Em audiência ocorrida no Senado brasileiro, no mês de junho de 1976, o paisagista e expoente do naturalismo Burle Marx denunciava que a Amazônia havia sido vítima do maior incêndio da história do planeta. Os satélites da Nasa tinham então registrado uma queimada florestal de 25 mil km2 no sudeste da região. A área atingida situava-se na intersecção de várias fazendas de gado. O fato foi amplamente comentado na imprensa internacional. Aquecia-se o debate em torno das estratégias desenvolvimentistas para se superar o chamado atraso regional (Acker, 2014, p. 22-23). No último quartel do século XX, a Amazônia tornou-se um capítulo importante da contestação da noção de progresso. Nela, o rápido avanço de novas frentes de exploração capitalista (protagonizado por grandes projetos agrominerais e por agências governamentais) era representado pelas classes dirigentes brasileiras como a aceleração do tempo histórico tendo em vista a antecipação do desenvolvimento. O otimismo em relação à alavancagem dos índices de bem-estar da população regional por meio de grandes projetos entrou em crise sobretudo nos anos 1980. Ao lado da denúncia dos negativos impactos sociais causados pela expansão das frentes de exploração, ganhava força a tese de que era necessária e urgente a criação de formas de produção econômica que não destruíssem a natureza e os modos de vida tradicionais.
Enfocar as fronteiras amazônicas nos permite colocar em discussão balizas de grandes narrativas históricas. De um lado, noções como progresso e atraso têm aí se desdobrado em formação de latifúndios, degradação ambiental e trabalho escravo ou degradante, num flagrante contraste entre promessa e realização. Por outro lado, a história nacional pretensamente monocultural encontra na sua diversidade sócio-histórica uma via de deslegitimação. Como já apontara Certeau (2008, p. 89), os fenômenos de fronteira nos possibilitam colocar em xeque modelos totalizantes, pois o contato com o diferente abala a pretensão de universalidade daquilo que, na verdade, é apenas uma parte. Dentro mesmo do espaço amazônico tem ocorrido, nas últimas décadas, a institucionalização de territórios (terras indígenas e quilombolas, reservas extrativistas, unidades de conservação ambiental...) visando à preservação da natureza e dos chamados povos tradicionais. Trata-se do desdobramento de uma longa história de lutas que foram conformando fronteiras intrarregionais ainda hoje contestadas, ameaçadas e corajosamente defendidas (Wanderley, 2018). Amazônias indígena, quilombola, ribeirinha e urbana, entre outras, compõem um mosaico que nega noções generalizantes como inferno verde, espaço vazio, região-problema... Noções que mais ocultam do que elucidam.
Ao possibilitar a problematização de abordagens totalizantes a história das fronteiras faz avançar as fronteiras da História. Trata-se de um campo temático fronteiriço, de caráter interdisciplinar, pois se constrói num permanente diálogo com a Antropologia, a Sociologia e a Geografia. Desde o final do século XIX avolumou-se a massa de publicações de militares, diplomatas e geógrafos que viam no estudo dos limites um importante instrumento de fixação da imagem do Brasil-República como nação. Raja Gabaglia, Everardo Backheuser e Jorge Latour, para ficar em poucos exemplos de destaque, mediante a apropriação de postulados de teóricos como Friedrich Ratzel e Camille Vallaux, criaram influente tradição intelectual centrada no imperativo da vivificação das zonas limítrofes do território nacional. A partir de um diálogo com a obra de Frederick Turner, Leo Waibel e Pierre Monbeig inauguraram, na década de 1940, duradoura e prolífica corrente interpretativa, cuja compreensão de fronteira conduzia à noção de frente pioneira (Sprandel, 2005, p. 153-203).
Os estudos publicados no Dossiê “Fronteiras amazônicas” da Revista Brasileira de História se inscrevem num movimento de renovação das formas de se entender e abordar as experiências fronteiriças. Nos últimos anos, pesquisadores das Ciências Humanas e Sociais passaram a elucidar múltiplas práticas de fronteirização, visíveis ou não, em distintas escalas e com uma infinidade de propósitos (Grimson, 2003; Boccara, 2007; Oliveira, 2016; Benedetti, 2018). Os novos estudos nos lembram que os espaços não são desde sempre recortados, delimitados, enfim, diferenciados. O processo de constituição de fronteiras deve ser compreendido à luz de contextos e sujeitos históricos específicos. Conquistas, conflitos, negociações, alianças e outros meios têm ensejado, na Amazônia, assim como em outras partes do Brasil e do mundo, sobreposições territoriais, ou fronteiras dentro da fronteira. Além disso, os sujeitos que aí vivem estabelecem relações e constituem redes que por vezes nos obrigam a relativizar a definição de fronteira como margem e a compreender constructos geográficos policêntricos, assim como polissêmicos.
Ganham destaque nas páginas deste Dossiê os discursos sobre a fronteira. Científicos, literários, diplomáticos, cartográficos e outros, ao longo do tempo, tais discursos depositaram camadas de significados que foram se sedimentando e gerando formas de imaginação espacial. Esses regimes de representação orientaram intervenções estatais no mundo da vida e ainda hoje são usados como justificativa de ações autoritárias, colonialistas e, portanto, não abertas ao diálogo com os sujeitos que vivem na e da fronteira, sobretudo com os dominados ou subalternizados. A relação entre saber e poder é destacada nos quatro primeiros artigos. Rômulo de Paula Andrade nos apresenta uma Amazônia rasgada pela política de rodovialização da década de 1960. A floresta abre então seus arcanos, revelando novo ecossistema viral e, deste modo, ensejando o avanço da fronteira do saber acerca das doenças tropicais. Francisco Bento da Silva e Gerson Rodrigues de Albuquerque abordam a retórica colonialista estruturante do relato de Paul Walle, publicado em 1910. Os autores apontam que esse viajante francês, atento à competição comercial entre os países colonizadores europeus pelos mercados da periferia global, produziu uma narrativa que, ao mesmo tempo, hierarquiza povos e exalta o potencial econômico do bioma amazônico. O artigo de Márcia Regina Capelari Naxara aborda escritos literários do início do século XX cujas páginas desvelam lugares sombrios: florestas tropicais que escondem seus segredos e riquezas do olhar cobiçoso e curioso do ádvena. No contexto de franco avanço imperialista das potências econômicas sobre o Sul global, as narrativas de Joseph Conrad e Alberto Rangel representam como trágico o fim das incursões “civilizatórias” nos vales do Congo e do Amazonas. O texto de Carlo Maurizio Romani analisa o litígio anglo-brasileiro pela posse da área fronteiriça do Pirara (situada entre o que hoje são o estado de Roraima e a Guiana). O autor argumenta que a superioridade dos investimentos científicos ingleses foi algo decisivo no arbitramento internacional, que culminou em decisão desfavorável ao Brasil.
Os três artigos seguintes analisam as convergências, incongruências e divergências entre agentes estatais (portugueses, espanhóis e franceses), povos indígenas, negros que fugiam da escravidão e missionários que atuaram na Amazônia, durante os dois primeiros séculos de sua colonização. Abordando o processo de demarcação de limites realizado a partir do Tratado de Santo Ildefonso (1777), Adilson Junior Ishihara Brito aponta para a importância econômica e geopolítica dos rios nas disputas das Coroas de Portugal e Espanha por territórios americanos. Numa atmosfera de desconfianças, as autoridades portuguesas usaram de estratégias variadas para não perder o controle de vias fluviais, tais como: mapeamento científico, descimentos de indígenas e improvisação de povoamentos. O artigo de Rafael Ale Rocha destaca que a constituição da fronteira não se dá apenas por meio de tratados (como o de Utrecht), pois ela decorre, amiúde, da desobediência, da rebeldia e da mobilização de sujeitos, como indígenas, negros e desertores. O autor também elucida como, no Cabo Norte da primeira metade do século XVIII, os aruãs usaram a situação de fronteira em proveito próprio. As fugas, o estabelecimento de alianças e o trato do comércio são sendas por onde podemos entrever o protagonismo de povos indígenas que então viviam na região da foz do rio Amazonas. Por fim, Roberta Lobão Carvalho enfoca o desencaixe e as divergências entre as expectativas da Coroa portuguesa e os interesses de grande parte da elite do Grão-Pará nas primeiras décadas do século XVIII. A pesquisadora igualmente põe em relevo os atritos entre membros do governo local e jesuítas, ocorridos por causa da espinhosa questão do controle do trabalho indígena.
O amplo e variado espectro de questões abordadas neste Dossiê evidencia a complexidade da história das fronteiras amazônicas e o trabalho competente de historiadores, de diferentes gerações, no sentido de compreendê-la. Resta desejar a todos uma mui proveitosa leitura.
REFERÊNCIAS
- ACKER, Antoine. “O maior incêndio do planeta”: como a Volkswagen e o regime militar brasileiro acidentalmente ajudaram a formar a Amazônia em uma arena política global. Revista Brasileira de História, São Paulo: Anpuh, v. 34, n. 68, p. 1333, 2014.
- BOCCARA, Guillaume. Poder colonial e etnicidade no Chile: territorialização e reestruturação entre os Mapuche da época colonial. Tempo, Niterói: UFF, v. 12, n. 23, p. 56-72, 2007.
- BENEDETTI, Alejandro. Claves para pensar las fronteras desde una perspectiva geográfica. Geousp - Espaço e Tempo, São Paulo: USP/Depto. de Geografia, v. 22, n. 2, p. 309-328, 2018.
- CERTEAU, Michel. A escrita da História 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
- GRIMSON, Alejandro. La nación en sus limites: contrabandistas y exilados en la frontera Argentina-Brasil. Barcelona: Gedisa, 2003.
- OLIVEIRA, João Pacheco de. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016.
- SPRANDEL, Marcia Anita. Breve genealogia sobre os estudos de fronteiras e limites no Brasil. In: OLIVEIRA, Roberto C. de; BAINES, Stephen G. (org.). Nacionalidade e etnicidade em fronteiras Brasília: Ed. UnB, 2005. p. 153-203.
- WANDERLEY, Luiz Jardim de M. Repensando a noção de fronteira no contexto da reestruturação espacial da Amazônia no século XXI. Terra Livre, São Paulo: AGB, ano 31, v. 1, n. 46, p. 13-48, 2018.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
09 Dez 2019 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2019