Open-access "Um, dois, três MFA...": o Movimento das Forças Armadas na Revolução dos Cravos - do prestígio à crise

Resumos

A 25 de abril de 1974 um golpe de Estado levado a cabo pelo Movimento das Forças Armadas (MFA) põe fim a 48 anos de ditadura do Estado Novo e inicia o período que ficaria conhecido como Revolução dos Cravos. O MFA granjeia de imediato apoio popular e mais tarde um crescente prestígio político que o levará a ocupar um lugar de destaque na estabilização do Estado e na consolidação do regime democrático. Porém, sucumbirá na crise de governação imposta pela tensão social da segunda metade de 1975. Neste artigo analisamos a ascensão e queda desse movimento de oficiais, a forma como ganhou apoio popular e as razões explicativas do seu desmoronamento, um caso de estudo a nível mundial pela participação destacada que teve no derrube da mais longa ditadura militar da Europa Ocidental do século XX.

militares; Movimento das Forças Armadas (MFA); Revolução dos Cravos


On 25 April 1974 a coup d'état by the Armed Forces Movement (MFA) put an end to 48 years of the Estado Novo dictatorship in Portugal, starting what would become known as the Carnation Revolution. The MFA immediately attracted public support and later political prestige which allowed it have a prominent place in the stabilization of the state and the consolidation of democracy. Nevertheless, the MFA would eventually succumb to the crisis of governance imposed by social unrest during the second half of 1975. In this article we analyze the rise and fall of this movement of Army officers, how it won popular support and the reasons that explain its collapse, a case study of global relevance due to the prominent role it played in overthrowing the oldest military dictatorship in twentieth-century Western Europe.

military; Armed Forces Movement; Carnation Revolution


ARTIGOS

"Um, dois, três MFA...": o Movimento das Forças Armadas na Revolução dos Cravos – do prestígio à crise

"One, two, three MFA...": the rise and fall of Portugal's Armed Forces Movement (MFA)

Raquel Varela

Instituto de História Contemporânea, Universidade Nova de Lisboa. Av. de Berna, 26-C. 1069-061 Lisboa – Portugal, E-mail: raquel_cardeira_varela@yahoo.co.uk

RESUMO

A 25 de abril de 1974 um golpe de Estado levado a cabo pelo Movimento das Forças Armadas (MFA) põe fim a 48 anos de ditadura do Estado Novo e inicia o período que ficaria conhecido como Revolução dos Cravos. O MFA granjeia de imediato apoio popular e mais tarde um crescente prestígio político que o levará a ocupar um lugar de destaque na estabilização do Estado e na consolidação do regime democrático. Porém, sucumbirá na crise de governação imposta pela tensão social da segunda metade de 1975. Neste artigo analisamos a ascensão e queda desse movimento de oficiais, a forma como ganhou apoio popular e as razões explicativas do seu desmoronamento, um caso de estudo a nível mundial pela participação destacada que teve no derrube da mais longa ditadura militar da Europa Ocidental do século XX.

Palavras-chave: militares; Movimento das Forças Armadas (MFA); Revolução dos Cravos.

ABSTRACT

On 25 April 1974 a coup d'état by the Armed Forces Movement (MFA) put an end to 48 years of the Estado Novo dictatorship in Portugal, starting what would become known as the Carnation Revolution. The MFA immediately attracted public support and later political prestige which allowed it have a prominent place in the stabilization of the state and the consolidation of democracy. Nevertheless, the MFA would eventually succumb to the crisis of governance imposed by social unrest during the second half of 1975. In this article we analyze the rise and fall of this movement of Army officers, how it won popular support and the reasons that explain its collapse, a case study of global relevance due to the prominent role it played in overthrowing the oldest military dictatorship in twentieth-century Western Europe.

Keywords: military; Armed Forces Movement; Carnation Revolution.

Vejamos, por exemplo, o nosso caso: incondicionais sustentáculos do MFA (e não poucas vezes insultados por isso), viemos, com o tempo, a dar-nos conta de que o mesmo MFA entrara numa espécie de reprodução por cissiparidade, de tal modo que, onde antes houvera um, começámos a ver dois, três se não quatro...

José Saramago

membro do PCP, out. 1975

O fim do regime e o MFA

A 25 de abril de 1974 um golpe de Estado levado a cabo pelo Movimento de Capitães, rebaptizado Movimento das Forças Armadas (MFA), põe fim a 48 anos de ditadura do Estado Novo. De imediato o MFA recebe o apoio entusiástico da população de Lisboa, que em menos de uma semana destrói os símbolos do antigo regime. No Quartel do Carmo, em Lisboa, o governo foi cercado; as portas da prisão de Caxias e Peniche abriram para saírem todos os presos políticos; a Pide, a temível polícia política, foi desmantelada, foi atacada a sede do jornal do regime A Época e a censura abolida.

Ninguém esperava porém esse desfecho vertiginoso do mais antigo império colonial. O Partido mais organizado em Portugal à época, que deveria ter em torno de 2 mil a 3 mil militantes,1 o Partido Comunista Português (PCP), preconizava o derrube da ditadura como uma aliança entre as "massas aliadas aos sectores militares progressistas", para combaterem o 'atraso' do país. Porém, o regime cai às mãos não das 'massas' nem dos soldados, mas de um grupo da oficialidade intermédia, reunido no Movimento dos Capitães, que não queria ir mais para a guerra, que consideravam perdida.2 O arrastamento da guerra ao longo de 13 anos sem vislumbre de qualquer solução política no quadro do regime de Marcelo Caetano e a iminência de derrota abriram a crise nas Forças Armadas.3 A revolução é determinada pela combinação da luta anticolonial com a irrupção das lutas na metrópole e vice-versa, a situação na metrópole reforça a legitimidade dos movimentos de libertação nas colónias e precipita a independência destas num curto espaço de tempo (em 19 meses todas as ex-colónias se tornam independentes).

Mais do que uma questão corporativa o surgimento do Movimento de Capitães surge das divisões dentro das classes dirigentes do Estado Novo, do prolongamento da guerra, no quadro de uma crise económica cuja profundidade tinha levado ao fim do sistema de Bretton Woods e ao choque petrolífero de 1973.4 Uma combinação de factores que levam a que a 25 de abril, o MFA, cujos membros eram, na sua maioria, oriundos de sectores intermédios da sociedade, pouco politizados e limitados ao objectivo de pôr fim à guerra, façam um golpe de Estado e entreguem formalmente a direcção do país, através da Junta de Salvação Nacional (JSN), a um sector das elites portuguesas representado por António de Spínola, o general que um ano antes tinha publicado o famoso Portugal e o futuro (Arcádia, 1974) onde aconselhava uma solução política para a guerra.

António de Spínola estava desde o início conotado com uma solução para as colónias de tipo federalista.5 Depois de tentar durante a preparação do golpe impor alterações ao programa do MFA – e ser obrigado a recuar –, afirma, na primeira comunicação ao país da Junta de Salvação Nacional, logo a seguir ao golpe, que a primeira tarefa política da JSN era "garantir a sobrevivência da Nação como Pátria soberana no seu todo pluricontinental".6 No dia seguinte, o Programa do MFA é publicado e afirma que a "política ultramarina do Governo Provisório começava por reconhecer que a solução das guerras no ultramar é política e não militar".7

Em menos de 24 horas o país ficava a conhecer que havia divergências sobre a questão que esteve na origem do golpe: a forma de pôr fim à guerra e a solução para as colónias (Ferreira, 1993, p.21-33). O MFA, independentemente da débil experiência política dos seus membros, era de facto contra a guerra – era isso que tinha motivado a oficialidade intermédia a fazer o golpe.

A Lei da Independência das Colónias e a divisão nos militares

O I Governo Provisório, que toma posse a 16 de maio de 1974, reunindo membros do PCP, dos social-democratas do Partido Socialista (PS) e dos liberais do Partido Popular Democrático (PPD), numa coligação instável e frágil, não resiste mais do que dois meses à intensificação da conflitualidade social, em Lisboa e nas colónias. A sua queda tem sido interpretada por vários investigadores como o resultado, sobretudo, de divisões no seio do governo e do MFA e da Junta de Salvação Nacional sobre a solução para a guerra colonial, em que o general António de Spínola representaria o arrastar da solução para as colónias, numa tentativa de prolongar o domínio português em África, enquanto o MFA, o PCP e o PS queriam a independência das colónias. Kenneth Maxwell (1999), cujos estudos destacam a relação entre o avanço da luta anticolonial e a revolução portuguesa, defende exactamente a perspectiva de que a demissão do primeiro-ministro próximo de Spínola, Palma Carlos, a 9 de julho de 1974, e a do próprio António de Spínola, a 30 de setembro de 1974, são resultado de uma relação estreita entre a política nos dois lugares, geograficamente distantes, porém parte de um mesmo processo histórico e político:

As crises que deslocaram Portugal decisivamente para a esquerda também empurraram a África portuguesa decisivamente para a independência. Elas surgiram como uma série de conflitos por vezes prolongados, em que as tensões políticas em Portugal, os acontecimentos em África e as pressões externas se combinaram para provocar confrontos graves. A maioria dos portugueses politizados estava bem ciente das causas subjacentes a estas crises, embora a imprensa portuguesa não as divulgasse, e quando isso acontecia, fazia-o de forma vaga. Quando as crises terminavam e quando as suas consequências eram visíveis – a demissão do primeiro-ministro Palma Carlos, a 9 de julho, e a nomeação do coronel Vasco Gonçalves para o seu lugar; a demissão do general Spínola, a 30 de setembro, e a sua substituição pelo general Costa Gomes – é que eram publicamente discutidas. Ninguém envolvido nestas crises alguma vez duvidou, contudo, que a forma e o conteúdo do futuro político de Portugal e a conquista da independência das colónias africanas estavam intimamente ligados. O resultado da luta numa esfera iria ajudar a consolidar a vitória ou trazer a derrota da outra. (Maxwell, 1999, p.99)

A guerra tinha levado à queda do regime pela mão do próprio Exército. Prolongar a guerra – o que enfrentaria uma oposição determinada nas colónias e em Portugal – podia significar o detonar de uma dinâmica que se traduzisse num aprofundamento da instabilidade social em Portugal.

Para a independência das colónias contribuem também os factores internacionais: a União Soviética, os Estados Unidos e, com menos poder de influência, a China, queriam a independência das colónias.8 Os movimentos de libertação e dirigentes de países africanos lutavam pela independência; em Portugal, a escalada na conflitualidade social favorecia a independência das colónias. No dia 28 de julho, um dia depois de publicada a lei da independência das colónias, um comunicado conjunto de PS, PCP e PPD9 convoca uma manifestação de apoio ao presidente da República, ao governo e ao MFA para celebrar e apoiar a independência das colónias.

Até fevereiro/março de 1975, altura em que a revolução dos cravos traça um rumo inusitado na Europa ocidental – ocupação de latifúndios, criação e generalização de comissões de moradores, crescimento de comissões de trabalhadores, expropriação das grandes fortunas do país e nacionalização da banca nacional e das companhias de seguros – o MFA mantém-se como uma das estruturas legítimas de direcção do Estado, que granjeia apoio junto da população. Junto do MFA a população pede ajuda para ocupar casas ou terras e é também do MFA que as organizações de trabalhadores e populares aceitam em determinadas condições (caso da greve dos correios de 1974 e da greve da TAP de 1974, ou da manifestação anti NATO de fevereiro de 1975) um nível de repressão que tinham deixado de aceitar às forças policiais como a PSP ou a GNR10 e ao Quadro Permanente das Forças Armadas. O MFA aliás cresce em termos de prestígio e também ganha poder institucional com a assinatura do Pacto MFA/Partidos e mais tarde com a criação do Conselho da Revolução, que dava formalmente aos militares um lugar de destaque na direcção do país.11 Intimamente ligados aos partidos Comunista e Socialista, os militares do MFA desempenham um papel na consolidação das liberdades democráticas, de oposição aos sectores mais conotados com o regime do Estado Novo, mas também, quando chamados a isso, de contenção e repressão das lutas laborais mais radicalizadas, sobretudo através do Copcon, conotado com os sectores mais à esquerda do regime, e tendo como dirigente o principal operacional do 25 de abril, Otelo Saraiva de Carvalho. Nas palavras de Philip Schmitter, a unidade do MFA com o povo era "a pedra angular da sua legitimidade".12

O Prestígio do MFA

Mas como se forma esta unidade que Schmitter considera a pedra angular do Movimento das Forças Armadas?

O MFA guardava para si o imenso prestígio de ter derrubado a ditadura, odiosa, de 48 anos do regime de Salazar. Mas a sua força vai ser também ampliada pela política do PCP, que produzirá efeitos no próprio MFA, reforçando progressivamente o papel deste na direcção do regime, papel a que era chamado ainda pelos outros partidos da coligação, nomeadamente na estabilização do Estado e do aparelho repressivo, caído em desgraça a seguir ao golpe.

Logo a partir de maio de 1974 o PCP, à altura o mais bem organizado dos partidos, e aquele que vai ser determinante na direcção do movimento operário organizado na Intersindical, vai traçar como estratégia a "Aliança Povo-

-MFA", tentando apoiar-se nos militares para levar a cabo o seu programa político. O Partido Comunista Português (PCP) saúda logo a 25 de abril os militares que fizeram o golpe de Estado. A 30 de abril, o carismático líder do PCP, Álvaro Cunhal, regressa do exílio e dá uma conferência de imprensa onde afirma, perante centenas de apoiantes, que "o nosso povo, em aliança com os militares do 25 de abril conduzirão o nosso país pelo caminho da liberdade, da democracia e da paz".13 A 4 de maio, o Comité Central do PCP afirma que: "O prosseguimento do Movimento, pelo menos até às eleições para a Assembleia Constituinte, é uma das condições essenciais para consolidar e ampliar os resultados alcançados e fazer frente com sucesso às conspirações e tentativas contrarrevolucionárias ... Do reforço e da irreversibilidade desta aliança depende a vitória final da democracia em Portugal".14 No discurso de celebração do 1º de maio de 1974, Álvaro Cunhal reafirma que as condições para a vitória da democracia são a unidade das massas e a aliança do povo com as Forças Armadas.15 No primeiro Avante! legal lê-se que essa aliança é uma "questão de vida ou de morte para a revolução democrática".16

Com a aproximação das eleições para a Assembleia Constituinte, marcadas para 25 de abril de 1975, o PCP vai procurar reforçar o MFA na direcção do Estado. Para além de o programa do MFA ser um programa democrático coincidente com o programa do PCP de "revolução democrática e nacional", Álvaro Cunhal já tinha nesse momento a antevisão de que as eleições o iriam colocar numa posição mais fraca em termos de representatividade política. O PCP procurou no MFA um parceiro de direcção, uma forma de reconstruir uma direcção frente-populista, uma vez que tudo indicava – e a direcção do PCP tinha consciência disso – que o PS iria ganhar as eleições com uma margem suficiente para pôr em causa a coligação nos moldes em que tinha funcionado até aí, acelerando a disputa por sectores chave do aparelho de Estado (Ministérios das Finanças, Comunicação Social, Trabalho e Agricultura).

No início de abril de 1975 o PCP dava a conhecer que, para evitar conflitos depois do resultado eleitoral, e como o MFA não tinha representação na Constituinte, havia negociações em curso entre os partidos e o MFA para "se chegar a um acordo sobre o que será no fundamental a democracia portuguesa depois das eleições".17 Como refere Maria Inácia Rezola, o PS, o PPD e o CDS tinham, desde o início, contestado a presença do MFA na Assembleia Constituinte (Rezola, 2006, p.159).

A rapidez com que se desenvolvem as ocupações e greves entre fevereiro e março de 1975 leva todos os partidos prudentemente a apoiar um reforço dos militares no aparelho de direcção do Estado, embora o PS defendesse que esse reforço deveria ser mais matizado. O Partido Socialista, no início de março de 1975 declara, através de Mário Soares, que defende a institucionalização do MFA, mas a "superioridade das eleições".18

A 11 de abril de 1975 tem lugar a cerimónia de assinatura do Pacto entre o MFA e PS, PPD, PCP, MDP, FSP e CDS.19 A extrema-esquerda não assina o Pacto, à excepção da AOC,20 que aderiria mais tarde ao acordo. Os termos da Plataforma do acordo previam o respeito pelo Programa do MFA e defendiam que a futura Assembleia Constituinte deveria ser elaborada de acordo com o presente na Plataforma; reafirmava que não cabia à Assembleia Constituinte fazer nenhum tipo de alteração ao Governo Provisório (c-5); impedia que se pusesse em causa a institucionalização do MFA e obrigava a sua inclusão na nova Constituição (c-6):

Além das disposições que constituem a base deste acordo, a Constituição deverá consagrar os princípios do Programa do Movimento das Forças Armadas, as conquistas legitimamente obtidas ao longo do processo, bem como os desenvolvimentos ao Programa impostos pela dinâmica revolucionária que, aberta e irreversivelmente, empenhou o país na via original para um socialismo português.21

Camaradas, há poucos dias foi estabelecido um acordo entre o MFA e vários partidos políticos. O que é que significa este acordo? No fundamental significa o seguinte: esses partidos comprometem-se na Constituinte a elaborar uma Constituição que reforçará a aliança do Povo com as Forças Armadas ... Nós pensamos que a existência e continuidade do MFA é uma garantia para a liberdade e para a democracia no nosso país.22

O Conselho da Revolução e a crise no MFA

Um falhado golpe de direita, dirigido pelo general Spínola, provoca uma mobilização geral dos trabalhadores e sectores médios da sociedade para impedir o golpe, a 11 de março de 1975. Um dos eixos militares do golpe era o controlo do Regimento de Artilharia Ligeira 1 (RAL 1) de Lisboa pelos paraquedistas. Mas os paraquedistas, depois de algumas horas daquilo que veio a ser considerado um mal-entendido – não sabiam por que tinham saído da unidade com ordens para cercar o RAL 1 – acabam abraçados aos seus camaradas da unidade de artilharia lisboeta, alguns a chorar (não iam participar numa luta 'fratricida').23

Às ruas saem milhares de pessoas, e o próprio Copcon chama à constituição de barricadas. Os sindicatos, impulsionados maioritariamente pelo PCP, mobilizam todo o país para travar o golpe. A capa do Avante! que sai na tarde de 11 de março é "A Reacção não Passará; Unidade POVO-MFA", "Povo Português. Todos para a Rua".24 Nesse mesmo dia 11 de março prosseguem ocupações de fábricas e greves. A TAP, cujos trabalhadores se tinham enfrentado com o governo e o MFA antes de 28 de setembro de 1974, entra em greve geral não só da TAP, mas de todo o movimento aéreo. Os bancários recusam-se a sair das instalações até que seja decretada a nacionalização da banca.

O golpe é derrotado e os seus responsáveis presos. Entre eles vários oficiais e alguns dos homens mais ricos do país, como Jorge de Mello, José Roquette, Jorge Espírito Santo. Começa uma nova fase de ocupação de casas, empresas e fábricas e a mobilização popular aumenta de novo. Num estudo levado a cabo por Durán Muñoz, março de 1975 é o mês com mais conflitos laborais e com mais conflitos laborais com acções radicais.25

Uma das saídas políticas dos partidos da coligação governamental para essa crise vai ser a imediata institucionalização de uma direcção que fosse capaz de conter o avanço social de que o golpe spinolista foi produto mas também motor. O argumento dado por quem esteve a favor do Conselho da Revolução – "proteger o movimento popular dos partidos elitistas, nas palavras de Costa Gomes" (Maxwell, 1995, p.158) – não ocultava que o Conselho da Revolução, que absorveu as funções da Junta de Salvação Nacional, do Conselho de Estado e do Conselho dos Vinte, visava criar um centro de autoridade do Estado (ibidem), transformação que foi apoiada por todos os partidos da coligação, do PCP ao PPD.

No dia 12 de março o Conselho dos Vinte transforma-se no Conselho da Revolução, e a este acrescenta-se uma Assembleia do MFA, nas palavras de Maxwell "um confuso amálgama de funções executivas e legislativas que usurpou boa parte da autoridade que se pretendia para a Assembleia Constituinte" (Maxwell, 1995, p.158). O Conselho da Revolução surge assim como a criação de uma instituição que tivesse duplamente legitimidade popular e força militar para travar a revolução e a duplicidade de poderes e ao mesmo tempo isolar os sectores conotados com a ditadura. Neste sentido é uma instituição essencial na consolidação do regime democrático.

A sua criação não invalidou a escalada de crise no seio do MFA, que brota da ruptura entre o PCP e o PS a seguir ao 11 de março e às eleições de abril de 1975, e que vai levar ao desmembramento do MFA ao longo do chamado 'verão quente' de 1975.

O MFA era uma das direcções da revolução, junto aos partidos políticos, sobretudo o PCP e o PS – os outros partidos, à esquerda e à direita, nunca conseguiram ser uma alternativa de direcção do processo. O MFA tinha algumas vantagens que o colocavam numa posição destacada para estabilizar o Estado durante o processo revolucionário: tinha o prestígio do derrube do regime; o apoio do PCP, o maior defensor da "Aliança Povo-MFA", e o controle das armas. Mas o MFA era uma direcção com muitas fragilidades, a primeira das quais era ser uma direcção castrense, portanto com uma base militar com força para actuar ao nível das cúpulas militares mas com escassa influência no movimento social que caracterizou o país nesse período. Essa força social, que passava pela Intersindical, pelas comissões de trabalhadores e moradores, estava sobretudo nos partidos – o PCP e o PS, e sectores da extrema-esquerda, sobretudo maoistas – e ainda na Igreja, sobretudo no centro e norte do país. O MFA era também socialmente uma organização militar peculiar, com algum grau de homogeneização social oriunda das classes médias:

Um levantamento estatístico revelou que os membros do Movimento dos Capitães eram, do ponto de vista sociológico, de um modo geral filhos da pequena burguesia e das classes médias (alguns da classe operária). Nascidos nos anos 40 (portanto, jovens na faixa dos 30 anos) e com mais de duas comissões de serviço em África (no caso dos majores). Uma maioria relativa (39,4%) provinha de famílias de funcionários públicos, e um outro conjunto significativo pertencia às camadas menos favorecidas: proletários rurais, operários, empregados do sector terciário, artesãos, etc. (20,5%). No início de 1974, havia 4.165 oficiais do quadro permanente no Exército; desse total, 703 participaram no golpe (16,9%). Dos participantes, 73,82% pertenciam à infantaria e à artilharia, e 80,8% eram capitães e majores.26

Era, finalmente, uma direcção em crise permanente, desde o 25 de abril, altura em que começaram as divergências com o sector spinolista e que evoluíram de tal forma que o MFA acabou por afastar em setembro de 1974 o general a quem, cinco meses antes, tinha entregado o poder. Essa instabilidade no seu seio veio reforçar-se durante o período revolucionário – o reforço do MFA no poder do Estado deu-se a par do reforço das divisões internas dentro do próprio MFA, que vai sucumbir à conflituosidade social e à ruptura entre o PS e o PCP.

Ruptura PS-PC e o desmembramento do MFA

Efectivamente até março e abril de 1975, pese embora as diferenças substanciais que se revelaram entre o PCP e o PS, quando da discussão em janeiro de 1975 sobre a institucionalização de uma central sindical única, a Intersindical – que o PCP defendia argumentando que esta asseguraria a unidade dos trabalhadores e a que o PS se opunha defendo o pluralismo sindical como condição da consolação democrática do país –, a coligação governamental, com a participação crescente do MFA consegue assegurar a governabilidade do país. Porém, a partir do segundo semestre de 1975 a coligação desmembra-se, em resultado de vários factores.

A já referida tentativa de golpe falhado, a 11 de março de 1975, liderado pelo general Spínola – cujos dirigentes terão apoio político e financeiro na Espanha franquista –, reflecte um processo de radicalização da revolução. Há greves, ameaças de greve e outros conflitos laborais, entre maio e junho de 1975, nos metalúrgicos, nos químicos, na hotelaria, nos têxteis, nas câmaras municipais, na construção civil, nas minas, electricistas, padeiros, gráficos, TAP.27 As ocupações alastram pelo Ribatejo e Alentejo. As nacionalizações são levadas a cabo em dezenas de grandes empresas. E surgem as ocupações de casas que avançam a nível nacional a um ritmo extraordinário, logo a partir de metade do mês de fevereiro de 1975, em Lisboa, Porto e Setúbal, sobretudo. As casas eram ocupadas e os moradores reuniam-se, tomando decisões tão surpreendentes como exigir a nacionalização da banca ou decidir que a casa vazia se tornava na creche do bairro.28 As comissões de moradores passam a ser, em muitos casos, a base organizativa do movimento social urbano e transformam-se, ainda na análise de Chip Dows, num "verdadeiro duplo poder ao nível da cidade".29

Em resposta à tensão social, o governo vê-se obrigado a actualizar o salário mínimo e a aprovar medidas de contenção de preços dos bens alimentares, isso depois da realização de manifestações ao longo do mês de março contra a "carestia de vida".30 Em muitas empresas manter-se-á a produção, os postos de trabalho, e em muitas outras obtêm-se aumentos salariais, generalização do contrato colectivo, subsídio de férias, subsídio de Natal. Também foram conseguidas melhorias generalizadas ao nível da previdência, assistência na maternidade, doença e invalidez. É nesse período que os trabalhadores conseguem o subsídio de desemprego.

Esses factos, combinados com a derrota do golpe de 11 de março de 1975, vão provocar a transformação de uma crise de regime numa crise geral do Estado, traduzindo-se na maior crise governativa da revolução, com a saída do PS e mais tarde do PPD (liberais) do IV Governo, o que leva à sua queda em julho de 1975 e à Constituição do frágil V Governo a 8 de agosto de 1975. O PS desloca-se da aliança com o PCP em direcção a um amplo bloco social que reúne sectores da direita e da Igreja – e o PCP fica sozinho, restando-lhe como aliados sectores em que o partido não confiava ou não controlava, como sectores da esquerda militar e parte da extrema-esquerda. A par da crise política surgem as divisões, que se vieram revelar insanáveis, no seio do próprio MFA.

Para tentar fazer o PS recuar e repor a coligação anterior, o PCP vai usar vários recursos tácticos, entre eles a criação de medidas de controlo militar sobre o movimento operário. Essa tentativa de militarização do trabalho é traduzida no Documento Guia Povo-MFA,31 que previa uma organização suprapartidária em que o MFA e outros órgãos do aparelho de Estado "apoiam" as assembleias populares e o Conselho da Revolução é o "órgão máximo de soberania nacional".32 Era uma tentativa de militarização da força de trabalho que tentava colocar os trabalhadores e todos os órgãos de poder popular sob o controle do MFA e em particular do Conselho da Revolução. Mas nunca passou de um projecto, porque no quadro da revolução portuguesa, com a crise no Exército, era, de partida, um esboço menos ambicioso – provavelmente alicerçado num certo namoro do MFA pelas teorias à altura chamadas 'terceiro-mundistas'.

Outra das tentativas de estabilização social vai ser a política da batalha da produção,33 a qual passava por impedir todos os entraves à manutenção da produção, quer esses entraves viessem de sectores da burguesia (sabotagem económica, descapitalização de empresas) quer viessem dos sectores operários (greves e revindicações, nomeadamente salariais). Apesar dos esforços, porém, a política da 'batalha da produção' não conseguiu nem apaziguar as lutas laborais nem inverter o processo de desinvestimento em Portugal. Entre abril de 1974 e novembro de 1975 o número de desempregados, em grande medida devido ao impacto ainda da crise de 1973, sobe de 40 mil para 320 mil.34 Em Portugal, a taxa de variação do Produto Interno Bruto passa de 11,2% em 1973 para 1,1% em 1974 e -4,3% em 1975. A deterioração das condições económicas era um dos factores objectivos de agravamento da crise de Estado. Em junho de 1975, a diplomacia inglesa, em documentos confidenciais, descreve desta forma a situação política em Portugal:

A situação em Portugal para os investidores continua a deteriorar-se ... As principais dificuldades continuam a ser os aumentos sucessivos de salários, drásticos problemas laborais e uma queda acentuada na produtividade. Em muitos casos os gestores e empresários sofrem intimidação física por parte das comissões de trabalhadores – ou foram fechados nas suas instalações ou receberam ameaças por telefone. A atitude das autoridades portuguesas tem sido frequentemente vaga e muito ineficiente. Na verdade, até houve um caso em que discussões confidenciais entre as empresas britânicas e as autoridades portuguesas foram parar à comissão de trabalhadores.35

No dia 10 de julho de 1975, o PS decide abandonar formalmente o IV Governo Provisório.36 Oficialmente a razão apresentada é o diferendo em torno do conflito do caso República que vai opor a extrema-esquerda, o PCP e o PS, o qual acusa o PCP de querer ter um domínio ditatorial sobre os meios de comunicação. O peso crescente do PCP em inúmeras estruturas do Estado e o controle directo ou a influência política nessa altura, sobre a maioria dos jornais diários, era evidente. Porém, o caso do República não era o mais óbvio de domínio comunista da comunicação social. Melo Antunes, em conversa com o primeiro-ministro britânico, defende que "Os comunistas foram de facto ultrapassados pelos trabalhadores que foram mais para a esquerda", segundo Melo Antunes porque os maoistas, apesar de oriundos da "burguesia e com educação universitária, conseguiram penetrar profundamente entre os trabalhadores".37

Mas o pretexto sustentava-se numa situação real – evitar a escalada revolucionária, assumindo o PS que a estratégia de suportar um governo de frente popular com os comunistas tinha que ser reequacionada. O PCP será acusado pela direcção socialista de querer implantar em Portugal uma ditadura comunista e o PS assume-se agora como a direcção capaz de resgatar a liberdade das malhas da colectivização, do controlo sindical, do anticatolicismo, da ditadura dos meios de comunicação social,38 procurando dessa forma consolidar o apoio dos sectores intermédios da sociedade portuguesa. A campanha anticomunista estrutura-se nesse verão quente,39 apoiada não pela disposição do PCP em dirigir uma transição ao socialismo em Portugal mas pela disputa entre PCP e PS sobre as posições chave no aparelho de Estado e militar e pelo descontrole cada vez maior sobre o movimento operário, popular e estudantil.

A Comissão Política do PCP considera a decisão do PS de abandonar o governo de 'grande gravidade'; responsabiliza o PS e a sua campanha anticomunista por ela, recusa a formação de um governo de direita, sem os comunistas; apela ao PS para reconsiderar e recusa "energicamente as calúnias que o acusam de assaltar o poder", reivindicando a trajectória democrática do partido.40

"Um, Dois, Três MFA..."

No dia 25 de julho de 1975, a Assembleia do MFA reúne-se e da reunião sai a proposta de constituição de um triunvirato, constituído por Costa Gomes, Vasco Gonçalves e Otelo Saraiva de Carvalho, para tentar pôr fim à crise. O PCP apoia essa decisão e caracteriza que o "inimigo principal" continua a ser a "reacção", pelo que são precisas soluções que façam "respeitar a ordem democrática".41

Nas negociações para a formação do V Governo, Vasco Gonçalves procurará fazer um governo plural, dentro da órbita da esquerda, mas sem sucesso. A 29 de julho de 1975, Melo Antunes abandona a pasta dos Negócios Estrangeiros; no dia imediato, é seguido por Jorge Sampaio e João Cravinho, do MES (Movimento de Esquerda Socialista). A 4 de agosto de 1975 é a vez de Otelo Saraiva de Carvalho, próximo da extrema-esquerda, recusar o apoio do Copcon a um governo 'forte' liderado por Vasco Gonçalves.42 No dia 8 de agosto dá-se a tomada de posse do V Governo. Nesse mesmo dia, um grupo de militares próximos do PS – Melo Antunes, Vasco Lourenço, Sousa e Castro, Vítor Alves, Pezarat Correia, Franco Charais, Canto e Castro, Costa Neves e Vítor Crespo – torna público um documento que dizia recusar "o modelo de sociedade socialista de tipo Europa Oriental" e rejeitar o modelo "de sociedade social-democrata em vigor na Europa Ocidental", publicado na véspera, tarde, numa edição especial do Jornal Novo (Rezola, 2006, p.352-353). Fica conhecido como Documento dos Nove. O mesmo jornal publica nesse dia uma nota de Mário Soares exigindo a demissão de Vasco Gonçalves (ibidem).

Quando finalmente o V Governo toma posse, nesse mesmo dia 8 de agosto de 1975, já não tem condições sociais para governar.

O V Governo, chefiado por Vasco Gonçalves, é composto por militares, independentes e membros do MDP/CDE, mas politicamente só tem o apoio formal do PCP e do MDP/CDE. Não é clara a relação do PCP com os militares ligados ao V Governo, uma vez que a única fonte disponível, por enquanto, são entrevistas, cuja veracidade não podemos atestar noutro tipo de fontes, e porque muitas vezes a relação política dos militares com o Partido Comunista não se traduzia numa relação orgânica. Sabemos que o V Governo cairá sem grande resistência dos membros do próprio governo – desde logo de Vasco Gonçalves, que apoia a política do PCP –, e também sabemos que a queda do V Governo provoca o agravamento da tensão entre a esquerda militar e o PCP.

Quando toma posse, Vasco Gonçalves faz um apelo à reconciliação e à unidade das Forças Armadas,43 mas Costa Gomes fala explicitamente numa solução 'transitória' (Rezola, 2006, p.347). É um governo apoiado, antes de mais, pela esquerda militar e por uma parte importante da extrema-esquerda. O apoio do PCP é, desde o dia da tomada de posse, esquivo, e o Partido iniciará a partir desse período um processo de crescente ruptura com a esquerda militar, que não controla na totalidade e de quem desconfia.44

O comunicado45 sobre a formação do V Governo da comissão política do comité central do PCP, feito a 8 de agosto de 1975, ressalta a urgência de preencher o vazio político como a principal causa da formação do V Governo ("não deixar paralisar a máquina do Estado"); responsabiliza o PS por ter abandonado a coligação governamental; deixa em aberto a recomposição do governo para "alargar a base de apoio social e político do poder", defende a rápida resolução das divisões no MFA e a complementaridade entre MFA e governo, reafirma que o PCP está pronto a lutar 'pelo socialismo' e 'as liberdades'. Em contraste com os comunicados de início de julho,46 em que se ameaçava com a possível marginalização do PS, o comunicado termina dizendo que o PCP está pronto para rever a composição do governo, sem quaisquer discriminações:

Face aos perigos que cercam a revolução, a hora é de acção vigorosa e decidida e ao mesmo tempo de exame de busca conjunta de soluções para os grandes problemas que se defrontam. Pela sua parte, o PCP está pronto a proceder a um tal exame com todas as forças interessadas no processo revolucionário, sem quaisquer discriminações ou exclusões.47

O Avante!, jornal oficial do PCP, nunca teve uma capa de explícito apoio ao V Governo ou a Vasco Gonçalves, mas sai um Avante! especial de questionamento desse mesmo governo. O jornal, semanal, que sai no dia 7 de agosto de 1975, tem como eixo a defesa do PCP face aos ataques de que está a ser alvo nas suas sedes;48 volta a sair uma semana mais tarde centrado no mesmo assunto.49

No meio, a 11 de agosto, é publicado um número especial do jornal50 do partido onde vem parte do relatório de Álvaro Cunhal ao comité central extraordinário de 10 de agosto, em que o líder comunista questiona a viabilidade do V Governo. Nesse relatório Cunhal explica, numa passagem só mais tarde publicada integralmente, que "pensámos já nesse momento [antes da constituição do Governo] guardar um campo de manobra política para o nosso partido que não nos atrelasse necessariamente a uma previsível queda do governo de Vasco Gonçalves".51

No informe de Álvaro Cunhal ao Comité Central pode ler-se que o partido considera que a crise actual está em risco de terminar numa guerra civil, num confronto armado, que o PCP não quer. Cunhal afirma que a crise atinge todos os níveis da sociedade: é uma crise política, económica, militar, social e no processo de descolonização (refere-se à guerra civil em Angola). O líder do PCP define como prioritária a constituição de uma solução política que reponha no essencial a forma de coligação governamental anterior e a estreita coordenação desta com o MFA. Pede aos militantes que ponham fim ao "sectarismo" e "distingam o inimigo principal", as "forças fascistas e fascizantes", das "forças hesitantes acerca do processo revolucionário e do caminho para o socialismo". A condição para um novo governo deverá ser em primeiro lugar a disposição para "cooperar com os comunistas", ou seja, a manutenção do PCP no governo de coligação, e o fim da violência sobre o PCP.

O informe assevera que não pode haver um regime democrático sem o PCP, mas admite que o PCP, "confiante na sua força, não a sobrestima entretanto". Exige-se o saneamento no aparelho de Estado (nos sectores dos tribunais, diplomacia etc.) e a formação de um governo que seja eficiente e operativo (estas são definidas como "as tarefas prioritárias e urgentes"). As "outras tarefas urgentes" incluem uma política de austeridade, controle do deficit, solução dos problemas dos sectores industriais em crise, desenvolvimento da batalha da produção, restrição das importações e aumento das exportações; defende ainda o processo de nacionalizações e de reforma agrária; no campo internacional, propõe-se a manutenção de boas relações com os países do Mercado Comum, a Espanha, e o respeito pelos tratados internacionais de que Portugal é signatário, bem como boas relações com os países de "terceiro mundo"; quanto à descolonização, o PCP defende um governo que contribua para resolver a situação em Angola, apoiando o MPLA. Finalmente, no domínio social, Cunhal defende que, dentro de uma política de "reivindicações comportáveis", é urgente atender os sectores laborais onde há mais crise.

Embora sem hostilizar publicamente, na parte do informe que é publicada no Avante!, são evidentes os recados para a esquerda militar não tentar uma via golpista de tomada do poder, por um lado, e repor a governação com os socialistas por outro:

Sob pretexto do respeito pela vontade das massas, o basismo e o democratismo, a submissão das decisões da vanguarda a votações manipuladas, procuram enfraquecer, desorganizar e finalmente liquidar a vanguarda. Trata-se também de uma situação geral, válida tanto para a vanguarda operária e popular como para a vanguarda militar ... Todas as revoluções têm um processo irregular e acidentado. A maleabilidade, a capacidade para reexaminar e rectificar, a coragem autocrítica ... são condições essenciais duma política verdadeiramente revolucionária.

Pela sua parte, o PCP está pronto a examinar a situação e formas de cooperação com todos os que estão com o processo revolucionário e dispostos a cooperar com os comunistas. Sob estas condições básicas, "não fazemos quaisquer discriminações".52

No informe o líder comunista admite ainda que sem estar resolvida a questão militar, o V Governo era um governo falhado à partida, que iria fragilizar o PCP:

Todo o esquema das forças conservadoras e reaccionárias era mostrar este governo como o governo dos comunistas, sem apoio militar e deixá-lo cair depois. O fracasso deste governo seria o fracasso do Partido Comunista, que seria arrastado nesta derrota com todas as suas consequências.53

Como referimos, este informe, que mais tarde será publicado na íntegra, omite as passagens em que Álvaro Cunhal afirma já esperar a queda do governo (ibidem, p.127-166) e reconhece a debilidade do MFA: "A Constituição do Directório significa neste momento que o MFA está a decapitar-se, que não tem uma direcção homogénea..." (ibidem).

Cunhal esforça-se por isso em convencer o partido de que o Grupo dos Nove é uma força que "pode ser recuperada para o processo revolucionário" (ibidem, p.162) e que não vai apoiar a esquerda militar e ainda que há o risco de este sector se voltar contra o partido:

A esquerda militar ficou bastante animada (a nosso ver sem razão) com a decisão que foi tomada pelo Directório no sentido de que os conselheiros signatários do Documento Melo Antunes fossem afastados do Conselho da Revolução ... Se o problema já era grave ao nível político, dada a posição contra o processo revolucionário do Partido Socialista e do PPD, se já era grave por isso, a gravidade ainda é maior pela situação interna do MFA onde estão em conflito a esquerda militar e o grupo dos Nove e onde existe um sector esquerdista e anarquizante que dificulta a unidade das forças progressistas. Isto significa a hipótese, cuja necessidade pode não se confirmar, mas uma hipótese de lançamento de certas pontes com forças ou elementos que estão colocados hoje num sector que contraria o processo. Isto ao nível civil e ao nível militar. E acontece mesmo que certa parte militar, que podemos ter como progressista, se volte contra o partido ou deixe o partido isolado. (ibidem, p.127-166)

O primeiro-ministro Vasco Gonçalves acredita que chefia um governo frágil quando na tomada de posse dos secretários de Estado do V Governo afirma que não está "agarrado ao lugar" e que, "nem que fosse por um minuto apenas que este governo tomasse posse, nem por isso os seus membros deixariam de o fazer" (Gonçalves, 1977, p.377). Mas o seu balanço posterior ombreia com a versão da história oficial do PCP. Vasco Gonçalves não é um homem amargurado com o PCP, que se sinta abandonado pelo Partido Comunista, mas alguém que acredita que um projecto a la Nasser era viável para Portugal e que a correlação de forças não o permitiu naquele Verão de 1975. Um militar que acredita ter cumprido o dever de ter encabeçado um governo para o país não ficar paralisado.54

Tampouco o PCP se vai enfrentar com a esquerda militar, sem tentar atenuar todos os danos do afastamento desse sector. Apesar de não poder continuar a apoiar-se na esquerda militar, ou pelo menos em parte dela, para a sua política, o PCP quer manter uma margem de manobra nas negociações para a formação do VI Governo e, dentro do possível, no desenho político e institucional do futuro regime. Nos comícios públicos das duas semanas seguintes à constituição do V Governo, o PCP, afirmando-se determinado a recompor o governo, não deixa de dizer que "apoiou e continuará a apoiar o V Governo" (Lisboa, 14 ago. 1975) e que "o governo vai continuar a governar" (Évora, 24 ago. 1975).55 O partido participa nas manifestações de apoio ao V Governo e a Vasco Gonçalves, cujos maiores entusiastas são também alguns sectores da extrema-esquerda.

Mas o desenlace estava já determinado a 10 de agosto. Cunhal pede ao comité central que deixe aos órgãos executivos espaço para decidir e "conservar margem de iniciativa, inclusivamente de negociações" num eventual golpe militar vindo de sectores moderados do MFA e do PS ou de uma situação em que esse sector ganhe a iniciativa política.56

No dia 20 de agosto, Cunhal em conferência de imprensa declara que um governo de coligação do MFA e principais partidos políticos foi justamente considerado o sistema de alianças mais adaptado à correlação e arrumação das forças de classe.57 E irá mais longe ao afirmar que se podem combinar os documentos das várias fracções militares. Na conferência de imprensa do dia 29 de agosto, às 11 da noite, Álvaro Cunhal diz que está disposto a reunir-se com o PS, o Grupo dos Nove e o Copcon, para encontrar uma solução governativa.

Notas conclusivas

No dia 5 de setembro de 1975, o Grupo dos Nove consegue afastar Vasco Gonçalves e isolar a esquerda militar na Assembleia do MFA – que vai ficar conhecida como a Assembleia de Tancos – e no Conselho da Revolução, invertendo nessas estruturas – mas não nos quartéis – a correlação de forças a favor do Grupo dos Nove. Na Assembleia determina-se a reestruturação do Conselho da Revolução: os gonçalvistas e a esquerda militar, até aí maioritários, ficam com três elementos; o Grupo dos Nove, com sete. Fazem parte ainda Pinheiro de Azevedo e Morais da Silva, cada vez mais do lado do Grupo dos Nove (Rezola, 2006, p.399), e Otelo e Costa Gomes, o primeiro com uma posição titubeante, e o segundo, um árbitro das várias fracções que politicamente acabará tomando posição ao lado dos Nove também. É o início de um processo de recomposição da hierarquia das Forças Armadas.

O pilar de sustentação do Estado na revolução, o MFA, cai, em agosto de 1975, arrastando consigo a estabilidade – que com crises tinha sido apesar de tudo mantida – das Forças Armadas, abrindo espaço à intensificação da indisciplina militar. A revolução eclode definitivamente nos quartéis, com a progressiva organização dos soldados nas comissões de soldados, pela mão dos Soldados Unidos Vencerão (SUV), da Polícia Militar, das Assembleias Populares, das manifestações contra os saneamentos levados a cabo pelo Grupo dos Nove.

Saramago escreverá em outubro de 1975 sobre a ruptura dessa política:

Vejamos, por exemplo, o nosso caso: incondicionais sustentáculos do MFA (e não poucas vezes insultados por isso), viemos, com o tempo, a dar-nos conta de que o mesmo MFA entrara numa espécie de reprodução por cissiparidade, de tal modo que, onde antes houvera um, começámos a ver dois, três se não quatro...58

Efectivamente, o afastamento político da esquerda militar vai levar a um rearranjo das forças entre todo o MFA, que se desfaz em três grupos.

Um primeiro, que resulta de uma aliança do PS, do Grupo dos Nove e de toda a direita que procura criar uma direcção sólida (o Conselho da Revolução depois de Tancos) que vai promover centenas de saneamentos e transferências/substituições no Exército para eliminar a indisciplina nos quartéis, direcção que vai organizar e preparar um golpe militar que se vai dar a 25 de novembro de 1975, iniciando a consolidação do regime democrático-liberal em Portugal; um segundo grupo que resulta da esquerda militar que tinha estado com o PCP até ao V Governo, um grupo de militares claramente enamorados pelas teorias terceiro-mundistas, que preconizavam uma via putshista para 'chegar ao socialismo' e que se apoiavam numa fórmula mais ou menos espontânea de dualidade de poderes nas Forças Armadas, que resulta da crise do MFA e do próprio deslocamento da esquerda militar do PCP; e finalmente um terceiro grupo, que resulta dos militares afectos à política da direcção do PCP, que procura reconstruir o MFA com a relação de forças antes de Tancos e repor a coligação governamental PS-PCP-MFA. Os 3 meses que se seguem, entre Tancos e o 25 de novembro, são marcados pela luta entre essas forças militares e políticas.

É consensual entre a historiografia portuguesa que Portugal estava, durante o VI Governo, a viver uma crise político-militar e que o desfecho da revolução se aproximava (Ferreira, 1993; Maxwell, 1999; Rezola, 2006). Reservadas quanto à estruturação de modelos teóricos explicativos, muitas obras focam-se nos dados empíricos do processo, que todos consideram indiscutíveis: crise no MFA, indisciplina militar, VI Governo com forte contestação social, multiplicação de acontecimentos que previam um desfecho rápido da revolução (manifestações de soldados, generalização da ocupação de terras, atentado ao primeiro-ministro, ocupação dos emissores de rádio e televisão pelo governo, cerco à Assembleia da República, paralisação do governo), acontecimentos que ficaram delimitados por aquilo que se convencionou chamar de 'psicose golpista', ou seja, a existência de rumores e ameaças permanentes de um golpe de Estado, que se vai efectivar em novembro.

A 12 de novembro de 1975, uma grande manifestação de operários da construção civil, algumas dezenas de milhares, cerca o Palácio de São Bento, em Lisboa, onde se reunia a Assembleia Constituinte. O cerco dura dois dias. A manifestação, que começa por centrar-se nas reivindicações laborais do sector da construção civil e que se radicaliza pela recusa do Ministério do Trabalho em receber os trabalhadores, converte-se rapidamente numa mobilização contra o VI Governo. Uma demonstração de força dos trabalhadores que questionam a própria Assembleia Constituinte, ao sitiar o seu local de reunião e sequestrar os deputados aí reunidos.

Em resposta o governo decide suspender funções, a 20 de novembro de 1975. O almirante Pinheiro de Azevedo, primeiro-ministro, no seu estilo frontal e indiscreto, responde a uma jornalista que o tinha questionado sobre a situação militar: "A situação, tanto quanto eu sei, continua na mesma: primeiro fazem-se plenários e depois é que se cumprem as ordens!".59

Cinco dias depois um golpe liderado pelo PS, a nível civil, pelo Grupo dos Nove e pela direita militar e com o apoio da Igreja, bem como com a aceitação da não resistência ao golpe por parte do PCP (Varela, 2011), vai pôr fim à indisciplina militar nos quartéis. O plano visava pôr fim ao processo revolucionário em curso, e, nas palavras de Manuela Cruzeiro, substituí-lo por um "processo constitucional em curso".60

NOTAS

Artigo recebido em 17 de agosto de 2011.

Aprovado em 19 de abril de 2012.

Referências bibliográficas

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  • 4 "A adaptação do regime a tais aspirações [diversificação da produção, associação de capital estrangeiro, tecnologia moderna, esbarram na falta de mão de obra, na baixa produtividade e no impasse político], a 'liberalização' e a reconversão da relação colonial clássica em neocolonial foram, no entanto, bloqueadas nos anos 70, principalmente pelos limites estreitos impostos pela guerra colonial (contra os movimentos de libertação) e pelos grupos mais rigidamente ligados aos interesses coloniais (por exemplo, Espírito Santo) e, secundariamente, pela persistência de forças ideológicas e/ou reaccionárias (ligadas à terra, ao comércio tradicional e condicionamentos clássicos)". SANTOS, Maria de Lurdes; LIMA, Marinús Pires de; FERREIRA, Vítor Matias. O 25 de Abril e as lutas sociais nas empresas Porto: Afrontamento, 1976. 3v. p.16.
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  • 1616 "Os Comunistas no Governo Provisório". Avante!, série VII, 17 maio 1974, p.2.
  • 17 CUNHAL, Álvaro. Discursos (4). Lisboa: Avante!, 1975, p.45.
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  • 1919 MDP (Movimento Democrático Popular – frente eleitoral do PCP); FSP (Frente Socialista Popular, cisão do PS), CDS (Centro Democrático e Social, conservador, democracia cristã
  • 20 Aliança Operário Camponesa, uma organização maoista.
  • 2121 "1ª Plataforma de Acordo Constitucional". Disponível em: app.parlamento.pt/LivrosOnLine/Vozes_Constituinte/med01100000j.html.
  • 22 CUNHAL, Álvaro. Discursos (4) Lisboa: Avante!, 1975. p.67.
  • 23 SOLANO, José; FURTADO, Joaquim. Portugal 74 -75. In: 25 DE ABRIL: 30 anos. DVD n.4. Lisboa: Público, 2004.
  • 24 Avante!, série VII, 11 mar. 1975.
  • 25 MUÑOZ, Duran. Contención y Transgresión: las movilizaciones sociales y el Estado en las transiciones española y portuguesa. Madrid: CPPC, 2000. p.107.
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  • 31 NEVAS, Orlando (Org.) Textos históricos da Revolução. Lisboa: Diabril, 1976. p.50-51, cit. por REZOLA, Inácia. Os militares na Revolução de Abril Lisboa: Campo de Comunicação, 2006. p.276; CUNHAL, Álvaro. A Revolução Portuguesa: passado e futuro. Lisboa: Avante!, 1994. p.177; "Nota sobre a assembleia do MFA de 8 de Julho". Comissão Política do CC do PCP, 9 jul. 1975.
  • In: DOCUMENTOS DO CC DO PCP. v.3, jul.-dez. 1975. Lisboa: Avante!, 1975.
  • 32 NEVAS, 1976, p.50-51, cit. por REZOLA, 2006, p.276.
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  • 34 LOPES, José da Silva. A economia portuguesa desde 1960 Lisboa: Gradiva, 1999.
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  • 36 "O caso do jornal Republica", Avante!, série VII, 22 maio 1975, p.5.
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  • 38 "Mário Soares com a Imprensa". Diário de Lisboa, 7 maio 1975, p.1.
  • 39 "A estruturação do anticomunismo terrorista baseou-se em quatro componentes: o apoio da hierarquia eclesiástica, cujo epicentro foi o episcopado de Braga; a ajuda operacional, técnica e económica de Espanha, que além disso proporcionava uma retaguarda segura; a colaboração com os militares contrários ao 25 de Abril, que vertebraram todo o movimento tornando-o eficaz; e por último a concordância de todas as forças políticas desde os socialistas até à direita, maioritárias no distritos do centro e norte do país". CERVELLÓ, Josep Sánchez. A Revolução Portuguesa e a sua Influência na Transição Espanhola (1961-1976) Lisboa: Assírio e Alvim, 1993. p.237.
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  • 41 "Nota da Comissão Política", de 27 jul. 1975. Avante!, série VII, 31 jul. 1975, p.4.
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  • 48Avante!, série VII, 7 ago. 1975, p.1.
  • 49Avante!, série VII, 14 ago. 1975, p.1.
  • 50Avante!, série VII, 11 ago. 1975, n. especial, p.1.
  • 51 "Intervenção na reunião plenária do CC do PCP", 10 ago. 1975. In: CUNHAL, Discursos Políticos 5, 1976, p.139.
  • 52Avante!, série VII, 11 ago. 1975, n. especial, p.2.
  • 53 "Intervenção na reunião plenária do Comité Central do PCP", 10 ago. 1975. In: CUNHAL, Discursos Políticos 5, 1976, p.139.
  • 54 CRUZEIRO, Maria Manuela. Vasco Gonçalves: um general na Revolução. Lisboa: Ed. Notícias, 2002.
  • 55 "Discurso no comício do PCP em Évora", 24 ago. 1975. In: CUNHAL, Discursos Políticos 5, 1976, p.189.
  • 56 "Intervenção na reunião plenária do Comité Central do PCP", 10 ago. 1975. In: CUNHAL, Discursos Políticos 5, 1976, p.156-157.
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  • 58 "A Distância como Política", 8 out. 1975. In: SARAMAGO, José. Os Apontamentos Lisboa: Caminho, 1990. p.314.
  • 59 Arquivo da RTP. Disponível em: www.youtube.com/watch?v=6DB42QUJYSM; Acesso em: 19 jan. 2009.
  • 60 CRUZEIRO, Maria Manuela. "25 de Novembro: Quantos Golpes Afinal?". Comunicação apresentada no Colóquio sobre o 25 de Novembro, realizado no Museu República e Resistência, 2005. Disponível em: www1.ci.uc.pt/cd25a/wikka.php?wakka=th10; Acesso em: 28 nov. 2010. p.1.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Ago 2012
    • Data do Fascículo
      2012

    Histórico

    • Recebido
      17 Ago 2011
    • Aceito
      19 Abr 2012
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