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“Uma menina baiana, que sabe amar sua pátria”: imprensa e gênero na época da Independência do Brasil

“A Bahian Girl Who Knows How to Love Her Homeland”: Press and Gender at the Time of Brazil’s Independence

RESUMO

Entre 1820 e 1823, o Brasil vivenciou o que tradicionalmente ficou conhecido como processo da independência. Em meio às disputas políticas, a imprensa teve uma participação ativa como tribuna pública, representando as ideias de seus editores e do segmento ideológico por eles representado. Este artigo analisa o discurso político presente nas páginas do jornal O Brasileiros em Coimbra, editado em Portugal pelo baiano Candido Japiassú. Para tanto, usamos como referência o conteúdo de uma carta publicada no jornal por uma baiana anônima identificada somente como “F”. A própria dinâmica do universo feminino da família Figueiredo e Melo, e a subjetividade do olhar de “F” sobre a guerra de independência na Bahia, podem ser analisadas com base no diálogo das diferentes escalas de análise entre o micro e o macro, em direta sintonia com a proposta metodológica da micro-história.

Palavras-chave:
Imprensa; Gênero; Independência do Brasil

ABSTRACT

Between 1820 and 1823, Brazil experienced what was traditionally known as the independence process. During political disputes, the press served as an active platform, conveying the ideas of its editors and representing the ideological segments they espoused. This article analyzes the political discourse present in the pages of the newspaper O Brasileiros em Coimbra, edited in Portugal by Bahian Candido Japiassú. To do so, we use as a reference the content of a letter published in the newspaper by an anonymous Bahian woman identified only as “F”. The very dynamics of the feminine universe of the Figueiredo e Melo family and the subjectivity of “F”’s view of the war of independence in Bahia can be analyzed based on the dialogue of the different scales of analysis between the micro and the macro, in direct harmony with the methodological proposal of microhistory.

Keywords:
Press; Gender; Independence of Brazil

UMA FAMÍLIA DE MULHERES

João Ladislau de Figueiredo e Mello nasceu na vila de Cachoeira, no Recôncavo baiano, em junho de 1772, filho de Leandro de Figueiredo e Ana Maria Barbosa de Melo. Aos treze anos, iniciou sua formação letrada no Mosteiro Beneditino em Salvador (Silva, 1866SILVA, Evaristo Ladislau e. Recordações-biographicas do Coronel João Ladisláu de Figueirêdo e Mello. Bahia: Tip. de Camillo de Lellis Masson & Cia., 1866.). Em 14 de julho de 1789, recebeu em Lisboa Carta de Pharmacia, tornando-se boticário, função que desempenharia na Bahia com grande zelo e que lhe traria grande riqueza. Entre fins do século XVIII e início do XIX, seu nome aparece em destaque tanto relacionado aos acontecimentos de 1797, que compreendem os debates intelectuais que anteciparam o movimento de 1798, conhecido como Revolta dos Búzios, quanto em 1821, quando os ventos da Revolução liberal do Porto alcançaram a Bahia. No que se refere à Guerra de Independência na Bahia, em julho de 1822 D. Pedro nomeou o militar francês Pierre Labatut para o posto de chefe do Exército Libertador, e Figueiredo e Mello colocou sua fortuna à disposição do militar francês. Anos depois, sua filha Roza Ladislau vai incluir Januária Labatut em seu testamento; os pais de ambas se tornaram grandes amigos. Em 1824, logo depois da consolidação do Império do Brasil, foi eleito membro do Conselho de Governo, e mais tarde também iria compor o Conselho Geral da Província (Oliveira, 2016OLIVEIRA, Nora de Cassia Gomes de. Elites Políticas no Império: Bahia, 1828-1834. In: ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA - ANPUH-PB, XVII, 2016, João Pessoa. Anais. João Pessoa, v. 17, n. 1, 2016. pp. 1032-1045., p. 1042). Faleceu em 1856. É justamente dos descendentes desse relevante personagem que deriva toda a história que vai ser contada neste artigo.

Chama a atenção, em uma breve pesquisa sobre os descendentes de João Ladislau de Figueiredo e Mello, o protagonismo quase que exclusivo das mulheres da família. Não obstante tenha tido filhos homens, o destaque foi para as quatro filhas: Joanna, Roza, Anna e Virginia. Joanna, a primogênita, casou-se em 1812 com o também farmacêutico Vitorino dos Santos Silva, que herdaria do sogro, de quem era discípulo na arte da farmácia, em 1821, a Botica do Hospital Militar. Joanna faleceu em 1822. Roza, nascida em 1794, tornou-se a herdeira direta do pai. Com a morte de Joanna, Roza e Anna seguiram os passos do pai atuando como farmacêuticas, contudo, depois do casamento de Anna com Antônio Joaquim Álvares do Amaral, somente Roza ficou à frente do laboratório e da expedição do receituário da Botica paterna. Certamente que esta condição posicionou Roza como o grande centro de poder do clã.

Um importante documento para entendermos a condição de centralidade que aparentemente Roza Ladislau de Figueiredo e Mello desempenhou no seio da família é o seu testamento. Com base em suas páginas é possível traçar uma pequena trajetória de uma mulher do século XIX, que, ao fazer seu testamento sem apresentar ascendentes vivos ou descendentes diretos, nos permite pôr em relevo histórias individuais relevantes que ficariam às margens de uma perspectiva histórica macro e estrutural. Os testamentos são fontes que nos ajudam a compreender aspectos econômicos, mas também sociais e mentais. Talvez as entrelinhas de um testamento possam se enquadrar no conceito de “excepcional normal” de Edoardo Grendi, segundo o qual “o documento excepcional pode ser extraordinariamente ‘normal’, precisamente por ser revelador” (Precioso, 2019PRECIOSO, Daniel. Edoardo Grendi e Giovanni Levi: da Antropologia à Microanálise Histórica (1977-1985). Revista de Teoria da História, v. 21, n. 1, pp. 132-167, 2019., p. 152).

O testamento de Roza nos revela uma mulher nascida em 1794, que escreveu seu testamento aos 66 anos, segundo ela, “estando em meu perfeito juízo; mas não sabendo quando Deos queira chamar-me deste mundo” (Livro de Registro de Testamento, 1874LIVRO DE REGISTRO DE TESTAMENTO. Seção de Arquivo Judiciário; Rosa: Livro 49, p. 79. Salvador (Arquivo Público do Estado da Bahia, APEB). 1874., p. 79). A centralidade feminina é abertamente legitimada no testamento, na medida em que suas irmãs Anna Ladislau do Amaral e Virgínia Ladislau de Figueiredo e Melo, mais do que apenas suas herdeiras, foram nomeadas testamenteiras. O testamento é bastante complexo e detalhado. O montante foi distribuído em três partes, cabendo uma parte a cada uma das citadas irmãs, e a terceira a seu sobrinho Evaristo Ladislau e Silva, filho de Virginia. Contudo, outras mulheres foram também beneficiadas, como as sobrinhas Michelina Ladislau e Silva, Joanna Fausta Ladislau e Silva, Rita Ladislau do Amaral e Anna Constança Ladislau e Silva. Roza também buscou amparar suas afilhadas de crisma, e no testamento foi possível identificar nove mulheres, entre elas Laura Cipriano Barata e Januária Constança Labatut. O pai da primeira era o destacado e ativo político baiano Cipriano José Barata de Almeida. A segunda também traz um sobrenome muito conhecido; trata-se da filha do general francês Pierre Labatut.

Dentre seus bens, podemos destacar a fazenda Campina Grande, onde se encontrava um engenho de açúcar. Em seu inventário foi possível apurar o valor do engenho Campina Grande em “18:000$000 se considerada apenas a terra nua, e 31:006$440 se considerado de porteira fechada” (Nascimento Júnior, 2019NASCIMENTO JÚNIOR, Manoel Maria do. O distrito soteropolitano de Brotas na Primeira República (1889-1930): conflitos sociais na produção, apropriação e uso do seu espaço urbano. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2019. , p. 304). Esse valor já seria suficiente para colocá-la entre as grandes fortunas da Bahia na segunda metade do século XIX. Roza faleceu em 1874.

Pouco sabemos sobre a vida privada dessas mulheres e qual sua representatividade de poder em meio à sociedade baiana do século XIX. Contudo, é possível identificar um componente simbólico de poder que distinguiu figuras como Roza Ladislau por tudo que dela foi observado. Havia entre ela e o pai um tipo de relação de confiança e reciprocidade suficiente para fazê-la seguir seus passos profissionais, assumir seus negócios, inclusive tornando-se senhora de engenho, e colocar-se como sua principal herdeira. Além disso, é possível especularmos sobre o quanto o ambiente familiar pode ter estabelecido entre as mulheres da família o acesso a um conjunto de ideias com potencial de torná-las sujeitas ativas no debate público da época. A utilização da escala micro como ponto de partida em torno da construção histórica da família Figueiredo e Mello se constitui em um microcosmo social que, em certo sentido, prepara suas personagens femininas para atuarem na ampliada escala macro do movimento de independência política do Brasil. O jogo entre as escalas de análises, tão caro aos microhistoriadores, segundo Paul-André Rosental (1998ROSENTAL, Paul-André. Construir o “macro” pelo “micro”: Fredrik Barth e a “microstoria”. In: REVEL, Jacques (Org.). Jogos de Escalas: A experiência da microanálise. Tradução de Dora Rocha. Rio de Janeiro: FGV, 1998. pp. 151-172., p. 152) acarreta “também uma reflexão sobre o modo de construção da narrativa pelo historiador”. Os saltos de escalas dificultam uma narrativa linear.

É justamente em meio a esse empoderado universo familiar feminino saído da dinâmica econômica e social dos Figueiredo e Mello que irá surgir uma jovem anônima a qual aqui será identificada como “F”, que não se furtará em expor ao mundo seu olhar crítico sobre um dos mais conturbados momentos políticos da história da Bahia. Essa história será contada em breve.

CÂNDIDO LADISLAU JAPIASSÚ DE FIGUEIREDO E MELLO

Além das mulheres, foi possível também identificar, entre a prole de João Ladislau de Figueiredo e Mello, um varão de nome Cândido Ladislau Japiassú de Figueiredo e Mello. Sua biografia é longa e entrecortada por alguns dos mais importantes episódios da história política do Brasil imperial. Nascido em 1799, iniciou a formação profissional ao matricular-se no curso de Direito da Universidade de Coimbra em 1820. Sua formatura ocorreu em 1824 (Arquivo da Universidade de Coimbra..., 1824), portanto, passou na Europa todo o período que compreendeu o processo que levou à separação política entre o Brasil e Portugal. De volta ao Brasil no mesmo ano em que se formou, aos 25 anos (Requerimento do bacharel..., 1824REQUERIMENTO DO BACHAREL, natural da Bahia, Cândido Ladislau Japi-Assú ao rei [D. João VI], solicitando passaporte com destino à Bahia; Caixa 279, doc. 19433. Lisboa, 5 de agosto de 1824. Bahia (Arquivo Histórico Ultramarino, AHU). 1824.), ingressou na magistratura no lugar de juiz de fora de Porto Alegre, província de São Pedro do Rio Grande. Em 1830, foi nomeado por D. Pedro I como ouvidor mor da Comarca de São Paulo. Membro da Maçonaria como D. Pedro I e José Bonifácio, partilhou da profunda amizade deste último. Como advogado, desempenhou épica defesa de José Bonifácio e seria o primeiro a chamar-lhe de “Patriarca da Independência” (Japiassú, 1835JAPIASSÚ, Candido Ladislau, 1799-1861. Defesa do illustrissimo e excellentissimo Senhor Conselheiro Desembargador José Bonifacio de Andrada e Silva, pae da pátria, patriarcha da Independencia do Brasil/pelo Desembargador Candido Ladislau Japi-Assú. Rio de Janeiro: na Typ. Fluminense de Brito & C., 1835. ). O episódio que marcaria definitivamente seu nome na história política do Brasil foi a acusação de ter sido o responsável, como mandante, pelo assassinato do jornalista italiano Líbero Badaró, redator do jornal Observador Constitucional. Chegou a ser processado, mas alcançou sua absolvição. Faleceu em Salvador em 1861.

“O BRASILEIRO EM COIMBRA” E A IMPRENSA DA INDEPENDÊNCIA

Voltemos agora aos tempos em que Cândido Ladislau Japiassú esteve na Universidade de Coimbra, em 1823, quando era quartanista do curso de Leis e resolveu se envolver com o movimento político e militar que se passava na Bahia, decidindo editar um jornal cuja linha editorial era explicitamente favorável à ruptura com Portugal. O ambiente político em Portugal não era dos melhores para levar à frente tal empreitada. Apesar do 7 de setembro, Portugal só viria a reconhecer oficialmente a independência em 1825. Portanto, 1823 continuava sendo um ano potencialmente desfavorável para qualquer manifestação pública em defesa da independência. Na Bahia, o abril de 1823 foi o auge da guerra que colocara em lados opostos “brasileiros” e “portugueses”.

Sobre um esboço da linha editorial de O Brasileiro em Coimbra, Lúcia Bastos Pereira das Neves (2022NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Entre a Europa e a América: o ser brasileiro no processo de Independência do Brasil. In: FUNDAÇÃO ALEXANDRE DE GUSMÃO. As singularidades da Independência do Brasil . Brasília: FUNAG , 2022. pp. 15-45. , p. 16) assim o resumiu:

Certo que a separação dos dois reinos era um fato inevitável, tornava-se imprescindível descrever o que se passava nos dois lados do Atlântico, buscando uma postura de equilíbrio entre o ódio dos portugueses, que ainda acreditavam na reconquista do independente sudeste brasileiro, e a animosidade antiportuguesa latente entre os defensores do novo Império.

Como não poderia ser diferente, o jornal teve somente uma edição publicada em 3 abril de 1823. Tratou-se de uma folha em pequeno formato, com 4 páginas, impresso na Imprensa da Rua dos Coutinhos, em Coimbra, e oferecido ao público por 50 réis. Suas seções tinham interlocutores direcionados: uma foi intitulada “os brasileiros”, outra “aos portugueses”, e a última, voltada para as mulheres, “Brasileiras!”. Em uma Representação enviada ao monarca, o Juiz Conservador da Universidade de Coimbra, Bernardo de Serpa Saraiva, apresentou, por meio de diversos documentos comprobatórios, suas ações à frente do cargo. O documento n. 6 traz uma cópia de O Brasileiro em Coimbra, e Serpa Saraiva faz o seguinte relato:

O impresso, que forma o Documento N. 6, foi o motivo da remoção do Estudante do Quarto Anno Jurídico Candido Ladislao; pois da publicação daquele impresso ia resultando uma perseguição tumultuaria contra os Estudantes Brasileiros, como se prova do Summario, a que procedi a requerimento de um deles, e existe no Cartório da Delegação da Polícia nesta Cidade (Representação documentada..., 1823REPRESENTAÇÃO DOCUMENTADA, que à Real presença de Sua Magestade fez subir em 30 de junho de 1823 Bernardo de Serpa Saraiva Machado. Coimbra: Real Imprensa da Universidade, 1823.).

Quando, em junho de 1823, resolveu voltar a Coimbra para requerer a admissão nos exames do 4º ano de Leis, Cândido Ladislau Japiassú justificou suas 55 faltas no ano da seguinte forma: “cometeu aquellas faltas de aula pelo notório partido contra os brasileiros nesta cidade, por moléstia de febre intermitente […] e pela remoçam por ordem judicial, em 5 de abril último para a villa de Cea” (Bernardes; Paiva, 2012BERNARDES, José Augusto Cardoso; PAIVA, José Pedro (Coords.). A Universidade de Coimbra e o Brasil: percurso iconobibliográfico. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012., p. 108). Pelo visto, sua justificativa surtiu efeito positivo, pois foi aprovado em junho de 1823.

Em 1981, em artigo publicado na revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o historiador Carlos Oberacker Jr. (1981OBERACKER JR., Carlos H. O BRASILEIRO EM COIMBRA e seu redator. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 330, pp. 107-113, jan.-mar. 1981., p. 107) afirmou que O Brasileiro em Coimbra foi um jornal “ignorado na história do jornalismo brasileiro”. Segundo ele, o único historiador que teria citado o órgão foi o português José Tengarrinha, na sua História da Imprensa Periódica Portuguesa. Segundo Oberacker Jr. (1981)OBERACKER JR., Carlos H. O BRASILEIRO EM COIMBRA e seu redator. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 330, pp. 107-113, jan.-mar. 1981., tem-se notícia da sobrevivência de um exemplar, que teria pertencido ao general Joaquim Martins Carvalho, editor de O Conimbrience, e de outro que teria ficado sob os cuidados do bibliografo Sebastião da Silva Leal. Talvez um desses dois possa ter sido o exemplar a que tive acesso no arquivo da Universidade de Coimbra. Um exemplar também se encontra na Divisão de Reservados da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (Divisão de Reservados, [s.d.]DIVISÃO DE RESERVADOS. P26,03,05. Rio de Janeiro (Biblioteca Nacional, BN). [s.d.].).

Coimbra, muito por conta do efervescente ambiente intelectual provocado por sua tradicional universidade, destacou-se como um importante espaço de produção jornalística. Na cidade desenvolveu-se o chamado jornalismo acadêmico, e é nesse caldo de cultura português que o baiano Cândido Ladislau Japiassú se sentiu motivado a criar o seu O Brasileiro em Coimbra.

O desafio maior enfrentado por aqueles que fazem uso da imprensa como a fonte principal de reconstituição histórica está na capacidade de enxergá-la como uma fonte que tem uma dinâmica própria ou, como afirmou Renée Barata Zicman (1985ZICMAN, Renée Barata. História através da Imprensa: Algumas considerações metodológicas. Projeto História (PUCSP), São Paulo, v. 4, pp. 89-102, 1985., p. 90):

Na Imprensa a apresentação de notícias não é uma mera repetição de ocorrências e registros mas antes uma causa direta dos acontecimentos, onde as informações não são dadas ao azar mas ao contrário denotam as atitudes próprias de cada veículo de informação todo jornal organiza os acontecimentos e informações segundo seu próprio “filtro”.

Nas palavras de Marco Morel (2005MOREL, Marco. Independência no papel: a imprensa periódica. In: JANCSÓ, István (Org.). Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec; FAPESP, 2005., p. 618), a imprensa também pode ser vista como um “complexo agente histórico” quando ela toma a dimensão de prática política. De acordo com Lúcia Maria Bastos P. Neves (1999NEVES, Lúcia Bastos P. A “Guerra de Penas”: os impressos políticos e a independência do Brasil. 8Tempo, pp. 1-17, ago. 1999. , p. 2), “o ano de 1821 foi a fase áurea do periodismo no mundo luso-brasileiro”. Isabel Lustosa (2010LUSTOSA, Isabel. Imprensa, censura e propaganda no contexto da Independência do Brasil. Estudios, v. 18, n. 36, pp. 370-393, jul.-dic. 2010., p. 370) enxergou na imprensa do início do século XIX um “palco de violenta disputa entre portadores de projetos antagônicos para a nova ordem política e institucional que se instalaria no país”. No Rio de Janeiro, o debate caloroso que repercutia na imprensa entre 1820 e 1823 era o da “oposição, entre o despotismo, enquanto símbolo de um passado que se pretendia ‘regenerar’, e o liberalismo-constitucionalismo, proposto como imagem de um futuro ideal a que se almejava” (Neves, 1999NEVES, Lúcia Bastos P. A “Guerra de Penas”: os impressos políticos e a independência do Brasil. 8Tempo, pp. 1-17, ago. 1999. , p. 6).

Esse ideário político, com algumas nuances locais, também alcançou a Bahia no mesmo período. Os baianos vivenciaram uma instabilidade política depois da Revolução do Porto, enxergando no constitucionalismo a possibilidade de aprofundar as relações de equivalência entre Brasil e Portugal. Por outro lado, no longo prazo, as ações das Cortes em Lisboa foram suficientes para acender a chama separatista entre os baianos.

Contudo, a conjuntura do início dos anos 20, impactada pela revolução constitucionalista do Porto, sofrera profundas mudanças em decorrência de importantes movimentos políticos. Em maio de 1823, a Vilafrancada1 1 Como ficou conhecido o golpe de Estado ocorrido a 27 de maio de 1823, a partir da Vila Franca de Xira, o qual marca a emergência de D. Miguel como chefe da corrente contrarrevolucionária em Portugal. Este golpe pôs fim à primeira tentativa de imposição de um regime liberal em Portugal. provocou em Portugal uma situação contrarrevolucionária, ocasionando um revés na ordem constitucional ao restituir as prerrogativas absolutistas de D. João VI. O Brasileiro em Coimbra foi lançado em 3 de abril de 1823, pouco menos de dois meses antes do dia 28 de maio, data da Vilafrancada. Em maio, a guerra na Bahia seguia sem retrocessos, e o coronel Lima e Silva proclamava aos portugueses a rendição com garantias. Se em Pernambuco o golpe de D. Miguel desencadeou algum apoio contrarrevolucionário, reforçando o combate a grupos de portugueses fiéis à ex-metrópole (Gonçalves, 2018GONÇALVES, Andréa Lisly. As “várias Independências”: a contrarrevolução em Portugal e em Pernambuco e os conflitos antilusitanos no período do constitucionalismo (1821-1824). CLIO: Revista de Pesquisa Histórica, Recife, v. 36, n. 1, pp. 4-27, jan.-jun. 2018., p. 5), na Bahia a guerra estava em ritmo de desfecho, e os baianos estavam mais preocupados com a crise de transição entre o defenestrado general Labatut e com o alçamento ao poder do coronel Lima e Silva, como novo comandante do Exército Libertador.

Em abril de 1823, as notícias que chegavam da Bahia não eram positivas para os portugueses. Três meses depois, o desfecho da guerra de independência provocou um êxodo de portugueses, que temiam a tomada da cidade pelos brasileiros. De acordo com Luís Henrique Dias Tavares (2005TAVARES, Luís Henrique Dias. Independência do Brasil na Bahia. Salvador: EdUFBA, 2005., p. 218), em 2 de julho de 1823 saíram de Salvador 86 embarcações levando 4.520 militares, sem contar os civis.

Esse foi o caldo político que motivou Cândido Ladislau Japiassú a lançar seu ousado empreendimento editorial em pleno Portugal. O editor baiano não se furtou em afirmar, em seu jornal, que as “Reflexões políticas sobre o governo interno e externo de Portugal, só teram cabimento neste papel, assim que tiverem relaçam com o nosso. Se forem boas, approveite o nosso Brasil; se o nam forem, fiquem no esquecimento” (O Brasileiro em Coimbra..., 1823O BRASILEIRO EM COIMBRA, Coimbra, n. 1, abr., 1823. ).

As ações do português Madeira de Melo na Bahia receberam críticas contundentes no jornal, e a possibilidade de intervenção portuguesa em favor de Madeira de Melo foi assim descrita em suas páginas: “[...] mandar Tropas para o Brasil é nam só anti-político, mas ainda falta de humanidade para com seus Irmãos portugueses!” (O Brasileiro em Coimbra..., 1823O BRASILEIRO EM COIMBRA, Coimbra, n. 1, abr., 1823. ).

Aquilo que Werneck Sodré (1966SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Rio de janeiro: Civilização brasileira, 1966.) chamou de “imprensa da independência”, em que O Brasileiro em Coimbra pode figurar como um ilustre representante “europeu”, nasceu sob uma base fortemente ideológica e abertamente panfletária. Ao buscar “organizar” os acontecimentos da época, os jornais se transformaram em mais um instrumento de luta política. De maneira geral, os periódicos agiam como porta-vozes de uma única pessoa, seu editor/redator. Contudo, muitos deles tomavam para si uma função quase pedagógica, ou, como escreveu Isabel Lustosa (2010LUSTOSA, Isabel. Imprensa, censura e propaganda no contexto da Independência do Brasil. Estudios, v. 18, n. 36, pp. 370-393, jul.-dic. 2010., p. 262): “seu propósito, segundo declaravam quase sempre no editorial de estreia, seria o de preparar o povo para o regime liberal que se inaugurava”. No jornal de Cândido Ladislau Japiassú, a primeira página trouxe um direto recado aos brasileiros. Vejamos: “Ora pois meus Compatriotas, disponho me (quem diria!) a escrever para o público! Teremos também o Nosso papel, para disermos, por meio da imprensa as nossas verdades sempre desfiguradas, e mesmo envenenadas neste Paiz, em que habitamos” (O Brasileiro em Coimbra..., 1823O BRASILEIRO EM COIMBRA, Coimbra, n. 1, abr., 1823. ).

No período entre 1820 e 1823, o Brasil experimentou fase de forte instabilidade e de reorganização de suas forças políticas diante do desafio de responder à dinâmica imposta pelas Cortes reunidas em Lisboa. Entre os homens por trás dos periódicos da época destacaram-se duas elites, bem identificadas por Lucia Pereira das Neves (1999NEVES, Lúcia Bastos P. A “Guerra de Penas”: os impressos políticos e a independência do Brasil. 8Tempo, pp. 1-17, ago. 1999. , p. 9) como a elite coimbrã e a elite brasiliense. A primeira seria formada por frequentadores da Universidade de Coimbra, como José Bonifácio de Andrada e Silva, Hipólito José da Costa e José da Silva Lisboa, e tinha como elemento referencial a aproximação com o grupo de intelectuais que gravitavam em torno de Rodrigo de Souza Coutinho2 2 Em 1808, quando da instalação da Corte no Rio de Janeiro, D. Rodrigo de Sousa Coutinho (Conde de Linhares) foi nomeado para a Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra. Homem de confiança de D. João VI, foi responsável pela implantação de importantes instituições no Brasil. , além de exercerem funções públicas (Neves, 1999NEVES, Lúcia Bastos P. A “Guerra de Penas”: os impressos políticos e a independência do Brasil. 8Tempo, pp. 1-17, ago. 1999. ). O segundo grupo foi formado majoritariamente por indivíduos que haviam nascido no Brasil, e mesmo que alguns deles também fossem oriundos da Universidade de Coimbra, se diferenciavam dos Coimbrãs por serem menos cosmopolitas e com poucos contatos externos. Entre eles podemos destacar indivíduos como Joaquim Gonçalves Ledo e Cipriano Barata. Essas características podem ter feito dos integrantes da “elite brasiliense”, segundo Neves (1999NEVES, Lúcia Bastos P. A “Guerra de Penas”: os impressos políticos e a independência do Brasil. 8Tempo, pp. 1-17, ago. 1999. , p. 9), sujeitos

menos comprometidos com a concepção do império luso-brasileiro de d. Rodrigo e tendiam a adotar posturas políticas mais radicais, identificando suas maiores obrigações com a pequena pátria local em que tinham nascido ou com as aspirações mais democráticas de uma tênue camada média, que a longa permanência da Corte no Rio de Janeiro havia desenvolvido.

Mesmo que não tivesse iniciado sua militância política no Brasil, Cândido Ladislau Japiassú enquadrou-se perfeitamente no modelo da “elite brasiliense”. Nas páginas de O Brasileiro em Coimbra, o discurso antilusitano reproduziu o sentimento que conquistou corações e mentes de uma parcela de brasileiros no contexto de nossa independência.

A INDEPENDÊNCIA ECOA VOZES FEMININAS

O contexto das comemorações em torno dos duzentos anos da separação política entre o Brasil e Portugal instigou a historiografia brasileira à busca por interpretar a efeméride à luz de diversificadas chaves analíticas. Uma delas, aliás bastante salutar, foi o resgate da participação das mulheres no processo de independência. Quando Lucia Maria Bastos Pereira das Neves resolveu escrever sobre os esquecidos no processo da independência, reservou um destaque para as mulheres esquecidas. A personagem central deste artigo pode se enquadrar no seguinte grupo identificado por Neves (2020NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Os esquecidos no processo de Independência: uma história a se fazer. Almanack, Guarulhos, n. 25, pp. 1-44, 2020. , p. 28):

Por fim, ainda pode ser destacado um grupo de esquecidas [...]. Em uma sociedade profun­damente hierarquizada como a do Antigo Regime, é possível imagi­nar o papel quase invisível dessas senhoras. No entanto, sua presença pode ser detectada, além da efetiva atuação nas lutas de separação do novo Império, por cartas em jornais, por correspondência privada e até pela escrita de panfletos políticos.

Na Bahia, a conjuntura da primeira metade do século XIX testemunhou a presença de um razoável número de mulheres em que cada uma, a seu modo, deixou legitimada sua marca enquanto sujeito histórico ativo. Podemos, de maneira breve, destacar Maria Quitéria de Jesus, a “soldado Medeiros”, que, como cadete do Batalhão dos Periquito, se fez presente no front em importantes batalhas, como a que defendeu a ilha de Maré. Além dela, ganhou contornos de tragédia a participação da freira Joana Angélica de Jesus na guerra civil que tomou conta de Salvador em 1822. Em defesa do Convento de Nossa Senhora da Conceição da Lapa, que estava sendo invadido por tropas portuguesas, conta a tradição que ela teria dito: “Para trás, bandidos. Respeitem a casa de Deus. Recuai, só penetrareis nesta casa passando por sobre o meu cadáver”. Pouco importa se essas palavras foram realmente pronunciadas. O desdobramento histórico do episódio fez com que a guerra de independência ganhasse sua primeira mártir. Seguindo em frente, vamos encontrar a mulata Maria Felipa de Oliveira3 3 Sobre Maria Felipa, ver Farias (2010). , marisqueira da ilha de Itaparica, personagem de historicidade nebulosa, mas não suficiente para tirar-lhe a condição de mais uma heroína popular de nossa independência. Entre as classes privilegiadas, a historiografia foi também buscar a voz de mulheres como Maria Bárbara Garcês Pinto de Madureira e Urânia Vanério de Argollo Ferrão. A primeira, portuguesa de nascimento, se tornou baiana por adoção. As cartas trocadas por Maria Bárbara com seu marido Luís Paulino, na época em que este exercia a função de representante brasileiro nas Cortes de Lisboa, em 1821, formaram um retrato perfeito para nos aventurarmos na reconstrução de uma história sob a perspectiva não somente de sua vivência pessoal, como da conjuntura sociopolítica da época e do papel da mulher naquela realidade (Trindade, 2001TRINDADE, Etelvina Maria de Castro. Maria Bárbara Madureira e as Cartas Baianas: uma vivência feminina no início do século XIX. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 34, Editora da UFPR, pp. 105-125, 2001.). A segunda, Urânia Vanério de Argollo Ferrão, ganhou visibilidade histórica devido à publicação de um panfleto em forma de poema com o distinto e pomposo título:

Lamentos de huma bahiana na triste crise, em que vio sua patria oppressa pelo despotismo constitucional da Tropa Auxiliadora de Portugal, para empossar no Governo Das Armas A I. L. Madeira de Mello, por virtude da Carta Regia, que deo causa à Guerra da carta regia, ou carnaval desastroso (Lamentos de huma bahiana..., 1822LAMENTOS DE HUMA bahiana na triste crise, em que vio sua patria oppressa pelo despotismo constitucional da tropa auxiliadora de Portugal, para empossar no governo das armas a I. L. Madeira de Mello, por virtude da carta regia, que deo causa á guerra da carta regia, ou carnaval desastroso. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1822.).

Seu reconhecimento histórico foi tardio, mas, tal qual Maria Bárbara, Urânia Vanério, até pela pouca idade em que publicou o panfleto, por volta de 10 anos, impressionou pela profundidade da análise da conjuntura baiana de 1822. Todavia, assim como a personagem central deste artigo, Urânia Vanério cresceu em um ambiente intelectual diferenciado, “obtendo uma educação distinta da maioria das meninas da época” (Valim, 2022VALIM, Patrícia. Lamentos e lutas de Urânia Vanério na Independência do Brasil. In: STARLING, Heloisa M.; PELLEGRINO, Antonia (Orgs.). Independência do Brasil: as mulheres que estavam lá. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2002. pp. 85-104., p. 91). Os episódios políticos que inspiraram Urânia Vanério foram os mesmos que inspiraram “F”, personagem que iremos destacar melhor nas próximas páginas. A Bahia vivia a guerra civil que colocou em lados opostos os apoiadores do militar português general Madeira de Melo e o militar brasileiro coronel Freitas Guimarães4 4 Para um estudo mais amplo da Guerra de Independência do Brasil na Bahia, ver Tavares (2005) e Amaral (1957). . Urânia narrou, em forma de lamento aos Céus, o sentimento de repulsa de uma parcela dos baianos, principalmente sua elite, em relação às ações tidas como arbitrárias do citado militar português.

Maria Bárbara Garcês Pinto de Madureira e Urânia Vanério de Argollo Ferrão refletiram em seus textos, a primeira em forma de cartas para o marido e a segunda em um texto literário, um olhar sobre a conjuntura política da Bahia na primeira metade do século XIX. A condição de senhora abastada, proprietária de engenho e sua administradora na ausência do marido, deu a Maria Bárbara um olhar mais ampliado sobre a conjuntura baiana. Em uma de suas cartas ela chega a informar ao marido que “a safra foi pequeníssima. Chuvas contínuas, mas fechamos com dois mil e quatrocentos e sessenta pães” (França, 1980FRANÇA, António d’Oliveira Pinto da (Org.). Cartas baianas, 1821-1824: subsídios para o estudo dos problemas da opção na independência brasileira. São Paulo: E. Nacional; Rio de Janeiro: Núcleo Editorial da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1980., p. 53), demonstrando incorporar em seu repertório de assuntos temas que a princípio só fariam parte do universo masculino. Contudo, segundo Trindade (2001TRINDADE, Etelvina Maria de Castro. Maria Bárbara Madureira e as Cartas Baianas: uma vivência feminina no início do século XIX. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 34, Editora da UFPR, pp. 105-125, 2001., p. 119), “Maria Bárbara não era, com certeza, uma feminista avant la lettre. Utilizava, apenas, estratégias que visavam resolver seus problemas mais imediatos.” Entendo que essa conclusão também sirva para Urânia e a própria “F”. Foram mulheres que somente tiveram a perspicácia de lutarem com as armas que o contexto histórico lhes oferecia. Por outro lado, o que uniu as personagens foram os conflitos que tiveram ensejo em Salvador, principalmente os episódios que envolveram a ação militar do comandante das Armas na Bahia. Tanto Maria Bárbara quanto Urânia enxergaram no militar português Madeira de Melo a simbologia da opressão portuguesa. Escreveu Maria Bárbara a Luís Paulino em 6 de julho de 1822:

Sim, meu Luís, não há dúvidas que por dias chega aqui a expedição que vem do Rio de Janeiro com tropa para aqui. E sabe Deus o que será, pois, segundo ouço, veremos correr rios de sangue. Madeira diz que não cede. Faz-se forte, forçosamente no Barbalho, e dizem que dali conta bombardear a cidade (França, 1980FRANÇA, António d’Oliveira Pinto da (Org.). Cartas baianas, 1821-1824: subsídios para o estudo dos problemas da opção na independência brasileira. São Paulo: E. Nacional; Rio de Janeiro: Núcleo Editorial da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1980., p. 77).

Urânia Vanério também expôs seus sentimentos negativos em relação ao militar português:

Justos Céus, não posso mais!!!

Que dirá a Europa inteira!!!

Há de perder-se a Bahia

Para governar Madeira? (Lamentos de huma bahiana... 1822LAMENTOS DE HUMA bahiana na triste crise, em que vio sua patria oppressa pelo despotismo constitucional da tropa auxiliadora de Portugal, para empossar no governo das armas a I. L. Madeira de Mello, por virtude da carta regia, que deo causa á guerra da carta regia, ou carnaval desastroso. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1822., p. 262).

Madeira de Melo, sempre de forma negativa, se faria presente em diversos outros momentos relatados por ambas as personagens.

Foi justamente essa conjuntura presente nas cartas de Maria Bárbara e nos poemas de Urânia Vanério que se materializou na carta - cuja autora foi identificada somente como “F” - publicada em 1823 por Cândido Ladislau nas páginas do jornal O Brasileiro em Coimbra. Nas linhas que se seguem, vamos buscar refletir sobre essa desconhecida personagem que, salvo engano, continua “anônima” para a historiografia até os dias de hoje.

“F”, A MENINA BAIANA QUE AMAVA SUA PÁTRIA

Como já demonstramos, O Brasileiro em Coimbra nasceu com a vocação de ser um representante do pensamento político brasileiro em Portugal, portanto, os textos em suas páginas representaram simbolicamente verdadeiras armas retóricas. A primeira página traz como epígrafe o seguinte trecho do poeta Jean-Baptiste-Louis Gresset: “soit instinct soit reconnossance, l’homme par um peuchant secret, cherit le leu de sa naissance et ne le quite qu’a regret”5 5 Tradução livre do autor: “Seja instinto ou reconhecimento, o homem por uma inclinação secreta, preza o lugar de seu nascimento, e não o deixa exceto com pesar”. . A Bahia é seu local estimado de nascimento, e o Brasil, a pátria a ser defendida em território inimigo. Depois de assinar todos os textos do jornal, o editor resolveu publicar uma carta recebida da Bahia com o objetivo de apresentar uma narrativa mais próxima da realidade de quem vivenciava as agruras da guerra de independência. Essa é outra característica de cartas publicadas em periódicos: contribuem para o entendimento do período histórico em foco (Carvalho et al., 2014CARVALHO, José Murilo de; BASTOS, Lúcia; BASILE, Marcello (Orgs.). Guerra literária: Panfletos da Independência (1820-1823). Vol. 1. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2014.). O editor fez uma breve introdução: “Esta carta, que aqui transcrevo bem pode dar aos Portugueses uma idéia do espírito que anima os Brasileiros. Ella é de uma Menina Bahiana, que sabe amar sua Patria” (O Brasileiro em Coimbra..., 1823O BRASILEIRO EM COIMBRA, Coimbra, n. 1, abr., 1823. ).

A publicação de cartas ou qualquer outra forma de manifestação pública praticada por mulheres na primeira metade do século XIX não era necessariamente um fato estranho ao período. As discussões políticas, antes restritas ao espaço privado, ganharam as ruas e as páginas dos jornais, que se transformaram na grande tribuna pública. É justamente neste contexto que algumas mulheres ganham a cena pública, por meio daquilo que Maria de Lourdes Viana Lyra chamou de “manifestos políticos” (Lyra, 2006LYRA, Maria de Lourdes Viana. A atuação da mulher na cena pública: diversidade de atores e de manifestações políticas no Brasil imperial. Almanack Braziliense, n. 3, pp. 105-122, maio 2006. ). É interessante o fato de que, em muitos manifestos, as mulheres fazem questão de citar seus esposos, pais e filhos, demonstrando o que Slemian e Teles (2022SLEMIAN, Andréa; TELES, Danielly de Jesus. As mulheres, a imprensa e a Independência do Brasil. A participação política do “belo sexo” e seus impasses. Cienc. Cult., São Paulo, v. 74, n. 1, pp. 1-7, jan.-mar. 2022., p. 3) identificaram como “marcadores de circunscrição do papel social das mulheres”, os quais se fazem notar em muitos momentos na imprensa da época. Porém, esses papéis sociais “aparecem em uma chave fortemente ligada ao patriotismo e evocavam projetos políticos” (Slemian; Teles, 2022SLEMIAN, Andréa; TELES, Danielly de Jesus. As mulheres, a imprensa e a Independência do Brasil. A participação política do “belo sexo” e seus impasses. Cienc. Cult., São Paulo, v. 74, n. 1, pp. 1-7, jan.-mar. 2022., p. 3). No contexto da independência, as mulheres atuavam na cena pública, por meio da imprensa, aparentando uma situação difusa em termos de legitimação social. A ordem patriarcal, representada por alguns editores, ainda estava presente.

A carta que foi enviada ao editor de O Brasileiro em Coimbra lembra uma narrativa epistolar de uma testemunha ocular dos eventos acontecidos em Salvador no decorrer do ano de 1822, e o fato de ter sido escrita por uma mulher extrapola o tradicional e coevo olhar masculino sobre determinados eventos históricos. O texto é curto, porém, vestígio documental primoroso. A partir do século XIX, começou a ser esboçado no Brasil um universo letrado feminino, possibilitando que mulheres das camadas sociais privilegiadas economicamente pudessem dialogar, a partir de produções escritas, com suas respectivas realidades sociais e políticas, ocupando um espaço que de antemão se mostrava monopólio do sexo masculino.

Na primeira metade do século XIX, o patriarcalismo ainda era a estrutura que mediava as relações de poder no âmbito de uma família. Porém, no interior do clã dos Ladislau de Figueiredo e Mello, havia, presumivelmente, uma dinâmica de relações que reconhecia nas mulheres a capacidade de se mostrarem como sujeitas intérpretes de sua própria realidade social. Não obstante a tentativa de apagamento da participação das mulheres da vida pública brasileira, segundo Valim (2022VALIM, Patrícia. Lamentos e lutas de Urânia Vanério na Independência do Brasil. In: STARLING, Heloisa M.; PELLEGRINO, Antonia (Orgs.). Independência do Brasil: as mulheres que estavam lá. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2002. pp. 85-104., p. 87) “as mulheres no Brasil sempre se interessaram por assuntos da vida pública e lutaram pelo direito de participação e de fazer política”.

Datada de 7 de novembro de 1822, a carta se inicia em um tom de singeleza para subir o nível de tensão com um forte teor de afirmação identitária. Segue trecho inicial:

Primo do coração. Recebi sua cartinha, que muito estimei, por me diser que passava com saúde etc. Nós vamos vivendo como Brasileiros; ainda que no tempo presente he melhor que fossemos o diabo; contudo eu sempre direi que sou Brasileira, no que tenho muita honra [...] (O Brasileiro em Coimbra..., 1823O BRASILEIRO EM COIMBRA, Coimbra, n. 1, abr., 1823. ).

Eram tempos de afirmação de identidade e de certo sentimento de brasilidade. A forma hostil e polarizada como se desencadeou o processo de ruptura política na Bahia refletiu nos baianos a necessidade de se firmarem enquanto brasileiros diante do agressor português. O registro da autora da carta como “F” estava longe de ser um simples preciosismo do editor. Na época da independência, as cartas eram usadas como arma na guerra literária que se travava por meio da imprensa. Portanto, “a contundência e o insulto pessoal eram facilitados pelo uso do anonimato” (Carvalho et al., 2014CARVALHO, José Murilo de; BASTOS, Lúcia; BASILE, Marcello (Orgs.). Guerra literária: Panfletos da Independência (1820-1823). Vol. 1. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2014., p. 64). O editor usou o mesmo artifício ao registrar com a letra “J” o nome de outra personagem citada na carta, como pode ser percebido no trecho a seguir: “No dia 30 de outubro, tive um grande susto; pelo qual fiquei muito doente; agora aqui não faltaõ sustos, e disgostos; e talvez que à elles seja devida a morte de nossa querida J.!” (O Brasileiro em Coimbra..., 1823O BRASILEIRO EM COIMBRA, Coimbra, n. 1, abr., 1823. ).

Alguns poderiam imaginar que a “J” em questão seria a abadessa Joana Angélica, ferida mortalmente em fevereiro de 1822. Contudo, por se tratar de uma carta, documento privado e com um texto bastante pessoal, talvez um pouco de especulação pode nos indicar que “J” seria a já citada Joanna Ladislau, prima da autora da carta, que faleceu em 16 de outubro de 1822. Mas o principal destaque da narrativa foi o general português Inácio Luís Madeira de Melo, descrito na missiva como o grande símbolo da tirania portuguesa:

[...] Quando pensamos estar em socêgo, vem um alvoroço, que he seguido logo de insultos de toda casta, e feitos às Famílias até as mais honestas pelos Soldados do Snr. Madeira! a ralé dos caixeirinhos está taõ atrevida que Vossê naõ pode imaginar! Montaraõ guarda outro dia os Lusitanos, e armarao-se de palmatórias e cordas, gritando altamente que era para dar bôlos e enforcarem os cabras e os macacos! [...] (O Brasileiro em Coimbra..., 1823O BRASILEIRO EM COIMBRA, Coimbra, n. 1, abr., 1823. ).

Esse trecho está eivado de construções subjetivas de como se caracterizava a mentalidade de uma parcela da elite baiana no que concerne às relações sociais e de poder na Salvador da primeira metade do século XIX. Além de julgar, na condição de “brasileira”, as ações tidas como arbitrárias pelo “português” Madeira de Melo, “F” reproduz o olhar hierárquico e discriminatório do grande proprietário sobre o comerciante de origem portuguesa ao se referir ao atrevimento dos “caixeirinhos”. Os comerciantes da Cidade Baixa foram os principais apoiadores da causa portuguesa. Quanto à referência a “cabras e macacos”, refletia a mentalidade de uma elite que se enxergava branca e europeia e repetia uma série de expressões depreciativas historicamente utilizadas pelos portugueses em relação aos brasileiros (R. J. C. M., 1822R. J. C. M. Ensaio historico-politico sobre a origem, progressos e merecimentos da antipatia e reciproca aversão de alguns portuguezes europeus, e brasilienses, ou elucidação de hum período da célebre acta do governo da Bahia datada de 18 de fevereiro do anno corrente escripto. Rio de Janeiro: Tip. Moreira & Garcez, 1822.).

Em trechos seguintes, “F” se mantém renitente, reafirmado a condição de algoz do general Madeira Melo. Não era fortuito esse sentimento da elite baiana em relação ao militar português chefe da tropa lusitana. Sua nomeação como comandante das Armas da Bahia em substituição ao brasileiro Freitas Guimarães foi muito mal recebida pelos baianos. Esse ambiente conflituoso serviu para aglutinar em campos opostos brasileiros e portugueses, e a autora da carta somente reproduzia a imagem negativa do militar português que se firmava entre os baianos. Escreveu ela:

Emfim estes homens, ou antes estes lôbos, tem accendido a raiva até nos coraçoens mais frios, e mais pacatos! O Madeira tem mandado arrasar todas as nossas roças! Ah! meu Primo, faz chorar ao vê arrancadas, ou espatifadas tantas laranjeiras, mangueiras, coqueiros, e tudo! (O Brasileiro em Coimbra..., 1823O BRASILEIRO EM COIMBRA, Coimbra, n. 1, abr., 1823. ).

Em outro trecho, “F” não foge em fazer uma análise política sobre o posicionamento da Bahia em relação ao príncipe D. Pedro e às Cortes de Lisboa. Esse debate é o cerne da disputa entre brasileiros e portugueses em uma conjuntura em que tomar o caminho do príncipe ou das Cortes definiria os rumos da Bahia no contexto de uma possível guerra civil que levaria à ruptura definitiva com Portugal. A historiografia da independência tem matizado a questão da recolonização como motivadora da ruptura brasileira. António Penalves Rocha (2009ROCHA, António Penalves. A recolonização do Brasil pelas Cortes: História de uma invenção historiográfica. São Paulo: Editora UNESP, 2009.) buscou demonstrar em obra específica como o conceito de recolonização foi manipulado com base em objetivos políticos. Na própria historiografia portuguesa é possível presenciarmos argumentos como os de José Luís Cardoso (2022CARDOSO, José Luís. A economia e o enquadramento internacional do Império luso-brasileiro, 1808-1822. In: FUNDAÇÃO ALEXANDRE DE GUSMÃO. As singularidades da Independência do Brasil. Brasília: FUNAG, 2022. pp. 47-77., p. 69), de que a ideia de recolonização “acabou por ser alimentada por uma tradição historiográfica pouco rigorosa e muito ávida em encontrar motivos simplistas para sustentar que a Independência do Brasil era uma consequência e uma resposta à pretensão colonialista das Cortes”. Entretanto, na Bahia, o perigo da “recolonização” aparentou se enquadrar na ideia de Lúcia Bastos Pereira das Neves (1999NEVES, Lúcia Bastos P. A “Guerra de Penas”: os impressos políticos e a independência do Brasil. 8Tempo, pp. 1-17, ago. 1999. , p. 2), de que

as elites brasileiras, ainda que divididas por concepções diversas, tenderam a unir-se em torno de um clima de crescente animosidade contra as Cortes, que, por sua vez, interpretavam essas manifestações igualmente como a expressão de uma oposição ao ideário liberal.

Quanto a Madeira de Melo, diante da resistência baiana a seu nome, tinha somente nas Cortes e no rei D. João VI seus grandes aliados. Sua estratégia de sobrevivência, em meio a um ambiente tão hostil, foi o de colocar-se como o único mediador entre D. Pedro e D. João VI. A autora da carta faz a seguinte leitura dessa realidade:

[...] Se o Madeira tem enganado as Cortes, que todos dizem tem homens bons, dizendo que he uma facção que quer o Príncipe, ninguém tem culpa disto porque todos querem o Príncipe; e quem he o culpado de todos quererem o Príncipe? Eu direi que os mesmos portugueses, que entenderaõ deviam captivar (sic) o Brasil, maltratálo etc. [...] (O Brasileiro em Coimbra..., 1823O BRASILEIRO EM COIMBRA, Coimbra, n. 1, abr., 1823. ).

É visível, pelas nuances do texto, que se trata de uma mulher impetuosa que entende os meandros e as aparências do jogo de poder de sua época.

Admito os riscos que podemos correr ao encamparmos como verdadeira uma carta envolta de tantos mistérios. Seria mesmo uma mulher a escrever tal texto? Ou seria a carta uma estratégia “publicitária” do editor buscando dar uma maior visibilidade a seu discurso antilusitano? Nada, a princípio, leva a crer que se trata de uma fraude. Além disso, alguns detalhes de informações familiares nos levam a concordar que o documento foi realmente produzido por quem é designado como autor.

As últimas linhas da carta foram escritas em forma de um libelo libertário. Seu conteúdo e estilo nos deixa a impressão de tratar-se do testemunho de um espírito de uma época. Ao ser escrito por uma mulher, ficam os seguintes questionamentos: estamos diante de alguém que rompeu excepcionalmente com a lógica da centralidade masculina, ou somente de uma mulher que, como outras, respondia a uma dinâmica de ação permitida pelas relações de poder de seu próprio tempo? Em 1823, a mulher baiana ainda respondia a uma estrutura mental e social que foi gestada em anos de exploração colonial. À mulher cabia corresponder às expectativas tanto do Estado quanto da Igreja. Porém, além deles havia o ambiente doméstico, que precisava ser devidamente consolidado por meio do casamento e da subserviência de gênero. Segundo Del Priore (1993PRIORE, Mary Del. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia. Rio de Janeiro: Olympio, 1993., p. 27), “adestrar a mulher fazia parte de um processo civilizatório, e, no Brasil, este adestramento fez-se a serviço do processo de colonização.” Mas como a mulher colonial poderia romper com os discursos e as práticas normativas privadas? A historiografia deve buscar constantemente colocar sob suspeita a hegemonia da ideia de uma mulher colonial que se enquadrava inelutavelmente à lógica exploratória do universo masculino. Mulheres como as retratadas nesse artigo abalam nossos paradigmas explicativos que simplificam o papel da mulher em fins do século XVIII e início do XIX. É inegável que a conjuntura da independência oportunizou à mulher externar publicamente suas ideias por meio da imprensa, servindo como porta-voz do olhar feminino sobre o universo da política e da sociedade. Contudo, lembrando sempre que a ampliação da participação pública da mulher no início do século XIX “não tenha significado uma alteração drástica na condição social e jurídica do ser mulher” (Slemian; Teles, 2022SLEMIAN, Andréa; TELES, Danielly de Jesus. As mulheres, a imprensa e a Independência do Brasil. A participação política do “belo sexo” e seus impasses. Cienc. Cult., São Paulo, v. 74, n. 1, pp. 1-7, jan.-mar. 2022., p. 2).

Semelhante às outras contemporâneas, “F” reproduziu o sentimento coevo contra qualquer tipo de despotismo:

Emfim, meu Primo do coração, está a nossa Bahia perdida: e o que eu lhe conto naõ he a oitava parte! Mas antes quero morrer do que ver a Bahia escrava de Madeira; sim, meu Primo, eu sou mulher, porem ainda assim sou a primeira que, sendo preciso, tocarei fogo à Cidade, ainda que eu seja a primeira que arda com ella; já tomei novo coraçaõ com ver tantas maldades, e já tenho tanto animo que estou cantando “L’esperance encore me reste”. F (O Brasileiro em Coimbra..., 1823O BRASILEIRO EM COIMBRA, Coimbra, n. 1, abr., 1823. ).

É visível que, diante do conteúdo da carta e da forma crítica em que a narrativa histórica foi registrada, estamos diante de uma mulher completamente em sintonia com a mentalidade social e política de sua época. Mais do que isso, o trecho acima reafirma um sentimento beligerante que aparenta fazer parte da estrutura mental de algumas mulheres da época. O trecho “tocarei fogo à Cidade” dialoga diretamente com o conteúdo de uma das cartas de Maria Bárbara Garcês Pinto de Madureira, uma senhora da nobiliarquia baiana, que não media palavras para demonstrar seus sentimentos no que concernia à deflagrada conjuntura baiana de 1822. Em algumas de suas cartas trocadas com o marido em Portugal é possível identificar trechos tais como:

Ah, meu Luís, o fraco, o vil é sempre traidor. Quem poderia julgar tal depois de vê-lo quase moribundo, de vê-lo até cair sem poder segurar-se de medo? Mas de tudo, de tudo tem culpa o ladrão-mor Paula (2) e todo aquele séquito de déspotas. Desafronta-te ou, aliás, eu tiro-lhe a vida. Sou capaz, não duvides (França, 1980FRANÇA, António d’Oliveira Pinto da (Org.). Cartas baianas, 1821-1824: subsídios para o estudo dos problemas da opção na independência brasileira. São Paulo: E. Nacional; Rio de Janeiro: Núcleo Editorial da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1980., p. 7).

Escreveu “F” suas últimas linhas buscando levar ao primo, ora distante de sua terra natal, alguma notícia alvissareira sobre a realidade histórica que buscara retratar: “N. B. Saiba que muitos Soldados Lusitanos principalmente do N. 1º tem hido para nossa gente. Adeus” (O Brasileiro em Coimbra..., 1823O BRASILEIRO EM COIMBRA, Coimbra, n. 1, abr., 1823. ).

CONCLUSÃO

O conteúdo saído das palavras de “F” apresenta uma conexão entre a personagem - uma mulher da elite política e econômica da Bahia - e a conturbada conjuntura baiana da primeira metade do século XIX. Mais do que isso, nos permite perceber o olhar da elite baiana não só sobre a dinâmica específica da guerra de independência, suas tensões e violências, como também sobre a caminhada de setores dessa elite em direção a D. Pedro, em franca oposição a uma possibilidade de recolonização do Brasil. “F” foi apenas uma porta-voz da mentalidade desse grupo.

Quanto ao editor Cândido Venceslau, aproveitou o ensejo da carta da prima e produziu o último texto do jornal, intitulando-o “Brasileiras!”. Dirigido diretamente às mulheres da Bahia e do Brasil, o texto é o esboço de uma espécie de discurso feminista avant la lettre. Mas é também o testemunho privilegiado de uma mentalidade intelectual que, se ainda não tinha chegado à Bahia, mostrou-se presente como arcabouço mental de um indivíduo que respirava, na Europa, ventos questionadores de uma estrutura social hierarquicamente estabelecida que precisava ser abalada e reconstruída em alicerces mais igualitários. A reprodução do texto na íntegra é a materialização de um discurso que espanta pela capacidade de se mostrar contemporâneo:

Por acaso eu preciso dizer-Vos que tomeis o exemplo desta nossa HEROINA BAHIANA? Desta Spartana? Ah! Mostrai ao Universo que nam nascesteis somente para Nos encantar com Vossa FORMOSURA! Mostrai que nam sois tam somente fontes de praseres, e delícias! Mostrai que sois igualmente fontes de virtudes domesticas, de virtudes civis, e de Patriotismo! Assim excedereis os homes que injustos Vos chamaõ Entes passivos! Sedes livres, si quereis ser mais Bellas! Quanto assim excedereis as Geogianas! Estas sam bellas: mas sam escravas! Porém Vós sois Bellas, e sois livres! Uma Brasileira deve antes offerecer seu Peito à morte do que ser escrava um só instante! Sim; o Peito de uma Brasileira, que serve de Sanctuário à Amor, sirva também de escudo à LIBERDADE DA PÁTRIA! Ajudai Vossos Paes, Irmãos, Amantes e Esposos a sustentar Vossa mesma LIBERDADE! Sem PÁTRIA, sem LIBERDADE, nam só o homem, o Bello sexo e seus encantos nada valem! (O Brasileiro em Coimbra..., 1823O BRASILEIRO EM COIMBRA, Coimbra, n. 1, abr., 1823. ).

Não obstante seja reconhecido um discurso bastante elogioso e empoderador por parte do editor Cândido Venceslau, ele não conseguiu deixar de adjetivar as mulheres com a expressão “belo sexo”, o que seria, de acordo com Lyra (2006LYRA, Maria de Lourdes Viana. A atuação da mulher na cena pública: diversidade de atores e de manifestações políticas no Brasil imperial. Almanack Braziliense, n. 3, pp. 105-122, maio 2006. , p. 115), “uma forma gentil de indicar o lugar ‘natural’ reservado a elas, na sociedade”.

Em suma, diante da linha editorial que adotara, dificilmente O Brasileiro em Coimbra teria vida longa em Portugal. O editor, pelo teor dos textos publicados na única edição do jornal, não se mostraria imbuído em capitular. Contudo, se em 1823, com o fechamento do jornal, a luta brasileira pela legitimação e pelo reconhecimento de sua independência perdeu um estimado aliado, a história ganhava um privilegiado testemunho documental.

Quanto a “F”, nossa autora segue anônima, mas não pode seguir esquecida. Por sua participação enquanto agente ativa da história, ela pode ser vista como pertencente a um grupo de mulheres que “estruturaram ainda um discurso que buscou decifrar as linguagens da época e responder às questões por meio de prá­ticas e princípios que, em certa medida, traduziam as culturas políticas daquele momento” (Neves, 2020NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Os esquecidos no processo de Independência: uma história a se fazer. Almanack, Guarulhos, n. 25, pp. 1-44, 2020. , p. 1). Seu discurso, ao aliar teoria com disposição prática, nos colocou diante de uma personagem que não pode ser negligenciada por uma historicidade que, não obstante negue construções míticas de indivíduos históricos, não pode prescindir da força simbólica de uma possível heroína brasileira.

REFERÊNCIAS

  • AMARAL, Braz do. História da Independência na Bahia. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1957.
  • BERNARDES, José Augusto Cardoso; PAIVA, José Pedro (Coords.). A Universidade de Coimbra e o Brasil: percurso iconobibliográfico. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012.
  • O BRASILEIRO EM COIMBRA, Coimbra, n. 1, abr., 1823.
  • CARDOSO, José Luís. A economia e o enquadramento internacional do Império luso-brasileiro, 1808-1822. In: FUNDAÇÃO ALEXANDRE DE GUSMÃO. As singularidades da Independência do Brasil. Brasília: FUNAG, 2022. pp. 47-77.
  • CARVALHO, José Murilo de; BASTOS, Lúcia; BASILE, Marcello (Orgs.). Guerra literária: Panfletos da Independência (1820-1823). Vol. 1. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2014.
  • DIVISÃO DE RESERVADOS. P26,03,05. Rio de Janeiro (Biblioteca Nacional, BN). [s.d.].
  • FARIAS, Eny Kleide Vasconcelos. Maria Felipa de Oliveira: Heroína da Independência da Bahia. Salvador: Quarteto, 2010.
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  • 1
    Como ficou conhecido o golpe de Estado ocorrido a 27 de maio de 1823, a partir da Vila Franca de Xira, o qual marca a emergência de D. Miguel como chefe da corrente contrarrevolucionária em Portugal. Este golpe pôs fim à primeira tentativa de imposição de um regime liberal em Portugal.
  • 2
    Em 1808, quando da instalação da Corte no Rio de Janeiro, D. Rodrigo de Sousa Coutinho (Conde de Linhares) foi nomeado para a Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra. Homem de confiança de D. João VI, foi responsável pela implantação de importantes instituições no Brasil.
  • 3
    Sobre Maria Felipa, ver Farias (2010)FARIAS, Eny Kleide Vasconcelos. Maria Felipa de Oliveira: Heroína da Independência da Bahia. Salvador: Quarteto, 2010..
  • 4
    Para um estudo mais amplo da Guerra de Independência do Brasil na Bahia, ver Tavares (2005)TAVARES, Luís Henrique Dias. Independência do Brasil na Bahia. Salvador: EdUFBA, 2005. e Amaral (1957)AMARAL, Braz do. História da Independência na Bahia. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1957..
  • 5
    Tradução livre do autor: “Seja instinto ou reconhecimento, o homem por uma inclinação secreta, preza o lugar de seu nascimento, e não o deixa exceto com pesar”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    22 Ago 2023
  • Aceito
    27 Dez 2023
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