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Ensinar, educar, criar: dimensões e espaços da ação pedagógica dos jesuítas no Brasil colônia (1549-1686)

Teaching, educating, creating: dimensions and spaces of the Jesuits’ pedagogical activity in colonial Brazil (1549-1686)

Enseñar, educar, crear: dimensiones y espacios de la actividad pedagógica de los jesuitas en el Brasil colonial (1549-1686)

Resumo

O artigo discute a atuação pedagógica dos jesuítas a partir da revisão dos principais conceitos ligados ao fazer missionário na colônia: ensino, educação e criação. Pretende-se situar historicamente esses conceitos, relacionando-os às dimensões impressas pela ação inaciana nos aldeamentos, colégios e seminários. O recorte cronológico abarca desde a chegada dos jesuítas à criação do Seminário de Belém, no Recôncavo Baiano. A metodologia utilizada foi a análise de documentos históricos, com destaque para as cartas dos jesuítas Nóbrega e Navarro, o Vocabulário portuguez e latino, o Regulamento do Seminário de Belém, entre outros. Como resultado, acredita-se que os conceitos elencados guardam características peculiares no âmbito da atuação inaciana em terras brasílicas, sem serem excludentes.

Palavras-chave:
educação; Companhia de Jesus; pedagogia; catequese

Abstract

The article discusses the Jesuits’ pedagogical performance from the review of concepts of missionary work in the colonial Brazil: teaching, education, and creation. The intention is to situate these concepts historically relating them to the Jesuit actions in indigenous settlements, colleges, and seminaries. The chronological framework begins with the arrival of the Jesuits and ends with the creation of the Seminary of Belém. The methodology was the analysis of historical documents with emphasis on the letters of Nóbrega and Navarro, the Vocabulario Portuguez e Latino, the Regulations of the Seminary of Belem, among others. Consequently, we believe that the concepts listed above have peculiar characteristics in the sphere of Ignatian activity in Brazil, without being mutually exclusive.

Keywords:
education; Jesuits; pedagogy; catechesis

Resumen

El artículo discute la pedagogía jesuita a través de la revisión de conceptos clave de la labor misionera en el territorio brasileño: enseñanza, educación y creación. La intención es situar históricamente estos conceptos relacionándolos con las dimensiones moldeadas por la acción ignaciana en los asentamientos indígenas, colegios y seminarios. El marco cronológico abarca desde la llegada de los jesuitas hasta la creación del Seminario de Belém. La metodología fue el análisis de documentos históricos, con énfasis en las cartas de Nóbrega y Navarro, el Vocabulario Portugués y Latino, el Reglamento del Seminario de Belem, entre otros. En consecuencia, creemos que los conceptos enumerados tienen características peculiares en el ámbito de la actividad ignaciana, sin ser mutuamente excluyentes.

Palabras clave:
educación; Compañía de Jesús; pedagogía; catequesis

Introdução

O propósito deste artigo é problematizar os conceitos de ensino, educação e criação mobilizados pela atuação dos jesuítas no Brasil ao longo do período colonial, apontando a sua articulação com os diferentes espaços de intervenção missionária e pedagógica da Companhia de Jesus naquele contexto, a saber: o aldeamento; o colégio; e o seminário. Com isso, busca-se apresentar uma contribuição original para a História da Educação e para a História Social e Cultural do Brasil e da Companhia de Jesus no período moderno, a despeito das dezenas de trabalhos já existentes sobre a temática.

Tais trabalhos, de maneira unânime, indicam a importância dos jesuítas no âmbito da História da Educação no Brasil. Como afirma Costa (2007Costa, C. J. (2007). A racionalidade jesuítica na educação dos índios brasileiros (século 16). Em aberto, 21(78), 93-107., p. 93), “[...] não é necessário um esforço muito considerável para admitir a importância daqueles missionários para a formação cultural brasileira, em especial no âmbito da educação”. Sirvam de exemplo três dos mais conhecidos manuais existentes na área: História da educação brasileira, de Ghiraldelli Jr. (2006Ghiraldelli Jr., P. (2006). História da educação brasileira. Cortez.); História das ideias pedagógicas no Brasil, de Saviani (2019Saviani, D. (2019). História das ideias pedagógicas no Brasil (5a ed.). Autores Associados.); e História da educação, de Veiga (2007Veiga, C. G. (2007). História da educação. Ática.). O primeiro aborda o período colonial de forma bastante sucinta sem deixar de fazer referência à atuação jesuítica. Saviani (2019) e Veiga (2007) dedicam um amplo espaço para a análise dos séculos iniciais da colonização portuguesa no Brasil, ressaltando a importância da atuação jesuítica e do Ratio Studiorum, o plano educacional aprovado pela ordem inaciana em 1599 (Miranda, 2009Miranda, M. (Org.). (2009). Código pedagógico dos Jesuítas: ratio studiorum da Companhia de Jesus. Regime escolar e curriculum de estudos. Esfera do Caos.).

Pode-se evocar também coletâneas com reconhecida importância no âmbito da historiografia da educação no Brasil, como Brasil 500 anos: tópicas em história da educação (Vidal & Hilsdorf, 2001Vidal, D. G., & Hilsdorf, M. L. S. (Org.). (2001). Brasil 500 Anos: tópicas em história da educação. EDUSP.); 500 Anos de Educação no Brasil (Lopes et al., 2011); e Histórias e memórias da educação no Brasil (Stephanou & Bastos, 2014Stephanou, M., & Bastos, M. H. C. (Org.). (2014). Histórias e memórias da educação no Brasil (Vol. I). Vozes.). Todas abordam a educação jesuítica na colônia - articulada com a dimensão missionária - indicando a sua importância para a formação da sociedade brasileira.

Para mais, não caberia, nos limites deste artigo, uma revisão das dezenas de teses, trabalhos e artigos dedicados a esta temática (cf. Bittar & Ferreira Jr., 2006Bittar, M., & Ferreira Jr., A. (2006). O estado da arte em história da educação colonial. Recuperado de: https://www.histedbr.fe.unicamp.br/pf-histedbr/amarilio_ferreira_e_marisa_bittar_artigo.pdf
https://www.histedbr.fe.unicamp.br/pf-hi...
; Sangenis & Mainka, 2019Sangenis, L. F. C., & Mainka, P. J. (2019). Presença franciscana e supremacia jesuítica no campo da história e da história da educação na época colonial: um diagnóstico na pesquisa historiográfica a partir da análise dos CBHE da SBHE. Revista Brasileira de História da Educação, 19, e061. Recuperado de: https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/rbhe/article/view/46967
https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/...
). Ressalta-se que a perspectiva adotada se destaca pela abordagem proposta, isto é, a problematização histórica dos conceitos apontados no título, isto é, ensino, educação e criação, visando “[...] provocar a discussão sobre a historicidade dos conceitos e a desnaturalização da educação como algo dado, homogêneo e universal” (Fonseca, 2016Fonseca, T. N. L. (2016). Circulação e apropriação de concepções educativas no mundo luso americano colonial (séculos XVIII-XIX). In A. C. A. Santos (Org.), Ilustração, cultura escrita e práticas culturais e educativas (pp. 131-145). Estúdio Texto., p. 144). O recurso às obras mencionadas é suficiente para pontuar o consenso existente quanto à importância da atuação pedagógica e missionária dos jesuítas na colônia, a qual também é vista como uma das mais significativas expressões pedagógicas da modernidade (Manacorda, 1996Manacorda, M. A. (1996). História da educação: da Antiguidade aos nossos dias (5a ed.). Cortez.).

Os marcos cronológicos se estendem da chegada dos primeiros jesuítas na colônia (1549) até a criação do Seminário de Belém, na vila da Cachoeira, no recôncavo baiano (1686). Como pretende-se demonstrar ao longo do trabalho, este último viria a ser, de fato, o primeiro espaço destinado, especificamente, para a formação de jovens cristãos na colônia, os chamados “filhos dos principais”.

A empresa jesuítica no contexto moderno

A ordem religiosa denominada Sociedade de Jesus ou Companhia de Jesus foi criada nas primeiras décadas do século XVI por um peregrino espanhol, Inácio de Loyola, que reuniu em torno de si um pequeno grupo de homens devotos, dedicados ao estudo e interessados em fortalecer e expandir a fé cristã, isto é, católica pelo mundo (Lacouture, 1994Lacouture, J. (1994). Os Jesuítas (Vol. 1). L&PM.; Alden, 1996Alden, D. (1996). The making of an enterprise: the Society of Jesus in Portugal, its empire and beyond (1540-1750). Stanford University Press.; O’Malley, 2004O’Malley, J. W. (2004). Os primeiros jesuítas. Editora Unisinos.; Manso, 2016Manso, M. D. B. (2016). História da Companhia de Jesus em Portugal. Parsifal.).

Para retomar rapidamente a trajetória do fundador, é importante pontuar o momento em que ele se converteu a uma vida de santidade e de peregrinação enquanto convalescia de um grave ferimento na perna causado em um trágico episódio da sua breve carreira militar, quando ainda alimentava sonhos mundanos e cavaleirescos típicos do período final da Idade Média. Ao sentir uma profunda mudança religiosa, peregrinou em direção à península itálica com o objetivo de viajar à Terra Santa para defender e expandir o cristianismo (Lacouture, 1994Lacouture, J. (1994). Os Jesuítas (Vol. 1). L&PM.).

Após uma breve permanência em Jerusalém, na qual foi impedido de continuar por mais tempo, Inácio retomou as peregrinações na Espanha, sem desistir do propósito inicial. Acuado pelas autoridades eclesiásticas e inquisitoriais por falar da doutrina cristã sem possuir a devida formação teológica, decidiu que deveria estudar. Dirigiu-se para Salamanca e, posteriormente, Paris, onde reuniria o pequeno grupo de seguidores que, em 1534, daria origem à ordem jesuítica, uma das mais dinâmicas organizações religiosas do catolicismo moderno (Delumeau, 1989Delumeau, J. (1989). Nascimento e afirmação da Reforma. Pioneira.).

Inicialmente, Inácio e seus primeiros companheiros se espalharam pela Europa realizando pregações e obras de caridade. Depois de alguns anos, vendo frustrado o plano inicial de rumarem para Jerusalém, resolveram se reunir em Roma e submeter a iniciativa à aprovação papal, alcançada em 27 de setembro de 1540. No documento de fundação, inserido na bula papal, os objetivos da nova “milícia cristã” são sumarizados na seguinte afirmação:

Esta foi instituída principalmente para o aperfeiçoamento das almas na vida e na doutrina cristãs, e para a propagação da fé, por meio de pregações públicas, do ministério da palavra de Deus, dos Exercícios Espirituais e obras de caridade, e nomeadamente pela formação cristã das crianças e dos rudes, bem como por meio de Confissões, buscando principalmente a consolação espiritual dos fiéis cristãos (Constituições..., 1997, p. 21).

Esta rápida digressão acerca da fundação da Companhia de Jesus é importante para ter em mente dois aspectos fundamentais presentes posteriormente na formulação do que pode-se chamar de pedagogia inaciana. O primeiro é a valorização do aprimoramento intelectual como um dos princípios norteadores na própria trajetória do fundador (Casimiro, 2004Casimiro, A. P. B. S. (2004). Elementos fundamentais da pedagogia jesuítica. Educação em Questão, 20(6), 107-129.). O segundo é o pouco tempo decorrido entre o surgimento da ordem e a sua expansão global, incluindo o ingresso na América portuguesa, o que indica que, em se tratando das formulações e normativas pedagógicas da Companhia de Jesus, a prática muitas vezes precedeu a teoria (Costa, 2007Costa, C. J. (2007). A racionalidade jesuítica na educação dos índios brasileiros (século 16). Em aberto, 21(78), 93-107.).

Expectativas e reajustes no ultramar português

Assim, imbuídos do sentido missionário impresso pelo fundador da ordem (Casimiro, 2004Casimiro, A. P. B. S. (2004). Elementos fundamentais da pedagogia jesuítica. Educação em Questão, 20(6), 107-129.), os jesuítas embarcaram para o Brasil como agentes da Igreja Católica e da Coroa portuguesa. Esta, por força do regime de padroado, tinha por responsabilidade cristã propagar a religião católica nas conquistas de além-mar. O Regimento de 17 de dezembro de 1548 outorgado pelo monarca D. João III ao primeiro governador-geral da colônia, Tomé de Souza, estabelecia como a sua principal obrigação o cuidado com a conversão e a pacificação do gentio, devendo evitar guerras e castigos desmesurados como forma de facilitar a expansão da fé e da colonização:

Porque a principal coisa que me moveu a mandar povoar as ditas terras do Brasil foi para que a gente dela se convertesse à nossa santa fé católica vos encomendo muito que pratiqueis com os ditos capitães e oficias a melhor maneira que para isso se pode ter e de minha parte lhes direis que lhes agradecerei muito terem especial cuidado de os provocar a serem cristãos e para eles mais folgarem de o ser tratem bem todos os que forem de paz e os favoreçam sempre e não consintam que lhes seja feita opressão nem agravo algum [...] (Regimento..., 1924, p. 347)1 1 Sempre que necessário (inclusive em documentos de época) atualizamos a grafia para facilitar a leitura. .

Em outra passagem do mesmo regimento, abordando de forma mais específica a política de conversão e catequese a ser implantada na colônia, o monarca ponderava sobre as dificuldades que poderiam ser encontradas e determina a melhor estratégia a adotar:

Porque parece que será grande inconveniente os gentios que se tornaram cristãos morarem na povoação dos outros e andarem misturados com eles e que será muito serviço de Deus e meu apartarem-nos de sua conversação vos encomendo e mando que trabalheis muito por dar ordem como os que forem cristãos morem juntos perto das povoações das ditas capitanias para que conversem com os cristãos e não com os gentios e possam ser “doutrinados e ensinados” nas coisas da nossa Santa Fé e aos meninos porque neles imprimirão melhor a doutrina trabalhareis por dar ordem como se façam cristãos e que sejam “ensinados e tirados da conversação dos gentios” e aos capitães das outras capitanias direis de minha parte que lhes agradecerei muito ter cada um cuidado de assim o fazer em sua capitania e os meninos estarão na povoação dos portugueses e em seu ensino folgaria de se ter a maneira que vos disse (Regimento..., 1924, p. 350, grifo nosso).

Devido à sua proximidade com o governador-geral, o padre Manuel da Nóbrega, designado para liderar os primeiros jesuítas enviados à colônia, certamente, tomou conhecimento de tais determinações. Não por acaso, conduziu o plano de separação entre os “índios cristãos e os gentios”, bem como investiu na conversão dos meninos indígenas, “porque neles imprimirão melhor a doutrina”, ideia que muito provavelmente era compartilhada pelo próprio Nóbrega e demais religiosos, uma vez que esta imagem da infância, enquanto uma fase da vida mais propícia para a instrução e a formação religiosa, correspondia às representações da época (Del Priore, 1996Del Priore, M. (1996). O papel branco, a infância e os jesuítas na colônia. In M. Del Priore (Org.), História da criança no Brasil (pp. 10-27). Contexto.; Chambouleyron, 2004Chambouleyron, R. (2004). Jesuítas e as crianças no Brasil quinhentista. In M. Del Priore (Org.), História das crianças no Brasil (4a ed., pp. 55-83). Contexto.; Ariès, 1981Ariès, P. (1981). História social da criança e da família (2a ed.). LTC.).

A reação inicial dos indígenas à chegada dos jesuítas foi de aparente aceitação e fácil conversão ao cristianismo. A sua suposta ausência de religião (por não possuírem templos nem ídolos) encheu de otimismo o padre Manuel da Nóbrega e os religiosos que desembarcaram com ele na Bahia. As primeiras cartas do superior jesuíta são reveladoras das expectativas iniciais quanto à chamada “conversão do gentio”. Porém, primeiramente, os inacianos tiveram que se ocupar dos portugueses, prestando assistência religiosa aos colonos recém-chegados (gente do governador) e aos moradores já instalados (gente da terra). Poucas paróquias seriam estabelecidas na colônia antes da criação do bispado baiano, em 1551, redundando numa atuação tímida (embora não inexistente) do chamado clero secular.

Em carta redigida em 29 de março de 1549 (considerada a primeira notícia da missão iniciada no Brasil), Nóbrega indica uma divisão inicial de ministérios. A ele próprio, com a ajuda dos padres Antônio Pires, Azpilcueta Navarro e Leonardo Nunes, competia o cuidado espiritual dos moradores. Aos irmãos Diogo Jácome e Vicente Rodrigues, o ensino da doutrina aos meninos, não especificando se seriam indígenas ou portugueses. Rodrigues também estaria encarregado de uma escola de ler e escrever, a respeito da qual o autor da carta pondera: “[...] parece-me bom modo este para trazer os índios desta terra, os quais têm grandes desejos de aprender” (Nóbrega, 1988, p. 72).

Ensinar: o espaço dos aldeamentos

O verbo Ensinar aparece no Vocabulário português e latino, redigido pelo padre teatino Raphael Bluteau, como: “comunicar, e dar lição do que se sabe”. Impresso entre 1712 e 1728, o Vocabulário certamente registrou significados que já estavam vigentes no período em que Nóbrega desembarcou na Bahia, isto é, meados do século XVI. Em tese, qualquer um poderia ensinar qualquer coisa a qualquer pessoa: “Mas Satanás que nesta terra tanto reina, ordenou e ensinou aos feiticeiros muitas mentiras e enganos para impedir o bem das almas, dizendo que com a doutrina que lhes ensinávamos os trazíamos à morte” (Navarro, 1988Navarro, A. (1988). Cartas avulsas. Itatiaia., p. 104). Nesse sentido, como será retomado adiante, o termo ensinar possuía uma conotação mais abrangente do que “educar”.

A palavra “ensino”, que aparece com bastante frequência nas cartas jesuíticas, estava associada tanto às lições de leitura e escrita desenvolvidas junto às crianças indígenas nas aldeias quanto à catequese propriamente dita, ou seja, o ensino da doutrina cristã. Porém, é importante atentarmos que o objetivo final da atividade missionária não eram as letras, mas a conversão: “Convidamos os meninos a ler e escrever e conjuntamente lhes ensinamos a doutrina cristã” (Nóbrega, 1988Nóbrega, M. (1988). Cartas do Brasil. Itatiaia., p. 91).

As ações de “ensinar a doutrina cristã” ou, simplesmente, “doutrinar” (indicadas no regimento de 1548) confundem-se com o próprio significado da palavra Catequese, entendida como etapa fundamental de preparação para o batismo. Bluteau a define indicando a sua etimologia: “instrução de viva voz”. Em seguida, complementa:

Na igreja primitiva se chamava assim aquela breve, e metódica instrução dos mistérios da fé, porque se fazia vocalmente, e não por escrito, nem em livros, como agora, de medo, que os sagrados mistérios da lei evangélica não caíssem nas mãos dos gentios, que pelos não entenderem faziam zombaria deles (Bluteau, 1712-1728).

Percebe-se que o autor diferencia o método de catequese da igreja cristã primitiva, o qual tinha como base a oralidade, do que estava em voga na modernidade e era pautado pela existência de uma produção escrita específica, o catecismo. Vale ressaltar que, no contexto da missão em terras brasílicas, os jesuítas e outros missionários produziram catecismos bilingues, acompanhados das respectivas gramáticas, as quais subsidiavam o aprendizado dos idiomas indígenas pelos missionários em formação (Agnolin, 2007Agnolin, A. (2007). Jesuítas e selvagens: a negociação da fé no encontro catequético-ritual americano-tupi (séc. XVI-XVII). Humanitas.).

Em relação ao verbo “catequizar”, Bluteau apresenta a seguinte definição: “[...] ensinar aos meninos, ou aos ignorantes, o catecismo” (Bluteau, 1712-1728). A associação entre infância e ignorância é um componente fundamental do discurso religioso no contexto missionário e foi rapidamente transposto para as populações indígenas, as quais eram consideradas, pelos europeus (de forma, obviamente, equivocada e preconcebida), como infantis e ignorantes.

Para entender a atuação jesuítica no espaço dos aldeamentos, é fundamental atentar-se para a distinção e a complementariedade entre a doutrina e a instrução elementar (as chamadas “escolas de ler e escrever” que existiam dentro dos aldeamentos). O ensino elementar incluía o aprendizado da doutrina e este dependia do conhecimento básico da língua portuguesa. Ambas as ações aparecem associadas ao verbo “ensinar” e se vinculam ao objetivo mais amplo que justificava a própria existência dos aldeamentos: a conversão dos habitantes nativos.

O que os jesuítas entendiam por conversão? Fundamentalmente, a aceitação do batismo. Para tanto, os primeiros missionários buscavam mobilizar diferentes estratégias como parte da “pedagogia cristã”. O objetivo primordial era provocar nos indígenas emoções favoráveis à conversão, como admiração, curiosidade, espanto e, sobretudo, medo. Nada assim tão diferente do que se praticava na Europa e em outros contextos de expansão e afirmação do cristianismo (Delumeau, 2003Delumeau, J. (2003). O pecado e o medo: a culpabilização no ocidente (séculos 13-18) (Vols. 1-2). Edusc.; Palomo, 2003Palomo, F. (2003). Fazer dos campos escolas excelentes: os jesuítas de Évora e as missões do interior em Portugal (1551-1630). Fundação Calouste Gulbenkian.). Com o tempo, os jesuítas perceberam que essas emoções não seriam suficientes para promover uma autêntica conversão ao cristianismo, ou seja, a simples aceitação do batismo não se traduzia em uma efetiva vivência cristã nos moldes estabelecidos pelos missionários.

Recém-chegados à nova terra, Nóbrega e os seus companheiros buscaram conhecer a “índole do gentio” a fim de identificar os principais desafios à sua missão. Inicialmente, a suposta ausência de religião alimentou o otimismo dos missionários, como já foi lembrado, traduzido no tom triunfalista de Nóbrega: “Poucas letras bastariam aqui, porque tudo é papel branco, e não há que fazer outra coisa, senão escrever à vontade as virtudes mais necessárias e ter zelo em que seja conhecido o Criador destas suas criaturas” (Nóbrega, 1988, p. 94).

Passados apenas dois anos, Nóbrega escreve de Pernambuco aos padres e irmãos de Portugal em termos menos otimistas: “Todos querem e desejam ser cristãos; mas deixar seus costumes lhes parece áspero” (Nóbrega, 1988, p. 114). No mesmo ano de 1551, em carta dirigida ao rei D. João III, Nóbrega se expressa em termos semelhantes: “O converter todo este Gentio é mui fácil coisa, mas o sustentá-lo em bons costumes não pode ser senão com muitos obreiros, porque em coisa nenhuma creem e estão papel branco para neles escrever à vontade se com exemplo e contínua conversação os sustentarem” (Nóbrega, 1988, p. 125).

Não demorou muito, portanto, para que a contraposição entre fé e costumes se revelasse um enigma difícil de ser solucionado pelos missionários, pondo em evidência o tema da inconstância indígena, interpretada pelo antropólogo Viveiros de Castro como uma modalidade própria de lidar com a alteridade, a fé, a religião e a autoridade, por parte dos indígenas (Viveiros de Castro, 2002). Em seu Diálogo sobre a conversão do gentio, Nóbrega aponta a inconstância indígena como um dos principais obstáculos à conversão: “Uma coisa tem estes, pior de todas, que quando vêm à minha tenda, com um anzol que lhes dê os converterei a todos, e com outros os tornarei a desconverter, por serem inconstantes e não lhes entrar a verdadeira fé nos corações” (Nóbrega, 1988, p. 230).

Tal estado de coisas provocou uma maior cautela por parte dos religiosos quanto à administração do batismo, postergando ao máximo o rito associado à conversão. As únicas exceções eram os indígenas que se encontravam em perigo de morte ou os recém-nascidos e crianças até a idade da razão, as quais eram consideradas inocentes (isto é, sem pecado). Em 1550, escreve o padre João de Azpilcueta Navarro:

Pedem muitos deles o batismo, sobretudo em seis ou sete aldeias onde prego. Mas por duas razões principalmente entendo que se lhes não deve administrar o batismo. Uma, é não terem Rei a quem obedeçam, nem moradia certa, mudando-se de aldeia todos os anos. [...] A outra razão, não menos eficaz, de diferir o batismo é que muito arraigado está neles o uso de comer carne humana (Navarro, 1988Navarro, A. (1988). Cartas avulsas. Itatiaia., pp. 76-77).

O atraso do batismo visava propiciar uma maior preparação dos nativos no tocante à doutrina cristã, o que supostamente propiciaria o rompimento definitivo com os seus “antigos costumes”. Para tanto, os jesuítas reforçavam a estratégia de investimento na preparação das crianças indígenas, vistas como mais promissoras para o aprendizado do que os adultos, o que, de fato, já estava previsto no regimento do primeiro governador-geral, citado anteriormente. A este respeito, escreve Nóbrega: “Principalmente pretendemos ensinar bem os moços, porque estes bem doutrinados e acostumados em virtude, serão firmes e constantes, os quais seus pais deixam ensinar e folgam com isso, e por isso nos repartiremos pelas capitanias [...]” (Nóbrega, 1988, p. 115).

Educar: os primeiros colégios na colônia

Educar apresenta uma conotação menos abrangente do que ensinar, como foi dito previamente; ao mesmo tempo, possui um conteúdo mais específico e determinado, embora não limitado à noção de escolarização (Fonseca, 2016Fonseca, T. N. L. (2016). Circulação e apropriação de concepções educativas no mundo luso americano colonial (séculos XVIII-XIX). In A. C. A. Santos (Org.), Ilustração, cultura escrita e práticas culturais e educativas (pp. 131-145). Estúdio Texto.). Para Bluteau, este verbo é sinônimo de “criar”, que será abordado no tópico seguinte. O adjetivo “educado” também aparece como sinônimo de “criado” e “ensinado”. O mesmo padrão é seguido com relação ao substantivo “educação”, que é apontado como sinônimo de “criação”. Em relação ao significado desta última palavra, Bluteau acrescenta: “[...] ensino para a direção dos costumes” (Bluteau, 1712-1728).

Os “costumes” a que se refere o autor, definidos no bojo de uma sociedade que se percebia como profundamente cristã, eram aqueles associados ao cristianismo, ou seja, pautados pelos ensinamentos bíblicos e eclesiásticos. Ao contrário da ação de ensinar, que não possuía um direcionamento pré-estabelecido, a ação de educar possuía um direcionamento específico.

No afã de obter resultados mais promissores na conversão dos indígenas em solo brasílico, antes que a política de formação dos aldeamentos estivesse efetivamente estabelecida, Nóbrega apoiou a retirada das crianças do sexo masculino das aldeias para que fossem devidamente educadas pelos jesuítas, dando origem ao que seriam os primeiros colégios na colônia. Esta proposta foi inicialmente formulada e implementada pelo padre Azpilcueta Navarro:

Só aos pequenos acho com boa inclinação, se os tirássemos da casa de seus pais, o que não se poderá fazer sem que Sua Alteza faça edificar um “colégio” nesta cidade com destino a essas crianças para as educar, de maneira que com os maus costumes e malícia dos pais se não perca o “ensino” que se ministra aos filhos (Navarro, 1988Navarro, A. (1988). Cartas avulsas. Itatiaia., p. 77, grifo nosso).

Em uma carta escrita em 1551, o mesmo padre Navarro definiu melhor a proposta, mostrando-se bastante otimista quanto aos resultados que seriam alcançados por meio da retirada das crianças do convívio familiar:

Depois disto, com licença do padre Nóbrega, me fui a outra aldeia de 150 fogos e fiz ajuntar os moços e fiz-lhe a doutrina em sua própria língua. Achei alguns aqui mui hábeis e de tal capacidade que bem ensinados e doutrinados podiam fazer muito fruto em a gentilidade, para o que temos muita necessidade de um “colégio” nesta Bahia para “ensinar” os filhos dos índios, e alguns temos e nos dariam mais se tivéssemos possibilidade “para os recolher e sustentar”, que a terra por ser novamente povoada ainda não pode fazer. Este colégio não somente será bom para recolher os filhos dos gentios e cristãos para os “ensinar e doutrinar”, mas também para paz e sossego da terra e proveito da república (Navarro, 1988Navarro, A. (1988). Cartas avulsas. Itatiaia., p. 98, grifo nosso).

Motivados pelo envio para a Bahia dos meninos órfãos do recém-fundado Colégio dos Órfãos de Lisboa, os jesuítas tentaram iniciar uma instituição semelhante na Bahia, educando-os conjuntamente com os meninos indígenas. O objetivo era formar não apenas bons cristãos, que futuramente constituiriam a população da colônia, mas também intérpretes e pregadores - projeto que acabou sendo descartado rapidamente.

De imediato, Nóbrega acolheu em Salvador alguns meninos das aldeias próximas à cidade e levantou donativos para sustentá-los, reportando-se ao provincial de Portugal, em 1552, com evidente otimismo: “Este colégio dos meninos de Jesus vai em muito crescimento, e fazem muito fruto; porque andam pelas aldeias com pregações e cantigas de Nosso Senhor pela língua, que muito alvoroça a todos” (Nóbrega, 1988, p. 129).

Na mesma carta, o superior da missão jesuítica no Brasil revelou sua intenção de enviar ao menos dois daqueles meninos para o reino a fim de que pudessem dar continuidade aos estudos e ingressar na Companhia de Jesus, alcançando, futuramente, o sacerdócio:

Eu tinha dois meninos da terra para mandar a Vossa Reverendíssima, os quais serão muito para a Companhia; sabem bem ler e escrever, e cantar, e são cá pregadores, e não há cá mais que aprender, e mandava-os para aprenderem lá virtudes um ano e algum pouco de latim, para se ordenarem como tiverem idade, e folgará El Rei muito de os ver, por serem primícias desta terra; e por não ter embarcação boa, e ser já tarde, e andarem franceses, os não mando este ano (Nóbrega, 1988Nóbrega, M. (1988). Cartas do Brasil. Itatiaia., p. 131).

Em São Vicente, capitania que vinha se mostrando a mais promissora para a conversão dos brasis, Nóbrega procurou promover a mesma estratégia, dando conta da reunião de meninos órfãos e indígenas a serem educados e doutrinados de acordo com os costumes cristãos:

Está principiada uma casa na povoação de S. Vicente, onde se recolheram alguns órfãos da terra e filhos do Gentio [...] ajuntamos todos os que Nosso Senhor quer trazer à sua Egreja, e aqueles que sua palavra e Evangelho engendra pela pregação, e estes de todo deixam seus costumes e se vão extremando dos outros (Nóbrega, 1988Nóbrega, M. (1988). Cartas do Brasil. Itatiaia., p. 145).

O início promissor da missão em São Vicente e os desentendimentos com o primeiro bispo da Bahia, nomeado em 1551 e chegado à sede da nova diocese no ano seguinte, fizeram Nóbrega cogitar a entrega desta seara ao clero secular: “Parece razão deixarmos esta parte e quinhão ao Bispo e a seus padres” (Nóbrega, 1988, p. 146). Mesmo assim, os planos iniciados na Bahia continuaram a ser executados.

O relato presente em uma carta de 1557 testemunha o expediente usado pelo irmão João Gonçalves nas visitas feitas às aldeias próximas à cidade de Salvador, em relação à retirada dos meninos indígenas da companhia das famílias:

Dispôs-se logo o irmão para visitar as aldeias, e da primeira vez que foi a elas, trouxe dois meninos; a um deles puseram o nome Paulo, e ao outro Pedro. [...] Da segunda vez trouxe três mui bonitos, a que o padre Ambrosio Pires pôs os nomes dos três Reis magos. Daí por diante, ajudando-se da obediência, ora trazia quatro, ora cinco, ora seis, de modo que lhe cobraram tanta afeição que fugindo de suas mães o vinham aguardar ao caminho para que os trouxesse consigo (Navarro, 1988Navarro, A. (1988). Cartas avulsas. Itatiaia., p. 195).

Tais iniciativas se viram completamente frustradas após a aprovação definitiva das Constituições da Companhia de Jesus, em 1556. Até aquele momento, Nóbrega e seus companheiros organizavam a missão no Brasil sem instrumentos normativos mais amplos para além da já citada Fórmula do Instituto, documento bastante resumido que havia sido apresentado ao pontífice romano por ocasião do pedido de aprovação da ordem, bem como dos Exercícios espirituais, manual de devoção e espiritualidade que traduzia a mística inaciana (Leite, 2006Regulamento do Seminário de Belém da Cachoeira (2006). In S. Leite. História da Companhia de Jesus no Brasil (Tomo V, pp. 180-189). Itatiaia.; O’Malley, 2004O’Malley, J. W. (2004). Os primeiros jesuítas. Editora Unisinos.; Constituições..., 1997).

A chegada do padre Luiz da Grã com a primeira versão das Constituições pôs fim à experiência daqueles primeiros “colégios”, que mais propriamente poderiam ser chamados de “recolhimentos”, ou “seminários”, uma vez que a ideia era manter numa mesma casa os meninos brancos, indígenas e mamelucos (filhos de pais portugueses e mães indígenas) para educá-los conjuntamente dentro de uma perspectiva catequética e longe da influência familiar e dos “costumes gentílicos” (no caso dos indígenas).

Ao tomar conhecimento das novas resoluções, em Piratininga, Nóbrega não escondeu uma enorme decepção:

Desta maneira vivemos até agora nesta capitania, onde estávamos seis padres de missa e quinze ou dezesseis irmãos por todos; e aos mais sustentava aquela casa de S. Paulo de Piratininga com alguns meninos do gentio, “sem se determinar se era colégio da Companhia, se casa de meninos”, porque nunca me responderam a carta que escrevesse sobre isto, e nestes termos nos tornaram as Constituições, que este ano de 56 nos fez Nosso Senhor mercê de nos mandar, pelas quais entendemos que não devemos ter cargo nem de gente para doutrinar na fé, ao menos em nossa conversação conhecemos também não poderem os Irmãos ter bens temporais nenhuns, se não for Colégio (Nóbrega, 1988Nóbrega, M. (1988). Cartas do Brasil. Itatiaia., p. 153, grifo nosso).

Em resumo, as Constituições recém-chegadas de Lisboa impediram a continuidade da estratégia adotada por Nóbrega a partir da sugestão de Navarro de reunir os meninos indígenas em “colégios” que seriam, na verdade, “casas de meninos”. Ao mesmo tempo, as normas recém-enviadas ratificavam a edificação de “colégios” propriamente ditos, que seriam espaços de habitação e de formação destinados aos próprios religiosos. Para tanto, estas casas deveriam possuir bens e administrar rendas, a título de sustentação dos padres e irmãos (não de meninos órfãos, ou crianças retiradas das aldeias, como pretendia Nóbrega).

Essa pequena confusão semântica ajuda a refletir sobre o próprio significado em voga na época do termo Colégio. Tomando por base, novamente, o Vocabulário, de Raphael Bluteau, nota-se que essa palavra possuía dois significados. Por um lado, “lugar, em que se ensinam as humanidades e as ciências”, acepção que se aproxima da definição ainda em uso no português brasileiro, sendo bastante familiar aos pesquisadores que conduzem este estudo, portanto. Por outro lado, “corpo, ou companhia de pessoas da mesma profissão, que têm os mesmos cargos, e dignidades”. Essa segunda acepção parece mais próxima da compreensão presente nos documentos normativos da ordem inaciana e da raiz etimológica latina apontada por Bluteau: “[...] os que vivem juntos no mesmo lugar, e que observam as mesmas leis, para instruir, e ensinar moços estudantes, são propriamente, o que os latinos chamaram Collegium” (Bluteau, 1712-1728). Nessa acepção, o termo parece apresentar um significado próximo ao atualmente atribuído à palavra “colegiado”, ou seja, o conjunto de professores que compõem determinado curso de graduação ou pós-graduação2 2 O termo “colegiado” também é usado na Educação Básica com uma acepção um pouco diferente desta. .

No trecho citado anteriormente, Nóbrega afirma ter encaminhado uma carta para a qual não havia obtido resposta, perguntando se o “Colégio de São Paulo”, que ele havia ajudado a organizar, em Piratininga, seria um “colégio da Companhia”, ou uma “casa de meninos”. De fato, nem esse, nem o “Colégio dos Meninos de Jesus”, na Bahia, configuravam o que o principal documento normativo da Companhia de Jesus definiria como “Colégio”. Da mesma forma, essa definição não se confunde com o significado que é atribuído a eles atualmente, ou seja, o de instituições de ensino formal. No entanto, com o amadurecimento institucional da ordem inaciana, consolidado após a aprovação do Ratio Studiorum, em 1599, esses dois significados - residência destinada aos missionários e espaço de educação formal - acabaram por se sobrepor, uma vez que, sem perder de vista a sua finalidade original, os colégios jesuíticos começaram a receber estudantes de fora.

De fato, a expansão dos colégios (entendidos como espaços de formação) marcou a inserção da ordem inaciana em diversos espaços geográficos e sociais. Logo, pode-se aferir que a opção preferencial pela educação como meio eficaz para concretizar a sua missão ensejou a fundação de colégios que marcaram o apogeu e o declínio da atuação dos inacianos nos diversos territórios, como destaca Palomo: “[...] a atividade escolar tornou-se imediatamente, sem dúvida, uma das principais funções desempenhadas pelos membros da Companhia, sustentada numa ampla rede de colégios, que se desenvolveu desde a segunda metade do século XVI” (Palomo, 2003, p. 165).

No entanto, como explica O’Malley (2004O’Malley, J. W. (2004). Os primeiros jesuítas. Editora Unisinos.), os primeiros colégios inacianos na Europa não passavam de locais de moradia próximos às universidades. O seu propósito inicial era servir de base para que os jesuítas pudessem frequentar as aulas, sendo mantidos pela própria Companhia de Jesus. Com o tempo, passaram a ter aulas (classes) voltadas para a própria comunidade de religiosos ali alojada. Posteriormente, essas aulas foram abertas para estudantes de fora, ou seja, os que não eram jesuítas. A educação, então, tornou-se um ministério com estatuto próprio e diferenciado no interior da Companhia de Jesus, mantendo o seu caráter de obra de apostolado, uma vez que derivava do compromisso original de “formação cristã das crianças e dos rudes”, previsto na Fórmula do Instituto, citada anteriormente (Constituições..., 1997; O’Malley, 2004).

Em um artigo de grande originalidade, cujo sugestivo título é “O colégio dos jesuítas de São Paulo (que não era colégio nem se chamava São Paulo)”, Custódio e Hilsdorf argumentam que “[...] o Colégio dos Jesuítas de São Paulo é um dos mitos propagados de uma certa história da educação que faz a Companhia de Jesus desembarcar em 1549 para educar a elite colonial brasileira” (Custódio & Hilsdorf, 1995, p. 169). A partir de uma revisão bastante assertiva das cartas jesuíticas dos anos de 1549 a 1562, as autoras anteciparam algumas das conclusões apresentadas neste tópico, porém, pecaram por não historicizar a própria noção de colégio, ou seja, tomaram esta palavra com o significado atual de instituição básica de ensino. Este significado não condiz nem com o sentido dado pelas Constituições, nem com o atribuído por Navarro e Nóbrega com suas “casas de meninos”, como visto anteriormente. Além disso, mesmo após a promulgação do Ratio Studiorum, os colégios jesuíticos continuaram exercendo a função de habitação dos religiosos (de forma semelhante aos mosteiros e aos conventos das demais ordens religiosas), para além da sua dimensão educacional e formativa, o que também não condiz com o sentido atual de colégio como instituição exclusivamente dedicada ao ensino.

Criar: o Seminário de Nossa Senhora de Belém da Cachoeira

O termo “criação” aparece com bastante frequência nas correspondências jesuíticas. Ele também é usado em uma das principais obras pedagógicas do século XVII, Arte da criação dos meninos na idade da puerícia, de autoria do padre jesuíta Alexandre de Gusmão, fundador do Seminário de Nossa Senhora de Belém, na vila da Cachoeira, no recôncavo baiano (cf. Souza, 2015Souza, L. V. (2015). Educados nas letras e guardados nos bons costumes: padre Alexandre de Gusmão S. J., infância e educação na Bahia colonial (séculos XVII e XVIII). EDUFBA.; Silva Jr., 2016Silva Jr., A. P. (2016). O Seminário de Belém da Cachoeira: educando os filhos dos principais em santos e honestos costumes (1686-1759) [Dissertação de Mestrado]. Universidade Federal da Bahia.; Leite, 2006Regulamento do Seminário de Belém da Cachoeira (2006). In S. Leite. História da Companhia de Jesus no Brasil (Tomo V, pp. 180-189). Itatiaia.; Oliveira, 2015Oliveira, F. F. (2015). Educação jesuítica; século XVII: Alexandre de Gusmão e o Seminário de Belém da Cachoeira [Tese de Doutorado]. Universidade Federal de São Carlos.).

Do ponto de vista jesuítico, a educação (entendida em termos amplos) deveria se iniciar na infância (puerícia) e prosseguir na juventude e na idade adulta, de modo que fosse incutido progressivamente o aprendizado das letras juntamente com a fé e os bons costumes. O perfeito cristão, letrado e devoto, seria o esteio da sociedade idealizada, ou seja, da “república cristã”. Os meninos ou jovens que não correspondessem a este ideal eram considerados, portanto, “mal-educados” ou “mal criados”, pois a sua postura contradizia o resultado esperado de uma “boa educação”, ou “boa criação”, apanágio dos costumes civis e das virtudes religiosas.

Pode-se recorrer ao Diccionario histórico de la Compañia de Jesú¸ para apontar as diferenças entre os termos “casa, colégio e seminário” (O’Neill & Dominguez, 2001O'Neill, C. E., & Domínguez, J. M. (Dir.). (2001). Diccionario histórico de la Compañia de Jesús. Institutum Historicum S. I.). Nas Constituições da Companhia de Jesus, Inácio de Loyola usa sempre as palavras “casa” e “colégio” em um sentido técnico. “Casa” seria um domicílio de jesuítas já formados, que, após o término dos estudos, se dedicariam a trabalhos apostólicos, mantendo-se exclusivamente de esmolas. O “Colégio” seria um domicílio onde viveriam tanto os estudantes quanto os professores jesuítas, o qual poderia ter rendas fixas para o sustento e a manutenção. Nos Colégios, como visto neste artigo, os estudantes externos frequentavam as aulas ministradas por professores jesuítas aos alunos residentes. O termo “Seminário” poderia ser aplicado tanto aos seminários clericais - voltados para os candidatos ao sacerdócio - quanto às escolas ou seminários menores - voltados para preparar os jovens que tivessem vocação para ingressar na Companhia de Jesus. Com o tempo, no entanto, essa exigência deixou de existir, configurando um tipo específico de “estabelecimento de ensino” que pode ser exemplificado por meio do Seminário de Belém.

Segundo Serafim Leite, o Seminário de Belém “[...] nasceu como demonstração prática do que o P. Alexandre de Gusmão, seu fundador, explanara antes em duas obras escritas” (Leite, 2006, p. 167). O autor jesuíta refere-se às obras Escola de Belém, de 1678, e Arte de criar bem os filhos na idade da puerícia, de 1685. A data de criação do Seminário, inscrita no frontispício da igreja, é 1686, embora a sua construção tenha se iniciado no ano seguinte, estendendo-se até o início do século XVIII.

Em livro redigido em homenagem à Nossa Senhora, a Virgem da Gloriosa Assunção, intitulado Rosa de Nazareth nas montanhas de Hebron, o padre Gusmão explica a escolha do nome e ainda enaltece as instalações do Seminário de Belém:

E porque ao tempo que isto escrevo, tenho a meu cuidado o Seminário de Belém do Brasil, me pareceu fazer dele particular menção, porque tudo o que nele há de bom, é por patrocínio, e providência da Senhora. Foi fundado na era de 1686, não teve outro fundador, nem fundação, mais que a providência da Senhora, debaixo de cujo nome de N. Senhora de Belém foi fundado. A casa é a maior, e mais formosa do Brasil, capaz de receber duzentos meninos; a Igreja e a Sacristia a mais linda, e de ricas peças, que o Brasil tem (Gusmão, 1715Gusmão, A. (1715). Rosa de Nazareth nas Montanhas de Hebron. Officina Real Dellandesiana., p. 362).

Duas cartas endereçadas ao rei de Portugal por Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho, governador-geral do Brasil (1690-1694), são citadas por Leite. Ambas fornecem informações sobre o “Seminário da Cachoeira feito pelo Padre Alexandre de Gusmão”, considerando-o “conveniente à boa educação dos Vassalos de Vossa Majestade”.

Na primeira, datada de 9 de julho de 1692, o Seminário é descrito como uma instituição de grande utilidade para a Coroa, tendo em vista “não só o fruto do bem das almas, que nele se recolhiam, mas ainda o comum para maior bem de todo este Estado”. Caberia ao governador destinar rendas que pudessem ser aplicadas naquela obra pela Fazenda Real e convencer os moradores a também ajudarem a instituição, uma vez que os seus alunos se tornariam “Missionários naturais para as Aldeias, Mestres para os seus filhos, e Religiosos para o serviço de Deus”3 3 Como assinalado por Serafim Leite, é possível perceber que o governador reproduziu, no início das cartas, os argumentos presentes nas que havia recebido do monarca. Estas, por sua vez, devem ter se fundamentado em missivas anteriores ou requerimentos redigidos pelo próprio padre Alexandre de Gusmão. . A resposta do governador, no entanto, não se deu no sentido esperado pelo monarca. Isso, porque ele alegou que os alunos do Seminário eram “filhos de homens ricos” e que seus pais já ajudavam financeiramente a instituição. Sendo assim, seria difícil “persuadir aos moradores a que concorram com as ditas esmolas”. Em relação à Fazenda Real, alegou que a mesma estava sem recursos e com pagamentos atrasados (Coutinho, 1692Coutinho, A. L. G. C. (1692). Carta para Sua Majestade sobre se pedir uma côngrua para os filhos dos moradores que estudam no Seminário. In Documentos históricos (Vol. XXXIV, pp. 70-72). Biblioteca Nacional.).

Segundo o comentário de Leite, a proposta original do Seminário de Belém era ser gratuito, como a maioria das instituições educacionais administradas pela Companhia de Jesus, mas, devido ao seu caráter de internato, surgiu a necessidade de garantir recursos financeiros para a manutenção dos mestres e seminaristas. Por esse motivo, nas palavras do autor jesuíta, “[...] a ideia evolucionou para filhos de pais honrados e nobres, pagando cada qual uma pensão, aliás módica” (Leite, 2006, p. 169).

Na segunda carta, datada de 26 de julho de 1693, o governador parece reagir a algum tipo de reprimenda feita pelo rei em resposta à carta anterior. Frente à pouca disposição do governador para conseguir ajuda financeira para o Seminário, o monarca enumerou as vantagens esperadas daquela instituição: implementação dos bons costumes; ensino das primeiras letras na língua latina; habilitação para o ministério das missões e para o serviço da igreja; utilidade pública dos vassalos do Brasil. No entendimento do rei, “era justo se procurasse com todo o cuidado a sua conservação”. Diante desta necessidade, o próprio monarca havia ordenado que fossem destinados cem mil reis para o Seminário, “por uma vez somente”, retirando-se o referido valor do montante consignado para as missões. O governador limitou-se a declarar ciência (Coutinho, 1693Coutinho, A. L. G. C. (1693). Carta para Sua Majestade sobre se darem 100 mil réis por uma vez somente ao Seminário da Cachoeira. In Documentos históricos (Vol. XXXIV, pp. 180-181). Biblioteca Nacional.).

Mesmo contando com o incentivo régio, o projeto do Seminário levaria ao menos três décadas para se concretizar: “em 1717 as obras foram concluídas; depois de 30 anos de obras intensas, sem contar paisagismo e decorações, só engenharia”. No mesmo contexto, Leite salienta que, aos poucos, o Seminário de Belém passou a ser dotado de todas as acomodações necessárias a um internato, “[...] tanto para moradia e passadio dos alunos como dos Padres, e as salas para as aulas, e a Casa para Hóspedes e peregrinos autorizados” (Leite, 2006, pp. 192-193).

Na obra Rosa de Nazareth, publicada em 1715, Gusmão dedica um capítulo à reflexão acerca do patrocínio de Nossa Senhora, que se evidenciava, segundo o autor, no êxito das instituições educacionais administradas pelos jesuítas em todos os territórios em que se fizeram presentes. Não obstante, o fundador e reitor do Seminário de Belém sublinhou o “quão bem-criados” eram os seminaristas que por esta instituição passavam:

Sabia a Santíssima Virgem, que a intenção toda de Santo Inácio em buscar em todas as suas obras a maior glória de Deus, e que para conseguir este fim, escolheu por meio mais útil a ocupação de “ensinar as letras aos maiores, e os bons costumes aos pequenos”. [...] E começando pelos Seminários, é incrível o que a Companhia tem obrado no mundo por este meio ajudada com o patrocínio da Virgem, e quão “bem criados saem deles com o leite de sua devoção”, em que todos se esmeram, sendo quase todos fundados debaixo do nome, e patrocínio da Virgem Santíssima (Gusmão, 1715Gusmão, A. (1715). Rosa de Nazareth nas Montanhas de Hebron. Officina Real Dellandesiana., p. 361, grifo nosso).

Instituído em uma fase mais avançada da educação jesuítica em solo brasílico, o Seminário de Belém da Cachoeira acolheu vários seminaristas, filhos dos colonos, mais precisamente a partir do final do século XVII, buscando pôr em prática as orientações gerais do Ratio Studiorum e os pensamentos religioso-pedagógicos do padre Alexandre de Gusmão. Essa instituição funcionava em regime de internato, mas não era voltada para a formação de padres. Em seus objetivos, defendia a necessidade da criação dos meninos nas letras e nos santos e honestos costumes da fé cristã, como definido no primeiro parágrafo do Regulamento:

“O fim deste Seminário é criar os meninos em santos e honestos costumes, principalmente no temor de Deus”, e inclinação às coisas espirituais, a fim de saírem ao diante bons cristãos. Além disto, hão de aprender a “ler, escrever, contar, gramática e Humanidades”, e não se lerá Curso de Filosofia; e nas doutrinas, que se fazem aos Domingos, se há de procurar que aprendam os mistérios da fé com inteligência, e por isso não se estenda o Padre, que faz a doutrina, demasiado, nas exortações ao Povo; porque essas se podem fazer à parte nas festas do ano, e a obrigação de fazer a doutrina é maior (Regulamento..., 2006, p. 180, grifo nosso).

Bastante representativo e adequado ao contexto da educação colonial e ilustrando os pensamentos pedagógico-religiosos dos inacianos, o Seminário de Belém da Cachoeira trazia nas letras desse Regulamento as orientações acerca dos espaços físicos, sociais e pedagógicos que cada indivíduo deveria ocupar, a fim de que a instituição conseguisse cumprir com êxito a função de criar santos e honestos costumes. Dito de outra forma, os pressupostos presentes nas obras de Gusmão e, principalmente, os termos, os parágrafos e as orientações explícitas no Regulamento do Seminário enfatizam a intencionalidade da educação jesuítica de criar/formar o ser humano em todas as suas dimensões, não sendo possível dissociar o processo de educação ou criação, nas letras, na doutrina e nos bons costumes cristãos.

Ao analisar o Regulamento do Seminário de Belém da Cachoeira é relevante salientar, previamente, alguns aspectos deste que se constitui a principal fonte produzida acerca dos pressupostos educacionais e regras de funcionamento da instituição. Nessa perspectiva, ainda que se considere a real possibilidade de divergências cotidianas, ocorrências tácitas e deliberado descumprimento do que estava posto, não se deve desconsiderar o fato de constarem como regras basilares do Estatuto do Seminário, pois foram pensadas como orientações fundamentais, ainda que não tenham sido integralmente cumpridas.

Além disso, mesmo pautado nas orientações gerais da Companhia de Jesus, previstas nas Constituições e no Ratio Studiorum, o fato de o Regulamento do Seminário de Belém ter sido escrito aproximadamente uma década após a fundação e em pleno funcionamento da instituição, aponta para que ele tenha sido redigido a partir de um compilado da observação das necessidades concretas e das orientações cotidianas para a normatização do fazer religioso-pedagógico, a fim de lograr êxito na seara de criar bem os seus seminaristas. Tem-se, portanto, que, entre os anos de 1692 e 1696, o referido documento foi elaborado, revisado e aprovado (Leite, 2006Regulamento do Seminário de Belém da Cachoeira (2006). In S. Leite. História da Companhia de Jesus no Brasil (Tomo V, pp. 180-189). Itatiaia.).

É relevante enfatizar também que, empenhados em ofertar uma criação exemplar, amorosa e rigorosa”, os mestres jesuítas que atuavam no Seminário, bem como o seu primeiro reitor, o padre Gusmão, declaravam não medir esforços para que os seminaristas não sentissem a ausência dos seus pais e familiares durante a permanência no internato. Atento a esse fim, o padre Gusmão enfatiza que no Seminário seria necessário distribuir o tempo entre o rigor dos estudos e as pausas para a recreação dos estudantes, “[...] para que se sintam tão bem no Seminário, a tal ponto de esquecerem da casa dos pais” (Gusmão, 1715, p. 363).

Ao observar as normas prescritas no Regulamento para a admissão dos estudantes no Seminário de Belém, é possível traçar o perfil dos que eram aceitos naquele ambiente de criação: meninos, com idade entre 12 e 13 anos, que permaneceriam na instituição por cinco ou seis anos, identificados e classificados como “filhos dos principais”. Assim, explicitamente, o Seminário voltava-se à formação de um determinado grupo social, excluindo os demais, a começar pelas crianças do sexo feminino, conforme estabelecido no próprio Regulamento:

8. Dos que pretendem entrar no Seminário, se hão de tirar as informações (ainda que não com aquela exacção, que se costuma, quando se trata de admitir alguém na Companhia), acerca dos costumes, e da pureza do sangue: “excluindo totalmente” os que têm qualquer mácula de sangue judeu, e até o 3º grau inclusive “os que têm alguma mistura de sangue da terra, a saber, de índios ou de negros mulatos ou mestiços” (Regulamento..., 2006, pp. 182-183, grifo nosso).

Nessa reveladora orientação para a admissão dos seminaristas, a atenção concentrava-se no sangue e na inferioridade que ele, supostamente, imprimia nos indivíduos. Por isso, deveriam ser proibidos de ingressar os que tivessem “mácula de sangue judeu e mistura de sangue da terra”. Logo, a questão estava no sangue, que determinava quais seriam os mais propensos a desenvolver bons ou maus costumes. A proposta do Seminário diferenciava-se completamente dos padrões pedagógicos dos “recolhimentos”, ou “casas de meninos”, que foram pensados em um contexto socioeducacional anterior, para que os jesuítas desenvolvessem a educação, ou a criação, dos meninos indígenas - atividade entendida como ferramenta fundamental para a conversão, como abordado previamente. Em outros termos - e assumindo o intencional anacronismo -, é possível constatar padrões tanto “de gênero” quanto “étnico-raciais” para a seleção, para além do status socioeconômico e da origem familiar dos meninos, para determinar quem poderia ou não ser admitido como seminarista em Belém da Cachoeira.

Outra norma que explicita o perfil e a origem socioeconômica pretendidas para os seminaristas admitidos se revela na possibilidade de levarem “moleques” (isto é, crianças escravizadas) para os servir no Seminário de Belém. Nesse sentido, o regulamento determina que:

17. Não se permita que os meninos tragam moleques para os servirem, porque é mui necessário “para a sua boa criação” que eles se sirvam a si, e uns aos outros quando estão doentes; e para se costumarem a ter cuidado das coisas, eles serão os sacristães, porteiros, etc., e varrerão seus cubículos, farão suas camas, etc. (Regulamento..., 2006, p. 183, grifo nosso).

Todavia, ainda que este documento buscasse estabelecer que a boa criação dos seminaristas em virtudes cristãs, ou seja, “no serviço e amor ao próximo”, precisava ser prioridade, muitas vezes, o imperativo da hierarquia social sobrepunha-se à necessidade de aprendizado de tais virtudes, como é possível constatar através desta nota, inserida pelo Padre Geral da Companhia de Jesus ao lado deste parágrafo, ao aprovar o Regulamento, e que foi transcrita por Serafim Leite:

“Non decet saeculares nobiles”, nota posta pelo P. Geral. Era o parecer do P. Provincial Manuel Correia: Esta ordem, de fazerem os Seminaristas alguns ofícios mais baixos como varrerem os cubículos, etc., “é digna de reparo, especialmente no Brasil, aonde nem o mínimo oficial Branco exercita tais ofícios, próprios dos escravos”, nem se achará um homem Branco que tal faça. A que se ajunta “serem os Seminaristas, filhos de Pais honrados e nobres, que não folgarão disso, muito mais havendo tantos escravos no Seminário que o poderão fazer” (Leite, 2006Regulamento do Seminário de Belém da Cachoeira (2006). In S. Leite. História da Companhia de Jesus no Brasil (Tomo V, pp. 180-189). Itatiaia., p. 183, grifo nosso).

Apesar dessa ressalva, a definição de uma minuciosa rotina de estudos, oração e “exercícios espirituais” se constituía uma condição indispensável para uma boa e efetiva criação dos estudantes nas letras e honestos costumes, conforme registrado por Gusmão em seu tratado pedagógico de 1685, o qual foi retomado no Regulamento do Seminário. Nesse sentido, foram destinados alguns parágrafos para orientar quanto aos passos e aos espaços de cada prática educativo-religiosa.

Assim, cumpridos os preceitos religiosos e concluído o desjejum, os seminaristas deveriam se dirigir às classes, que se estendiam até a hora do almoço, o qual, segundo as regras, seria servido em comunidade, num ambiente silencioso. Após esse momento de refeição, teriam uma hora de descanso, em local designado previamente pelo reitor. Em seguida, seriam conduzidos para uma breve oração e se recolheriam novamente aos cubículos (dormitórios) para estudar. Por volta das três horas da tarde, os seminaristas eram orientados a se dirigir à classe e, posteriormente, para a lição de solfa. Ao definir, detalhadamente, o cotidiano de silêncio e obediência, o Regulamento explicitava também que o descumprimento de qualquer uma das normas deveria ser devidamente castigado (Regulamento..., 2006).

Os parâmetros da “boa criação” proposta pelos inacianos para o Seminário de Belém eram tão rígidos, que o Regulamento predeterminava, inclusive, os momentos de falar, silenciar e, principalmente, de rezar, individualmente ou em comunidade. De acordo com as orientações, após um breve momento de repouso, entre o fim da aula de solfa e a hora da Ave-Maria, os meninos deveriam rezar o terço em coro e louvar Nossa Senhora, recitando a ladainha “[...] em coros alternadamente, em voz baixa, pausada e devota, com ânimo de agradar e louvar a Senhora” (Regulamento..., 2006, p. 189). Depois do jantar, era reservado um momento breve para o repouso e para a lição espiritual, que consistia em um exame de consciência e na reza de preces noturnas, para, finalmente, se dirigirem aos quartos para dormir. Aos domingos e nos dias santos, os seminaristas assistiam à doutrina e, à tarde, teriam parte do tempo livre para a recreação, embora tivessem que observar as orientações do reitor a respeito dos espaços e das brincadeiras de que poderiam se ocupar.

Observadas rigorosamente, verifica-se que, segundo as normas estabelecidas no Regulamento, os seminaristas deveriam ser criados e instruídos nas letras e nos bons costumes, e ainda que a instituição não se voltasse à formação de clérigos, a relevância da castidade era repetidamente exposta e averiguada. Nesses termos, foi expressamente recomendado que os meninos não saíssem das portas da clausura sem licença e, mesmo com autorização, não deveriam fazê-lo desacompanhados, para evitar, definitivamente, qualquer contato com meninas e/ou mulheres, como é possível observar na seguinte regra:

10. O que riscar livro ou parede será castigado; tratem os livros com asseio, como convém a “meninos bem criados”. Não entrem nos cubículos uns dos outros, sem licença do Padre Reitor ou do Padre Mestre, pois não serve mais que de estorvar aos que estudam. Não falem na Igreja com mulher alguma ainda que seja parenta, sem licença do Padre Reitor, e quando alguém de fora buscar algum seminarista, o porteiro dará aviso ao Padre Reitor (Regulamento..., 2006, p. 189, grifo nosso).

O funcionamento do Seminário de Belém e, consequentemente, a atuação da Companhia de Jesus na criação dos filhos dos principais em santos e honestos costumes tiveram fim com a expulsão dos jesuítas de Portugal e suas colônias, decretada em 3 de setembro de 1759 (Santos, 2019Santos, F. L. (2019). Te Deum laudamus: a expulsão dos jesuítas da Bahia (1758-1763). Sagga.). Anos mais tarde, em correspondência enviada à rainha, o arcebispo da Bahia ressaltava a dimensão missionário-educacional daquela instituição:

Lembrava-me erigir um Seminário, em que “se criassem os filhos da Nobreza desta Cidade”, a maior parte da qual assiste nos seus Engenhos, e Fazendas fora dela, e não mandam estudar seus filhos depois que se despovoou o “Seminário, chamado de Belém” (para onde os mandavam, e do qual saíram a maior parte dos bons Eclesiásticos, que ainda há no Arcebispado, e muitos dos Seculares de bom procedimento). [...] Sem Seminários, nunca haverá clero bem criado no Brasil, nem uniformidade de doutrina (Figueiroa, 1778Figueiroa, J. B. (1778). Carta dirigida à Rainha. Arquivo Histórico Ultramarino, Bahia (Castro e Almeida), cx. 52, doc. 9789., grifo nosso).

Destarte, considerando os pressupostos das obras do padre Alexandre de Gusmão e o Regulamento do Seminário de Belém da Cachoeira, a missão jesuítica naquele espaço consistia, fundamentalmente, em criar bem os meninos, desde a mais tenra idade, nas letras da educação e da fé, conduzindo-os pelas veredas dos santos e honestos costumes cristãos. Em outras palavras, os mestres eram responsáveis pela formação efetiva e integral dos indivíduos, numa dimensão muito mais ampla que apenas o letramento. Portanto, ao lado do “ensinar” e do “educar”, a ação de “criar” também se consolidou como um articulado propósito de inserção inaciana na colônia, a um só tempo missionária e educacional.

Considerações finais

Em artigo dedicado a uma temática um pouco distinta da que se abordou nas páginas anteriores, Fonseca analisou os conceitos de educação e de instrução na Europa Moderna, visando, entre outros objetivos, “[...] desconstruir concepções historiográficas arraigadas que atrelam educação à escola, ou consideram processos de ensino e aprendizagem de determinados conhecimentos como exclusivos da instituição escolar” (Fonseca, 2016, p. 139). Perseguiu-se objetivo semelhante neste trabalho, porém, voltando o olhar para os conceitos empregados no título (educar, ensinar e criar) e para o contexto mais específico da atuação dos jesuítas na América Portuguesa.

Ao ponderar acerca da complexidade de tais conceitos, faz-se necessário reiterar que os “modos de proceder” dos jesuítas no ultramar lusitano não devem ser percebidos de maneira simplista e reducionista, pois, na atuação da Companhia de Jesus, é impossível desmembrar a dimensão religiosa da pedagógica. Ou seja, os jesuítas eram, concomitantemente, missionários cristãos e mestres educadores. Ora, retomando as discussões fundamentais deste trabalho, nos parâmetros da agência pedagógico-missionária dos jesuítas, o termo “ensinar” assumia um significado mais abrangente que “educar”. Por sua vez, a palavra “criar” assumia um sentido mais específico do que os dois verbos anteriores, pois estava revestida dos valores defendidos pela moral inaciana.

Embora possam soar como sinônimos, cada um dos conceitos guarda características peculiares e diversas, a depender de cada contexto e do âmbito de atuação dos inacianos em terras brasílicas. Contudo, esses significados não eram excludentes. Em síntese, atuando nos aldeamentos (ensinar), nos primeiros colégios ou recolhimentos (educar), ou no Seminário de Belém da Cachoeira (criar), o fato é que a Companhia de Jesus desempenhou de forma profundamente articulada a sua missão religioso-pedagógica para a “boa formação” das crianças e jovens, buscando impor a religião cristã e a moral jesuítica por diferentes meios e estratégias e sem fugir a questionamentos e contradições “para a maior glória de Deus”.

Agradecimento:

Os autores são gratos a Solyane Silveira Lima pela leitura prévia da primeira versão deste artigo, pelo empréstimo de material bibliográfico e, principalmente, pelo incentivo para publicá-lo.

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    R1: três convites; três pareceres recebidos.
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  • 1
    Sempre que necessário (inclusive em documentos de época) atualizamos a grafia para facilitar a leitura.
  • 2
    O termo “colegiado” também é usado na Educação Básica com uma acepção um pouco diferente desta.
  • 3
    Como assinalado por Serafim Leite, é possível perceber que o governador reproduziu, no início das cartas, os argumentos presentes nas que havia recebido do monarca. Estas, por sua vez, devem ter se fundamentado em missivas anteriores ou requerimentos redigidos pelo próprio padre Alexandre de Gusmão.

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Carlos Eduardo Vieira (UFPR) E-mail: cevieira9@gmail.com https://orcid.org/0000-0001-6168-271X

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    30 Jan 2024
  • Aceito
    22 Maio 2024
  • Publicado
    08 Jul 2024
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