Open-access As raízes transnacionais da Revolução Cubana

The Transnational Roots of the Cuban Revolution

SOLÓRZANO, Nicolás Prados Ortiz de. . Cuba in the Caribbean Cold War: Exiles, Revolutionaries and Tyrants, 1952-1959. Oxford: Palgrave Macmillan, 2020.

O impacto da Revolução Cubana na América Latina é um tema muito abordado na historiografia, visível, ainda hoje, no debate público da região, em movimentos sociais, na dimensão cultural, etc. Todavia, ainda se resguarda um mito de afirmação da força revolucionária nacional para explicar o triunfo dos guerrilheiros e a sua coalização de aliados. O êxito da Revolução tem um caráter quase épico: desde a derrubada da Ditadura de Fulgêncio Batista (1952-1959), nas idas e vindas do grupo revolucionário a partir do fracassado assalto ao Quartel de Moncada (1953) e na formação da guerrilha em Sierra Maestra; passando pelo processo em si, com as lutas na sierra e nos llanos, até a entrada na capital Havana (1959); culminando com a formação de um governo que se declarou a princípio nacionalista e anti-imperialista, para depois desbravar a trilha do Socialismo (1961), em plena Guerra Fria. Essa forma de narrar a revolução, em tom épico, retomando um passado cubano de lutas anticoloniais e anti-imperialistas, se espraiou pela América Latina. Como observou Thomas Wright em Latin America in the Era of the Cuban Revolution (2001), essa narrativa também serviu de base para a consolidação do poder castrista no seio do regime e teve um impacto decisivo na História política do continente americano1.

Essa breve digressão é importante para entender em que cenário historiográfico e político podemos analisar a obra Cuba in the Caribbean Cold War: Exiles, Revolutionaries and Tyrants, 1952-1959, de Nicolás Prados Ortiz de Solórzano. O historiador se dedicou a entender a rede transnacional formada principalmente por exilados, reunidos na Legião do Caribe, que se engajou no combate às Ditaduras instauradas na abrangência do Mar do Caribe. Solórzano demonstrou em seu livro como Fidel Castro e o Movimento 26 de julho (M-26-7) integraram essa rede e reivindicaram o papel de detratores de Batista na ilha de Cuba. Analisar essa rede transnacional pelo prisma dos exilados cubanos traz uma importante contribuição historiográfica, colocando em tela essa perspectiva junto a casos mais estudados dessa rede, como o do ex-presidente guatemalteco Juan José Arévalo2.

O livro do historiador espanhol Nicolás Prados Ortiz de Solórzano resulta de sua pesquisa de doutorado concluída na Faculdade de História da Universidade de Oxford (Inglaterra). O corpus documental do autor abrangeu: do lado caribenho, o Archivo del Instituto de História Cubana e o arquivo do Ministério de Relações Exteriores de Cuba, bem como registros do Foreign Relations of the United States (dos Estados Unidos), e, na Europa, os arquivos da Francisco Franco Foundation e da Federación Universitaria Española (ambos da Espanha), e o UK’s National Archives (da Inglaterra), além de documentos complementares. Nesse sentido, vale destacar que é um livro escrito em língua inglesa, construído de forma não dependente da perspectiva dos Estados Unidos - o que não denota distanciamento deste país, pois são feitos apontamentos importantes sobre o papel estadunidense. Os atores dessa obra são majoritariamente latino-americanos, sujeitos muitas vezes ausentes nas narrativas sobre a Guerra Fria.

As quatro partes do livro foram escritas com argumentos sólidos em cada uma delas, e funcionam muito bem quando integradas. Foram sequenciadas de forma cronológica. Na Introdução, é feita uma breve descrição da Legião do Caribe, apontando certo silêncio historiográfico sobre o assunto e a dificuldade de acesso às fontes. A Legião não tinha uma estrutura institucional, era um agrupamento de exilados, políticos, aventureiros e simpatizantes que se reuniram para viabilizar missões contra as Ditaduras no Caribe. Não obstante, obteve o patrocínio de presidentes da região, a exemplo de Rómulo Bettancourt (Venezuela), José Figueres (Costa Rica) e Jacobo Arbenz (Guatemala).

O segundo capítulo da obra aborda a atuação da Legião do Caribe e a ilha de Cuba, tendo como ponto de partida a formação do Movimento Revolucionário 26 de julho e o cenário político na ilha. Nele é também introduzida a oposição ao agrupamento da Legião, a Transnacional de la Mano Dura, formada por ditadores caribenhos, como Trujillo, da República Dominicana, e Anastasio Somoza, da Nicarágua. A análise da Transnacional não é tão extensa quanto a da Legião, mas sua inclusão é importante para mostrar como também havia uma coordenação entre os Estados da região para suprimir as aspirações democráticas e revolucionárias.

Na sequência, o apoio que o M-26-7 adquiriu da Legião pautou o terceiro capítulo, a internacionalização da Revolução Cubana. Ambientado durante o exílio de Castro e de outras lideranças do Movimento no México, entre 1955 e 1956, essa parte do livro demonstra como o M-26-7 passou a integrar a Legião tendo como ponto de contato a facção dos exilados cubanos do Partido Autêntico que apoiavam uma insurreição contra Batista. Os exilados são os principais agentes da narrativa, e o autor fez uma boa interlocução com a historiografia sobre o assunto, a exemplo das referências a Luis Roniger e Mario Sznajder, que analisam as especificidades e a historicidade do exílio latino-americano.

Os laços de sociabilidade estão presentes na análise e tiveram um papel importante nesse processo. Foi exilado no México que Fidel Castro conheceu o jovem argentino Ernesto Che Guevara que, desde sua passagem pela Costa Rica, conhecia integrantes da Legião do Caribe. Sua relação com a exilada peruana Hilda Gadea, que se tornaria sua primeira esposa, estreitou os laços de Che Guevara com os exilados guatemaltecos3, e ela os apresentou aos líderes cubanos do M-26-7.

Esse capítulo ainda narra um caso de desentendimento entre os ditadores Trujillo e Batista, tendo como pivô a cota de açúcar comprada pelos Estados Unidos. Essa disputa engendrou uma inusitada colaboração. Houve uma efêmera aliança entre o ditador dominicano Rafael Trujillo e o Movimento 26 de Julho, tendo como inimigo comum o presidente cubano, Fulgência Batista. Porém, após chegarem a um entendimento quanto ao mercado de açúcar, ambos os ditadores se reconciliaram, em 1957. Esse episódio é interessante por demonstrar que havia uma dimensão pragmática na atuação dos revolucionários cubanos e da própria Legião do Caribe, trazendo mais nuances a um comprometimento que poderia ser caracterizado como ideologicamente rígido com a causa democrática.

O quarto e último capítulo tem como recorte o desenlace da Revolução em Sierra Maestra, contabilizando o apoio que a Legião proveu aos guerrilheiros. Nessa parte é possível ver o adensamento da colaboração entre os guerrilheiros cubanos e a Legião do Caribe, explorado no livro sob dois eixos: o apoio venezuelano, por meio do presidente Rómulo Betencourt, e a colaboração costa-riquenha, possibilitada pela ação do presidente José Figueres. O apoio se materializou em armamentos, dinheiro, propaganda e suporte diplomático.

Na Conclusão, há uma sistematização das questões abordadas nos quatro capítulos, e alguns apontamentos. A Revolução Cubana foi o último ato da Legião do Caribe. Entre as motivações de sua dissolução, segundo Solórzano, está o papel que os caribenhos julgavam que os Estados Unidos deveriam assumir nela. Enquanto Betencourt e Figueres acreditavam numa possível colaboração com o país, Castro rechaçava a ideia. Na medida em que o regime cubano se radicalizou, a tolerância e, depois, a adesão ao ideário comunista, também se tornou um fator de clivagem. Os presidentes Betencourt e Figueres ainda foram instados pelos Estados Unidos a buscar uma “contenção” de Fidel Castro, mas sem grandes resultados. Já em 1959, o novo governo cubano rompeu com os antigos aliados.

O livro também sugere que o apoio do regime revolucionário cubano às incursões na região do Caribe, embora muitas vezes atribuído ao internacionalismo comunista, era um desdobramento da articulação transnacional na qual o próprio M-26-7 esteve integrado desde os anos de combate à Ditadura de Fulgêncio Batista.

Apostando num certo legado que poderia ser atribuído à Legião, e na caracterização regional da Guerra Fria no Caribe, o autor afirmou que:

A maioria de suas ações militares não obteve sucesso, no entanto, apesar disso, eles conseguiram mudar a maré da região das trevas ditatoriais para uma esperançosa abertura para a Democracia no final dos anos 1950. Talvez seu verdadeiro sucesso não tenha residido em suas invasões e revoluções, mas no fato de que, apesar das derrotas, elas continuaram; representando aqueles da região e do mundo hispânico em geral que se recusaram a se submeter a ditaduras. O triunfo da Legião foi seu compromisso inabalável com o ideal da Democracia diante de adversidades esmagadoras: a vitória da Legião está em nunca ter aceitado a derrota (Solórzano, 2020, p. 99. Tradução nossa).

Embora tente mostrar a dimensão transnacional e integrada da Revolução Cubana, distanciando-se do tom épico-nacionalista a que aludimos no começo da resenha, essa passagem demonstra que a obra por vezes envereda em uma narrativa entusiasmada do embate entre Democracia versus Ditadura, beirando certa romantização. O livro norteia-se pelos estudos da Guerra Fria latino-americana e contribui com eles - nesse caso, em particular com a Caribbean Cold War, como destacado no título. Para o autor, a fundamentação de uma Guerra Fria no Caribe, nesse período, se estruturaria nessa dicotomia Democracia/Ditadura, conforme reiterado em várias passagens da obra. Embora seja uma consideração válida, levando em conta a identificação quase imediata que se esboça entre Guerra Fria e Comunismo, a análise do autor se beneficiaria de certos matizes.

O autor argumentou que mercenários e contrabandistas foram usados por ambos os lados, denotando que a Legião do Caribe não era um grupo fechado de democratas incorruptíveis. Embora apresente diferenças no grupo, há uma preocupação maior em reforçar que a Democracia era um elemento de coesão. Considero, no entanto, que seria interessante sugerir como o próprio entendimento de Democracia estava sendo disputado naquele contexto, mais do que apresentá-lo como um parâmetro de classificação.

Essa “abertura conceitual” também poderia se desdobrar em um olhar para o horizonte latino-americano, não apenas caribenho. Nesse sentido, como demonstrou a clássica obra de Ian Roxborough e Leslie Bethell, Latin America between the Second World War and the Cold War 1944-1948 (1997), a transição entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o começo da Guerra Fria também foi um momento de tensão entre aspirações autoritárias e anticomunistas e forças democráticas, sobressaindo-se as primeiras. Desenhava-se uma Guerra Fria latino-americana na qual as contradições da Democracia Liberal e as demandas político-sociais teriam um papel de destaque, e a conexão desse quadro maior com a Revolução Cubana ofereceria uma forma inovadora e instigante de repensá-la.

O autor também sugeriu que a adesão do Movimento 26 de Julho à Legião do Caribe “[...] moldou o início do movimento revolucionário cubano, que adotou a ênfase democrática e antiditatorial da Legião.” (Solórzano, 2020, p. 64. Tradução nossa). Mas não houve o mesmo esforço por parte do pesquisador em dimensionar as prerrogativas democráticas que uniam os grupos opositores à Ditadura de Batista em Cuba, entre eles o M-26-7. É importante destacar que havia certo compromisso quanto à restituição do marco legal da Constituição de 1940, que tinha várias prerrogativas democráticas, e a convocação de novas eleições, por exemplo. Esses eram elementos que ligavam o M-26-7 e setores liberais - compromisso que, vale destacar, foi rechaçado pelos guerrilheiros quando assumiram o governo. Nesse caso, destaca-se a necessidade de melhor precisar as conexões transnacionais com a dimensão nacional do processo revolucionário, de suma importância para sua compreensão.

Esses apontamentos buscam problematizar certos pontos sugeridos pela articulação espacial, temática e conceitual empreendida por Nicolás Prados Ortiz de Solórzano, o que não inválida sua tese central e sua argumentação. Nesse sentido, destacamos que a obra é uma contribuição original, bem estruturada e instigante para reconsiderar as conexões transnacionais da Revolução Cubana como um elemento constitutivo do processo, não apenas a partir dela.

REFERÊNCIAS

  • BETHELL, Leslie; ROXBOROUGH, Ian (Eds.). Latin America between the Second World War and the Cold War 1944-1948. Cambridge: Cambridge University Press, 1997.
  • FRIEDMAN, Max Paul; FERREIRA, Roberto García. Making Peaceful Revolution Impossible: Kennedy, Arévalo, the 1963 Coup in Guatemala, and the Alliance against Progress in Latin America’s Cold War. Journal of Cold War Studies, v. 24, n. 1, pp. 155-187, Winter 2022.
  • GLEIJESES, Piero. Juan Jose Arévalo and the Caribbean Legion. Journal of Latin American Studies, v. 21, issue 1-2, pp. 133-145, June 1989.
  • RANDALL, Margareth. Exporting Revolution: Cuba’s Global Solidarity. Durham: Duke University Press, 2017.
  • SOLÓRZANO, Nicolás Prados Ortiz de. Cuba in the Caribbean Cold War: Exiles, Revolutionaries and Tyrants, 1952-1959. Oxford: Palgrave Macmillan, 2020.
  • WRIGHT, Thomas C. Latin America in the Era of the Cuban Revolution. London: Preager, 2001.
  • 1
    Recentemente, Margareth Randall (2017) abordou os contornos globais da influência da Revolução Cubana, expandindo também seu temário.
  • 2
    Do qual destacamos desde o artigo referencial de Piero Gleijeses (1989) até a recente análise de Max Paul Friedman e Roberto García Ferreira (2022).
  • 3
    Che Guevara ainda passou pela Guatemala em 1954, mesmo ano em que ocorreu o golpe de Estado contra Jacobo Arbenz Guzmán. Patrocinado pelo governo dos Estados Unidos, a deposição de Arbenz motivou um grande fluxo de exilados e impulsionou o anti-imperialismo do jovem argentino e de muitos de sua geração.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    06 Maio 2022
  • Aceito
    24 Ago 2022
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