Acessibilidade / Reportar erro

Raça e cultura no pensamento antropológico clássico1 1 Agradeço a Cláudio Pinheiro pelas trocas intelectuais e a Helena Schiel pela leitura de uma versão prévia deste artigo, bem como aos pareceristas pelos valiosos comentários. Como sempre, sou especialmente grato a Héllen Bezerra, que me apoia e acolhe cotidianamente. Por fim, agradeço ao CNPq pela bolsa de pós-doutorado (processo 172375/2023-1).

Race and Culture in Classical Anthropological Thought

RESUMO

Este ensaio tem por objetivo descortinar os conceitos de raça e cultura naquilo que se compreende como antropologia clássica, ou seja, aquela produzida entre o final do século XIX até a revolução estruturalista, aproximadamente. Pretende-se com isso não apenas contribuir para o debate contemporâneo acerca da relação entre antropologia e raça, como também propor interpretações historicamente contextualizadas. Visa-se, além disso, fornecer ferramentas conceituais a estudantes de ciências humanas para uma compreensão mais global sobre os conceitos de raça e cultura quando da emergência e do estabelecimento da antropologia.

Palavras-chave:
Antropologia clássica; Cultura; História da antropologia; Raça

ABSTRACT

This essay aims to unveil the concepts of race and culture in what is understood as classical anthropology, which was the anthropology produced approximately between the end of the 19th century and the structuralist revolution. The aim is to contribute to the contemporary debate on the relationship between anthropology and race and propose historically contextualized interpretations. It also aims to provide humanities students with conceptual tools for a more global understanding of concepts of race and culture during the emergence and establishment of anthropology.

Keywords:
Classical anthropology; Culture; History of anthropology; Race

INTRODUÇÃO

Poucos anos após o fim do maior conflito bélico da história, a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), cuja ideologia racista fundamentou-se em interpretações politicamente enviesadas dos conhecimentos científicos até então vigentes, para afirmar a supremacia moral e física de uma suposta raça humana e justificar o extermínio industrial de populações classificadas como racialmente inferiores, a Unesco produziu uma declaração com o intuito de elucidar o estado da arte dos estudos científicos sobre raça, além de condenar moralmente o racismo. Sob a liderança e a edição do notório especialista em questões raciais Ashley Montagu (1905-1999), autor de Man’s Most Dangerous Myth: The Fallacy of Race (1942), o documento da Unesco publicado em 1950 incluiu, entre seus autores, Claude Lévi-Strauss (1908-2009).

Em virtude das críticas recebidas, dentre outras coisas, por não negar sistematicamente a existência de fundamentos biológicos para a questão da raça, e por não rejeitar a própria existência de raças humanas, o documento The ­Race Question foi atualizado dois anos mais tarde, e então continuamente, até a década 1970 (Montagu, 1997MONTAGU, Ashley. Man’s Most Dangerous Myth: The Fallacy of Race. London; New Delhi: Altamira Press, 1997 [1942]. [1942]). Lévi-Strauss, no entanto, prosseguiu colaborando com a campanha da Unesco contra o racismo, e em 1952 publicou, comissionado pela organização, o ensaio “Raça e História” (Lévi-Strauss, 1973 [1952]LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e História. In: LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural Dois. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973 [1952]. pp. 328-368.). Dirigido ao grande público, mas também aos especialistas, o ensaio de Lévi-Strauss tem como objetivo não apenas refutar os fundamentos teóricos e os resultados empíricos da antropologia evolucionista - além de correntes antropológicas que, de certa maneira, dialogavam com o evolucionismo -, mas também atacar os seus subprodutos que haviam se unido ao senso comum, como, por exemplo, a ideia de que haveria uma sucessão histórica pelas quais as sociedades e culturas transitaria, e cujo fim seriam os modelos ocidentais de existência. Seu ataque à antropologia evolucionista e ao etnocentrismo concentra-se, portanto, em demolir as epistemes do evolucionismo e em refutar a primazia das culturas europeias a favor de um elogio da diversidade cultural.

Quando Lévi-Strauss adverte que as hipóteses promulgadas por aqueles que considera os fundadores do evolucionismo social - Herbert Spencer (1820-1903) e Edward Burnet Tylor (1832-1917) - não são “senão a maquilagem falsamente científica de um velho problema filosófico para o qual não existe qualquer certeza de que a observação e a indução possam um dia fornecer a chave” (ele refere-se à hierarquia entre raças, sua relação, por um lado, com fenômenos culturais, e, por outro, com a psicologia individual), ele não refuta somente uma linha interpretativa que, no final do século XIX, era central (mas não única) - o evolucionismo -, mas também enfrenta um campo de estudos interdisciplinar, que se utilizava de métodos, conceitos e paradigmas de campos da craniometria à linguística histórica, da etnografia à psicologia, para determinar cientificamente os conceitos de raça e cultura, e que está em íntima conexão com a emergência da antropologia como saber2 2 É preciso fazer um pequeno comentário sobre a nomenclatura conceitual empregada neste ensaio. Como etnografia entende-se a coleta de material empírico por meio do trabalho de campo, sua descrição e análise. Embora, como se verá, a antropologia tenha surgido como um ramo das ciências naturais - o que hodiernamente é conhecido por antropologia biológica ou física -, o conceito de antropologia tal como utilizado aqui refere-se ao estudo amplo, que engloba tanto a etnografia como outras maneiras de discorrer acerca das sociedades e culturas humanas, como teoria antropológica. .

Argumentações sobre a existência de raças humanas e as maneiras como estas relacionam-se com as culturas não foram, portanto, privilégio exclusivo do evolucionismo britânico, mas intrínsecas aos discursos de um determinado período histórico do pensamento social. Embora tão diversas em fundamentos científicos, métodos teóricos e empíricos, objetos e objetivos de estudos, muitas destas obras podem ser rotuladas como clássicos da antropologia, se considerarmos, como Ítalo Calvino, que assim são livros “que deixam traços na cultura ou nas culturas que atravessaram”, que são obras que provocam “incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si” e que persistem “como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível” (Calvino, 1993CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993., pp. 11-14). Dito isso, muito pragmaticamente o recorte temporal do presente ensaio estende-se desde o início da antropologia enquanto disciplina científica no século XIX - mas com uma pequena revisão da emergência dos conceitos de cultura e raça no final do século XVIII - até o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quando raça e cultura foram desconectadas uma da outra na antropologia, e cujo período coincide com a morte de Bronisław Malinowski (1884-1942) e Franz Boas (1858-1942) e com grandes mudanças teóricas, como a emergência do estruturalismo francês e o desdobramento da influência de Boas em áreas como a escola de personalidade e cultura e os estudos em diásporas africanas.

AS CONSTRUÇÕES DOS CONCEITOS DE RAÇA E CULTURA

Raça, enquanto construção conceitual, remete à própria origem da antropologia - o estudo das características físicas e biológicas da espécie humana. O historiador da filosofia norte-americano John H. Zammito defende que a Anthropologie nasceu da filosofia ao longo do século XVIII, quando filósofos como David Hume (1711-1776) e Denis Diderot (1713-1784) contribuíram para uma mudança de paradigma nas ciências naturais (Zammito, 2002ZAMMITO, John H. Kant, Herder, and the Birth of Anthropology. Chicago; London: The University of Chicago Press, 2002., pp. 229-230). Foi ainda no século XVIII que alguns pensadores das ciências da vida, como o conde de Buffon Georges Louis Leclerc (1707-1788) e Johann Friedrich Blumenbach (1752-1840), começavam a dissertar sobre as assim chamadas raças humanas e a especular sobre a quantidade de suas origens (Zammito, 2002ZAMMITO, John H. Kant, Herder, and the Birth of Anthropology. Chicago; London: The University of Chicago Press, 2002., pp. 222-253 passim). Ao articular um prisma de conhecimentos relativos ao conhecimento do homem, tais como a psicologia fisiológica e a psicologia racional, o modelo biológico aplicado ao estudo das almas animais, o modelo conjuntural da teoria histórico-cultural e a literatura, inclusive a literatura de viagem, a filosofia produziu um discurso antropológico (Zammito, 2002ZAMMITO, John H. Kant, Herder, and the Birth of Anthropology. Chicago; London: The University of Chicago Press, 2002., p. 222). A gênese da Anthropologie resulta, destarte, da interconexão da filosofia com as ciências naturais e a literatura. Foi, todavia, com a antropologia de Immanuel Kant (1724-1804) e a reformulação dos seus estudos pré-críticos das décadas de 1760 e 1770 por Johann Gottfried von Herder (1744-1803) que a Anthropologie se tornou uma “nova ciência do homem”, abordando-o simultaneamente do ponto de vista filosófico e biológico (Zammito, 2002ZAMMITO, John H. Kant, Herder, and the Birth of Anthropology. Chicago; London: The University of Chicago Press, 2002., pp. 347-348).

No século XIX, a Anthropologie dedicava-se sobretudo à pesquisa acerca da diversidade biológica da humanidade, ao se situar no cruzamento interdisciplinar de métodos e temas oriundos da anatomia humana, da craniologia, da antropometria, da paleontologia, da arqueologia, da linguística, da etnologia e da história, culminando na fomentação de teorias raciais (Massin, 1996MASSIN, Benoit. From Virchow to Fischer. Physical Anthropology and “Modern Race Theories” in Wilhelmine Germany. In: STOCKING JR., George W. (Ed.). Volksgeist as Method and Ethic: Essays on Boasian Ethnography and the German Anthropological Tradition. Madison: The University of Wisconsin Press , 1996. pp. 79-154., pp. 81-82). As diferenças biológicas humanas e sua relação com a natureza envolvente, em especial a influência do meio ambiente e do clima sobre as aparências fenotípicas, são questões fundamentais na antropologia kantiana, enquanto os cientistas naturais Buffon e Blumenbach, embora fossem monogenistas - ou seja, defendiam a origem única para todas as raças humanas -, advogavam pela teoria da degeneração, segundo a qual a raça humana original era caucasiana, e as demais eram corruptelas dela, degeneradas por questões ambientais, como a influência do sol e a oferta nutricional.

Blumenbach de fato comparou anatomicamente sessenta crânios humanos - incluindo um crânio Botocudo, presenteado pelo príncipe Maximilian zu Wied-Neuwied (1782-1867), que ele escavou durante suas expedições pelo Brasil entre 1815 e 1817 - e propôs a classificação da humanidade em cinco raças: Caucasiana, Mongol, Malaio, Etíope e Americana (Petschelies, 2022PETSCHELIES, Erik. Ascensão e Declínio da Etnologia Alemã (1884-1950). Campinas: Editora da Unicamp, 2022.). No entanto, Blumenbach, apesar de ser considerado o fundador da craniometria e dos estudos raciais, não supôs uma hierarquia cultural e moral entre as raças, dado que as diferenças fisiológicas entre elas seriam tão pequenas e graduais que uma separação absoluta e uma comparação sistemática não seria possível - uma de suas facetas menos conhecidas é a de ferrenho adversário da escravidão e de divulgador do antirracismo. Para Han Vermeulen, embora Kant tenha se dedicado substancialmente à antropologia, ele não contribuiu efetivamente para o conhecimento social da espécie humana, e a ele deve ser creditada a invenção do conceito moderno de raça (Vermeulen, 2015VERMEULEN, Han F. Before Boas: The Genesis of Ethnography and Ethnology in the German Enlightenment. Lincoln; London: University of Nebraska Press, 2015., p. 3).

Foi na virada do século XVIII ao XIX, portanto, que intelectuais alemães forjaram o conceito de raça, primeiramente enquanto categoria historiográfica - Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) propusera um conceito de raça sinônimo de língua e afirmava que a distinção entre os grupos humanos era da ordem da linguagem, não do fenótipo - e posteriormente como ferramenta analítica das ciências naturais (Eigen; Larrimore, 2006EIGEN, Sara; LARRIMORE, Mark. Introduction: The German Invention of Race. In: EIGEN, Sara; LARRIMORE, Mark (Eds.). The German Invention of Race. New York: New York State University Press, 2006. pp. 1-10.; Fenves, 2006FENVES, Peter. What Progresses’ Has Race-Theory Made Since the Times of Leibniz and Wolff? In: EIGEN, Sara; LARRIMORE, Mark (Eds.). The German Invention of Race . New York: New York State University Press , 2006. pp. 11-22.; Zammito, 2006ZAMMITO, John H. Policing Polygeneticism in Germany, 1775: (Kames), Kant, and Blumenbach. In: EIGEN, Sara; LARRIMORE, Mark (Eds.). The German Invention of Race . New York: Sunny Press, 2006. pp. 35-54.). Foi outro filósofo alemão, Christoph Meiners (1747-1810), com quem Blumenbach manteve virulenta querela sobre a equidade entre as raças humanas, condenada pelo primeiro e aprovada pelo segundo, que associou questões estéticas e morais a raciais: a raça negra não possuiria mais que sentimentos animais, seria sexualmente depravada e preguiçosa (Zammito, 2006ZAMMITO, John H. Policing Polygeneticism in Germany, 1775: (Kames), Kant, and Blumenbach. In: EIGEN, Sara; LARRIMORE, Mark (Eds.). The German Invention of Race . New York: Sunny Press, 2006. pp. 35-54.). Ao legislar sobre os corpos, a antropologia biológica oitocentista estendia suas determinações às manifestações morais: as raças americanas e africanas não seriam apenas fisicamente inferiores, mas apresentariam inteligência aquém da europeia.

Provêm das primeiras décadas do século XIX um conjunto de estudos e doutrinas que ordenavam hierarquicamente as raças humanas: o poligenista francês Georges Cuvier (1769-1832) relacionava a estética racial às qualidades civilizatórias; seu conterrâneo, o aristocrata Arthur de Gobineau (1816-1882), autor do ensaio pseudocientífico Essai sur l’inégalité des races humaines (1853-55), adepto das hipóteses de Meiners e uma das principais vítimas do ataque de Lévi-Strauss (embora já naquele momento a reputação de Gobineau fora devastada), defendia que colapsos civilizatórios resultavam da mistura de raças; e outro poligenista, Carl Vogt (1817-1895), relacionava a raça negra a primatas3 3 Atualmente, a produção racista e supremacista, de Gobineau aos antropólogos físicos a serviço do nazismo, como Eugen Fischer (1871-1967), pode ser considerada pseudocientífica quando confrontada com os princípios enunciados pela filosofia da ciência e que regem os métodos científicos, como empirismo, refutabilidade, repetibilidade, objetividade, consistência, predição e parcimônia. A obra fundamental de Karl Popper (1934) é especialmente elucidativa acerca da divisão entre ciência e não-ciência. Popper argumenta que o atributo mais relevante da ciência é sua falsificabilidade, ou seja, que as teorias devem ser testáveis e falsificáveis. Isso significa que, ao invés de buscar por confirmações para as teorias, é preciso buscar evidências para refutá-las. Se uma teoria é estruturada de modo a ser imune à falsificação, ela não é científica. Considerando isso, as teorias de Gobineau, por exemplo, podem ser consideradas pseudocientíficas porque se baseiam em pressupostos não verificáveis e replicáveis, carecem de evidência empírica e não se fundamentam em método rigoroso. .

A união de raça e cultura, de teorias raciais pretensamente científicas e de conhecimentos etnográficos, em suma, da antropologia e da etnologia, ocorreu, no entanto, pela obra de um pupilo de Meiners, o antropólogo e colecionador alemão Gustav Klemm (1802-1867) (Aufgebauer, 2019AUFGEBAUER, Peter. Christoph Meiners: Ein Göttinger Philosoph erfindet den Rassismus. In: NENTWIG, Teresa; TRITTEL, Katharina (Eds.). Entdeckt, erdacht, erfunden: 20 Göttinger Geschichten von Genie und Irrtum. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2019. pp. 47-61.). Klemm, que, além de diretor da biblioteca de Dresden na Alemanha, possuía uma coleção etnográfica de mais de 15 mil peças, defendeu, em sua gigantesca e enfadonha obra de dez volumes Allgemeine Cultur-Geschichte der Menschheit (“História cultural geral da humanidade” - publicada entre 1843 e 1852, que de fato baseava-se em leituras etnográficas e antropológicas, bem como no estudo de cultura material -, não apenas uma hierarquia evolucionista, em que as culturas adentrariam em um modelo progressivo rumo à civilização, como também dividiu a humanidade em raças: fortes, poderosas e belas, como a europeias; corruptas, fracas e doentes, como as demais. Klemm foi, portanto, o primeiro intelectual a propor um modelo evolucionista de culturas humanas, além de associá-lo a uma divisão classificatória das raças. Agora as culturas humanas espelhariam as condições dos corpos de seus criadores: inferiores, atrasados, toscos e condenados à rápida destruição.

O conceito de cultura (Kultur) mobilizado por Klemm tem largo rastro na teoria social alemã. O historiador Fritz K. Ringer salienta que, no final do século XVIII, durante a renovação cultural que ocorria em território alemão, além do conceito de Bildung (educação, formação), Kultur (cultura) tornou-se um termo corrente (Ringer, 1987 [1969]RINGER, Fritz K. Die Gelehrten: Der Niedergang der deutschen Mandarine, 1890-1933. München: Deutscher Taschenbuch Verlag, 1987 [1969]., p. 82). Kultur fora emprestado pelo jusnaturalista Samuel Pufendorf (1632-94) e, posteriormente, por Herder, do conceito de cultura animi de Cicero (106-43 a.C.). Durante o século das luzes, Kultur permaneceu próximo à Bildung, e expressava o significado de “cultivação pessoal”, a “cultivação do espírito e da alma” (Ringer, 1987RINGER, Fritz K. Die Gelehrten: Der Niedergang der deutschen Mandarine, 1890-1933. München: Deutscher Taschenbuch Verlag, 1987 [1969]., p. 83). Essa dicotomia, que remete à relação entre a Kultur alemã e a civilisation francesa, demasiado complexa para ser analisada aqui, foi minuciosamente explorada por Norbert Elias e retomada por Adam Kuper (Elias, 1994 [1939]ELIAS, Norbert. O Processo civilizador. Vol. 1: Uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994 [1939].; Kuper, 1999KUPER, Adam. Culture: The Anthropologist’s Account. Cambridge, MA; London: The Harvard University Press, 1999.).

Para Elias, ambos os conceitos surgiram na segunda metade do século XVIII, e civilisation tem um significado muito próximo à ideia inicial de Kultur, a de cultivação pessoal do homme civilisé (Elias, 1994ELIAS, Norbert. O Processo civilizador. Vol. 1: Uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994 [1939]., pp. 53-54). Em seguida, Kultur passou a ser utilizado com seu sentido social e não pessoal, evidenciando as realizações “civilizadas” dos homens em sociedade. Em 1784, Kant fez uma distinção clara entre civilização e cultura, ao associar o primeiro conceito a boas maneiras e comportamento social adequado, e cultura a arte e ciência, tradições e costumes. Nesse sentido, progressivamente a Kultur passou a abarcar a noção de civilização, uma vez que, segundo Ringer, a Kultur representava o “estado ‘interno’ e as realizações dos homens cultivados” e civilização cobria a existência mundana (Ringer, 1987RINGER, Fritz K. Die Gelehrten: Der Niedergang der deutschen Mandarine, 1890-1933. München: Deutscher Taschenbuch Verlag, 1987 [1969]., pp. 85-86).

A ação determinante em direção ao conceito moderno de cultura foi executada pelo filósofo alemão Johann Gottfried von Herder (1744-1803), que transformou a Kultur em uma característica constitutiva de todas as nações, rejeitando, ao mesmo tempo, a ideia de que cultura se relaciona unicamente à cultivação pessoal, ou que seja exclusividade germânica. Herder se vale, em suas obras filosóficas, de realizações culturais de diversas nações, e garante que a cultura é um fenômeno universal. Além disso, ele afirma que “cada nação tem o centro da felicidade dentro de si, como toda esfera o centro de gravidade” (Herder, 1774HERDER, Johann Gottfried von. Auch eine Philosophie der Geschichte zur Bildung der Menschheit. Riga: Hartknoch, 1774., p. 56). A ideia de que nações sejam esferas circunscritas e em movimento, autodeterminantes e independentes, evidentemente remete à noção de mônada de Leibniz. Porém, mais importante do que isso, revela uma sociologia das culturas: os sistemas homogêneos das culturas são capazes de se comunicar, mas também de entrar em conflitos. As culturas são dinâmicas e o universo é plural, por ser composto por inúmeras esferas culturais.

O seu conceito de Humanitätsideal compreende, portanto, a ligação comum a todos os humanos, expressa na diversidade humana (Bunzl, 1996BUNZL, Matti. Franz Boas and the Humboldtian Tradition: From Volksgeist and Nationalcharakter to an Anthropological Concept of Culture In: STOCKING JR., George W. (Ed.). Volksgeist as Method and Ethic: Essays on Boasian Ethnography and the German Anthropological Tradition. Madison: The University of Wisconsin Press, 1996. pp. 17-78., p. 20). Isso significa que, para Herder, a espécie humana compartilhava uma unidade física - não existiriam diferenças fisiológicas relevantes, muito menos raças humanas - e uma unidade psíquica - a mente humana é única e seu funcionamento é universal. A unidade física e psíquica humana é, para Herder, ahistórica e transcultural, porque abarca a totalidade humana. A diferença cultural, portanto, é uma expressão da unidade, e a diversidade cultural é calcada em relações históricas de continuidade e descontinuidade. Foi, portanto, Herder quem aboliu a ideia de povos sem história e sem cultura, de uma hierarquia entre grupos sociais, e uma divisão da humanidade em raças. Para o filósofo, todos os povos possuem culturas, porque elas resultam diretamente do funcionamento da mente. Dessa maneira, além de combater o eurocentrismo e as teorias raciais de sua época, Herder pavimentou o caminho para a apreciação da diversidade cultural e do relativismo. A concepção de Klemm, embora racializada e hierárquica, é tributária da filosofia de Herder, uma vez que, embora distintas e colocadas em escalas, as culturas são imanentes a todos os grupos sociais.

Destarte, da afirmação de Lévi-Strauss de que os fundamentos do evolucionismo social precedem a doutrina darwiniana da evolução das espécies é possível depreender toda essa pré-história das teorias pseudocientíficas do racismo. Quando os antropólogos evolucionistas começaram a publicar seus estudos realizados em gabinete, ainda antes do impacto da obra de Charles Darwin (1809-1882), já havia na Europa continental um complexo campo de estudos dedicados à compreensão da diversidade fenotípica e cultural observada no mundo social. Além disso, não custa relembrar, o racismo já era parte do imaginário europeu sobre outras populações, na medida em que se instaurou como parte constitutiva do modernismo, do colonialismo e do capitalismo, defende Aníbal Quijano (Quijano; Ennis, 2000QUIJANO, Anibal; ENNIS, Michael. Coloniality of Power, Eurocentrism, and Latin America. Nepantla: Views from South, v. 1, issue 3, pp. 533-580, 2000.).

EVOLUCIONISMO E DARWINISMO SOCIAL

O termo evolucionista per se abrange, numa mesma rubrica, uma heterogeneidade intelectual. As diferenças entre pensadores como Lewis H. Morgan (1818-1881), Henry Maine (1822-1888), Herbert Spencer (1820-1903), John Ferguson McLennan (1827-1881), John Lubbock (1834-1913) e Edward Burnett Tylor (1832-1917), expressas em nacionalidades, abordagens teóricas, formações intelectuais e objetos de investigação, foram arbitrariamente suprimidas em favor da categorização da escola de pensamento em que historiadores da antropologia inseriram-nos (Almeida, 2010ALMEIDA, Mauro William Barbosa de. Lewis Morgan: 140 anos dos Sistemas de Consanguinidade e Afinidade da Família Humana (1871-2011). Cadernos de Campo, São Paulo, v. 19, n. 19, pp. 309-322, 2010. , p. 309). O norte-americano Morgan, por exemplo, tinha uma relação ambígua com Darwin e, na sua obra System of Consanguinity and Affinity, sequer utilizou o conceito de evolução, que aparece em Ancient Society como sinônimo de progresso, enquanto os britânicos Spencer, McLennan e Tylor foram fortemente influenciados pelo biólogo conterrâneo (Morgan, 1871MORGAN, Lewis H. Systems of Consanguinity and Affinity of the Human Family. Washington: Smithsonian Institution, 1871. ; Morgan, 1877MORGAN, Lewis H. Ancient Society: Or Researches in the Lines of Human Progress from Savagery through Barbarism to Civilization. Chicago: Charles H. Kerr & Company, 1877. ; Kuper, 2005KUPER, Adam. The Reinvention of Primitive Society: Transformations of a Myth. London; New York: Routledge, 2005. , p. 61). Lubbock, mais do que vizinho e amigo de Darwin, foi ferrenho defensor de suas teorias (Stocking Jr., 1987STOCKING JR., George W. Victorian Anthropology. New York: The Free Press, 1987., p. 150). A conexão entre os autores ocorre no seu interesse em determinar as condições sociais, jurídicas, culturais, econômicas, religiosas e mentais das “sociedades primitivas”, e em demonstrar de quais formas a humanidade alcançou o estado ontológico atual, o que implica em noções mais ou menos explicitamente delineadas de cultura e raça (Kuper, 2005KUPER, Adam. The Reinvention of Primitive Society: Transformations of a Myth. London; New York: Routledge, 2005. ).

Em toda obra de Morgan, cultura é sinônimo de etnicidade e assim relaciona-se ao delineamento de grupos sociais, não às suas manifestações intelectuais e materiais. Os adjetivos “cultural” e “étnico” são usados como sinônimos e são subordinados aos seus esquemas histórico-sociológicos de análise de evolução das instituições sociais (Ben-Zvi, 2007BEN-ZVI, Yael. Where Did Red Go? Lewis Henry Morgan’s Evolutionary Inheritance and U.S. Racial Imagination. CR: The New Centennial Review, v. 7, n. 2, pp. 201-229, 2007.). Raça, todavia, é utilizada de maneira mais complexa. Em System of Consanguinity and Affinity, Morgan não propõe uma análise das raças humanas, dado que o objetivo da obra é instituir o campo do parentesco e suas ferramentas analíticas ao descrever e analisar um impressionante volume de dados sobre a constituição da família humana ao redor do globo. No entanto, ele também não nega a existência de raças humanas - com isso entenda-se a reunião, sob o termo raça, de um grupo de pessoas com aparência física semelhante e que compartilha uma localização geográfica -, e nas pouquíssimas vezes em que o termo é empregado, ele sempre refere-se à conceituação geográfico-fisiológica. Assim, por exemplo, os “esquimós” estão conectados “à raça Mongol” (Morgan, 1871MORGAN, Lewis H. Systems of Consanguinity and Affinity of the Human Family. Washington: Smithsonian Institution, 1871. , p. 268). Ou ainda: “as condições primitivas das raças vermelho e marrom, como revelado por suas instituições domésticas de consanguinidade e afinidade, envolvem sucessivos estágios de barbarismo, cada um mais profundo e menos dedutível do que estamos acostumados a conceber como possível” (Morgan, 1871MORGAN, Lewis H. Systems of Consanguinity and Affinity of the Human Family. Washington: Smithsonian Institution, 1871. , p. 462). Em Ancient Society, entretanto, o conceito de raça é empregado de maneira mais complexa. Primeiramente, para referir-se à humanidade como um todo: “a história da raça humana é única em fonte, em experiência e em progresso” (Morgan, 1877MORGAN, Lewis H. Ancient Society: Or Researches in the Lines of Human Progress from Savagery through Barbarism to Civilization. Chicago: Charles H. Kerr & Company, 1877. , p. VI). Neste sentido, raça é sinônimo da categoria biológica de espécie, e demonstra que Morgan era monogenista e que as diferenças entre os grupos humanos em termos fenotípicos são ínfimas. No entanto, raça é utilizado também como categoria geográfico-fisiológica, ou seja, como parte da “família humana” (Morgan, 1877MORGAN, Lewis H. Ancient Society: Or Researches in the Lines of Human Progress from Savagery through Barbarism to Civilization. Chicago: Charles H. Kerr & Company, 1877. , p. 3). Assim, raça é uma categoria social, que se localiza em determinado local da classificação de agrupamentos humanos: família, tribo, nação, raça e espécie. Acreditando na unidade da espécie humana e na regência de leis naturais sobre o desenvolvimento das instituições sociais, Morgan propôs um esquema evolutivo universal, obrigatório e teleológico: “como é inegável que porções da família humana existiram em estado de selvageria, outras porções em estado de barbarismo, e ainda outras em um estado de civilização, parece que igualmente essas três condições distintas estão conectadas uma com a outra em uma sequência natural e necessária de progresso” (Morgan, 1877MORGAN, Lewis H. Ancient Society: Or Researches in the Lines of Human Progress from Savagery through Barbarism to Civilization. Chicago: Charles H. Kerr & Company, 1877. , p. 3). Dessa maneira, ele enumerou indutivamente estágios pelos quais a humanidade passava como um todo, mas em ritmos diferentes. Todos os povos da terra teriam sido selvagens em algum momento de sua história, no entanto, no momento da publicação de Ancient Society, alguns ainda o eram. A história humana é universal, e as diferenças entre as “sociedades” não são permanentes. Para Morgan, as provas para os estágios culturais das sociedades eram o grau de desenvolvimento de subsistência, governo, linguagem, família, religião, vida doméstica e arquitetura e propriedade (Morgan, 1877MORGAN, Lewis H. Ancient Society: Or Researches in the Lines of Human Progress from Savagery through Barbarism to Civilization. Chicago: Charles H. Kerr & Company, 1877. , p. 4). O desenvolvimento de cada uma dessas instituições ocorreria pelo acúmulo de experiências, portanto, para além de raças e culturas, mas como maneira universal de angariar conhecimento. Ainda é preciso afirmar que, apesar do esquema progressivo da selvageria à civilização, Morgan tratava as condições mentais da humanidade como únicas (Morgan, 1877MORGAN, Lewis H. Ancient Society: Or Researches in the Lines of Human Progress from Savagery through Barbarism to Civilization. Chicago: Charles H. Kerr & Company, 1877. , p. 3).

O linguista alemão Friedrich Max Müller (1923-1900), professor da Universidade de Oxford, foi responsável por desvincular raça e língua, o que fora instituído por Leibniz, e continuava sendo fundamental na orientologia continental (Hutton, 2000HUTTON, Christopher. Race and Language: Ties of “Blood and Speech”, Fictive Identity and Empire in the Writings of Henry Maine and Edward Freeman. Interventions, issue 1, v. 2, pp. 53-72, 2000.). E foi aplicando sua metodologia de filologia comparativa que Maine se concentrou em estudar a relação entre grupos de parentesco e sistemas sociais e jurídicos, propondo um esquema evolutivo universal em que os grupos étnicos alcançavam estágios jurídicos cada vez mais complexos (Maine, 1861MAINE, Henry Sumner. Ancient Law: Its Connection with the Early History of Society, and Its Relation to Modern Ideas. London: John Murray , 1861. ). Ao delimitar parâmetros jurídicos como régua analítica para avaliar sociologicamente grupos sociais, Maine utilizou-se do conceito de raça enquanto unidade sociológica. Assim, por exemplo, os sistemas jurídicos “são coextensivos com todas as ideias que as raças” são capazes de criar (Maine, 1861MAINE, Henry Sumner. Ancient Law: Its Connection with the Early History of Society, and Its Relation to Modern Ideas. London: John Murray , 1861. , p. 25). Dessa maneira, Maine também criou um esquema evolutivo, em que raças eram classificadas e hierarquizadas de acordo com a avaliação de determinado aspecto social - neste caso, os sistemas jurídicos. O ápice, para o autor, seria o das raças arianas da Índia. No entanto, Maine, dado o seu objeto sociológico de investigação, não delimitou conceitualmente o que compreendia por cultura, e raça vagamente foi apenas um suporte conceitual para a comparação de sistemas jurídicos.

John Ferguson McLennan também se utilizou do termo raça como sinônimo de grupo étnico - empregando, como os demais, uma terminologia depreciativa e eurocêntrica - com o intuito de compreender a evolução de uma instituição social específica, o casamento (MacLennan, 1865MACLENNAN, John F. Primitive Marriage: An Inquiry into the Origin of the Form of Capture in Marriage Ceremonies. Edinburgh: Adam and Charles Black, 1865.). O próprio McLennan empregou raça como sinônimo de espécie humana - quando propôs, por exemplo, que a humanidade como entidade passou por estágios totêmicos -, e uma vez que ainda inexistia na antropologia anglo-saxã uma definição clara de cultura, parentesco e casamento não foram analisados por ele em conjunto com outras esferas da vida social, mas como fenômenos sociais isolados. É notório que, embora raça seja sinônimo de grupo social ou étnico, de cultura, tribo, sociedade ou coletividade, os antropólogos evolucionistas apenas raramente utilizavam os nomes étnicos para se referir aos determinados grupos - como “Nuer” ou “Botocudo”, preferindo generalizações como “raça negra” ou “raça americana”. Englobar distinções étnicas, apagar diferenças culturais, sociais e histórias era uma consequência do termo raça na antropologia clássica. Justamente esse é um dos apontamentos de Lévi-Strauss: no evolucionismo “trata-se de uma tentativa para suprimir a diversidade das culturas, fingindo conhecê-la completamente. Porque, se tratarmos os diferentes estados em que se encontram as sociedades humanas, tanto antigas como longínquas, como estágios ou etapas de um desenvolvimento único que, partindo do mesmo ponto, devem convergir para o mesmo fim, vemos bem que a diversidade é apenas aparente” (Lévi-Straus, 1973 [1952]LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e História. In: LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural Dois. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973 [1952]. pp. 328-368., pp. 335-336).

John Lubbock teve atuação fundamental na arqueologia - ele cunhou os termos paleolítico e neolítico - e assim dedicou-se sobremaneira ao estudo dos “povos primitivos” (Lubbock, 1865LUBBOCK, John. Pre-Historic Times, as Illustrated by Ancient Remains, and the Manners and Customs of Modern Savages. London: Williams & Norgate, 1865. ; Lubbock, 1870LUBBOCK, John. The Origin of Civilisation and the Primitive Condition of Man: Mental and Social Condition of Savages. London: Longmans, Green & Co., 1870.). Ele foi bastante influenciado por Klemm e buscou criar um esquema evolutivo dos estados selvagens até a civilização, mas, diferentemente de seus conterrâneos que comparavam uma determinada instituição social retirada de seu contexto cultural, Lubbock colocava em uma linha evolutiva as mais diversas instituições, como religião, magia, língua e questões morais. Além de usar dados etnográficos de vários povos classificados como selvagens, o evolucionismo social de Lubbock ainda englobava manifestações sociais e culturais produzidas por primatas e crianças, além de “elementos de barbarismo” encontrados nas sociedades civilizadas. É fruto da obra dele, portanto, a comparação de manifestações culturais de povos não-europeus com crianças e animais, o que acreditava-se ser pesquisa científica e empírica, no entanto, ainda anterior à obra de Darwin.

Uma sociologia fundamentada na epistemologia das ciências da natureza, ou seja, um evolucionismo social com pretensão de lei natural e baseado em terminologia da história natural, encontra-se apenas a partir de Herbert Spencer. Ele fundou o darwinismo social, que se distinguia do mero evolucionismo social por não apenas categorizar as coletividades humanas em grupos com semelhanças fenotípicas - as raças - e elencá-las em estágios progressivos, mas por carregar da biologia darwiniana para a sociologia alguns conceitos fundamentais (Spencer, 1898SPENCER, Herbert. The Principles of Sociology. Vol. I. London; New York: D. Appleton and Co., 1898.; Spencer, 1910SPENCER, Herbert. The Principles of Biology. Vol I. London e New York: D. Appleton and Co., 1910.). Sobretudo o conceito de “luta pela existência” (struggle for existence), que para Darwin explicava o ímpeto de membros do reino animal e vegetal competirem entre si e tentarem deixar descendentes (Darwin, 1859DARWIN, Charles. On the Origin of Species. London: John Murray, 1859.). Na sociologia biológica de Spencer, no entanto, isso implicava que não apenas existiam raças superiores e inferiores, mas que a competição pela vida entre elas justificava o domínio de uma sobre a outra. Tal como os organismos, as raças humanas seriam moldadas por influências externas, suas características passadas para as próximas gerações, formando o estado atual das raças no mundo (Spencer, 1910SPENCER, Herbert. The Principles of Biology. Vol I. London e New York: D. Appleton and Co., 1910., p. 130)4 4 Importante frisar que a modificação estrutural dos organismos e a sua capacidade de transmissão intergeracional é associada sobretudo a Lamarck. Darwin, todavia, nunca se opôs a essa interpretação. Além disso, os cientistas naturais da virada do século consideravam Lamarck um evolucionista. . Raça para Spencer não era apenas uma unidade sociológica, ou sinônimo de espécie humana, mas era efetivamente um conceito biológico interpretável pela sociologia: “Mas como os organismos (ou pelo menos os organismos animais, de que tratamos aqui principalmente) têm um certo poder de absorção seletiva que, parcialmente em um indivíduo e mais completamente em uma raça, adapta as proporções das substâncias absorvidas às necessidades do sistema” (Spencer, 1910SPENCER, Herbert. The Principles of Biology. Vol I. London e New York: D. Appleton and Co., 1910., p. 152). Enquanto os antropólogos evolucionistas usavam o conceito raça de maneira distinta, porém, sempre com conotações evolucionistas e colonialistas, e Spencer intencionou fornecer uma interpretação objetiva e científica para essa formulação, faltava a esses pensadores ainda uma delimitação circunscrita do conceito de cultura, o que seria necessário para unir sistematicamente uma avaliação sociológica dos agrupamentos e das raças humanas a uma metodologia científica - o que Tylor já havia proposto na década de 1870.

Ao antropólogo britânico Edward Burnett Tylor (1832-1917) geralmente é creditado o delineamento clássico do conceito de cultura, no “seu sentido etnográfico”: “uma totalidade complexa, que inclui conhecimento, crenças, arte, morais, leis, costumes e outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade” (Tylor, 1871TYLOR, Edward B. Primitive Culture: Researches into the Development of Mythology, Philosophy, Religion, Art, and Custom. Vol. I. London: John Murray , 1871.). Todavia, é possível perceber a influência de Herder - e sua noção de Kultur e de Volkscharacter, a união de características diacríticas que tornam cada povo único - e do etnólogo Adolf Bastian (1826-1905), principal nome da antropologia alemã do século XIX. Pois Tylor tinha uma noção orgânica de cultura e advogava pela unidade do gênero humano, uma invenção conceitual da filosofia e da antropologia alemã. Tylor conhecia bem essa genealogia, pois, além de Herder e Bastian, ele também analisou os estudos do linguista alemão Wilhelm von Humboldt (1767-1835), que aplicou o conceito herderiano de Volkscharakter para seu material empírico (Tylor, 1871TYLOR, Edward B. Primitive Culture: Researches into the Development of Mythology, Philosophy, Religion, Art, and Custom. Vol. I. London: John Murray , 1871.; Kuper, 2005KUPER, Adam. The Reinvention of Primitive Society: Transformations of a Myth. London; New York: Routledge, 2005. , p. 4).

Tylor propunha a investigação dos princípios gerais que regiam as leis do pensamento humano, de modo a compreender a evolução das culturas humanas, por meio de relações de causalidade. O primeiro passo para isso seria o estudo e a classificação dos detalhes humanos, tais como apreendidos por etnógrafos e historiadores. A aparição de fenômenos semelhantes seria prova da causalidade evolutiva (Tylor, 1871TYLOR, Edward B. Primitive Culture: Researches into the Development of Mythology, Philosophy, Religion, Art, and Custom. Vol. I. London: John Murray , 1871., pp. 3-4). Tylor, assim, apropriou-se da objetividade científica do evolucionismo darwiniana e da problemática geral do evolucionismo social - que é compreender a evolução social universal da espécie humana -, e aplicou esses fundamentos a uma “ciência da cultura”.

Enquanto para os evolucionistas sociais raça era a categoria que auxiliava a compreender a evolução das instituições sociais e, assim, da humanidade em geral, para Tylor o conceito central por meio do qual era possível explicar os estágios pelos quais a humanidade passava era o de cultura. Todavia, ele compartilhava com os demais evolucionistas uma terminologia racista - raças inferiores e superiores, por exemplo -, focando na comparação de suas manifestações culturais, especialmente magia, religião, mitologia, linguagem e cultura material (Stocking Jr., 1995STOCKING JR., George W. After Tylor. Madison: The University of Wisconsin Press , 1995.). A investigação evolutiva de Tylor deslocava, assim sendo, o foco das raças para as culturas e para comparações universais de manifestações singulares. Embora para Tylor o objetivo principal da antropologia fosse compreender a evolução social, por meio de tratamento científico de dados comparativos obtidos de sociedades ao redor do globo, para isso ele alvejava um ordenamento orgânico das manifestações culturais, e não uma circunscrição arbitrária das manifestações fenotípicas. Tylor, dessa maneira, levou à antropologia anglo-saxã o conceito alemão de cultura, afirmando que todas as unidades sociais do mundo são possuidoras de uma, e é objetivo manifesto da antropologia social compreender suas diferenças e não as diferenças de seus corpos racializados.

À medida que, para os evolucionistas, a ideia de raça desempenhava um papel relevante enquanto categoria sociológica - expressando uma maneira de reunir pessoas, frequentemente como sinônimo de “tribo”, “nação” ou “cultura”, cujas manifestações eram categorizadas de acordo com sua suposta complexidade -, na virada do século XIX ao XX a raça continuou sendo uma preocupação teórica de cientistas naturais.

CULTURALISMO E ANTIRRACISMO: FRANZ BOAS

A forma política e epistemologicamente inovadora e revolucionária como o antropólogo alemão radicado nos Estados Unidos Franz Boas empregou os conceitos de raça e cultura foi amplamente discutida por antropólogos e historiadores da antropologia, de modo a tornar substrato de conhecimento amplo e geral sua ação antirracista, seus constantes e profundos ataques ao evolucionismo social e seu empenho na criação do culturalismo, bem como nos quatro campos constituintes das antropologia norte-americana (arqueologia, antropologia física, antropologia social e linguística). Dado o escopo do presente trabalho - discutir a heterogeneidade dos conceitos de raça e cultura na antropologia clássica -, é impossível dedicar à imensa e diversa obra de Boas o espaço analítico correspondente ao seu impacto na teoria e na prática antropológica. Sem contar as centenas de entradas em sua obra e os mais diversos aspectos dela.

Em um voo panorâmico é possível dizer que, para Boas, raça, linguagem e cultura nunca tiveram correlação, de modo que não apenas as subdisciplinas antropológicas dedicadas à análise destes domínios eram distintas, mas uma não exercia influência sobre outra (Stocking Jr., 1999STOCKING JR., George W. Os pressupostos básicos da antropologia de Boas. In: STOCKING JR., George W. (Org.). Franz Boas: A formação da antropologia americana, 1883-1911. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1999. pp. 15-38.). O conceito de cultura de Boas é tributário da filosofia herderiana, do Volksgeist e das características que fundamentam a diversidade cultural. A cultura, segundo Boas, resulta da relação e da tensão entre os vários elementos que a constituem. Seu crescimento não é exatamente orgânico, embora seja “uma totalidade espiritual integrada”, que “condicionava a forma de seus elementos” (Stocking Jr., 1999STOCKING JR., George W. Os pressupostos básicos da antropologia de Boas. In: STOCKING JR., George W. (Org.). Franz Boas: A formação da antropologia americana, 1883-1911. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1999. pp. 15-38., p. 20). Uma das preocupações teóricas de Boas era, portanto, compreender de quais maneiras o Volksgeist de determinado grupo étnico “integrava os elementos que a acumulação quase acidental de processos históricos reunia” (Stocking Jr., 1999STOCKING JR., George W. Os pressupostos básicos da antropologia de Boas. In: STOCKING JR., George W. (Org.). Franz Boas: A formação da antropologia americana, 1883-1911. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1999. pp. 15-38., p. 21). Utilizando-se de dados sobre mitologia ou folclore, Boas procurava entender a formação histórica e as relações de tensão ou colaboração entre os elementos culturais, mas foi a partir de suas investigações sobre raça e disposições mentais que ele se dispôs mais sistematicamente a estudar empiricamente os Volksgeister. Para Boas, as racionalizações da cultura geral por certos grupos sociais funcionavam em várias camadas mentais, desde o confronto aberto a normas sociais a racionalizações mais profundas, como as da linguagem. Assim, ao analisar a relação entre grupos raciais, comportamento, linguagem e contextos culturais, Boas demonstrava como progressivamente pensamentos mais elementares - presentes em um nível muito profundo da psicologia individual - articulavam-se com elementos menos subjetivos e com os substratos culturais gerais de um grupo étnico. Stocking Jr. expõe que “essa integração consciente era fundada num substrato em que as categorias subjacentes e as ideias dominantes da cultura”, ainda que fossem produtos históricos, “existiam a priori no sentido de que”, nas palavras de Boas, “se desenvolvem no presente em cada indivíduo e em todo o povo de forma inteiramente subconsciente, e ainda assim são muito potentes na formação de nossas opiniões e ações” (Stocking Jr., 1999STOCKING JR., George W. Os pressupostos básicos da antropologia de Boas. In: STOCKING JR., George W. (Org.). Franz Boas: A formação da antropologia americana, 1883-1911. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1999. pp. 15-38., p. 23; Boas, 1911BOAS, Franz. Handbook of American Indian Languages. Part I. Washington: Government Printing Office, 1911., p. 64).

A relação entre pensamentos elementares - que é um resquício da influência da teoria de Bastian -, elementos culturais, contextos gerais e performances individuais não revela apenas a noção complexa de cultura de Boas, cujos componentes constituintes mantêm múltiplas relações uns com os outros, mas também revela o seu método antropológico. Para Boas, a antropologia fundamentava sua abordagem empírica em uma tentativa holística de compreender os fenômenos e as pessoas que os produziam. Aliás, nesta seara concentra-se parte das críticas de Boas à antropologia evolucionista. Elas não apontam apenas especificamente aos parâmetros metodológicos do evolucionismo, mas à própria eficiência do método comparativo, este confrontando ossos, machados ou instituições (Boas, 1896BOAS, Franz. The Limitations of the Comparative Method of Anthropology. Science, v. 4, n. 108, pp. 901-908, 1896.). Isso significa que, além de fornecer um conceito elaborado de cultura, Boas introduziu a cultura como a noção mais relevante para a descrição das diferenças comportamentais entre grupos humanos e, portanto, como ferramenta analítica central na antropologia. Tylor também criou um conceito etnográfico de cultura, que estava, no entanto, a serviço do evolucionismo e em diálogo com noções pseudocientíficas de raça. Era preciso ainda extirpar da antropologia a raça como conceito sociológico abstrato e desprovido de fundamentação empírica, para o que Boas também contribuiu decisivamente.

Embora Boas tenha se dedicado bastante ao estudo de raças humanas, ele o fez em diálogo com o darwinismo e com abordagens científicas. Dessa maneira, ao invés de circunscrever arbitrariamente um grupo de pessoas com base em sua aparência fenotípica, Boas usava “os termos ‘raça’ e ‘racial’” “no sentido de que eles significam a montagem de linhas genéticas representadas em uma população” (Boas, 1940BOAS, Franz. Race, Language and Culture. New York: The MacMillan Company, 1940., p. V). Dada a quase absoluta ausência de tipos raciais puros e dado o largo número de tipos transicionais, ou seja, que apresentam aspectos híbridos, aparência fenotípica não seria critério confiável para a classificação racial. Assim, a hereditariedade de características - que tinha papel fundamental na determinação racial do evolucionismo social - é impossível de ser estudada empiricamente. Dessa forma, para Boas as raças seriam apenas construções biológicas que decorrem do compartilhamento de material genético, no entanto, mais importante do que fatores genéticos sobre grupos humanos é o papel ambiental e social. Para soterrar definitivamente a centralidade da raça como fator explicativo para diferenças culturais, Boas utilizou as próprias ferramentas da antropologia física. Ao estudar crânios humanos, ele demonstrou que seu formato e tamanho eram maleáveis e suscetíveis a fatores ambientais (causados, por exemplo, por migrações e nutrição), opondo-se aos parâmetros da antropologia racialista, que associava formatos de crânios a determinadas raças e grupos étnicos5 5 Como ocorreu largamente com crânios de índios do Brasil, associados por cientistas como Blumenbach e o cientista natural alemão radicado no Brasil Hermann von Ihering (1850-1930) a determinadas etnias. . Crânios não são estáticos, e as diferenças étnicas não podem ser explicadas por diferenças biológicas, que não se relacionam às manifestações culturais, mas a pressões ambientais. Por fim, Boas demonstrou que o comportamento humano também não decorre de disposições raciais inatas, mas resulta de diferenças culturais construídas historicamente. Assim, ele negava absolutamente a correlação entre raça e caracteres morais, tipos raciais e traços culturais e morais eram de ordens distintas, não existindo provas empíricas de relação causal (Boas, 1940BOAS, Franz. Race, Language and Culture. New York: The MacMillan Company, 1940.).

Portanto, Boas não apenas reformulou antropologicamente o conceito da raça, como deslocou-o de ferramenta central para explicar as diferenças culturais e legitimar as hierarquias políticas para reafirmar a unidade do gênero humano expresso nas diferenças. Além disso, ele ainda substituiu a raça por uma noção complexa de cultura como objeto investigativo principal da antropologia, que não mais deveria se lançar a comparar instituições e fenômenos retirados de seus contextos, mas compreender holisticamente a relação entre processos mentais e fenômenos culturais. Posicionando-se dessa maneira como o fundador da moderna antropologia norte-americana - e ignorando as contribuições de Morgan para campos como o parentesco ou a etologia -, Boas intencionou refundar a antropologia mundial, soterrou o racismo pseudocientífico e o evolucionismo social. No Reino Unido, de onde essas hipóteses emergiram, o evolucionismo também estava sob ataque.

CONCLUSÃO

Embora uma diversidade de trabalhos de campo, estacionários e intensivos, passageiros e extensivos, fosse praticada no final do século XIX, antropólogos franceses e ingleses realizavam sobretudo pesquisas utilizando-se de dados etnográficos recolhidos por terceiros (Rosa; Vermeulen, 2022ROSA, Frederico Delgado; VERMEULEN, Han F. (Eds.). Ethnographers before Malinowski: Pioneers of Anthropological Fieldwork, 1870-1922. New York: Berghahn Books, 2022.). Após a virada ao século XX, no entanto, não apenas trabalhos de campo mais intensos tornavam-se mais comuns, como mudaram também as preocupações teóricas. Baldwin Spencer (1860-1929) era um biólogo evolucionista britânico que morou duas décadas na Austrália e que, com suporte de Frank Gillen (1855-1912), publicou diversas obras sobre povos nativos australianos (Stocking Jr., 1995STOCKING JR., George W. After Tylor. Madison: The University of Wisconsin Press , 1995.). Embora influenciado pelo método das ciências da natureza, e pela preocupação evolucionista de compreender o acúmulo e a transformação da cultura progressivamente, seu afazer principal era descrever etnograficamente “os costumes e a organização social de certas tribos que habitam a Austrália Central” (Spencer, 1899SPENCER, Baldwin. The Native Tribes of Central Australia. London: MacMillan and Co., 1899., p. V). Alfred Court Hadddon (1855-1940), que também era um biólogo darwinista, participou, ao lado de W. H. R. Rivers (1864-1922) e C. G. Seligman (1873-1940), da famosa expedição às ilhas do Estreito de Torres - entre Austrália e Nova Guiné, entre 1898-1899 -, quando migrou para a antropologia e o colecionismo de material etnográfico. A despeito de dedicar-se também à antropologia física, ele o fazia em relação ao estudo do folclore e intencionava compreender a relação entre tipos populacionais e produtos culturais. Diferentemente dos antropólogos evolucionistas como Tylor e Morgan, que procuravam por sequências universais de desenvolvimento, ele buscava, “como Darwin nas ilhas Galápago, pela distribuição de formas dentro de uma única área geográfica” (Stocking Jr., 1995STOCKING JR., George W. After Tylor. Madison: The University of Wisconsin Press , 1995., p. 105). Ele se interessava pela cultura material e queria compreender objetos etnográficos no interior de uma série de estágios em determinados contextos sociais, de modo a visualizar as mudanças e as variações de artefatos e de costumes.

Em suma, quando, em 1922, Bronisław Malinowski e Alfred Radcliffe-Brown (1881-1955) publicaram suas obras Argonauts of the Western Pacific e The Andaman Islanders e, dessa maneira, embora com significativas diferenças teóricas, promulgaram uma grande mudança paradigmática na antropologia britânica, e tornaram o funcionalismo hegemônico, raça já deixara de ser objeto analítico principal (Malinowski, 1922MALINOWSKI, Bronisław. Argonauts of the Western Pacific: An account of Native Enterprise and Adventure in the Archipelagoes of Melanesian New Guinea. London: Routledge and Kegan Paul, 1922. ; Radcliffe-Brown, 1922RADCLIFFE-BROWN, Alfred R. The Andaman Islanders: A Study in Social Anthropology. Cambridge: The Cambridge University Press, 1922. ). Se antropólogos norte-americanos, a partir de Boas, elegeram a cultura como objeto investigativo, com a integração dos seus elementos constituintes na mente, a interrelação das diversas facetas da vida social sob o prisma da organização social alcançava primazia no Reino Unido. Embora permanecessem resquícios da antropologia evolucionista, como um linguajar preconceituoso, uma visão de mundo frequentemente eurocêntrica e, talvez, uma constatação de que a humanidade poderia ser dividida em grupos de tipos físicos de acordo com a cor da pele, raça deixou de ser um conceito biológico e sociológico que explicava as diferenças comportamentais e um suporte ideológico para justificar hegemonias políticas e sociais.

Na França do final do século XIX, a antropologia física, com seus estudos craniométricos e medições corporais, compartilhava espaço institucional com museus de etnografia e sociedades etnográficas, embora certamente ela reinasse enquanto disciplina científica, dada a relativa ausência de etnógrafos e etnólogos. Émile Durkheim (1858-1917), Marcel Mauss (1872-1950), Marcel Griaule (1898-1956) e Arnold van Gennep (1873-1957) voltaram-se não apenas a ocupar a teoria social francesa com dados sobre povos não-europeus, mas em reformulá-la inteiramente (Parkin, 2005PARKIN, Robert. The French-Speaking Countries. In: BARTH, Fredrik et al. One discipline, Four Ways: British, German, French, and American Anthropology. Chicago: The University of Chicago Press, 2005. pp. 155-253.). Com enfoque sociológico e na interpretação de dados de campo com intenção de compreender a mente humana, os franceses pouco se importaram com raça - nas poucas menções ao tema, Durkheim, por exemplo, acreditava que as raças humanas tenderiam a desaparecer na sociedade moderna, dado que seres humanos são antes agentes sociais do que constituições biológicas, e ele privilegiava a ideia de consciência coletiva à de cultura, que seria uma forma coletiva de compreender e interpretar a realidade (Lehmann, 1995LEHMANN, Jennifer M. The Question of Caste in Modern Society: Durkheim’s Contradictory Theories of Race, Class, and Sex. American Sociological Review, v. 60, ed. 4, pp. 566-585, 1995.). A cultura operaria por meio de representações coletivas e sistemas classificatórios que ordenariam a vida social, o que era, de certa forma, compartilhado por Mauss.

A emergência dos diversos significados de raça, e sua gradual substituição por conceitos distintos de cultura como objeto de estudo da antropologia, circunscrevem-se, portanto, ao período que se estende do final do século XVIII à virada do XIX ao XX, quando a antropologia focava cada vez mais em unidades sociais ao invés de processos sociais, e em dados concretos de campo no lugar de construções hipotéticas. Quando Lévi-Strauss propôs suas críticas ao evolucionismo, assim sendo, elas tinham uma função política, que era de atacar cientificamente as doutrinas racistas do nazismo e frear a ascensão do racismo em diversas partes do mundo, bem como, na qualidade de intelectual público, ele pleiteava a soberania da diversidade cultural diante de um mundo em transformação. Lévi-Strauss não foi o único antropólogo a utilizar-se de sua imagem como cientista reconhecido para combater o racismo - Ruth Benedict (1887-1948) escrevera um livro destinado às tropas americanas que não apenas desembarcavam rumo a países estrangeiros, mas lutavam ao lado de companheiros de diversas origens étnicas, para demonstrar os erros crassos do racismo pseudocientífico, defender a unidade da espécie humana e enaltecer as diferenças culturais como criadoras de um inventário da humanidade (Benedict; Weltfish, 1943BENEDICT, Ruth; WELTFISH, Gene. The Races of Mankind. Washington: Public Affairs Committee, 1943.). Assim, apesar da homogeneização cultural, que até então não ocorreu, Lévi-Strauss concluiu seu ensaio com um pleito pela valorização da diversidade cultural e pela negação da divisão humana em tipos físicos: “o dever sagrado da humanidade é conservar em mente seus dois termos, igualmente presentes; sem nunca perder de vista um, em benefício exclusivo do outro; evitar, sem dúvida, um particularismo cego, que tenderia a reservar o privilégio da humanidade a uma raça, uma cultura ou uma sociedade; mas também jamais esquecer”, ele concluiu, “que uma humanidade confundida num gênero de vida único é inconcebível, pois seria uma humanidade petrificada” (Lévi-Strauss, 1973 [1952]LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e História. In: LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural Dois. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973 [1952]. pp. 328-368., p. 365).

REFERÊNCIAS

  • ALMEIDA, Mauro William Barbosa de. Lewis Morgan: 140 anos dos Sistemas de Consanguinidade e Afinidade da Família Humana (1871-2011). Cadernos de Campo, São Paulo, v. 19, n. 19, pp. 309-322, 2010.
  • AUFGEBAUER, Peter. Christoph Meiners: Ein Göttinger Philosoph erfindet den Rassismus. In: NENTWIG, Teresa; TRITTEL, Katharina (Eds.). Entdeckt, erdacht, erfunden: 20 Göttinger Geschichten von Genie und Irrtum. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2019. pp. 47-61.
  • BEN-ZVI, Yael. Where Did Red Go? Lewis Henry Morgan’s Evolutionary Inheritance and U.S. Racial Imagination. CR: The New Centennial Review, v. 7, n. 2, pp. 201-229, 2007.
  • BENEDICT, Ruth; WELTFISH, Gene. The Races of Mankind. Washington: Public Affairs Committee, 1943.
  • BOAS, Franz. Handbook of American Indian Languages. Part I. Washington: Government Printing Office, 1911.
  • BOAS, Franz. The Limitations of the Comparative Method of Anthropology. Science, v. 4, n. 108, pp. 901-908, 1896.
  • BOAS, Franz. Race, Language and Culture. New York: The MacMillan Company, 1940.
  • BUNZL, Matti. Franz Boas and the Humboldtian Tradition: From Volksgeist and Nationalcharakter to an Anthropological Concept of Culture In: STOCKING JR., George W. (Ed.). Volksgeist as Method and Ethic: Essays on Boasian Ethnography and the German Anthropological Tradition. Madison: The University of Wisconsin Press, 1996. pp. 17-78.
  • CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
  • DARWIN, Charles. On the Origin of Species. London: John Murray, 1859.
  • EIGEN, Sara; LARRIMORE, Mark. Introduction: The German Invention of Race. In: EIGEN, Sara; LARRIMORE, Mark (Eds.). The German Invention of Race. New York: New York State University Press, 2006. pp. 1-10.
  • ELIAS, Norbert. O Processo civilizador. Vol. 1: Uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994 [1939].
  • FENVES, Peter. What Progresses’ Has Race-Theory Made Since the Times of Leibniz and Wolff? In: EIGEN, Sara; LARRIMORE, Mark (Eds.). The German Invention of Race . New York: New York State University Press , 2006. pp. 11-22.
  • HERDER, Johann Gottfried von. Auch eine Philosophie der Geschichte zur Bildung der Menschheit. Riga: Hartknoch, 1774.
  • HUTTON, Christopher. Race and Language: Ties of “Blood and Speech”, Fictive Identity and Empire in the Writings of Henry Maine and Edward Freeman. Interventions, issue 1, v. 2, pp. 53-72, 2000.
  • KUPER, Adam. Culture: The Anthropologist’s Account. Cambridge, MA; London: The Harvard University Press, 1999.
  • KUPER, Adam. The Reinvention of Primitive Society: Transformations of a Myth. London; New York: Routledge, 2005.
  • LEHMANN, Jennifer M. The Question of Caste in Modern Society: Durkheim’s Contradictory Theories of Race, Class, and Sex. American Sociological Review, v. 60, ed. 4, pp. 566-585, 1995.
  • LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e História. In: LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural Dois. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973 [1952]. pp. 328-368.
  • LUBBOCK, John. Pre-Historic Times, as Illustrated by Ancient Remains, and the Manners and Customs of Modern Savages. London: Williams & Norgate, 1865.
  • LUBBOCK, John. The Origin of Civilisation and the Primitive Condition of Man: Mental and Social Condition of Savages. London: Longmans, Green & Co., 1870.
  • MACLENNAN, John F. Primitive Marriage: An Inquiry into the Origin of the Form of Capture in Marriage Ceremonies. Edinburgh: Adam and Charles Black, 1865.
  • MAINE, Henry Sumner. Ancient Law: Its Connection with the Early History of Society, and Its Relation to Modern Ideas. London: John Murray , 1861.
  • MALINOWSKI, Bronisław. Argonauts of the Western Pacific: An account of Native Enterprise and Adventure in the Archipelagoes of Melanesian New Guinea. London: Routledge and Kegan Paul, 1922.
  • MASSIN, Benoit. From Virchow to Fischer. Physical Anthropology and “Modern Race Theories” in Wilhelmine Germany. In: STOCKING JR., George W. (Ed.). Volksgeist as Method and Ethic: Essays on Boasian Ethnography and the German Anthropological Tradition. Madison: The University of Wisconsin Press , 1996. pp. 79-154.
  • MONTAGU, Ashley. Man’s Most Dangerous Myth: The Fallacy of Race. London; New Delhi: Altamira Press, 1997 [1942].
  • MORGAN, Lewis H. Ancient Society: Or Researches in the Lines of Human Progress from Savagery through Barbarism to Civilization. Chicago: Charles H. Kerr & Company, 1877.
  • MORGAN, Lewis H. Systems of Consanguinity and Affinity of the Human Family. Washington: Smithsonian Institution, 1871.
  • PARKIN, Robert. The French-Speaking Countries. In: BARTH, Fredrik et al. One discipline, Four Ways: British, German, French, and American Anthropology. Chicago: The University of Chicago Press, 2005. pp. 155-253.
  • PETSCHELIES, Erik. Ascensão e Declínio da Etnologia Alemã (1884-1950). Campinas: Editora da Unicamp, 2022.
  • POPPER, Karl. The Logic of Scientific Discovery. London: Hutchinson & Co, 1957 [1934].
  • QUIJANO, Anibal; ENNIS, Michael. Coloniality of Power, Eurocentrism, and Latin America. Nepantla: Views from South, v. 1, issue 3, pp. 533-580, 2000.
  • RADCLIFFE-BROWN, Alfred R. The Andaman Islanders: A Study in Social Anthropology. Cambridge: The Cambridge University Press, 1922.
  • RINGER, Fritz K. Die Gelehrten: Der Niedergang der deutschen Mandarine, 1890-1933. München: Deutscher Taschenbuch Verlag, 1987 [1969].
  • ROSA, Frederico Delgado; VERMEULEN, Han F. (Eds.). Ethnographers before Malinowski: Pioneers of Anthropological Fieldwork, 1870-1922. New York: Berghahn Books, 2022.
  • SPENCER, Baldwin. The Native Tribes of Central Australia. London: MacMillan and Co., 1899.
  • SPENCER, Herbert. The Principles of Biology. Vol I. London e New York: D. Appleton and Co., 1910.
  • SPENCER, Herbert. The Principles of Sociology. Vol. I. London; New York: D. Appleton and Co., 1898.
  • STOCKING JR., George W. After Tylor. Madison: The University of Wisconsin Press , 1995.
  • STOCKING JR., George W. Os pressupostos básicos da antropologia de Boas. In: STOCKING JR., George W. (Org.). Franz Boas: A formação da antropologia americana, 1883-1911. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1999. pp. 15-38.
  • STOCKING JR., George W. Victorian Anthropology. New York: The Free Press, 1987.
  • TYLOR, Edward B. Primitive Culture: Researches into the Development of Mythology, Philosophy, Religion, Art, and Custom. Vol. I. London: John Murray , 1871.
  • VERMEULEN, Han F. Before Boas: The Genesis of Ethnography and Ethnology in the German Enlightenment. Lincoln; London: University of Nebraska Press, 2015.
  • ZAMMITO, John H. Kant, Herder, and the Birth of Anthropology. Chicago; London: The University of Chicago Press, 2002.
  • ZAMMITO, John H. Policing Polygeneticism in Germany, 1775: (Kames), Kant, and Blumenbach. In: EIGEN, Sara; LARRIMORE, Mark (Eds.). The German Invention of Race . New York: Sunny Press, 2006. pp. 35-54.
  • 1
    Agradeço a Cláudio Pinheiro pelas trocas intelectuais e a Helena Schiel pela leitura de uma versão prévia deste artigo, bem como aos pareceristas pelos valiosos comentários. Como sempre, sou especialmente grato a Héllen Bezerra, que me apoia e acolhe cotidianamente. Por fim, agradeço ao CNPq pela bolsa de pós-doutorado (processo 172375/2023-1).
  • 2
    É preciso fazer um pequeno comentário sobre a nomenclatura conceitual empregada neste ensaio. Como etnografia entende-se a coleta de material empírico por meio do trabalho de campo, sua descrição e análise. Embora, como se verá, a antropologia tenha surgido como um ramo das ciências naturais - o que hodiernamente é conhecido por antropologia biológica ou física -, o conceito de antropologia tal como utilizado aqui refere-se ao estudo amplo, que engloba tanto a etnografia como outras maneiras de discorrer acerca das sociedades e culturas humanas, como teoria antropológica.
  • 3
    Atualmente, a produção racista e supremacista, de Gobineau aos antropólogos físicos a serviço do nazismo, como Eugen Fischer (1871-1967), pode ser considerada pseudocientífica quando confrontada com os princípios enunciados pela filosofia da ciência e que regem os métodos científicos, como empirismo, refutabilidade, repetibilidade, objetividade, consistência, predição e parcimônia. A obra fundamental de Karl Popper (1934)POPPER, Karl. The Logic of Scientific Discovery. London: Hutchinson & Co, 1957 [1934]. é especialmente elucidativa acerca da divisão entre ciência e não-ciência. Popper argumenta que o atributo mais relevante da ciência é sua falsificabilidade, ou seja, que as teorias devem ser testáveis e falsificáveis. Isso significa que, ao invés de buscar por confirmações para as teorias, é preciso buscar evidências para refutá-las. Se uma teoria é estruturada de modo a ser imune à falsificação, ela não é científica. Considerando isso, as teorias de Gobineau, por exemplo, podem ser consideradas pseudocientíficas porque se baseiam em pressupostos não verificáveis e replicáveis, carecem de evidência empírica e não se fundamentam em método rigoroso.
  • 4
    Importante frisar que a modificação estrutural dos organismos e a sua capacidade de transmissão intergeracional é associada sobretudo a Lamarck. Darwin, todavia, nunca se opôs a essa interpretação. Além disso, os cientistas naturais da virada do século consideravam Lamarck um evolucionista.
  • 5
    Como ocorreu largamente com crânios de índios do Brasil, associados por cientistas como Blumenbach e o cientista natural alemão radicado no Brasil Hermann von Ihering (1850-1930) a determinadas etnias.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    01 Mar 2024
  • Aceito
    08 Jul 2024
Associação Nacional de História - ANPUH Av. Professor Lineu Prestes, 338, Cidade Universitária, Caixa Postal 8105, 05508-900 São Paulo SP Brazil, Tel. / Fax: +55 11 3091-3047 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rbh@anpuh.org