rapazes Muras e não conseguiu, como também o Sr. Bispo D. Manoel de Almeida, quando foi ao Rio Negro, em 1804, também não pôde conseguir nenhum porque, dizem, os querem para escravos (1848SOUZA, André Fernandes de. Notícias geographicas da capitania do Rio Negro no grande rio Amazonas, exornadas com várias notícias históricas do paiz, do seu governo civil e politico, e de outras coisas dignas de attenção: dedicadas ao imperador do Brasil o senhor D. Pedro I pelo cônego André Fernandes de Souza. Revista Trimensal de História e Geographia , Rio de Janeiro: Typ de João Ignacio da Silva , tomo x (1870), 2ª ed., pp. 411-504, 1848., p. 486).

No livro Viagem a um país de selvagens, Oscar Leal cita um trecho da fala do viajante Paul Ehrencheich, que manteve contato com os Apinajés em fins do século XIX:

Já reparamos que por nenhum dinheiro se desprendem dos filhos, nem mesmo para entregá-los a missionários. Em regra, ao aproximarmo-nos de qualquer aldeia, originava-se grande pânico. O dr. Baggi, que trazia logo (sic) guardapó branco, era tido por padre, principalmente entre os índios que encontramos abaixo da Leopoldina, e de padre receavam eles e, com razão, atentados contra os meninos. Como rastilho divulgava-se logo a notícia e não nos custava pouco trabalho conseguir que os velhos nos trouxessem outra vez os meninos que tinham ido esconder às pressas nas canoas (Leal, 2012 [1886]LEAL, Oscar. Viagem a um país de selvagens. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial , 2012 [1886] )., p. 113)7 7 O autor cita, como referência dessa citação, o “Jornal do Comércio do Rio de Janeiro de 21-1-94”, mas não a localizei em pesquisa feita na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. .

A essa altura, abundavam experiências aterrorizantes de raptos de crianças indígenas, como muitas das que foram recolhidas no colégio Princesa Isabel, em Goiás, ou as que eram raptadas para servirem de criados e criadas nas cidades amazônicas (Henrique, 2022HENRIQUE, Márcio Couto. Escravidão ilegal e trabalho compulsório de índios na Amazônia (século XIX). In: MOREIRA, Vânia Maria Losada et al. (Orgs.). Povos indígenas, independência e muitas histórias. Curitiba: Editora CRV, 2022. pp. 501-530., 2010HENRIQUE, Márcio Couto. O soldado-civilizador: Couto de Magalhães e os índios no Brasil do século XIX. In: ALVES, Claudia; NEPOMUCENO, Maria de Araújo (Orgs.). Militares e educação em Portugal e no Brasil. 1ª Ed. Vol. 1. Rio de Janeiro: FAPERJ: Quartet, 2010. pp. 45-83.; Sena, 2021SENA, Laécio Rocha de. Os Mebêngôkre-Irã amrairé e a fronteira Araguaia na segunda metade do século XIX. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Pará. Belém, 2021. ). Outras tantas foram parar na Europa, como as duas crianças que Spix e Martius conduziram consigo até Munique, na Alemanha. Os viajantes registraram esse fato nos seguintes termos: “agregou-se ali [em Manacapuru, no Amazonas] à guarnição um jovem Juri, da horda comá-tapuia, que nos acompanhou até Munique; infelizmente, porém, tanto ele como a jovem Miranha, sua companheira, morreram, não suportando a mudança de clima e as outras circunstâncias exteriores” (Spix; Martius, 1981 [1831] SPIX ; MARTIUS . Viagem pelo Brasil: 1817-1820. Vol. III. Belo Horizonte: Itatiaia , 1981 [1831]., p. 252). De acordo com Cida Bento,

Descendentes de escravocratas e descendentes de escravizados lidam com heranças acumuladas em histórias de muita dor e violência, que se refletem na vida concreta e simbólica das gerações contemporâneas. Fala-se muito na herança da escravidão e nos seus impactos negativos para as populações negras, mas quase nunca se fala na herança escravocrata e nos seus impactos positivos para as pessoas brancas (2022BENTO, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022., p. 22).

O privilégio branco permitia a Spix e Martius narrar um ato de violação de direitos de pessoas que por lei eram consideradas livres, sem que eles se sentissem responsáveis por tal ato, sem que eles nomeassem o ato de raptar indígenas, em uma atitude racista pautada na ideia de inferioridade desses povos. Os viajantes não se viam como parte de um processo de transformação de seres humanos em mercadorias, que Mbembe chamou de “erótica da mercadoria” (2018 [2013]MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018., p. 202).

Faz parte do pacto narcísico que sustenta o ideal de supremacia branca silenciar sobre atos vergonhosos e anti-humanitários cometidos pelos antepassados brancos, como os casos de rapto de crianças ou de estupro de mulheres indígenas e afro-brasileiras. São os acordos não verbalizados. A branquitude se beneficia desse silêncio, de modo que esses benefícios são usufruídos pelas novas gerações brancas como mérito do seu grupo, sem qualquer relação com os atos anti-humanitários cometidos no período da escravidão (Bento, 2022BENTO, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022., pp. 23-24). Ao analisar o racismo e o sexismo na sociedade brasileira, Lélia Gonzales chamava a atenção para o que ela denominava de “neurose cultural brasileira”: “o neurótico constrói modos de ocultamento do sintoma porque isso lhe traz certos benefícios. Essa construção o liberta da angústia de se defrontar com o recalcamento” (1984GONZALES, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, pp. 223-244, 1984., p. 232). Por isso, “é urgente fazer falar o silêncio, refletir e debater essa herança marcada por expropriação, violência e brutalidade para não condenarmos a sociedade a repetir indefinidamente atos anti-humanitários similares” (Bento, 2022BENTO, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022., p. 24).

Constantemente as populações indígenas eram sobressaltadas com a possibilidade de perderem seus filhos, seja pelo rapto, seja sob a justificativa de que as crianças indígenas seriam educadas nas cidades e depois devolvidas a suas comunidades de origem. Essa ameaça era proveniente dos missionários, dos viajantes e, também, dos caçadores de indígenas. Ao se despedir dos Mundurucus, Gonçalves Tocantins afirmou que

à última hora ainda insisti com estes selvagens para que viessem ver nossas cidades, ou ao menos para que mandassem alguns de seus filhos, comprometendo-me eu a fazê-los regressar mais tarde para a companhia de seus pais.

Alguns apenas responderam por um sinal negativo e outros nem sequer responderam, como se não considerassem o convite digno de ser tomado em consideração (1877VARNHAGEN, Adolfo. História Geral do Brasil, antes da sua separação e independência de Portugal. Tomo Primeiro. 2ª Ed. Rio de Janeiro: E. & H. Laemmert, 1877., p. 161).

Por causa disso, mulheres e crianças costumavam correr para a floresta assim que brancos chegavam às aldeias. A presunção de que a vida nas cidades e a educação nos moldes ocidentais eram superiores ao modo de vida nas aldeias era uma dimensão importante do terror da branquitude e do processo de inferiorização dos indígenas.

Ao narrar a expedição alemã ao rio Xingu, realizada em 1887, Paul Ehrenreich relatou que

Mais difícil foi travar relações com os Nahukuas, cujas mulheres e filhos, pelo simples boato da nossa chegada, já tinham fugido, levando tudo quanto podiam levar, ao passo que os varões se conservavam encerrados em suas cabanas, até que afinal a teimosa eloquência de Tumayana conseguiu fazê-los aparecer. Foi só na nossa volta que pudemos ter o prazer de ver o sexo feminino (Ehrenreich, 1891EHRENREICH, Paul. A 2ª expedição alemã ao rio Xingu. A Immigração, Rio de Janeiro, mar.-abr. 1891., p. 7).

Ehrenreich relata, também, seu encontro com os indígenas Trumais, ocasião em que estes estavam fugindo de seus inimigos Suyá. Diz o viajante que “apenas as mulheres nos avistaram, fugiram com grande gritaria”. Em seguida, “apareceram logo o cacique e os seus sequazes, todos pintados de vermelho no corpo inteiro, tremendo como varas verdes e assegurando-nos da sua disposição toda pacífica” (Ehrenreich, 1891EHRENREICH, Paul. A 2ª expedição alemã ao rio Xingu. A Immigração, Rio de Janeiro, mar.-abr. 1891., p. 7). Muitas vezes o alarde inicial era feito pelas mulheres indígenas, como a “índia velha” que, ao avistar a chegada de brancos em sua aldeia, gritou do mato: “Chrentonhe, nome que na língua deles significa cristão” (Almeida, 1846ALMEIDA, Hermenegildo Antonio Barbosa de. Viagem ás villas de Caravellas, Viçosa, Porto Alegre, de Mucury, e aos rios Mucury e Peruhipe. Revista Trimensal de História e Geographia ou Jornal do Instituto Histórico e Geographico Brazileiro, Rio de Janeiro, tomo VIII, pp. 425-452, 1846., p. 443).

Uma das experiências mais aterrorizantes para os indígenas da Amazônia no contato com os brancos era a possibilidade de serem recrutados para o Exército ou a Marinha. Spix e Martius relatam que o ofício de marinheiros nas embarcações costeiras e de remadores nas canoas que faziam a navegação dos grandes rios competia exclusivamente aos indígenas, mas, diziam eles: “acontece que muitas vezes são compelidos a este serviço, motivo que explica a pouca segurança nas viagens mais demoradas, porque, logo que se apresenta ensejo, os índios tentam fugir deixando barco e passageiros em apuros” (1981 [1831] SPIX ; MARTIUS . Viagem pelo Brasil: 1817-1820. Vol. III. Belo Horizonte: Itatiaia , 1981 [1831]., p. 28). Quando os indígenas remadores da expedição de Henry Lister Maw se recusaram a remar contra a correnteza do chamado canal do Aru, o viajante ameaçou quebrar o remo na cabeça do timoneiro que “soltou um grito de pavor”, implorando para ser poupado. O viajante poupou o timoneiro, mas, diz ele:

eu os deixei ainda mais aterrorizados declarando-lhes que ao chegar à Barra do Rio Negro iria dar queixa às autoridades do seu motim para que fossem imediatamente convocados a servir na briosa corporação da polícia militar.

Esse tipo de recrutamento, ao lado da varíola, é uma das coisas que os tapuias temem mais do que qualquer outro infortúnio (Maw, 1989 [1831]MAW, Henrique Lister. Narrativa da passagem do Pacífico ao Atlântico através dos Andes nas províncias do norte do Peru e descendo pelo rio Amazonas até ao Pará. Manaus: Associação Comercial do Amazonas; Fundo editorial, 1989 [1831]., p. 150).

Nesse caso, o ato de aterrorizar foi consciente, proposital. Wallace registrou o modo como os indígenas costumavam ser recrutados:

até então, havia o costume de arrebanhar nesta Província [Pará] quase todos os recrutas do Exército Brasileiro. Os índios que desciam os rios trazendo seus produtos eram agarrados à força e obrigados a servir como soldados. Dava-se a isso o nome de “alistamento voluntário”, e tal estado de coisas durava há já alguns anos. Resultado: o medo fazia com que os nativos evitassem descer até à cidade do Pará [Belém], reduzindo sobremodo o comércio provincial (Wallace, 1979 [1853]WALLACE, Alfred Russel. Viagens pelos rios Amazonas e Negro. Belo Horizonte: Itatiaia ; São Paulo: EDUSP, 1979 [1853]., p 41).

Nota-se, assim, que a costumeira mobilidade indígena pelos rios da região, mesmo quando feita para trocar seus produtos com os brancos, passou a ser associada a uma experiência aterrorizante que poderia resultar em “recrutamento voluntário”. O casal Agassiz, que esteve na Amazônia entre 1865 e 1866, registrou que “não é raro, mesmo nas províncias centrais e mais populosas do Império, encontrarem-se recrutas pelas estradas, presos dois a dois pelo pescoço, e viajando sob escolta como bandidos” (2000 [1869]AGASSIZ, Luís; AGASSIZ, Elizabeth Cary. Viagem ao Brasil: 1865-1866. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2000 [1869]., p. 280). Em outra situação, eles se depararam com três indígenas recrutados que aguardavam para serem enviados para Manaus: “esses infelizes tinham as pernas presas num grosso barrote de madeira, contendo orifícios que mal davam para deixar passar os tornozelos” (2000 [1869]AGASSIZ, Luís; AGASSIZ, Elizabeth Cary. Viagem ao Brasil: 1865-1866. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2000 [1869]., p. 317). As mulheres indígenas relataram à madame Agassiz que, antes, o cotidiano de suas comunidades era marcado por constantes festas religiosas,

porém, elas dizem que a vida aqui tornou-se agora muito triste: os homens foram recrutados para a guerra, ou então fugiram para o mato para não seguirem; agarravam-nos, asseguravam elas, em qualquer lugar em que fossem encontrados, sem consideração quer pela idade, quer pelas circunstâncias (2000 [1869]AGASSIZ, Luís; AGASSIZ, Elizabeth Cary. Viagem ao Brasil: 1865-1866. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2000 [1869]., p. 259).

Nesse caso, os indígenas haviam sido recrutados para a Guerra do Paraguai. Aterrorizante, também, era a possibilidade de ser “designado” ou “convocado” para executar o serviço de correio, levando as correspondências entre os distintos lugares da região. Richard Spruce, que percorreu a Amazônia entre 1849 e 1864, registrou como isso ocorria na província do Amazonas.

Os índios que remam nas canoas do correio são “convocados” desse modo: um destacamento de soldados é enviado na calada da noite para os sítios, onde arrebanham tantos homens quantos necessários, trancafiando-os sem tardança na cadeia e guardando-os ali até o dia de zarpar - em ferros, caso oponham alguma resistência. A viagem dura em média cinquenta dias, e esses infelizes não recebem pagamento algum, nem mesmo a comida necessária a sua sobrevivência (2006 [1908]SPRUCE, Richard. Notas de um botânico na Amazônia. Belo Horizonte: ITATIAIA, 2006 [1908]., p. 212).

Spruce conclui afirmando que “não é de espantar que os índios se escondam nas florestas quando corre o boato de que o correio está próximo de ser despachado” (2006 [1908]SPRUCE, Richard. Notas de um botânico na Amazônia. Belo Horizonte: ITATIAIA, 2006 [1908]., p. 212). Assim como bell hooks observou acerca do contato dos negros com os brancos, para as populações indígenas da Amazônia no século XIX, de certo ponto de vista, viajar era encontrar a força aterrorizante da supremacia branca (hooks, 1995HOOKS, bell. Killing Rage: Ending Racism. New York: Hand Holt and Company, 1995. , p. 44).

Os viajantes costumavam atribuir a dificuldade para conseguir remadores para suas canoas à preguiça ou à falta de ambição dos indígenas. Mas, pode-se associar a recusa dos indígenas ou a constante deserção durante as viagens ao terror da branquitude. Wallace relata que, em uma de suas viagens pela Amazônia, precisou esperar cerca de dez dias até conseguir remeiros. Dizia ele que “todos os elementos de que a gente necessita devem ser trazidos da cidade do Pará [Belém]. Se estes desertarem (e quase sempre o fazem), é inútil tentar substituí-los pelo caminho” (1979 [1853], p. 53).

Outras vezes, a violência aterrorizante do encontro dos indígenas com os brancos pode ser captada de modo mais sutil. Vejamos a descrição que o viajante francês Hercules Florence fez a respeito das mulheres Bororo:

As mulheres são bem feitas de corpo: têm rosto interessante, os olhos ordinariamente apertados e um tanto oblíquos, o nariz pequeno, afilado, boca no comum grande, lábios grossos, dentes claros e bem implantados (Florence, 1977 [1875]FLORENCE, Hercules. Viagem fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. São Paulo: CULTRIX; Editora da Universidade de São Paulo, 1977 [1875] ., p. 109).

Esse tipo de descrição pressupõe um observador atento aos mínimos detalhes dos corpos das mulheres indígenas. Florence afirmou que “a fisionomia das mulheres e crianças é interessante: quando moças, algumas são até bonitas” (1977 [1875]FLORENCE, Hercules. Viagem fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. São Paulo: CULTRIX; Editora da Universidade de São Paulo, 1977 [1875] ., p. 118). O viajante relatou que, certa vez, se deparou com um Guató que conduzia suas três esposas em uma canoa e perguntou a ele se todas eram suas, ao que o Guató respondeu que sim. Diz Florence: “pedi-lhe, então, por gracejo, uma e ele retorquiu-me zangado que eu deveria ter trazido comigo a minha. Repliquei-lhe que não fora isso possível”. Em seguida, disse o indígena: “Pois bem […] se você tivesse aqui sua mulher, eu a trocava por uma destas” (1977 [1875]FLORENCE, Hercules. Viagem fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. São Paulo: CULTRIX; Editora da Universidade de São Paulo, 1977 [1875] ., pp. 120-121). O privilégio branco permitia a Hércules Florence fazer “gracejo” com a constituição familiar do Outro, em uma atitude típica do chamado racismo recreativo, mecanismo de dominação que tem como objetivo “promover a reprodução de relações assimétricas de poder entre grupos raciais por meio de uma política cultural baseada na utilização do humor como expressão e encobrimento de hostilidade racial” (Moreira, 2019MOREIRA. Adilson. Racismo recreativo. São Paulo: Suely Carneiro; Pólen, 2019., p. 148). Esse “gracejo” também faz parte da violência aterrorizante da linguagem do colonizador. Henry Walter Bates, que esteve na Amazônia entre 1848 e 1859, também registrou sua percepção acerca dos corpos das mulheres indígenas, em um misto de admiração e desejo. Na ilha de Catuá, ele se referiu a

uma mocinha de uns dezessete anos, era uma verdadeira beldade. A cor de sua pele tinha quase o mesmo tom moreno-claro das mulheres mamelucas, seu corpo era quase perfeito e a boca, pintada de azul, ao invés de enfeá-la, dava um toque final à sua beleza. Seu pescoço, pulsos e tornozelos estavam ornados com fios de contas azuis (Bates, 1979 [1863]BATES, Henry Walter. Um naturalista no rio Amazonas. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1979 [1863]., p. 243).

Ao entrar em uma maloca indígena no rio Uapés, Wallace se deparou com um velho, um rapaz e duas mulheres. Diz ele que as mulheres estavam inteiramente nuas, mas vestiram uma saia logo que avistaram os brancos. As indígenas do baixo curso do Uaupés geralmente possuíam uma saia, mas só as usavam nessas ocasiões (Wallace, 1979 [1853]WALLACE, Alfred Russel. Viagens pelos rios Amazonas e Negro. Belo Horizonte: Itatiaia ; São Paulo: EDUSP, 1979 [1853]., p. 177), o que pode ser relacionado com o olhar invasivo, indiscreto, violento com que os viajantes observavam seus corpos. Assim, nota-se o que Maria Aparecida da Silva Bento definiu como sendo

as características que revelam como a ideologia da branquitude cumpre uma função psíquica essencial: ela mobiliza desejos, afetos e incentiva a libido. Ela se refere a identificações profundas e possibilita a cada um fortalecer narcisicamente “os iguais” e, ao mesmo tempo, desembaraçar-se de suas pulsões arcaicas virulentas, de sua violência e brutalidade, ao encontrar adversários e inimigos considerados inferiores ou perseguidores que devem ser ignorados, excluídos, aniquilados ou convertidos (Bento, 2018BENTO, Maria Aparecida da Silva. Notas sobre a branquitude nas instituições. In: SILVA, Maria Lúcia da et al. (Orgs.). Violência e sociedade: o racismo como estruturante da sociedade e da subjetividade do povo brasileiro. São Paulo: Escuta, 2018. pp. 115-136., p. 121).

Os corpos indígenas eram vistos apenas como objetos exóticos a serem observados, descritos, medidos, desenhados ou fotografados. Ao se deparar com duas mulheres indígenas oriundas do rio Branco, em 1859, o viajante Avé-Lallemant as descreveu como “raparigas fuscas, sérias e embaraçadas”, que “prefeririam andar sem roupa, a vestir aquelas coisas azuis, pegadas no corpo”. Nada disso conteve a postura invasiva e violenta do viajante. Diz ele: “cortei uma porção de cabelo de uma delas e dei-lhe dinheiro por ele. O primeiro importava-lhe tanto quanto o segundo” (1961 [1860]AVÉ-LALLEMANT, Robert. Viagem pelo norte do Brasil no anno de 1859. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1961 [1860]., p. 140).

Compreende-se, assim, a atitude das cinco mulheres Mundurucus de uma aldeia no rio Tapajós visitada por Hércules Florence. Diz o viajante que

Pareceram-me, contudo, aborrecidas de nossa visita, naturalmente pela ausência dos maridos que então cuidavam das plantações. Querendo eu desenhar esse grupo, voltei à canoa para buscar o álbum, mas de volta achei a porta fechada e a gente da parte de fora da choupana. Abri-a devagar, mas como as mulheres tinham acendido dentro um fogaréu, era tal a fumaça que não me arrisquei a entrar. Ao invés dos Apiacás, pelo menos nessa ocasião, haviam usado desse meio para nos repelirem (Florence, 1977 [1875]FLORENCE, Hercules. Viagem fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. São Paulo: CULTRIX; Editora da Universidade de São Paulo, 1977 [1875] ., pp. 286-287).

O privilégio branco permitia a Florence atribuir o aborrecimento das mulheres à ausência de seus maridos e não à sua incômoda presença. Em outra situação, o viajante Henry Lister Maw registrou o incômodo que as indígenas da cidade da Barra (Manaus) sentiam em relação ao telescópio que o vigário geral utilizava para melhor observar as canoas que passavam pelo rio. Ocorre que as mulheres indígenas “acreditavam que o telescópio não só fazia aproximar, mas, também reverter os diferentes objetos. Quando, portanto, iam para o rio estavam sempre alerta olhando para o telescópio do vigário e se o viam enquanto estavam banhando-se, entranhavam-se logo mais pela água, ou corriam a esconder-se” (1989 [1831]MAW, Henrique Lister. Narrativa da passagem do Pacífico ao Atlântico através dos Andes nas províncias do norte do Peru e descendo pelo rio Amazonas até ao Pará. Manaus: Associação Comercial do Amazonas; Fundo editorial, 1989 [1831]., pp. 214-215).

Reação semelhante tinham as indígenas que o viajante português Oscar Leal viu às margens do rio Tocantins, em sua viagem entre Abaetetuba e Cametá, no Pará, em 1886. Ao direcionar seu binóculo em direção às habitações ribeirinhas, Leal observou que as mulheres corriam para se esconder ou se encostavam umas nas outras. Diante disso, um passageiro lhe informou “ser crença entre essa gente que o binóculo nos faz ver de pernas para o ar, descobrindo a vista todas as partes do corpo!” Ao saber disso, o viajante insistiu em sua “volúpia sádica” (Césaire, 1978CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1978 [1955]., p. 23)8 8 Aimé Cesaire (1978 [1955], p. 23) se referia a um relato sobre a tomada de Thouan-An, no Vietnan, em que os franceses massacraram os nativos anamitas, enquanto o oficial francês Louis Marie-Julien Viaud Loti se divertia observando o massacre com seu binóculo. , dirigindo seu binóculo às mulheres enquanto lamentava que, “infelizmente, não possuía [o binóculo] as famosas virtudes que lhe atribuíam” (Leal, 2012 [1886]LEITE, Ilka Boaventura. Antropologia da viagem: escravos e libertos em Minas Gerais no século XIX. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996., p. 27).

O desejo de fazer retrato dos indígenas também poderia causar terror. Assim, Biard relata que, ao tentar pintar uma velha indígena Mundurucu, no rio Madeira, notou que ela fugiu “mal a olhara com certa insistência”. Outros dois indígenas tatuados dos quais ele havia começado a fazer o retrato também desapareceram. Desconfiado, Biard relatou esse fato ao cacique e, assim, o viajante descobriu que seu assistente, chamado Policarpo, da etnia Mura,

havia, desde Manaus, posto em prática maldade surda que produzira seus efeitos sem conhecer-lhe a causa. Quando um índio se prestava a servir de modelo, e eu não acabava o retrato no mesmo dia, Policarpo convencia-o de que na terra dos brancos existiam muitas criaturas sem cabeça. Eu estava encarregado de consegui-las entre os selvagens. Assim, quem fosse por mim pintado um dia teria a cabeça misteriosamente arrancada dos ombros e levada pelos ares ao corpo a que estaria destinada (Biard, 2004 [1862]BIARD, Auguste François. Dois anos no Brasil. Brasília: Senado Federal; Conselho Editorial, 2004 [1862]., p. 215).

Esse registro oferece um interessante exemplo de representação da branquitude na imaginação indígena. Relato semelhante foi feito por Michael Taussig (1993 [1987]TAUSSIG, Michael. Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem: um estudo sobre o terror e a cura. Tradução de Carlos Eugênio Marcondes de Moura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993 [1987].) ao se referir à viagem do explorador francês Jules Crévaux em direção ao alto Putumayo, na Amazônia colombiana, em 1879. Ao indagar porque uma canoa que transportava uma mulher nua e um bebê se afastou com sua chegada, o viajante ouviu que a mulher tinha acabado de dar à luz e os indígenas acreditavam que, se o recém-nascido visse um branco, ele ficaria doente e morreria. Por essa razão, os indígenas da Guiana se recusavam a mostrar seus bebês para pessoas brancas (Taussig, 1993 [1987]TAUSSIG, Michael. Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem: um estudo sobre o terror e a cura. Tradução de Carlos Eugênio Marcondes de Moura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993 [1987]., p. 106).

Outro instrumento causador de terror entre os indígenas era a câmera fotográfica, instrumento ocidental de fundamental importância para o registro e a exibição dos corpos indígenas como artefatos exóticos. Ehrenreich relata que os indígenas do Xingu “prestavam-se em geral prontamente a serem fotografados, mas a solenidade do ato lhes incutia, às vezes de repente, um tremor que lhes desfigurava a expressão natural do rosto” (Ehrenreich, 1891EHRENREICH, Paul. A 2ª expedição alemã ao rio Xingu. A Immigração, Rio de Janeiro, mar.-abr. 1891., p. 8).

De acordo com bell hooks, na sociedade supremacista branca, os brancos podem imaginar com segurança que são invisíveis para os negros. Diz a autora que “alguns brancos podem até imaginar que não há representação da branquitude na imaginação negra, especialmente aquela que se baseia em observação concreta ou conjectura mítica. Eles acham que são vistos pelos negros apenas como eles querem aparecer” (hooks, 1995HOOKS, bell. Killing Rage: Ending Racism. New York: Hand Holt and Company, 1995. , p. 36). Penso que a mesma reflexão pode ser estendida aos indígenas. Os registros dos viajantes indicam que, para estes, não haveria representações da branquitude na imaginação indígena. Conforme apresentei até aqui, são inúmeras as situações que evidenciam o contrário.

POR UM MUNDO LIVRE DO FARDO DA RAÇA

Penso que os relatos aqui apresentados evidenciam que, na Amazônia do século XIX, o contato dos indígenas com a branquitude significava uma experiência com o que é aterrorizante, com o que causa medo, pânico. Fazendo referência ao trabalho de Frantz Fanon, Achille Mbembe afirma que “a violência colonial é, na realidade, uma rede, ponto de encontro de violências múltiplas, diversas, reiteradas, cumulativas”, “vividas tanto no plano do espírito como no ‘dos músculos, do sangue’” (2018MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018., p. 189). Era o medo do terror, o sentir-se ameaçado, que fazia com que os indígenas embicassem suas canoas às pressas e fugissem para o mato ao avistar brancos, enquanto outros retiravam-se com toda a força. Era o medo que fazia os indígenas se esconderem na floresta ou na casa dos vizinhos ou, quando era inevitável, receberem os brancos com misto de alegria e temor. Diante dos brancos, muitas mulheres indígenas se mostravam aborrecidas, preferindo o silêncio. A agonia do racismo, de fato, se expressava por meio de sensações corporais geradoras de traumas e dores e, como vimos, muitas vezes os indígenas corriam “dando gritos de terror”, “tremendo como varas verdes”. Diante da câmera fotográfica, outros apresentavam um tremor que lhes desfigurava a expressão natural do rosto. Todos esses registros deixam evidente a dimensão muscular da violência colonial.

Observe-se que a expressão do terror entre os indígenas diante da branquitude foi registrada pelos próprios brancos com palavras que não deixam dúvida quanto ao fato de que a violência colonial era vivida tanto no plano do espírito como no dos músculos: terror, tremor, pânico, medo, gritos, fugas, silêncio, desfiguração. Terror de ser recrutado para o “recrutamento voluntário” do Estado. Medo de ter suas mulheres e seus filhos sequestrados. Quando não era aberta, a violência apavorante da branquitude era exercida de maneiras sutis, submetendo os indígenas a medições de cada parte de seus corpos, à violência das trocas, em que seus objetos sagrados eram forçosamente levados por viajantes para serem exibidos nas vitrines dos nascentes museus de Antropologia ou ao olhar escrutinador e invasivo dos brancos sobre seus corpos. A propósito, o Dr. Paul Ehrenreich, médico e viajante, registrou que, para fazer medições do corpo dos indígenas, ele recorria primeiramente aos mais velhos, “que nesta operação viam uma espécie de curativo mágico contra os seus muitos achaques, catarros crônicos, etc.” E tal foi sua surpresa quando, nas palavras de Ehrenreich, “um Nahuqua velho, para completar as medições a que se acabava de prestar, foi tomar medida de seu membro viril com uma tira de palha, que em seguida me entregou com um benévolo sorriso” (1891EHRENREICH, Paul. A 2ª expedição alemã ao rio Xingu. A Immigração, Rio de Janeiro, mar.-abr. 1891., p. 8). Tal como Michael Taussig afirmou com relação ao olhar que dissecava os corpos indígenas na região do Putumayo, na Colômbia, “tudo isto é grão para o moinho do olho da etnografia científica, que tudo consome” (1993 [1987]TAUSSIG, Michael. Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem: um estudo sobre o terror e a cura. Tradução de Carlos Eugênio Marcondes de Moura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993 [1987]., p. 121). Para o autor, “é um olho clínico e jamais é tão lascivo quanto na proximidade da distância que mantém, enquanto disseca o corpo do índio, verificando a cor da pele, funcionalizando, medindo os seios, observando os dedos dos pés, medindo o pênis” (1993 [1987]TAUSSIG, Michael. Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem: um estudo sobre o terror e a cura. Tradução de Carlos Eugênio Marcondes de Moura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993 [1987]., p. 122).

Trato aqui do terror que a branquitude causava nos indígenas da Amazônia do século XIX, mas penso que é possível afirmar que, em graus distintos, esse medo acompanha essas populações desde o início da colonização do Brasil e permanece como elemento do racismo estrutural no país. O terror da branquitude faz parte da “experiência dos brancos” (Yanomami; Albert, 1999YANOMAMI. Davi Kopenawa; ALBERT, Bruce. Descobrindo os brancos. In: NOVAES, Adauto (Org.). A outra margem do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras , 1999., p. 15) que cada indígena constrói ao longo da história9 9 Veja-se, por exemplo, o relato de Davi Kopenawa Yanomami sobre seu primeiro contato com os brancos, na década de 1950: “Quando os avistei chorei de medo [...]. Pensei que eram espíritos canibais e que iam nos devorar. Eu os achava muito feios, esbranquiçados e peludos. Eles eram tão diferentes que me aterrorizavam” (1999, p. 16). . Talvez por isso os indígenas do Brasil seguem firmes em sua disposição de “pacificar os brancos” (Albert; Ramos, 2002ALBERT, Bruce; RAMOS, Alcida Rita (Orgs.). Pacificando o branco: cosmologias do contato no Norte-Amazônico. São Paulo: Editora UNESP: Imprensa oficial do Estado, 2002.).

Parafraseando bell hooks (2019HOOKS, bell. Olhares negros: raça e representação. São Paulo: Elefante, 2019., p. 315), nomear o que a branquitude representa na imaginação indígena é geralmente falar de terror, pois é da capacidade de inspirar terror que a branquitude retira o direito de dominar. Analisar criticamente a associação da branquitude com o terror na imaginação negra e indígena, desconstruindo-a, constitui uma forma de nomear o impacto do racismo sobre esses povos e ajudar a romper com o seu domínio, descolonizando nossas mentes e nossas imaginações. Ao concluir o livro Crítica da razão negra, Achille Mbembe afirma que é comum a todos os seres humanos o desejo de ser, cada um do seu jeito, seres humanos por inteiro. “Esse desejo de plenitude de humanidade é algo que todos compartilhamos” (2018MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018., p. 313). De todo modo, “para construir este mundo que nos é comum, será preciso restituir àqueles e àquelas que foram submetidos a processos de abstração e de coisificação na história a parte de humanidade que lhes foi roubada” (2018MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018., pp. 313-314). Para isso, é preciso assumir o risco “do ato de falar com todas as implicações” (Gonzales, 1984GONZALES, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, pp. 223-244, 1984., p. 226).

Faz parte do processo de reparação histórica devida a essas coletividades nomear o racismo, denunciar as múltiplas formas de violência praticadas pela branquitude contra negros e indígenas, denunciar os acordos não verbalizados que sustentam o privilégio branco, desestruturar o pacto narcísico, refletir sobre o sujeito branco como pessoa racializada. Por fim, para aqueles cuja parcela de humanidade foi roubada em algum momento da história, a exemplo de negros e indígenas, faz parte desse processo a proclamação da diferença e o reconhecimento de seu valor, em busca de “um mundo livre do fardo da raça” (Mbembe, 2008, p. 315).

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  • YANOMAMI. Davi Kopenawa; ALBERT, Bruce. Descobrindo os brancos. In: NOVAES, Adauto (Org.). A outra margem do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras , 1999.
  • 1
    Esse artigo é resultado do projeto de pesquisa “Escravidão ilegal e trabalho compulsório de índios na Amazônia (século XIX)”, financiado por bolsa de produtividade do CNPq. Versão inicial desse texto foi apresentada no 32º Simpósio Nacional de História - ANPUH Nacional, São Luís, Maranhão, em julho de 2023, e no VII Seminário do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Amazonas, Manaus, em setembro de 2023. Agradeço as contribuições de Adriana Dias de Moura, Karina Moreira, Maria Regina Celestino, Martha Abreu, Soraia Dorneles e Vânia Maria Losada Moreira.
  • 2
    A autora nasceu em Lisboa, mas tem raízes em Angola e São Tomé e Príncipe. Artista interdisciplinar, psicóloga, escritora e teórica.
  • 3
    O sociólogo norte-americano William Edward Burghardt Du Bois é apontado como um dos precursores dos estudos sobre branquitude, com a publicação de Black Reconstruction (1935DU BOIS, William Edward Burghardt. Black Reconstruction: An Essay Toward a History of the Part Which Black Folk Played in the Attempt to Reconstruct Democracy in America, 1860-1880. New York: Harcourt, Brace and Company, 1935. ). Ao analisar a situação do trabalhador branco norte-americano do século XIX, o autor concluiu que mesmo quando esse trabalhador recebia um salário baixo era compensado com um “salário público e psicológico” que resultava em ganhos reais. Outro precursor é o martinicano Franz Fanon, que em Pele negra, máscaras brancas (2008 [1952]FANON, Franz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: Edufba, 2008 [1952]).) analisou o racismo como mecanismo colonial de distribuição de privilégios em sociedades marcadas pela desigualdade: “é o racista que cria o inferiorizado” (2008 [1952]FANON, Franz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: Edufba, 2008 [1952])., p. 90).
  • 4
    Entre a vasta bibliografia sobre os relatos de viajantes, conferir Hartmann (1975)HARTMANN, Thekla. A contribuição da iconografia para o conhecimento de índios brasileiros do século XIX. Coleção Museu Paulista. Vol. I. São Paulo: Edição do Fundo de Pesquisas do Museu Paulista da Universidade de São Paulo, 1975.; Leite (1996)LEITE, Ilka Boaventura. Antropologia da viagem: escravos e libertos em Minas Gerais no século XIX. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996.; Kury (2001)KURY, Lorelai. Viajantes-naturalistas no Brasil oitocentista: experiência, relato e imagem. Rio de Janeiro, História, Ciências, Saúde - Manguinhos , v. 8, suplemento, pp. 863-880, 2001.; Alves (2011)ALVES, José Jerônimo de Alencar. A natureza e a cultura no compasso de um naturalista do século XIX: Wallace e a Amazônia. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 18, n. 3, pp. 775-788, jul.-set. 2011.; Sanjad (2022)SANJAD, Nelson; XIMENES, Cláudio. Intertextuality and Knowledge Translation in Travel Reports: The Capim River and its Inhabitants in the Narratives of Alfred Russel Wallace (1849), João Barbosa Rodrigues (1874/1875) and Emil Goeldi (1897). Rodriguésia, Rio de Janeiro, v. 73, 2022..
  • 5
    De acordo com Cida Bento, o pacto narcísico é “uma herança inscrita na subjetividade do coletivo, mas que não é reconhecida publicamente. O herdeiro branco se identifica com outros herdeiros brancos e se beneficia dessa herança, seja concreta, seja simbolicamente; em contrapartida, tem que servir ao seu grupo, protegê-lo e fortalecê-lo” (2022BENTO, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022., p. 24).
  • 6
    Optei por manter a grafia dos etnônimos indígenas tal qual eles aparecem na documentação. Com relação ao termo “índio”, ele aparecerá quando se tratar de citações de documentos da época ou de outros autores e obras. Fora disso, farei uso da expressão “indígenas”, acompanhando a compreensão mais recente de que esse termo é mais adequado para se referir à diversidade existente entre esses povos. Com relação aos documentos de época, optei por atualizar a grafia.
  • 7
    O autor cita, como referência dessa citação, o “Jornal do Comércio do Rio de Janeiro de 21-1-94”, mas não a localizei em pesquisa feita na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
  • 8
    Aimé Cesaire (1978 [1955], p. 23) se referia a um relato sobre a tomada de Thouan-An, no Vietnan, em que os franceses massacraram os nativos anamitas, enquanto o oficial francês Louis Marie-Julien Viaud Loti se divertia observando o massacre com seu binóculo.
  • 9
    Veja-se, por exemplo, o relato de Davi Kopenawa Yanomami sobre seu primeiro contato com os brancos, na década de 1950: “Quando os avistei chorei de medo [...]. Pensei que eram espíritos canibais e que iam nos devorar. Eu os achava muito feios, esbranquiçados e peludos. Eles eram tão diferentes que me aterrorizavam” (1999, p. 16).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    24 Ago 2023
  • Aceito
    26 Fev 2024
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