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A sociologia sai da escola: a Reforma Capanema de 1942 e as disputas dos católicos em torno da disciplina no Brasil

La sociologia es expulsada de la escuela: la Reforma de Capanema de 1942 y las disputas de los católicos en torno a la disciplina em Brasil

Resumo

O artigo analisa, de uma perspectiva histórica, o contexto intelectual e político em que se operou, a partir da Reforma Capanema de 1942, a exclusão da sociologia como disciplina obrigatória do currículo das escolas secundárias. Partindo das interpretações que se cristalizaram em torno desse episódio-chave para a história das ciências sociais no Brasil, busca complexificar as leituras correntes à luz do exame das fontes primárias disponíveis, em especial daqueles presentes no Arquivo Gustavo Capanema. Conforme argumenta, a saída da sociologia das escolas esteve intimamente ligada às disputas em torno de sua cientificidade travadas pelos católicos, fração importante da base de apoio do Estado Novo. Como é possível depreender dos pareceres de intelectuais católicos contrários à permanência da sociologia como disciplina escolar, a crítica apontava para as visões secularistas e anticlericais que aquela ciência poderia veicular. Nesse sentido, razões políticas e ideológicas, e não apenas pragmáticas e operacionais, estiveram na raiz de sua exclusão da grade curricular.

Palavras-chave:
reforma do ensino secundário; sociologia católica; Gustavo Capanema; história do ensino da sociologia no Brasil

Resumen

El artículo analiza, desde una perspectiva histórica, el contexto intelectual y político en el que la sociología fue excluida como materia obligatoria del currículo de la escuela secundaria con la Reforma Capanema de 1942. A partir de las interpretaciones que cristalizaron en torno a este episodio clave para la historia de las sociedades ciencias en Brasil, busca matizar y complicar las lecturas actuales considerando las fuentes primarias disponibles, especialmente las presentes en el Archivo Gustavo Capanema. Como sostiene, el alejamiento de la sociología de las escuelas estuvo estrechamente vinculado a las disputas en torno a su cientificidad libradas por los católicos, una fracción importante de la base de apoyo del Estado Novo. Como se desprende de las opiniones de los intelectuales católicos que estaban en contra de la permanencia de la sociología como materia escolar, las críticas apuntaban a las visiones secularistas y anticlericales que esa ciencia podía transmitir. En este sentido, razones políticas e ideológicas, y no sólo pragmáticas y operativas, estuvieron en la raíz de su exclusión del plan de estudios.

Palabras clave:
reforma de la educación secundaria; sociología católica; Gustavo Capanema; historia de la enseñanza de la sociología en Brasil

Abstract

The article analyzes, from a historical perspective, the intellectual and political context in which sociology was excluded as a mandatory subject from the secondary school curriculum following the Capanema Reform of 1942. Starting from the interpretations that crystallized around this key episode for the history of social sciences in Brazil, it seeks to nuance and complicate current readings by considering the available primary sources, especially those present in the Gustavo Capanema Archive. As it is argued, the exclusion of sociology from schools was closely linked to the disputes surrounding its scientificity waged by Catholics, an important fraction of the support base of the Estado Novo. As can be seen from the opinions of Catholic intellectuals who opposed the permanence of sociology as a school subject, the criticism pointed to the secularist and anti-clerical views that that science could convey. In this sense, political and ideological reasons, and not just pragmatic and operational ones, were at the root of its exclusion from the curriculum.

Keywords:
secondary education reform; catholic sociology; Gustavo Capanema; history of sociology teaching in Brazil

Introdução

As antigas escolas secundárias e normais constituíram, no Brasil dos anos 1920 e 1930, importantes espaços a abrigar e a transmitir modalidades de conhecimento sociológico. Da mesma forma, os manuais produzidos para professores e alunos neste contexto acabaram contribuindo para a construção e a legitimação de um lugar para a sociologia no universo cultural e intelectual brasileiro (Meucci, 2011Meucci, S. (2011). A institucionalização da sociologia no Brasil: primeiros manuais e cursos. Hucitec.).

A área de Ensino da Sociologia na Educação Básica tem sido prolífica na produção de estudos, especialmente de balanços, sobre a presença, mas também a ausência, ao longo do século XX, da disciplina nas escolas (Machado, 1987Machado, C. S. (1987). O ensino da sociologia na escola secundária brasileira: levantamento preliminar. Revsta da Faculdade de Educação, 13(1), 115-142.; Guelfi, 2001; Carvalho, 2004Carvalho, L. M. G. (2004). A trajetória histórica da luta pela introdução da disciplina de Sociologia no Ensino Médio no Brasil. In L. M. G. Carvalho (Org.), Sociologia e ensino em debate: experiências e discussão de sociologia no ensino médio (pp. 17-60). Unijuí.; Moraes, 2011Moraes, A. (2011). Ensino de sociologia: periodização e campanha pela obrigatoriedade. Cadernos Cedes, 31(85), 359-382.; Oliveira, 2013Oliveira, A. (2013). Revisitando a história do ensino da sociologia na educação básica. Acta Scientiarum, 35(2), 179-189.; Meucci, 2015Meucci, S. (2015). Sociologia na educação básica no Brasil: um balanço da experiência remota e recente. Ciências Sociais Unisinos, 51(3), 251-260.). O reingresso da sociologia na educação básica brasileira no início do século XXI, assim como as adversidades mais recentemente encontradas em seu processo de institucionalização no nível médio de ensino, parecem ter reavivado o interesse dos estudiosos da área pelo exame das condições de possibilidade e dos obstáculos enfrentados pela sociologia enquanto disciplina escolar no passado1 1 Nos livros organizados por Handfas & Oliveira (2008); Handfas et al. (2015) e Silva e Gonçalves (2017), encontram-se não apenas análises sobre a situação da sociologia como disciplina escolar no início do século XXI, mas também avaliações e estudos sobre sua ocorrência no passado. O interesse despertado pelo ensino da sociologia como tema de pesquisa, no âmbito de programas de pós-graduação em ciências sociais, com a reintrodução da disciplina no ensino médio brasileiro em 2008 foi examinado, entre outros, por Bodart & Cigales (2017) e Oliveira e Melchioretto (2020). .

Dificilmente se compreende, no entanto, a falta de estudos acerca da sociologia escolar na bibliografia, que tem se ampliado nas últimas décadas, sobre a história das ciências sociais no Brasil feita por pesquisadores interessados em sua rotinização como prática científica e acadêmica2 2 Ver, por exemplo, os volumes organizados por Miceli (1995, 2001), que constituem importante referência para essas discussões. . Tal ausência pode ser, quando muito, explicada sociologicamente ao considerarmos, por exemplo, a persistente tendência à diferenciação e à hierarquização das formas de saber entre os praticantes da disciplina nas universidades, tidas tradicionalmente como lócus por excelência da produção de conhecimento e da pesquisa empírica, e nas escolas, tidas como um espaço de saberes derivados, “traduzidos”, “adaptados”, “transpostos” e, portanto, de segunda ordem. Não obstante, como nos lembram referências teóricas clássicas da historiografia das ciências (Fleck, 2010Fleck, L. (2010). A gênese e o desenvolvimento do fato científico. Fabrefactum.), para a compreensão histórica e sociológica do desenvolvimento do conhecimento científico, o exame das atividades de ensino e divulgação, a exemplo da produção de manuais didáticos, é tão relevante quanto a análise das proposições teóricas e dos trabalhos de pesquisa básica ocorridos no passado. Aquelas atividades contribuem, afinal, para a circulação do conhecimento produzido “intramuros” acadêmicos, impulsionando sua legitimação social e sua cristalização na forma de pressupostos e modos compartilhados de enxergar a realidade. Estes, por sua vez, podem constituir relevantes pontos de partida, enquanto conhecimentos assentados, para a socialização das novas gerações de estudiosos e cientistas.

No Brasil, a história da sociologia como ramo que se pretendia autônomo e específico do conhecimento esteve, em um primeiro momento, estreitamente vinculada ao ensino secundário e às escolas normais3 3 Em suas análises sobre o desenvolvimento da sociologia no Brasil, Fernando de Azevedo, referindo-se aos escolanovistas, observa o impulso a ele conferido “[...] pelos educadores e reformadores que viam nos estudos científicos da sociedade o ponto de partida e a base sólida para transformações racionais das instituições e dos sistemas escolares, em sua estrutura e em suas finalidades” (Azevedo, 1955, p. 381). Destaca, igualmente, que o ensino da sociologia na educação básica e nas escolas normais precedeu à sua oferta nos cursos superiores de ciências sociais (Azevedo, 1967). . Tal vinha sendo a relevância desses níveis de ensino na construção de um lugar para formas de saber sociológico na sociedade brasileira que o fim da obrigatoriedade da disciplina no currículo escolar com a Reforma Capanema de 1942Capanema, G. (1942). Minuta de carta endereçada a Getúlio Vargas, 1º de abril de 1942. Arquivo Gustavo Capanema (CPDOC/ FGV). produziu repercussões significativas, ainda não inteiramente investigadas, sobre o campo de atuação profissional e a identidade social, então em vias de construção, das primeiras gerações de sociólogos que se formavam nas faculdades de filosofia do país4 4 Conforme observa Luiz de Aguiar Costa Pinto, os cursos de ciências sociais das faculdades de filosofia do país - para os quais o curso da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (FNFi), iniciado em 1939, deveria funcionar como modelo - tinham como uma de suas finalidades o incremento da formação de professores para as escolas secundárias, onde então a sociologia constituía matéria obrigatória (Costa Pinto, 1949). . Embora a reforma seja um episódio-chave para a história das ciências sociais no Brasil - e não apenas para a história de suas modalidades escolares -, ainda permanecem pouco claras as circunstâncias que a presidiram e, sobretudo, o papel que desempenharam os intelectuais católicos nesse processo. Neste artigo, buscamos reunir, a partir de pesquisa arquivística, algumas pistas capazes de alargar nossa compreensão do contexto intelectual e político de exclusão da sociologia dos cursos secundários.

Concentrando-nos na Reforma Capanema, exploramos a hipótese de que as disputas empreendidas pelos católicos no terreno das ciências sociais constituíram elemento decisivo do contexto que levou à retirada da sociologia das escolas brasileiras e à consequente mudança nos rumos de sua institucionalização no país. Argumentamos que as posições assumidas por representantes daquele grupo confessional nos debates sobre o caráter científico da sociologia e nos esforços de definição de suas fronteiras disciplinares, bem como a ascendência que exerceram sobre quadros-chaves do alto escalão do governo Vargas, precisam ser mais bem compreendidas se quisermos alcançar uma interpretação historicamente densa e matizada desse que foi um evento significativo para a história das ciências sociais no Brasil.

Nesse caso, afastamo-nos dos estudos predominantes acerca da trajetória da sociologia na educação básica, que tendem a optar por abordagens amplas, ao modo dos balanços, perpassando diferentes momentos do Brasil contemporâneo - enfoque certamente valioso que nos permite uma visão panorâmica dos caminhos e descaminhos da disciplina no nível médio de ensino, mas que acaba, por vezes, deixando de lado a investigação circunstanciada de momentos-chaves da história da sociologia escolar no país. Tais trabalhos, cobrindo longos períodos, carecem, ademais, de um conjunto robusto de fontes primárias capazes de respaldar a análise.

Tomando por base publicações de diferentes formatos produzidas pelos círculos católicos, bem como notícias de jornal, decretos-leis e a documentação constante do arquivo pessoal de Gustavo Capanema, buscamos realizar um exame focalizado e vertical do episódio em questão. Foi com esse intuito que procedemos a uma análise de conteúdo de textos publicados na revista A Ordem, importante periódico da intelectualidade católica, que abordassem as reformas educacionais do período ou refletissem sobre a sociologia como ciência. A respeito desse último tema, consideramos particularmente as publicações de Alceu Amoroso Lima (1931Lima, A. A. (1931). Preparação à sociologia. Getúlio Costa.), proeminente representante do laicato católico e autor de Preparação à sociologia. Nessas leituras, buscamos identificar o sentido atribuído à sociologia e a posição dos católicos quanto à presença dessa disciplina no ensino secundário. No caso do Arquivo Capanema, concentramo-nos no exame das ocorrências do termo “sociologia” na pasta que reúne seus materiais sobre a reforma de 1942, parte da Série “Ministério da Educação e Saúde - Educação e Cultura”, conforme classificação do CPDOC/FGV (RJ), que abriga esses documentos5 5 Os documentos do Arquivo Capanema aqui analisados se encontram na pasta GC g 1936.03.24/1 da Série Ministério da Educação e Saúde - Educação e Cultura. .

Ao abordarmos as concepções dos católicos sobre a cientificidade da sociologia, partimos da perspectiva teórica, cara à historiografia das ciências contemporânea, que examina a atividade científica em sua historicidade, concebendo-a como um conjunto de práticas e ideias, de sentido variável, levadas a cabo por atores sociais situados no tempo e no espaço.6 6 Ver, entre outros, Shapin (2013). Tal perspectiva se alinha à preocupação, demonstrada por estudiosos da história da sociologia como disciplina escolar, em examinar os distintos significados por esta assumida no passado (Meucci, 2015). Assim, no lugar de ajuizarmos a validade epistêmica da sociologia que os católicos propuseram a partir de critérios supostamente fixos e atemporais reunidos sob a rubrica do chamado método científico, buscamos compreender seus esforços em delimitar as fronteiras daquela disciplina, processo não apenas cognitivo mas também social que somente adquire inteligibilidade à luz das disputas intelectuais e políticas que travaram. Considerar a discussão promovida por esses atores sobre a sociologia enquanto ciência é fundamental, como indicaremos, para o entendimento das estratégias que adotaram em face de sua modalidade escolar.

Inicialmente, retomamos as leituras que se sedimentaram acerca da reforma. Em seguida, abordando o contexto intelectual e político em que esta se desdobrou, buscamos nuançar tais interpretações com base nas fontes arquivísticas examinadas.

Interpretações sobre a Reforma

Nos balanços mais conhecidos sobre o percurso da sociologia nas escolas brasileiras, palmilhado por intermitências, avanços e recuos, a Reforma do Ensino Secundário instituída durante o Estado Novo pelo Ministro da Educação e da Saúde de Vargas, Gustavo Capanema, constitui um marcador cronológico relevante. Ela inaugura o longo período de sua ausência enquanto disciplina obrigatória na educação básica depois de uma breve experiência, nas décadas de 1920 e 1930, como componente curricular dos anos finais do antigo ensino secundário, ligados aos cursos complementares e preparatórios para o vestibular (Machado, 1987Machado, C. S. (1987). O ensino da sociologia na escola secundária brasileira: levantamento preliminar. Revsta da Faculdade de Educação, 13(1), 115-142.; Santos, 2002Santos, M. B. (2002). A sociologia no ensino médio: o que pensam os professores da rede pública do Distrito Federal (Dissertação de Mestrado). Universidade de Brasília, Brasília, DF.; Moraes, 2003Moraes, A. (2003). Licenciatura em ciências sociais e ensino de sociologia: entre o balanço e o relato. Tempo Social, 15(1), 5-20.; Zanardi, 2013Zanardi, G. S. (2013). De Benjamin Constant à lei 11.684/08: uma breve trajetória das tentativas de inclusão da disciplina sociologia no currículo da escola brasileira. Sociologias Plurais, 1(2), 86-109.)7 7 Note-se, todavia, como indicou Fraga (2020), que ideias e pontos de vista sociológicos foram, ainda assim, veiculados, ou em formatos alternativos no ensino secundário, como parte do conteúdo de outras disciplinas, por exemplo, ou em diferentes espaços institucionais que não os da escola. .

Permanecem ainda em aberto, entretanto, as razões que levaram à exclusão da sociologia do novo modelo curricular introduzido pela Reforma Capanema, que passou a estruturar a escola secundária em dois ciclos (ginasial e colegial), dividindo o segundo em clássico e científico, no esforço de conferir identidade e função específicas a este nível do ensino, até então visto apenas como etapa complementar e preparatória ao ingresso nos cursos de formação superior (Montalvão, 2021Montalvão, S. (2021). Gustavo Capanema e o ensino secundário no Brasil: a invenção de um legado. Revista História da Educação, (25). Recuperado de: https://doi.org/10.1590/2236-3459/108349
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).

A ideia segundo a qual na origem da decisão, tomada por um regime autoritário e nacionalista repleto de preconceitos de natureza ideológica, estaria a ameaça representada por um saber crítico e, portanto, potencialmente questionador da ordem vigente, é rechaçada como simplista e anacrônica especialmente por Moraes (2011Moraes, A. (2011). Ensino de sociologia: periodização e campanha pela obrigatoriedade. Cadernos Cedes, 31(85), 359-382.). O autor enxerga na supressão da sociologia do currículo motivações mais pragmáticas e operacionais, ligadas tanto à nova estrutura de ensino quanto ao próprio desenvolvimento incipiente da Sociologia como ciência. Assinalando que as mudanças empreendidas por Capanema não tinham a disciplina como alvo, o autor argumenta que a Reforma apenas instituiu uma proposta curricular no interior da qual a sociologia, ainda às voltas com a definição de seus domínios e de uma identidade cognitiva própria, dificilmente conseguiria se encaixar, já que nem se identificava como parte da formação clássica e humanista - em razão, sobretudo, da preocupação em se diferenciar da Literatura - nem seria capaz de perfilar ao lado das disciplinas propriamente científicas. A leitura de Moraes tem sido endossada por diferentes autores (Oliveira, 2013Oliveira, A. (2013). Revisitando a história do ensino da sociologia na educação básica. Acta Scientiarum, 35(2), 179-189.; Souza, 2017Souza, L. (2017). Sociologia no ensino médio: entre a contingência e a essencialidade. Cadernos da Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais, 1(1), 35-51.; Rodrigues, 2018Rodrigues, R. O. (2018). Mapeando velhos interesses sobre a educação escolar através da história da disciplina Sociologia: dos pareceres de Rui Barbosa (1882-83) à Reforma Capanema (1942). Cadernos da Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais, 2(2), 9-30.). Ela problematiza, sobretudo, a associação automática entre a ausência da sociologia no currículo escolar e o espírito cerceador dos governos autoritários do passado recente.

Sem divergir explicitamente de Moraes, Meucci (2015Meucci, S. (2015). Sociologia na educação básica no Brasil: um balanço da experiência remota e recente. Ciências Sociais Unisinos, 51(3), 251-260.) procura acrescentar um nível de compreensão do episódio a partir de interpretação mais propriamente sociológica. Conforme argumenta, o ingresso da sociologia nas escolas em meados dos anos 1920 guarda íntima conexão, no contexto de crise do pacto oligárquico da Primeira República, com a crescente insatisfação quanto ao descompasso entre o ordenamento político liberal e a vida social do país e com as aspirações das elites por um conhecimento mais acurado da realidade brasileira. A saída da disciplina produzida pela Reforma Capanema refletiria, por sua vez, o esgotamento do projeto do Estado Novo, cujos agentes enxergariam na sociologia um fundamento para sua proposta de organização antiliberal da nação (Meucci, 2015). Como nos lembra a autora, a sociologia não possuía um sentido unívoco, mas se prestava a variadas definições que, por sua vez, ligavam-se a distintas compreensões do seu objeto - o “social” -, e, consequentemente, a diferentes projetos políticos de reordenamento da sociedade.

Guardadas as suas diferenças, o modelo interpretativo esboçado por Meucci, que busca compreender os sucessos e azares da sociologia nas escolas a partir de movimentos mais gerais da própria sociedade, parece ter em Luiz de Aguiar Costa Pinto um de seus primeiros formuladores (Costa Pinto, 1949Costa Pinto, L. A. (1949). O ensino da sociologia na escola secundária. Sociologia, XI (3), 290-308.; Costa Pinto & Carneiro, 2012). Costa Pinto enxerga o que chama de “surto das ciências sociais” no Brasil dos anos 1930, incluindo a confirmação da inserção da sociologia no nível médio de ensino em âmbito nacional pela Reforma Francisco Campos, de 1931, como repercussão, na vida cultural, das transformações socioeconômicas por que vinha passando o país, e que culminaram na Revolução de 1930.

Produto cultural de um tempo de crise societal, a sociologia, não sem razão, teria se alimentado, aqui como alhures, dos esforços de setores da sociedade em examinar cientificamente os problemas gerados pelas avassaladoras mudanças modernizadoras desencadeadas pela urbanização e pela industrialização de modo a serem capazes de se orientar neste processo e, no limite, conduzi-lo racionalmente. As contramarchas sofridas pela sociologia uma década depois, cuja expressão maior, para Costa Pinto, é justamente a retirada da disciplina do currículo escolar, decorreriam, por seu turno, de impasses e contradições produzidos pela própria mudança social. Esta, na perspectiva do sociólogo, longe de apresentar um sentido linear, estaria presa a uma dinâmica contraditória, em que nem os padrões tradicionais e os arcaísmos advindos do passado nem os princípios e valores modernos que irrompiam no seio da sociedade brasileira teriam força suficiente, em si mesmos, para preponderar sobre o conjunto das transformações em curso, o que colocava o país em uma situação de “marginalidade estrutural”8 8 Com esse conceito, o sociólogo tinha em mente um tipo de estrutura social que, no processo de mudança, perpetuava-se como híbrida, já não mais exclusivamente “tradicional”, mas tampouco capaz de levar a termo sua modernização em um sentido capitalista. Estudos sobre a centralidade desse conceito na obra de Costa Pinto se encontram em Maio & Villas Bôas (1999). Para uma análise circunstanciada do balanço de Costa Pinto sobre a história das ciências sociais no Brasil, ver Brasil Jr. (2012). .

Não à toa, Costa Pinto identifica a exclusão da sociologia operada pela Reforma Capanema como reflexo, no plano da cultura, dos reveses sofridos pelo processo revolucionário a partir do ano de 1935, com o progressivo fechamento do regime que culminou, dois anos depois, com o Estado Novo e a contenção das forças renovadoras que, na avaliação do sociólogo, estariam dispostas a levar às últimas consequências o movimento de transformação política iniciado em 1930. O resultado contraditório deste quadro, segundo Costa Pinto, foi a explosão, durante o Estado Novo, do uso do termo “social” na vida cultural e intelectual do país (“legislação social”, “literatura social”, “assistência social”, “política social” etc.), acompanhada, todavia, da crença de que seria “perigoso” estudar o social cientificamente (Costa Pinto & Carneiro, 2012). A “ideologia educacional” das elites dirigentes, no intervalo de uma década, teria abandonado o interesse em munir os estudantes de ferramentas necessárias à compreensão racional da vida social em constante mudança, base para sua integração consciente e ativa ao mundo, em prol de uma postura obscurantista, avessa às ciências e preocupada com a defesa da ordem política (Costa Pinto & Carneiro, 2012). À medida que ameaçava desnudar os fundamentos do status quo, revelando-lhe as contradições e os fatores dinâmicos capazes de conduzi-lo à mudança, o ensino da sociologia se tornava “tabu” (Costa Pinto & Carneiro, 2012).

Independentemente da validade explicativa da leitura de Costa Pinto, que supõe, à semelhança das outras, uma interpretação específica sobre os acontecimentos políticos do Brasil dos anos 1930, ela possui o mérito de não perder de vista os imbricamentos entre a institucionalização da sociologia escolar e a institucionalização da sociologia no nível superior, enquanto prática de ensino e pesquisa a partir da universidade. Isto é, enxerga as adversidades que enfrentou para se firmar no currículo escolar como elemento fundamental para se compreender o desenvolvimento da sociologia como ciência e como atividade profissional no país (Costa Pinto & Carneiro, 2012). A análise de Costa Pinto nos parece igualmente valiosa porque foi produzida por um ator diretamente envolvido nos esforços de institucionalização das ciências sociais a partir da Faculdade Nacional de Filosofia do Rio de Janeiro, instituição na qual se formou e à qual passou a estar profissionalmente vinculado, inicialmente como assistente da cadeira de sociologia (Maio & Lopes, 2015Maio, M. C., & Lopes, T. C. (2015). For the establishment of the social disciplines as sciences: Donald Pierson e as ciências sociais no Rio de Janeiro (1942-1949). Sociologia & Antropologia, 5(2), 343-380.)9 9 A relevância que Costa Pinto atribuiu à presença da sociologia no currículo escolar, que não dissociava, como indicamos anteriormente, dos destinos da sociologia como um todo no país, pode ser aferida ainda da tese que escreveu para o concurso à livre docência na FNFi, em setembro de 1947, cujos resultados foram posteriormente publicados na revista Sociologia (Costa Pinto, 1947a, 1949). .

Apesar do seu inegável valor, a leitura de Costa Pinto, como as demais, não se detém na análise do contexto intelectual específico em que a exclusão da sociologia se processou. Este parece apontar para um quadro mais complexo do que aquele sugerido pelas interpretações correntes, envolvendo debates ferozes, alimentados particularmente pelos intelectuais católicos, sobre a cientificidade da disciplina e a natureza do seu objeto10 10 Embora não se refira explicitamente aos católicos em sua análise da “reação obscurantista” das elites dirigentes no terreno educacional durante o Estado Novo (Costa Pinto & Carneiro, 2012), Costa Pinto reconhece o peso que esses grupos tiveram no debate sobre a sociologia científica no Brasil. Em seu conhecido texto “Sociologia e mudança social”, ele qualifica a sociologia proposta pelos católicos, interessados, a seu ver, em transformar a ciência da sociedade em um “repositório de ‘regras de bem viver’”, como uma “utopia normativa”, e observa: “Vale o consolo de que, do ponto de vista teórico, a ofensiva que dirigem contra o método científico, contra o que chamam a ‘chamada ciência’, é muito débil e não constitui ameaça séria. Mesmo no Brasil, onde por tanto tempo só se conheceu esse tipo de sociologia, foi a verificação de sua pobreza lamentável - e a desconfiança em relação a tudo mais - um dos fatores da exclusão das ciências sociais do currículo da escola secundária” (Costa Pinto, 1947b, p. 323, grifo do autor). Na terceira seção deste artigo, teremos a oportunidade de examinar com atenção a visão dos católicos quanto à cientificidade da sociologia. .

A fim de contribuir para um melhor esclarecimento da questão, debruçamo-nos, a seguir, sobre o interesse dos intelectuais e educadores vinculados ao laicato católico pela sociologia e as disputas teóricas e institucionais que vinham travando em torno da disciplina no Brasil. O enfoque sobre os católicos se justifica uma vez que lembramos que esse grupo confessional, principalmente por intermédio de Alceu Amoroso Lima, exerceu forte ascendência junto a Gustavo Capanema, que atuou como Ministro da Educação e Saúde de Vargas de julho de 1934 até o final do Estado Novo. Também as fontes primárias existentes, até o momento pouco exploradas pela literatura, sublinham o papel desses círculos na exclusão da sociologia como disciplina da grade escolar.

As circunstâncias da Reforma

A Lei Orgânica do Ensino Secundário foi instituída pelo Decreto-lei nº 4.244, de 9 de abril de 1942, em plena vigência do regime autoritário, e perdurou até a reestruturação do sistema escolar implementada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1961. Ela fazia parte de ambicioso projeto do ministro de Vargas, que buscava conferir unidade, homogeneidade e maior controle, por parte da administração central, à educação do país, em sintonia com as tendências políticas centralizadoras do período e as expectativas das elites intelectuais, que avaliavam como central o papel das instituições de ensino na modelagem da futura nacionalidade (Saviani, 2011Saviani, D. (2011). História das ideias pedagógicas no Brasil. Autores Associados.). Desde que assumira o ministério, Capanema vinha buscando reestruturar os diferentes níveis de ensino, amarrando-os a um projeto de nação, como se entrevê nas discussões em torno do Plano Nacional de Educação (Horta, 2010Horta, J. S. B. (2010). Gustavo Capanema. Fundação Joaquim Nabuco.).

Em suas linhas gerais, a Reforma se colocava em continuidade com aquela instituída uma década antes por Francisco Campos, que buscou dotar o ensino secundário de fisionomia própria e estabelecer normas e padrões mínimos, nacionais, a serem seguidos pelos estabelecimentos de ensino do país, que passaram a receber inspeção federal11 11 Assim como Capanema, Francisco Campos provinha dos grupos políticos mineiros que, em meio à crise sucessória do governo Washington Luís, apoiaram a movimentação que deflagrou a denominada Revolução de 1930. Em Minas Gerais, ele havia sido secretário do Interior do governo Antônio Carlos (1926-1930), implementando uma reforma educacional, de caráter modernizador e inspirada em ideais escolanovistas, que projetou seu nome nacionalmente. Com a Revolução, Campos assumiu o Ministério da Educação e Saúde Pública criado pelo governo provisório em fins de 1930, nele permanecendo até 1932 (Malin, 2015). . Sem destoar do entendimento, então dominante, de que se tratava de modalidade superior de ensino médio - distinta, portanto, dos ensinos agrícola, industrial e comercial, que preparavam o aluno imediatamente para o mundo do trabalho -, a lei sobre o ensino secundário instituída por Capanema fixava um conjunto básico de conhecimentos, atitudes e comportamentos que deveriam fazer parte do primeiro ciclo formativo, o ginásio, com duração de quatro anos. Este poderia ser seguido tanto pelos que buscavam a inserção em cursos profissionalizantes quanto por aqueles que se preparavam para o ingresso nas universidades (na prática, os filhos das elites) (Schwartzman et al., 2000Schwartzman, S., Bomeny, H. M. B., & Costa, V. M. R. (2000). Tempos de Capanema (2a ed.). FGV.). Nesse segundo caso, após o ciclo ginasial, o aluno deveria optar ou pelo ensino clássico ou pelo científico conforme o curso superior pretendido.

Se o currículo do ensino secundário instituído por Francisco Campos ampliava o leque de disciplinas até então ofertadas, conferindo papel destacado às ciências na formação dos alunos, a Reforma Capanema abria o espaço às humanidades clássicas, como o Grego e, principalmente, o Latim, tornado matéria obrigatória nas quatro séries do curso ginasial e nas três séries do curso clássico12 12 As ciências naturais deixam de figurar nas duas primeiras séries do ciclo básico e comum aos alunos do ensino secundário, ao passo que elas estavam contempladas na grade do curso fundamental instituído pela Reforma Francisco Campos - nas duas primeiras séries, como “ciências físicas e naturais” e nas três últimas séries como “Física”, “Química” e “História Natural”. Cf. Decreto nº 19.890 (1931); Decreto-lei nº 4.244 (1942). . Em texto introdutório ao projeto de reforma endereçado a Vargas, Capanema observa que o ensino secundário, voltando-se para a “preparação das individualidades condutoras” (a saber, as futuras elites do país), deveria ter como finalidade específica a formação da “consciência patriótica” e da “consciência humanística” dos adolescentes. Conforme argumentava, se as ciências constituíam importante fonte de orientação no mundo moderno, dominado pela máquina e pela racionalidade técnico-científica, a educação não poderia descuidar da herança clássica, que constituiria uma das bases da “cultura nacional” (Capanema, 1942). O Latim, em particular, era o “fundamento e a estrutura da língua nacional” (Capanema, 1942).

Embora Capanema procure amarrar o ensino das humanidades clássicas à retórica nacionalista inflamada característica do Estado Novo, ele também convergia com as concepções pedagógicas e os interesses católicos. Para esses, o ensino das letras clássicas assumia centralidade. Em 1940, Alceu Amoroso Lima lastimava o “[...] abandono do sentido humanista da formação do homem brasileiro [...]” com o advento da República, que teria assistido, em conformidade com uma orientação pedagógica utilitária e profissionalizante, de inspiração positivista e cientificista, à sobrevalorização de conteúdos disciplinares relacionados à ciência e à técnica em detrimento das humanidades clássicas (Lima, 1940a, p. 465). Em conformidade com essa visão, a defesa do Latim, língua oficial da Igreja, enquanto componente do currículo escolar destinado à educação das futuras elites, era ponto pacífico nas páginas d’A Ordem, a revista dos católicos (Azzi, 1929Azzi, F. (1929). Latim, língua viva. A Ordem, 9(2), 99-108.; Van Acker, 1933Van Acker, L. (1933). A lição da moderna pedagogia russa. A Ordem, (40), 727-739.).

O amplo espaço dado às letras clássicas no novo currículo nos permite entrever a ascendência dos católicos sobre a Reforma Capanema. Assumindo, como veremos na próxima seção, posições salientes nos debates educacionais dos anos 1920 e 1930, representantes desse grupo confessional constituíram interlocutores-chaves de Capanema durante o Estado Novo.

A supressão da sociologia do ensino secundário também deve ser compreendida, conforme argumentamos, a partir dessas conexões. No Arquivo Capanema, encontram-se, entre os documentos sobre a Reforma, três pareceres de educadores vinculados ao mundo católico posicionando-se contrariamente à permanência da disciplina nas escolas. Eles fazem parte de um conjunto de apreciações, realizadas por educadores, do anteprojeto da Lei Orgânica do Ensino Secundário que Capanema procurou reunir antes de encaminhar o plano a Vargas13 13 Horta (2010) chamou a atenção para a existência desses pareceres, ainda que seu interesse, diverso do nosso e mais geral, tenha sido o de evidenciar as consequências, para as políticas educacionais do período, das vinculações de Capanema com os católicos. .

Um dos pareceres é de autoria de Alceu Amoroso Lima. Educador, crítico literário e escritor profícuo, conhecido pelo pseudônimo Tristão de Ataíde, Amoroso Lima foi uma das mais expressivas lideranças do laicato católico no país, travando, nos anos 1930, acirradas disputas com representantes da Escola Nova no terreno educacional (Daros, 2013Daros, M. D. (2013). Intelectuais e projetos educacionais em disputa no Brasil dos anos 1930-1940. Revista Roteiro, (39), 255-270.). É igualmente conhecida a forte ascendência que manteve junto a Capanema no recrutamento de professores e na montagem dos cursos da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, fundada em 1939, após a extinção da antiga Universidade do Distrito Federal, na qual Amoroso Lima havia exercido o cargo de reitor entre 1937 e 1938 (Oliveira, 1995Oliveira, L. L. (1995). As ciências sociais no Rio de Janeiro. In S. Miceli (Org.), História das ciências sociais no Brasil (Vol. 2). Idesp.; Almeida, 2001Almeida, M. H. T. (2001). Dilemas da institucionalização das ciências sociais no Rio de Janeiro. In S. Miceli (Org.), História das ciências sociais no Brasil (Vol. 1, 2a ed., pp. 223-256). Idesp.)14 14 O projeto da Universidade do Distrito Federal, vinculado à administração de Pedro Ernesto na então capital do país, foi sustado por Vargas em meio à crescente e tensa polarização política que levou ao afastamento de um de seus principais idealizadores, o educador escolanovista Anísio Teixeira, acusado de colaboração com o levante comunista de 1935 e alvo da ferrenha crítica dos católicos (Schwartzman et al., 2000). O anticomunismo não foi um elemento desprezível na construção da crítica dos católicos à Escola Nova e às “novas ciências do homem” (como a sociologia) a que esses educadores recorriam a fim de dar lastro às suas propostas educacionais. Como buscaremos indicar, ele também informa a posição dos católicos em favor da supressão da disciplina no currículo das escolas secundárias. . Observando que era preciso “[...] aliviar os cursos dos colégios (clássico-científico), exageradamente sobrecarregados [...]”, Amoroso Lima propõe a incorporação da cadeira de Literatura pela de Português. A respeito da Sociologia, assevera: “Sugiro ainda, de modo veemente, a supressão da cadeira de ‘Sociologia’, que, em hipótese alguma, deve ser cadeira do curso secundário e apenas do curso superior” (Lima, n.d., p. 5, grifo do autor). Teremos oportunidade, à frente, de examinar as razões com que o intelectual buscou fundamentar sua visão sobre o espaço institucional adequado para a disciplina. Notemos, por ora, que sua sugestão é apresentada como uma medida capaz de tornar o currículo das escolas mais enxuto.

Outro parecer, do padre jesuíta Leonel Franca, afirma: “Inclino-me a julgar que a sociologia não se ensina com grande proveito nos cursos secundários” (Franca, n.d., p. 2). À semelhança de Amoroso Lima, Franca aponta que o currículo proposto pela reforma estaria “sobrecarregado de disciplinas”: “Dispersão e superficialidade levarão inexoravelmente ao enciclopedismo e à memorização de conhecimentos [...]” (Franca, n.d., p. 1). Nesse caso, a Sociologia não parece ser o único alvo, mas também a História das Artes, os Trabalhos Manuais e a Literatura. Os conteúdos dessa última disciplina, conforme sugere o parecerista, aproximando-se igualmente da visão de Amoroso Lima, poderiam ser incluídos nos dois últimos anos dos programas de Português, Latim e Línguas Modernas (Franca, n.d.). Próximo ao cardeal Sebastião Leme, Franca desempenhou papel-chave, ao lado de Amoroso Lima, na defesa do ensino religioso na educação básica que mobilizou as hostes católicas nas discussões constituintes dos anos 1930. Atuou igualmente, desde esse período, na construção do sistema de instituições de ensino superior que, em 1946, conformaria a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (Oliveira, 2021Oliveira, N. C. (2021). Trajetória intelectual do Padre Leonel Franca: catolicismo e ensino religioso no Brasil (1908-1948). Revista Brasileira de História da Educação, (21). https://doi.org/10.4025/10.4025/rbhe.v21.2021.e168
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).

Um terceiro parecer é de autoria do também padre jesuíta Arlindo Vieira. Ainda que não tão conhecido como aqueles acima referidos, seu nome integra os debates, travados nos anos 1930, sobre a forma a ser assumida pelo ensino secundário no Brasil, matéria a respeito da qual escreveu os livros O problema do ensino secundário (1936) e O ensino das humanidades (1936), além de artigos em jornais, sempre em tom polêmico (Rocha, 2005Rocha, J. L. (2005). Debates sobre o ensino da matemática na década de 1930. Revista Brasileira de História da Educação, (9), 199-230.). Vieira não somente contou com o apoio de Amoroso Lima na divulgação de seus trabalhos (Vieira, 1943), como também atuava, à época, como diretor do Colégio Santo Inácio, instituição fundada pelos jesuítas que alcançou renome entre as escolas particulares frequentadas pela elite da então capital federal. Sua posição no quadro das instituições de ensino do Rio de Janeiro nos ajuda a compreender o canal de comunicação que logrou construir com Capanema, de cujo gabinete se tornou frequentador (Montalvão, 2021Montalvão, S. (2021). Gustavo Capanema e o ensino secundário no Brasil: a invenção de um legado. Revista História da Educação, (25). Recuperado de: https://doi.org/10.1590/2236-3459/108349
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). Em seu parecer, Arlindo Vieira nota, à semelhança dos demais, o que considera o excesso de disciplinas na grade curricular, defendendo a diminuição da carga horária semanal dedicada ao estudo das ciências. Para os dois últimos anos do percurso formativo, sugere, em conformidade com os outros pareceres, a diluição dos conteúdos de Literatura na disciplina de Língua Portuguesa. Acerca do ponto que nos interessa, escreve:

A sociologia, introduzida na França, outrora, por fins sectários, não faz parte dos programas de ensino secundário da Europa. É matéria de um curso superior. / Aqui essa experiência no curso complementar foi desastrosa. Em quase todos os cursos de colégios leigos, essa disciplina se converteu em cátedra de propaganda subversiva. Disso temos pleno conhecimento, mediante as notas de aula que nos foram apresentadas por nossos antigos alunos e outros. Os pobres rapazes, sem madureza intelectual para ajuizar do valor das doutrinas de mestres sem consciência, facilmente se deixam levar por essas tiradas de pura demagogia. Seria, pois, conveniente suprimir essa disciplina do curso secundário (Vieira, 1941Vieira, A. (1941). [Carta] 1º março, Rio de Janeiro [para] CAPANEMA, Gustavo, Rio de Janeiro. Arquivo Gustavo Capanema (CPDOC/ FGV)., p. 5).

O parecer de Arlindo Vieira compartilha com os outros a perspectiva de que, diante da necessidade de se combater o ensino enciclopédico, a sociologia se encontrava entre as disciplinas que poderiam ser suprimidas da extensa e pesada grade curricular do ensino secundário. A referência ao “enciclopedismo” se tornou ponto comum na crítica católica à Reforma Francisco Campos. Conforme se depreende das páginas da revista A Ordem, a expressão indicava a desaprovação desses intelectuais em relação ao peso que a educação moderna conferia às disciplinas científicas, considerado excessivo15 15 No Brasil, de acordo com a perspectiva católica, a ênfase pedagógica nas ciências teria suas origens no positivismo da Primeira República. Nas palavras de Leonardo Van Acker, professor de Filosofia da Faculdade de São Bento de São Paulo, o período teria substituído as humanidades clássicas por “[...] um mistifório inominável, feito de bacharelice verbalista e cientismo utilitário” (Van Acker, 1933, p. 738). .

O comentário do padre Vieira assume relevo particular para nossa análise na medida em que expressa abertamente o receio de que as aulas de sociologia se convertessem, sub-repticiamente, em espaço para a difusão de visões de mundo anticlericais e secularistas combatidas pela Igreja, sobretudo as filosofias materialistas representadas pelo positivismo e pelo comunismo. Ao afirmar que, na Europa, a disciplina constava apenas do currículo do ensino superior, e não do secundário, Vieira se aproximava de argumento acionado por Alceu Amoroso Lima. Conforme veremos na próxima seção, para este, a exclusão da sociologia das escolas se justificava diante da falta de maturidade dos alunos, que não saberiam avaliar, de um ponto de vista metateórico, o mérito relativo das correntes e teorias em disputa no seio daquela ciência, vista como incipiente. O resultado não poderia ser outro que não um amálgama heterogêneo e confuso dos mais diferentes autores, teorias e conceitos.

Os pareceres dos católicos constituem fontes valiosas que nos ajudam a matizar as interpretações correntes envolvendo a supressão da disciplina pela Reforma Capanema. Antes, contudo, de investigarmos de modo mais minucioso as posições intelectuais que esses documentos refletem, que somente adquirem sentido quando consideramos a ofensiva lançada por esses intelectuais no terreno das “novas ciências do homem”, convém examinarmos brevemente como a sociologia vinha se constituindo, até então, nos planos para o ensino secundário esboçados por Capanema. Essa questão é importante já que, no lugar de expressar a tomada de posição do Estado Novo como um todo, a retirada da sociologia do currículo escolar parece refletir a pressão de grupos específicos com os quais aquele buscava barganhar apoio político16 16 Além desses, há pelo menos mais um parecer, de autoria não identificada, que sugere a supressão da disciplina da grade escolar. Pelo teor do texto, supõe-se que seja de quadro de uma instituição de ensino das forças armadas que esposava uma concepção positivista das ciências: “No tocante à Sociologia, já foi ela eliminada do curso da Escola Militar que é indiscutivelmente superior ao clássico ou científico, em apreço. Além do mais, como ensinar Sociologia a quem não precisa nem estudou Biologia?” (Lei do Ensino Secundário, n.d.). .

Uma leitura atenta da documentação relativa à reforma mantida por Capanema revela que a disciplina constava do novo modelo curricular vislumbrado pelo ministro que, em esboços do decreto-lei sobre o ensino secundário, previa a sua inclusão na terceira série do segundo ciclo - e isto tanto para as turmas do curso clássico quanto para aquelas do científico (Capanema, n.d., 1941a). Isto é, a disciplina parecia constituir um ingrediente essencial tanto à formação humanística (em que preponderava o estudo das letras antigas) quanto àquela centrada no ensino da matemática e das ciências naturais. Em discursos rascunhados para o anúncio do novo modelo, a Sociologia, ao lado da História, da Geografia e da Filosofia, era mencionada por Capanema como uma das matérias fundamentais para a formação dos futuros cidadãos. Nas palavras do ministro, em declaração à imprensa publicada em diversos jornais do país:

Se, em tempos remotos, muitos brasileiros souberam latim e matemática, se muitos souberam escrever com finura e critério, quantos, quão numerosos são, hoje em dia, os nossos patrícios ainda jovens, que falam e escrevem o latim, que conhecem a fundo a história, a geografia e a sociologia, que são mestres nas outras ciências, que possuem um conhecimento admirável das matérias filosóficas e que sabem escrever exemplarmente (Capanema, 1941bCapanema, G. (1941b, 4 de abril). A reorganização do ensino secundário. O Jornal. Arquivo Gustavo Capanema (CPDOC/ FGV).).

As fontes do Arquivo Capanema reforçam a hipótese de que a posição dos católicos em relação à sociologia foi decisiva para a ausência da disciplina na versão final do decreto-lei que instituía o novo ensino secundário. Como seus documentos pessoais sugerem, Capanema não parecia apresentar dúvidas quanto ao lugar da sociologia no currículo escolar. À falta de fontes que nos esclareçam as posições do ministro a respeito da disciplina, podemos supor que, de sua parte, o ensino da sociologia não seria a princípio problemático porque poderia assumir um sentido e um conteúdo afinados com o projeto estadonovista de construção da sociedade nacional ou, no pior dos cenários, não representaria uma ameaça séria a esses planos.

A hipótese de que Capanema não apresentava razões particulares para se opor à presença da sociologia no ensino secundário nos leva a crer que a exclusão da disciplina foi produto de um esforço acomodatício característico do estilo político de Vargas, representando, acima de tudo, uma concessão feita a uma demanda dos católicos, tidos como importantes aliados. Nesse caso, a fonte das oposições mais intransigentes ao ensino da sociologia parece se deslocar do alto escalão do governo Vargas para a Igreja e seus representantes laicos, restando-nos compreender por que esses últimos tomaram posição tão categórica pelo fim da obrigatoriedade da disciplina nas escolas.

A sociologia católica no Brasil: instrumento de luta ou projeto científico?

Embora tenha demonstrado inicialmente sérias reservas a Vargas e à Revolução de 1930, a Igreja Católica vinha se aproximando do governo e, no decorrer daquela década, logrou assegurar que algumas de suas mais importantes reivindicações no terreno educacional fossem atendidas, como a permissão para o ensino religioso facultativo nas escolas públicas, possibilidade excluída pela constituição republicana e laicizadora de 1891. Francisco Campos enxergava os católicos como importantes aliados no esforço de consolidação, junto às instituições e à sociedade, do novo regime que o movimento iniciado em 1930 buscava consolidar e, à época que em que esteve à frente do Ministério da Educação e Saúde, atuou como um dos artífices da aproximação entre esse grupo confessional e o Palácio do Catete (Schwartzman et al., 2000Schwartzman, S., Bomeny, H. M. B., & Costa, V. M. R. (2000). Tempos de Capanema (2a ed.). FGV.; Horta, 2010Horta, J. S. B. (2010). Gustavo Capanema. Fundação Joaquim Nabuco.). Para os objetivos que nos interessam, não podemos esquecer, em particular, das estreitas relações que Capanema manteve com Alceu Amoroso Lima, decisivas para a modelagem de instituições e projetos educacionais no período (Saviani, 2011Saviani, D. (2011). História das ideias pedagógicas no Brasil. Autores Associados.).

A movimentação cultural e intelectual católica no Brasil adquire forte impulso na década de 1920 (Pierucci et al., 2007Pierucci, A. F. O., Souza, B. M., Camargo, C. P. F., Beisiegel, C. R., Prado, D. A., Vasconcellos, G., Beozzo, J. O., Suzuki Jr., M., Galvão, M. R., Souza, C. R., Abreu, M. P., Patarra, N. L., Malan, P. S., Singer, P., & Szmrecsányi, T. (2007). A Igreja entre a Revolução de 1930, o Estado Novo e a redemocratização. In: História geral da civilização brasileira (Tomo III, Vol. 11, 4a ed.). Bertrand Brasil.). Em um cenário de efervescência política diretamente ligado à crise do pacto oligárquico e à emergência de novos atores sociais, vinculados aos setores médios urbanos, a Igreja passa a envidar esforços para recuperar sua antiga ascendência sobre a sociedade, golpeada pela instauração da República liberal no Brasil, vista como anticlerical (Pierucci et al., 2007). Em 1921, Jackson de Figueiredo, intelectual identificado às hostes católicas, cria a revista A Ordem. Em 1922, ano marcado por movimentos artístico-culturais e políticos renovadores, ele alia a iniciativa editorial à fundação, no Rio de Janeiro, do Centro Dom Vital. Estavam lançadas as bases para a ação do laicato católico a partir de um ideário que pregava a restituição da “ordem moral” da sociedade brasileira, cujos valores e instituições, plasmados pelo catolicismo, vinham sendo, conforme argumentavam os católicos, ameaçados pelo individualismo e pelo secularismo modernos (Salem, 1982Salem, T. (1982). Do Centro Dom Vital à Universidade Católica. In S. Schwartzman (Org.), Universidades e Instituições Científicas no Rio de Janeiro (pp. 97-134). CNPq.).

A questão da educação estava no centro da agenda dos católicos. Embora constituísse pauta obrigatória dos reformadores do período, que apontavam para a necessidade de reconstrução nacional com base na remodelação do ensino, a educação, sobretudo aquela que se processava nas escolas secundárias e nas universidades, foi valorizada pelos católicos enquanto canal privilegiado para a recristianização do país e a formação de classes dirigentes aptas a operar a reaproximação entre sociedade, Estado e Igreja. O Centro Dom Vital foi importante espaço de coordenação dos esforços destinados à preparação, em moldes cristãos, das futuras elites. Sob a liderança de Amoroso Lima, que assumiu a presidência da organização com a morte de Jackson de Figueiredo em 1928, a atuação do grupo se traduziu na fundação de uma série de organismos e instituições de ensino, como a Associação dos Universitários Católicos do Rio de Janeiro em 1928, o Instituto Católico de Estudos Superiores em 1932, e as Faculdades Católicas em 1941, tornadas universidade em 1946 (Salem, 1982Salem, T. (1982). Do Centro Dom Vital à Universidade Católica. In S. Schwartzman (Org.), Universidades e Instituições Científicas no Rio de Janeiro (pp. 97-134). CNPq.).

Os intelectuais e educadores católicos também marcaram presença no âmbito da educação básica, travando conhecidas disputas com os escolanovistas nos anos 1930 (Cury, 1984Cury, C. R. J. (1984). Ideologia e educação brasileira: católicos e liberais (2a ed.). Cortez.). Ainda foi pouco debatido pelos estudiosos, entretanto, o empenho desses círculos em construir alternativas às ciências sociais, de matriz francesa e norte-americana, que à época abriam espaço no ambiente intelectual brasileiro graças, em grande medida, às concepções pedagógicas modernas ventiladas pela Escola Nova, que então buscavam se alicerçar nas chamadas “novas ciências do homem” (biologia, psicologia e sociologia da educação) (Consolim, 2021Consolim, M. (2021). Circulação de intelectuais e recepção das novas ciências do homem francesas no Brasil: 1908-1932. Tempo Social, 33(1), 17-51.). A sociologia, em sua institucionalização, muito se beneficiou do movimento escolanovista, sendo possível observar, nos anos 1920, a criação de cadeiras dedicadas à disciplina nas escolas normais por iniciativa de intelectuais como Fernando de Azevedo (Azevedo, 1955Azevedo, F. (1955). A antropologia e a sociologia no Brasil. In F. Azevedo (Org.), As ciências no Brasil (Vol. 2, 359-399). Melhoramentos.).

Diante do avanço que os escolanovistas pareciam obter na veiculação de suas ideias e na conquista de espaços institucionais, o laicato católico no Brasil cedo passou a construir sua própria visão sobre a sociologia, que denominou “cristã”, assentando-a explicitamente em pressupostos filosófico-antropológicos que julgava mais compatíveis com a cosmovisão da Igreja. É o que se depreende das páginas do livro Preparação à sociologia, de Alceu Amoroso Lima (1931Lima, A. A. (1931). Preparação à sociologia. Getúlio Costa.), uma das primeiras expressões mais tangíveis do tipo de sociologia que será pleiteada pelos católicos. A obra marcava a tomada de posição da importante liderança do laicato católico diante do processo de disseminação da disciplina no país desde fins dos anos 1920 a partir do ensino secundário e das escolas normais. Tal lugar institucional parecia se consolidar com a chegada de Vargas ao poder após a Reforma Francisco Campos, que confirmava a sociologia como disciplina obrigatória dos cursos complementares e normais (Decreto nº 19.890, 1931).

O delineamento de uma “sociologia cristã” - também denominada “integral” por Alceu Amoroso Lima, como veremos - deveria tornar os católicos aptos a competir, no mercado das ideias, com as sociologias de corte naturalista (materialistas e positivistas, conforme as classificavam), que vinham sendo introduzidas no país principalmente a partir da obra de Durkheim. Essas correntes eram tidas como vetores culturais nocivos porque comprometidas, na perspectiva católica, com visões de mundo agnósticas e ateias, de caráter anticlerical, que era preciso a todo custo combater17 17 É o que sugere Amoroso Lima ao se referir à “sociologia determinista” e ao marxismo: “Na realidade social de nossos dias, bem como na doutrina sociológica, os dois grandes polos humanos são Roma e Moscou, o Vaticano e o Kremlin” (Lima, 1931, p. 16). .

Ainda que o status científico da sociologia fosse por vezes posto em dúvida, os católicos, aparentemente, não estavam interessados em atacar a disciplina enquanto tal. Em um movimento que marcou sua inserção nos debates sobre as ciências humanas, buscaram, em realidade, reivindicar posições próprias no seio das tendências intelectuais do período. Nesse caso, insistiam, conforme ponderava Amoroso Lima, que a sociologia era uma “[...] ciência em ser, em via de formação [...]”, ou ainda, uma “[...] ciência informe” (Lima, 1931, p. 8). Da perspectiva católica, a afirmação do caráter embrionário da sociologia servia ao argumento de que ela ainda se encontrava envolvida em querelas filosóficas sobre seus fundamentos (Lima, 1931). Assim, de acordo com Amoroso Lima, mesmo aquelas correntes que afirmavam se basear em uma ciência social positiva e exclusivamente empírica se apoiavam em pressupostos metateóricos e leituras da realidade que extrapolavam o universo do observável (Lima, 1931). Fazendo a sociologia depender de postulados e definições apriorísticas sobre a realidade e o ser humano, os católicos a colocavam no plano dos debates e das controvérsias metafísicas, nas quais poderiam se envolver a partir de suas próprias práticas intelectuais, afeitas à filosofia e à teologia. Isto é, sublinhar a natureza não consensual do âmbito próprio da sociologia e de seu objeto constituía parte do esforço dos católicos em participar, “enquanto católicos”, da discussão intelectual sobre a cientificidade da disciplina sem que fossem de imediato rechaçados como não científicos. Retornaremos mais à frente a esse ponto, que nos ajuda a compreender as estratégias utilizadas por esses intelectuais no debate sobre a presença da sociologia nas escolas.

Em um movimento característico dos católicos na busca por espaços, Amoroso Lima participará, em 1930, do concurso para a cadeira de Sociologia promovido pela Escola Normal do Distrito Federal, sem, no entanto, obter êxito. O certame, suspenso no final daquele ano, provocou celeuma nos jornais pela participação, na banca examinadora, do padre Leonel Franca, presença considerada espúria por representantes da Escola Nova (Souza, 2021Souza, V. G. (2021). Aspectos da inserção e do ensino da Sociologia na Escola Normal do Distrito Federal, futuro Instituto de Educação (1928-1936) (Dissertação de Mestrado). Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.). Como já se indicou anteriormente, a Reforma Francisco Campos também não havia agradado de todo aos católicos, que enxergavam na presença significativa de disciplinas científicas uma perigosa tendência secularista e ateia (Sobral Pinto, 1931Sobral Pinto, H. Crônica política. (1931). A Ordem, 11(50), 286-297.). A despeito das derrotas, os católicos avançam em meio à maré montante da sociologia escolar nos anos 1930. Escrevem e publicam manuais introdutórios à disciplina (Cigales, 2019Cigales, M. (2019). A sociologia católica no Brasil (1920-1940): análise sobre os manuais escolares (Tese de Doutorado). Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.) e asseguram cadeiras nas comissões nacionais encarregadas de aprovar os livros didáticos de sociologia (Ferreira, 2008Ferreira, R. C. C. (2008). A Comissão Nacional do Livro Didático durante o Estado Novo (1937 - 1945) (Dissertação de Mestrado). Universidade Estadual Paulista, São Paulo.). Também constroem lugares institucionais próprios para a veiculação das formas de conhecimento sociológico que defendiam, a exemplo do Curso de Sociologia ministrado por Alceu Amoroso Lima nos primeiros anos do Instituto Católico de Estudos Superiores, inaugurado em 1932 a partir de esforços da intelectualidade reunida no Centro Dom Vital (A Ordem, 1936).

O programa de sociologia estabelecido como referência nacional para os cursos complementares do país, que serviam como preparação para o ingresso no ensino superior, sinaliza relevante conquista dos católicos nesse terreno de disputas. Oficializado a partir de portaria assinada por Gustavo Capanema em março de 1936, o texto acompanha a visão metateórica de Amoroso Lima sobre a sociologia e converge com sua concepção cristã em pontos específicos, porém fundamentais, sobre aquelas que seriam as visões mais substantivas dos católicos acerca da vida social (Lima, 1931). Assim, por exemplo, o programa da disciplina se preocupava em assinalar a diferença entre sociologia e “sociologismo” - termo utilizado pelos católicos para classificar o que enxergavam como o abuso da abordagem durkheimiana (ao menos como a interpretavam) ao pretender reduzir o indivíduo, e instituições consideradas naturais e atemporais pela Igreja, como a família nuclear e a monogamia, a mero efeito de forças sociais e históricas contingentes (Brasil, 1936).

À semelhança da perspectiva de Amoroso Lima, o programa de sociologia de 1936 sublinhava as ligações entre a disciplina e o que denominava “ciências conexas”, como a filosofia social e a filosofia moral. Como contraponto à “Escola de Durkheim”, o programa enfatizava a existência da “Escola histórico-cultural” (Brasil, 1936). Conhecida dos leitores da revista A Ordem, aquela corrente, em que despontavam os estudos antropológicos do padre Wilhelm Schmidt, de Viena, sustentava que os arranjos variáveis que a família assumia em diferentes épocas e culturas não autorizavam a leitura durkheimiana de que esta era um simples precipitado de estruturas sociais específicas. As diferenças observadas na instituição familiar deveriam ser entendidas, isto sim, como reflexo de deformações em sua configuração original e essencial (leia-se, baseada na união conjugal monogâmica, como prescrevia a Igreja) provocadas pelo meio social. De acordo com o padre Schmidt e seus adeptos, tal estrutura familiar original seria ainda identificável em “grupos primitivos” como os pigmeus. Isto é, os diferentes tipos de sociedade agiam sobre a família, favorecendo ou dificultando o seu funcionamento “normal”, mas não lhe alteravam as características fundamentais, concebidas como perenes.

Na historiografia das ciências sociais no Brasil, poucos estudiosos se dedicaram a examinar com atenção os temas, teorias e postulados metateóricos da sociologia católica, que se prendia a movimentos intelectuais mais amplos, supranacionais, salientes em países como a França de Jacques Maritain, pensador neotomista e uma das principais referências para autores como Alceu Amoroso Lima (Lima, 1931Lima, A. A. (1931). Preparação à sociologia. Getúlio Costa.)18 18 Mencionemos os trabalhos de Azevêdo (2006), Meucci (2011) e Brochier (2016) que, não obstante, não fazem da sociologia católica no Brasil o foco de sua atenção. Dada a forte presença dos católicos no ensino normal e na educação básica brasileira, não surpreende que, entre os estudiosos, aqueles dedicados à história da sociologia como disciplina escolar tenham demonstrado, mais do que outros, interesse em analisar suas concepções sociológicas. Ver, por exemplo, Silva & Bodart (2019); Bodart & Cigales (2020). . Recentemente, Cigales (2019Cigales, M. (2019). A sociologia católica no Brasil (1920-1940): análise sobre os manuais escolares (Tese de Doutorado). Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.) realizou cuidadoso trabalho de análise de manuais de sociologia de inspiração católica adotados por escolas brasileiras nos anos 1920 e 1930, buscando identificar, de forma mais ou menos sistemática, seus traços.

O desafio metodológico que se coloca para a/o historiadora/historiador da sociologia - com frequência também ela/ele socióloga/sociólogo - é o de evitar que suas próprias concepções sobre a cientificidade da disciplina o impeçam de apreciar o que significou, a seu tempo, o esforço de sistematização de uma sociologia que se afirmava abertamente como cristã ou católica, reivindicando uma concepção de ciência radicalmente distinta daquelas que vieram a se institucionalizar a longo prazo.

Bodart & Cigales (2020Bodart, C. N., & Cigales, M. P. (2020). Conatus católico e ensino de Sociologia no Brasil (1920-1950). In C. N. Bodart (Org.), O ensino de sociologia e de filosofia escolar (Vol. 1, pp.115-154). Café com Sociologia.) argumentam que a sociologia católica deve ser compreendida como resultado de um conjunto de predisposições incorporadas pelos intelectuais católicos, um “conatus”, como o denominam, apoiando-se na sociologia de Pierre Bourdieu. Nesse caso, ela não refletiria necessariamente um “projeto”, no sentido de um intento consciente e deliberado, ou de ações racionalmente planejadas, mas constituiria parte de uma reação, no terreno simbólico, à perda gradativa da ascendência cultural católica sobre a sociedade. No contexto das mudanças modernizadoras do período, a defesa dessa sociologia expressaria, conforme aqueles autores sustentam, a busca dos católicos por um lugar no incipiente campo educacional a partir do qual poderiam transmitir, para as novas gerações, sua interpretação do mundo social, avalizada pela Igreja. Assim, se pareciam fazer concessões à modernidade, aderindo a uma disciplina tida como um de seus produtos intelectuais típicos, tal movimento representaria, sobretudo, a tendência desses intelectuais a se posicionarem em prol da perpetuação dos valores e preceitos católicos, que os distinguiam, em meio às transformações culturais em curso (Bodart & Cigales, 2020).

Com efeito, parece-nos precipitado supor, com base nas pesquisas arquivísticas até aqui realizadas, que as distintas e variadas ações dos católicos em prol de uma “sociologia cristã” (o que incluiu a publicação de livros didáticos) respondessem a um esforço coordenado ou orquestrado a partir de diretrizes explicitamente formuladas. A nosso ver, entretanto, uma questão permanece, a saber: se a sociologia católica deve ser entendida apenas como um episódio das lutas no campo educacional brasileiro em formação, arma refletida ou irrefletidamente acionada pelas hostes confessionais para se contraporem às visões secularistas da pedagogia escolanovista, que combatiam, ou se seus proponentes, concebendo-a como uma modalidade de empreendimento intelectual válida em si mesmo, também envidaram esforços, a partir de espaços e práticas específicas, para institucionalizá-la19 19 Trata-se de problema de pesquisa mais abrangente, que foge ao escopo deste artigo. Uma forma de abordá-lo, no entanto, deverá levar em consideração a atuação dos intelectuais católicos no nível superior de ensino, em particular nos cursos de ciências sociais das faculdades de filosofia do país, sobre os quais, a partir sobretudo da antiga Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, exerceram, como é sabido, forte influência em seus primeiros anos. Uma análise das aulas de Jacques Lambert, professor de sociologia da missão francesa que atuou na FNFi, encontra-se em Lopes (2020), que destacou suas afinidades com o pensamento católico. .

Na revista A Ordem encontramos elementos que lançam luz sobre o problema. Anunciando, em editorial de 1929, a assunção do cargo de diretor da revista, Alceu Amoroso Lima sintetizava o ambicioso plano dos intelectuais católicos em restituir a dimensão cognitiva da fé religiosa. Esta, conforme afirmava, havia sido reduzida, com o avanço da secularização do mundo, a puro sentimento e emotividade e circunscrita à esfera da subjetividade: “Àqueles que desprezam a Razão, é preciso mostrar que a Fé é um ato de inteligência. Àqueles que só creem na Razão, é preciso mostrar que a Fé é a luz final do conhecimento” (Lima, 1929, p. 5).

Segundo Amoroso Lima, o objetivo maior de A Ordem seria mostrar que o pensamento católico também aspirava a ser uma visão racional do mundo sem deixar de ser, “ao mesmo tempo”, uma bússola moral e política para os torvelinhos da era moderna. Ou seja, a missão de apreender cognitivamente a realidade social não deveria estar destituída da missão, igualmente importante, de intervir normativamente sobre ela. Conforme argumentava, os católicos pretendiam restituir a unidade perdida com a crescente especialização do conhecimento científico, fenômeno análogo, no plano intelectual, ao que se passava na vida social, marcada pelas forças disruptivas e dissolventes do individualismo moral e da anarquia. A recuperação da validade epistêmica do catolicismo, posta em xeque pelos movimentos intelectuais da modernidade, como o Iluminismo, implicava o investimento na formação de uma intelectualidade capaz de mobilizar não apenas a sensibilidade religiosa mas também a inteligência. Para Amoroso Lima, era preciso disputar esta última contra as tendências naturalistas e monistas que, após a cisão entre religião e ciência ao final da Idade Média, pretendiam ser as únicas representantes legítimas da racionalidade humana, descartando o pensamento católico como metafísico (Lima, 1929).

O que valia para a ciência em geral valia para a sociologia em particular. Em Preparação à Sociologia, Amoroso Lima argumenta que, contra as correntes comtianas e durkheimianas, coisificantes, que faziam da personalidade humana produto exclusivo da sociedade, igualando esta à natureza, era preciso afirmar o caráter multifacetado da “pessoa”, que não se reduzia a seu aspecto empírico, possuindo uma dimensão ultraterrena. Contra o determinismo sociologizante, fazia-se necessária uma “sociologia integral”, conforme afirmava, na esteira de Maritain, que reconhecesse a existência de personalidades livres e capazes de vida moral: “O indivíduo existe para a sociedade, a sociedade existe para a pessoa, a pessoa existe para Deus - eis a hierarquia social completa, que defendemos” (Lima, 1931, p. 78). Daí decorria uma gnosiologia própria, que, contrariando a hierarquia das ciências proposta por Comte, subordinava a Sociologia à Metafísica, “ciência dos primeiros princípios”, e à Ética (Lima, 1931). Nesse esquema, filosofia, moral e ciência social estariam estreitamente associadas, não podendo esta última pretender completa autonomia em face daquelas.

Ainda que os intelectuais católicos viessem erguendo um robusto arsenal intelectual e institucional para o combate às ciências sociais de tipo naturalista - que se refletiu na construção de posições não apenas no ensino secundário e normal como também no nascente espaço universitário -, este acúmulo parece não ter sido suficiente para que o ensino da sociologia nas escolas se visse livre das suspeitas que sobre ele recaíam. Como vimos, havia, da parte dos católicos, a preocupação em mostrar que a sociologia comportava múltiplas e divergentes definições metateóricas. Conforme Amoroso Lima em particular argumentava, tal cacofonia seria prejudicial à formação dos estudantes nas escolas, induzindo a posturas céticas, não somente epistemológicas, mas também, o que era mais preocupante, morais. O receio maior dos católicos, todavia, parecia residir na possibilidade de que as visões naturalistas, durkheimianas e marxistas, acabassem prevalecendo na rotinização dos conteúdos da disciplina escolar, dando o tom do que passaria a ser entendido como “sociologia”. Foi com esse espírito que Amoroso Lima prefaciou o livro didático de Amaral Fontoura, Programa de Sociologia:

[O autor] tem o cuidado de expor, sempre que o assunto o exige, as várias correntes em jogo, sem procurar, como é tão comum em muitos compêndios, iludir o leitor pela adoção de uma determinada corrente, como se essa fosse a única e a verdadeira. Um dos perigos da Sociologia ensinada em nível secundário está justamente nesse duplo escolho. Ou se procede como o autor deste compêndio, expondo honestamente as constantes divergências de ponto de vista, e com isso se pode levar a confusão ou o ceticismo ao cérebro dos adolescentes, ou se faz, como desonestamente tantos outros, escamoteando as divergências e apresentando como ciência social o que é apenas hipótese pessoal ou ponto de vista sectário. O chamado sociologismo, tão corrente entre os que nós e alhures se ocupam com esses problemas, é típico desse perigoso subterfúgio (Lima, 1940bLima, A. A. (1940b). Introdução. In A. Fontoura. Programa de sociologia (pp. 13-14). Livraria do Globo., p. 13-14).

O prefácio de Amoroso Lima, além de tornar manifesta a postura contrária ao ensino da sociologia nas escolas secundárias, evidencia a estratégia católica em se tratando das discussões sobre a cientificidade da disciplina: insistindo sobre os dissensos em torno da definição de seu objeto e dos seus pressupostos metateóricos, esses intelectuais tornavam difícil qualquer tentativa de se delimitar as fronteiras da sociologia científica em bases mais ou menos consensuais. Este era precisamente o objetivo a que vinham se dedicando, a partir de centros de ensino superior como a Escola Livre de Sociologia e Política, a USP e a FNFi, diferentes atores do nascente universo acadêmico das ciências sociais no Brasil (Meucci, 2006Meucci, S. (2006). Gilberto Freyre e a Sociologia no Brasil: da sistematização à constituição do campo científico (Tese de Doutorado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas.; Maio & Lopes, 2015Maio, M. C., & Lopes, T. C. (2015). For the establishment of the social disciplines as sciences: Donald Pierson e as ciências sociais no Rio de Janeiro (1942-1949). Sociologia & Antropologia, 5(2), 343-380.)20 20 Note-se que foi característico, por exemplo, do esforço de Donald Pierson em afirmar a cientificidade da sociologia o argumento de que a disciplina havia superado o período das disputas entre diferentes escolas relacionadas à definição do seu escopo. Nesse sentido, ela viria traçando o caminho em direção à ciência, afastando-se da filosofia. Professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, Pierson foi um ator-chave para a institucionalização das ciências sociais no Brasil dos anos 1940 (Maio & Lopes, 2015). . Ao veicular dúvidas sobre a constituição da sociologia como ciência, assinalando o que ela revelaria de controvérsias metateóricas internamente, os intelectuais católicos buscavam disputar o seu sentido, aproximando a disciplina de um terreno intelectual que lhes era familiar, e no qual poderiam agir como participantes autorizados, o das querelas filosóficas e metafísicas.

Considerações Finais

A saída da sociologia do ensino secundário, indo ao encontro do ponto de vista dos católicos, representará, para estudantes e professores da disciplina no ensino superior, especialmente para aqueles então às voltas com a sua rotinização, um duro golpe. É o que sugere, por exemplo, abaixo-assinado questionando a medida, que consta do Arquivo Capanema e que apresenta, entre seus primeiros signatários, o nome de Luiz de Aguiar Costa Pinto (Villas Boas et al., 1942Villas Boas, A. P. et al. (1942, 4 de maio). Professores de sociologia, economia política e estatística, prejudicados pela reforma do ensino secundário, solicitam ao Snr. Presidente reconsideração do assunto e restabelecimento do ensino das disciplinas de ciências sociais no referido curso. Arquivo Gustavo Capanema (CPDOC/FGV).), não apenas, como vimos, um analista da trajetória inicial da sociologia escolar no país, mas também um de seus combativos defensores. Os impactos que a reforma teve sobre os esforços de institucionalização das ciências sociais no Brasil, incluindo as reações imediatas de protesto que desencadeou, ainda não foram inteiramente apreciados pela literatura. Dentre outras consequências, ela teria contribuído para produzir, segundo hipótese aventada por Sarandy (2007Sarandy, F. M. S. (2007). O debate acerca do ensino da sociologia no secundário, entre as décadas de 1930 e 1950. Mediações, 12(1), 67-92.), um insulamento acadêmico das ciências sociais diante do debate público e da agenda educacional nas décadas seguintes. Como o abaixo-assinado indicava, ficavam sem perspectiva profissional os alunos dos cursos de ciências sociais das faculdades de filosofia, que acabavam, por seu turno, perdendo poder de atração.

Para os objetivos deste artigo, importa nesse momento, porém, retomar algumas questões suscitadas pelas interpretações correntes sobre a reforma à luz da incursão pelos arquivos. Se, de acordo com Moraes (2011Moraes, A. (2011). Ensino de sociologia: periodização e campanha pela obrigatoriedade. Cadernos Cedes, 31(85), 359-382.), o próprio desenvolvimento incipiente da sociologia ajudaria a explicar sua exclusão do currículo, faltando à disciplina uma identidade própria que lhe permitisse figurar no percurso científico dos anos finais do ensino secundário, devemos atentar para o fato de que havia grupos intelectuais dispostos a alimentar o dissenso nos debates envolvendo sua construção como ciência. Para Capanema, como vimos, a sociologia poderia constar como componente curricular tanto do ensino clássico quanto do científico, não demonstrando o ministro de Vargas, em particular, objeções à disciplina. Com efeito, como nos lembra Meucci (2015Meucci, S. (2015). Sociologia na educação básica no Brasil: um balanço da experiência remota e recente. Ciências Sociais Unisinos, 51(3), 251-260.), a sociologia, nesse período, também assumia sentidos congruentes com projetos antiliberais. O que as fontes primárias sugerem, não obstante, é que a disciplina escolar se tornou alvo do ataque de frações intelectuais importantes da base de apoio do Estado Novo, os católicos, dadas as visões secularistas e anticlericais que ela poderia comportar. Ainda que a sugestão para a eliminação da sociologia contida nos pareces dos católicos a Capanema parta da crítica ao “ensino enciclopédico”, esses não hesitam em atribuir riscos de natureza política à disciplina, o que se entrevê, de modo mais explícito, nas observações do jesuíta Arlindo Vieira. Em outras palavras, conforme procuramos indicar, a presença da sociologia nas escolas foi vista como politicamente perigosa. Nesse sentido, à semelhança do que afirmava Costa Pinto (1949Costa Pinto, L. A. (1949). O ensino da sociologia na escola secundária. Sociologia, XI (3), 290-308.), motivações ideológicas, e não apenas pragmáticas e operacionais, estiveram na raiz de sua exclusão do ensino secundário.

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  • Zanardi, G. S. (2013). De Benjamin Constant à lei 11.684/08: uma breve trajetória das tentativas de inclusão da disciplina sociologia no currículo da escola brasileira. Sociologias Plurais, 1(2), 86-109.
  • Nota:

    Este artigo faz parte do dossiê “História da Educação e o ensino das Ciências Sociais”, cujo edital foi lançado em 4 de abril de 2023.
  • Rodadas de avaliação:

    R1: dois convites; nenhum parecer recebido.
    R2: dois convites; dois pareceres recebidos.
  • Financiamento:

    A RBHE conta com apoio da Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE) e do Programa Editorial (Chamada Nº 12/2022) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
  • 1
    Nos livros organizados por Handfas & Oliveira (2008); Handfas et al. (2015) e Silva e Gonçalves (2017), encontram-se não apenas análises sobre a situação da sociologia como disciplina escolar no início do século XXI, mas também avaliações e estudos sobre sua ocorrência no passado. O interesse despertado pelo ensino da sociologia como tema de pesquisa, no âmbito de programas de pós-graduação em ciências sociais, com a reintrodução da disciplina no ensino médio brasileiro em 2008 foi examinado, entre outros, por Bodart & Cigales (2017) e Oliveira e Melchioretto (2020).
  • 2
    Ver, por exemplo, os volumes organizados por Miceli (1995, 2001), que constituem importante referência para essas discussões.
  • 3
    Em suas análises sobre o desenvolvimento da sociologia no Brasil, Fernando de Azevedo, referindo-se aos escolanovistas, observa o impulso a ele conferido “[...] pelos educadores e reformadores que viam nos estudos científicos da sociedade o ponto de partida e a base sólida para transformações racionais das instituições e dos sistemas escolares, em sua estrutura e em suas finalidades” (Azevedo, 1955, p. 381). Destaca, igualmente, que o ensino da sociologia na educação básica e nas escolas normais precedeu à sua oferta nos cursos superiores de ciências sociais (Azevedo, 1967).
  • 4
    Conforme observa Luiz de Aguiar Costa Pinto, os cursos de ciências sociais das faculdades de filosofia do país - para os quais o curso da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (FNFi), iniciado em 1939, deveria funcionar como modelo - tinham como uma de suas finalidades o incremento da formação de professores para as escolas secundárias, onde então a sociologia constituía matéria obrigatória (Costa Pinto, 1949).
  • 5
    Os documentos do Arquivo Capanema aqui analisados se encontram na pasta GC g 1936.03.24/1 da Série Ministério da Educação e Saúde - Educação e Cultura.
  • 6
    Ver, entre outros, Shapin (2013). Tal perspectiva se alinha à preocupação, demonstrada por estudiosos da história da sociologia como disciplina escolar, em examinar os distintos significados por esta assumida no passado (Meucci, 2015).
  • 7
    Note-se, todavia, como indicou Fraga (2020), que ideias e pontos de vista sociológicos foram, ainda assim, veiculados, ou em formatos alternativos no ensino secundário, como parte do conteúdo de outras disciplinas, por exemplo, ou em diferentes espaços institucionais que não os da escola.
  • 8
    Com esse conceito, o sociólogo tinha em mente um tipo de estrutura social que, no processo de mudança, perpetuava-se como híbrida, já não mais exclusivamente “tradicional”, mas tampouco capaz de levar a termo sua modernização em um sentido capitalista. Estudos sobre a centralidade desse conceito na obra de Costa Pinto se encontram em Maio & Villas Bôas (1999). Para uma análise circunstanciada do balanço de Costa Pinto sobre a história das ciências sociais no Brasil, ver Brasil Jr. (2012).
  • 9
    A relevância que Costa Pinto atribuiu à presença da sociologia no currículo escolar, que não dissociava, como indicamos anteriormente, dos destinos da sociologia como um todo no país, pode ser aferida ainda da tese que escreveu para o concurso à livre docência na FNFi, em setembro de 1947, cujos resultados foram posteriormente publicados na revista Sociologia (Costa Pinto, 1947a, 1949).
  • 10
    Embora não se refira explicitamente aos católicos em sua análise da “reação obscurantista” das elites dirigentes no terreno educacional durante o Estado Novo (Costa Pinto & Carneiro, 2012), Costa Pinto reconhece o peso que esses grupos tiveram no debate sobre a sociologia científica no Brasil. Em seu conhecido texto “Sociologia e mudança social”, ele qualifica a sociologia proposta pelos católicos, interessados, a seu ver, em transformar a ciência da sociedade em um “repositório de ‘regras de bem viver’”, como uma “utopia normativa”, e observa: “Vale o consolo de que, do ponto de vista teórico, a ofensiva que dirigem contra o método científico, contra o que chamam a ‘chamada ciência’, é muito débil e não constitui ameaça séria. Mesmo no Brasil, onde por tanto tempo só se conheceu esse tipo de sociologia, foi a verificação de sua pobreza lamentável - e a desconfiança em relação a tudo mais - um dos fatores da exclusão das ciências sociais do currículo da escola secundária” (Costa Pinto, 1947b, p. 323, grifo do autor). Na terceira seção deste artigo, teremos a oportunidade de examinar com atenção a visão dos católicos quanto à cientificidade da sociologia.
  • 11
    Assim como Capanema, Francisco Campos provinha dos grupos políticos mineiros que, em meio à crise sucessória do governo Washington Luís, apoiaram a movimentação que deflagrou a denominada Revolução de 1930. Em Minas Gerais, ele havia sido secretário do Interior do governo Antônio Carlos (1926-1930), implementando uma reforma educacional, de caráter modernizador e inspirada em ideais escolanovistas, que projetou seu nome nacionalmente. Com a Revolução, Campos assumiu o Ministério da Educação e Saúde Pública criado pelo governo provisório em fins de 1930, nele permanecendo até 1932 (Malin, 2015).
  • 12
    As ciências naturais deixam de figurar nas duas primeiras séries do ciclo básico e comum aos alunos do ensino secundário, ao passo que elas estavam contempladas na grade do curso fundamental instituído pela Reforma Francisco Campos - nas duas primeiras séries, como “ciências físicas e naturais” e nas três últimas séries como “Física”, “Química” e “História Natural”. Cf. Decreto nº 19.890 (1931); Decreto-lei nº 4.244 (1942).
  • 13
    Horta (2010) chamou a atenção para a existência desses pareceres, ainda que seu interesse, diverso do nosso e mais geral, tenha sido o de evidenciar as consequências, para as políticas educacionais do período, das vinculações de Capanema com os católicos.
  • 14
    O projeto da Universidade do Distrito Federal, vinculado à administração de Pedro Ernesto na então capital do país, foi sustado por Vargas em meio à crescente e tensa polarização política que levou ao afastamento de um de seus principais idealizadores, o educador escolanovista Anísio Teixeira, acusado de colaboração com o levante comunista de 1935 e alvo da ferrenha crítica dos católicos (Schwartzman et al., 2000). O anticomunismo não foi um elemento desprezível na construção da crítica dos católicos à Escola Nova e às “novas ciências do homem” (como a sociologia) a que esses educadores recorriam a fim de dar lastro às suas propostas educacionais. Como buscaremos indicar, ele também informa a posição dos católicos em favor da supressão da disciplina no currículo das escolas secundárias.
  • 15
    No Brasil, de acordo com a perspectiva católica, a ênfase pedagógica nas ciências teria suas origens no positivismo da Primeira República. Nas palavras de Leonardo Van Acker, professor de Filosofia da Faculdade de São Bento de São Paulo, o período teria substituído as humanidades clássicas por “[...] um mistifório inominável, feito de bacharelice verbalista e cientismo utilitário” (Van Acker, 1933, p. 738).
  • 16
    Além desses, há pelo menos mais um parecer, de autoria não identificada, que sugere a supressão da disciplina da grade escolar. Pelo teor do texto, supõe-se que seja de quadro de uma instituição de ensino das forças armadas que esposava uma concepção positivista das ciências: “No tocante à Sociologia, já foi ela eliminada do curso da Escola Militar que é indiscutivelmente superior ao clássico ou científico, em apreço. Além do mais, como ensinar Sociologia a quem não precisa nem estudou Biologia?” (Lei do Ensino Secundário, n.d.).
  • 17
    É o que sugere Amoroso Lima ao se referir à “sociologia determinista” e ao marxismo: “Na realidade social de nossos dias, bem como na doutrina sociológica, os dois grandes polos humanos são Roma e Moscou, o Vaticano e o Kremlin” (Lima, 1931, p. 16).
  • 18
    Mencionemos os trabalhos de Azevêdo (2006), Meucci (2011) e Brochier (2016) que, não obstante, não fazem da sociologia católica no Brasil o foco de sua atenção. Dada a forte presença dos católicos no ensino normal e na educação básica brasileira, não surpreende que, entre os estudiosos, aqueles dedicados à história da sociologia como disciplina escolar tenham demonstrado, mais do que outros, interesse em analisar suas concepções sociológicas. Ver, por exemplo, Silva & Bodart (2019); Bodart & Cigales (2020).
  • 19
    Trata-se de problema de pesquisa mais abrangente, que foge ao escopo deste artigo. Uma forma de abordá-lo, no entanto, deverá levar em consideração a atuação dos intelectuais católicos no nível superior de ensino, em particular nos cursos de ciências sociais das faculdades de filosofia do país, sobre os quais, a partir sobretudo da antiga Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, exerceram, como é sabido, forte influência em seus primeiros anos. Uma análise das aulas de Jacques Lambert, professor de sociologia da missão francesa que atuou na FNFi, encontra-se em Lopes (2020), que destacou suas afinidades com o pensamento católico.
  • 20
    Note-se que foi característico, por exemplo, do esforço de Donald Pierson em afirmar a cientificidade da sociologia o argumento de que a disciplina havia superado o período das disputas entre diferentes escolas relacionadas à definição do seu escopo. Nesse sentido, ela viria traçando o caminho em direção à ciência, afastando-se da filosofia. Professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, Pierson foi um ator-chave para a institucionalização das ciências sociais no Brasil dos anos 1940 (Maio & Lopes, 2015).

Editores-associados responsáveis:

Amurabi Oliveira (UFSC)
E-mail: amurabi1986@gmail.com
Cristiano Bodart (UFAL)
E-mail: cristianobodart@gmail.com
Raquel Discini de Campos (UFU)
E-mail: raqueldiscini@uol.com.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    12 Set 2023
  • Aceito
    16 Jan 2024
  • Publicado
    24 Jun 2024
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