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Abdias Nascimento:a trajetória de um intelectual negro engajado na disseminação de saberes emancipatórios entre as décadas de 1920 e 1940

Abdias Nascimento: la trayectoria de un intelectual negro comprometido en la diseminación de saberes emancipatorios entre las décadas de 1920 y 1940

Resumo:

Este artigo tem como objetivo analisar a trajetória de Abdias Nascimento entre as décadas de 1920 e 1940, a fim de compreender o seu processo de formação como intelectual engajado nas causas das populações negras. Consideramos nesta análise os projetos formativos organizados por ele que visam à disseminação de saberes emancipatórios, com ênfase na experiência do ‘Teatro Experimental do Negro’. Nascimento é interpretado como um intelectual negro que representou parte da história dos negros no combate à discriminação racial no Brasil. Em termos teóricos, operaremos com os conceitos de espaço de experiência e horizonte de expectativas de Koselleck (2006), bem como com o conceito de intelectual proposto por Vieira (2011). O corpus documental desta pesquisa foi composto de livros de memórias e de matérias e fotografias publicadas na imprensa.

Palavras-chave:
Abdias Nascimento; intelectuais; movimento negro; Teatro Experimental do Negro

Resumen:

Este artículo tiene como objetivo analizar la trayectoria de Abdias Nascimento entre las décadas de 1920 y 1940, a fin de comprender su proceso de formación como intelectual involucrado en las causas de las poblaciones negras. Consideramos en ese análisis los proyectos formativos organizados por él visando la diseminación de saberes emancipatorios, con énfasis em la experiencia del Teatro Experimental del Negro. Nascimento es interpretado como un intelectual negro que representó parte de la historia de los negros en el combate a la discriminación racial en Brasil. En términos teóricos, operaremos con los conceptos de espacio de experiencia y horizontes de expectativas de Koselleck (2006), así como con el concepto de intelectual, propuesto por Vieira (2011). Las fuentes de esta investigación fueron libros, artículos y fotografías publicadas em la prensa.

Palabras clave:
Abdias Nascimento; intelectuales; movimiento negro; Teatro Experimental del Negro

Abstract:

This article aims to analyze the trajectory of Abdias Nascimento between the 1920s and 1940s, in order to understand his formation process as an intellectual engaged in the causes of Black populations. We consider in this analysis the formative projects organized by him aiming at the dissemination of emancipatory knowledge, with emphasis on the experience of the Teatro Experimental do Negro. Nascimento is interpreted as a Black intellectual who represented part of the history of Black people in the fight against racial discrimination in Brazil. In theoretical terms, we will operate with the concepts of experience space and expectations horizons of Koselleck (2006), as well as with the concept of intellectual, proposed by Vieira (2011). The sources of this research were books, articles and photographs published in the press.

Keywords:
Abdias Nascimento; intellectuals; Black movement; Experimental Theatre of Black People

Introdução

O presente artigo tem como objetivo principal analisar a trajetória de Abdias Nascimento (1914-2011), a fim de compreender o seu processo de formação como intelectual engajado nas causas das populações negras1 1 Entendemos trajetória intelectual da forma como foi formulada por Bourdieu, no clássico argumento sobre a ilusão biográfica. Biografias ilusórias porque impõem uma racionalização arbitrária ao vivido, de modo a produzir um ser uno, coerente e movido, de maneira inabalável, por um propósito de vida. Para Bourdieu, a trajetória deve ser compreendida como uma “[...] série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) num espaço [...] sujeito a incessantes transformações” (Bourdieu, 1996, p. 189). . Consideramos nesta análise o percurso tortuoso e conflituoso de formação do intelectual e, especialmente, os projetos formativos organizados e desenvolvidos por ele a partir de uma ação social ampla que envolveu a imprensa, os diferentes movimentos e entidades da sociedade civil e, sobretudo, a expressão artística. No que diz respeito à arte, ele se envolveu, direta e indiretamente, com diversas formas de manifestação artística, contudo o foco deste estudo recairá sobre a dramaturgia. Esta forma de expressão artística representou, no período de formação de Abdias Nascimento, o seu principal movimento de crítica ao racismo estrutural e, por extensão, de proposição de um projeto de formação da consciência negra. Este ganhou materialidade nas experiências do ‘Teatro do Sentenciado’ e, principalmente, no ‘Teatro Experimental do Negro’, que serão objetos de análise na parte final e nas conclusões deste artigo.

Entendemos que a reflexão sobre o processo de formação e sobre os empreendimentos dramatúrgicos de Abdias Nascimento articula duas dimensões históricas fundamentais: o espaço de experiência e o horizonte de expectativas. Segundo a reflexão de Koselleck (2006Koselleck, R. (2006). Futuro passado: contribuições à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto., p. 306)2 2 Sobre os conceitos de espaço de experiência e horizonte de expectativas, ver Reinhard Koselleck (2006), Futuro passado: contribuições à semântica dos tempos históricos, especialmente o capítulo ‘Espaço de experiência e horizonte de expectativa: duas categorias históricas’. , “[...] todas as histórias foram constituídas pelas experiências vividas e pelas expectativas das pessoas [...]”, de modo que passado e futuro seguem em permanente tensão, embora sem jamais coincidirem. A experiência é um processo concluído, já a expectativa é uma esperança que move os atores sociais na busca por seus sonhos e projetos. Dessa forma, na reflexão sobre o espaço de experiência de Abdias Nascimento, flagramos a persistente discriminação promovida pelo racismo estrutural presente na sociedade brasileira da primeira metade do século XX, o qual perpassou boa parte do seu processo formativo, considerando as experiências na escola (em todos os seus níveis), no Exército, na vida profissional e, acima de tudo, na sua atuação como ativista político do movimento negro. Já o horizonte de expectativas revela o intelectual engajado na disseminação de saberes emancipatórios, que ansiavam pela transformação da sociedade brasileira, a partir da afirmação de valores e práticas sintonizadas, como a liberdade de expressão, a igualdade racial e social, a dignidade humana e a democracia política.

Em outros termos, buscamos integrar o processo de formação e os engajamentos culturais e políticos de Abdias Nascimento, no entendimento de que esse percurso possibilitará a percepção dos elementos que o tornaram propositor de um projeto de formação da consciência política e social do movimento negro no Brasil.

A questão que orientou este trabalho está relacionada a uma premissa da história dos intelectuais, ou seja: o engajamento político. Nesse sentido, Edgar Morin (1981Morin, E. (1981). Pour sortir du XX siècle.Paris, FR: Fernand Nathan., p. 242) assevera que: “[...] quando filósofos descem da sua ‘torre de marfim’ ou quando técnicos ultrapassam o seu campo de aplicação especializado para defender, ilustrar, promulgar ideias com valor cívico, social ou político, tornam-se intelectuais”. A citação de Morin representa o processo que transforma os sábios, os cultos ou os eruditos em intelectuais que, ao possuírem uma expertise artística, científica ou literária, empenham-se na defesa de causas públicas. Desse modo, apoiados nesse princípio, indagamos: o que levou Abdias Nascimento à militância no movimento negro? E, ainda, quais foram as suas principais estratégias de atuação para a formação da chamada consciência negra?

Apoiados nessa ideia do engajamento como uma das características definidoras do comportamento público dos intelectuais, sustentamos a hipótese de que esse movimento do mundo privado para o espaço público, da atitude contemplativa para a tomada de posição política, não é resultante de um elã ou mesmo de uma determinação biológica. Trata-se de um processo longo de formação que combina a experiência individual e coletiva, bem como os mecanismos de significação e ressignificação dessas experiências, os quais, ao se tornarem complexos e relacionais, engendram horizontes de expectativas que se traduzem em projetos políticos e sociais. Em outras palavras, não entendemos que Abdias Nascimento se tornou um intelectual engajado no movimento negro por ter nascido preto, neto de escravas e de pai e mãe pretos. Da mesma forma, relativizamos a própria memória do personagem desta narrativa, o qual relata uma espécie de elã ao assistir uma peça de teatro, quando ele sentiu que um “[...] fogo anunciador se acendia” (Semog & Nascimento, 2006Semog, É., & Nascimento, A. (2006). Abdias Nascimento: o griot e as muralhas. Rio de Janeiro, RJ: Pallas., p. 108-109), tornando límpidas para ele a discriminação e a necessidade do seu engajamento na causa do movimento negro3 3 A peça em questão era O Imperador Jones, assistida por Abdias Nascimento na cidade de Lima, no Peru, no início dos anos de 1940, na qual o personagem principal era um homem negro, porém foi representado por um ator branco, devidamente maquiado. .

Abdias Nascimento é representado neste estudo como um intelectual negro que, para além da sua experiência irredutível como indivíduo, representou parte da história dos negros no combate à discriminação racial no Brasil. Nesse sentido, a análise da sua trajetória nos permite compreender os mecanismos sociais que possibilitaram a formação, a ascensão social e o protagonismo cultural e político de um homem oriundo de um grupo historicamente marginalizado. Buscamos, assim, identificar como o acesso ao conhecimento, seja na sua forma escolarizada ou apreendido na experiência social, converte sujeitos oprimidos em agentes políticos que protagonizam resistência. A categorização de Abdias Nascimento como intelectual apoia-se na definição de Vieira (2011Vieira, C. E. (2011). Erasmo Pilotto: identidade, engajamento político e crenças dos intelectuais vinculados ao campo educacional no Brasil. In J. L. Leite, & C. Alves (Orgs.), Intelectuais e história da educação no Brasil: poder, cultura e políticas (p. 25-54) Vitória, ES: EDUFES.), que descreve e explica o comportamento público dos intelectuais, especialmente daqueles que atuaram na primeira metade do século XX no Brasil, a partir de quatro características:

1) sentimento de pertencimento ao estrato social que, ao longo dos séculos XIX e XX, produziu a identidade social do intelectual; 2) engajamento político propiciado pelo sentimento de missão ou de dever social; 3) elaboração e veiculação do discurso que estabelece a relação entre educação e modernidade; 4) assunção da centralidade do Estado como agente político capaz de realizar as reformas sociais (Vieira, 2011Vieira, C. E. (2011). Erasmo Pilotto: identidade, engajamento político e crenças dos intelectuais vinculados ao campo educacional no Brasil. In J. L. Leite, & C. Alves (Orgs.), Intelectuais e história da educação no Brasil: poder, cultura e políticas (p. 25-54) Vitória, ES: EDUFES., p. 29).

Sem a pretensão de enquadrar Abdias Nascimento nessa definição, pretendemos pensar o personagem considerando três desses quatro aspectos, a saber: o momento em que ele assume a identidade social do intelectual, a sua condição de engajamento em torno de causas públicas e a sua crença na educação como fator de emancipação dos negros e, por extensão, de aprimoramento da sociedade.

A biografia de Abdias Nascimento é bastante conhecida, principalmente se considerarmos o período entre as décadas de 1970 e 2000. Foi nesse momento que o intelectual adquiriu grande visibilidade pública. Como exilado durante a ditadura civil-militar no Brasil, instalada em 1964, ele ocupou cátedras em várias universidades americanas e africanas. Ao retornar do exílio, tornou-se deputado federal pelo Rio de Janeiro (1983-1987). Deste estado foi secretário para a Defesa e Promoção das Populações Afro-Brasileiras, até 1994. No período de 1997 a 1999, assumiu o mandato de senador da República, sucedendo Darcy Ribeiro. Como parlamentar apresentou numerosas proposições, tanto na Câmara como no Senado, relacionadas à causa dos afrodescendentes, dentre as quais cabe destacar o PLS 52 (Projeto de Lei do Senado), de 3 de abril de 1997, que define os crimes de prática de racismo e discriminação. Nascimento foi um intelectual polígrafo, já que produziu poesia, literatura, dramaturgia, pensamento social e textos de ativismo panafricanista. Com mais de 50 livros publicados- entre obras autorais e coletivas que trataram do racismo, da desigualdade, dos direitos humanos, da arte e da religião africana-, o intelectual obteve a culminância desse reconhecimento público em 2010, quando ele foi, oficialmente, indicado para receber o Prêmio Nobel da Paz.

Esse período é o mais conhecido da sua trajetória, já que revela o intelectual consolidado nos campos político e cultural, no entanto não é dessa fase da sua vida que trataremos aqui, uma vez que nos concentraremos no seu processo de formação e, sobretudo, no momento de tomada de posição em relação ao seu engajamento no movimento negro. Por essa razão, nos deteremos no período entre as décadas de 1920 e 1940, ainda que tenhamos que fazer alguns recuos e avanços no que se refere a esse recorte temporal.

O corpus documental desta pesquisa foi composto de livros escritos por Abdias Nascimento, incluindo suas memórias retratadas em autobiografia, jornais, revistas, entrevistas e fotografias publicadas na imprensa. O mapeamento, a seleção e a coleta de grande parcela das fontes ocorreram por meio de busca nos seguintes acervos: Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros [IPEAFRO], no Rio de Janeiro; Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional; no portal USP - Imprensa Negra Paulista: periódicos 1903-1963. Adotamos cuidados especiais no uso de fontes biográficas e, principalmente, autobiográficas, pois se por um lado elas oferecem rastros significativos das experiências de vida, por outro elas guardam armadilhas próprias da memória, tais como a racionalização do vivido, a seleção, a distorção, o esquecimento e a omissão dos acontecimentos.

Ao final da análise, acreditamos que, a partir da trajetória de Abdias Nascimento, será possível colaborar com a discussão sobre a ação e o papel dos intelectuais no espaço público. Vale salientar que a presente pesquisa visa também a contribuir para evidenciar o protagonismo de intelectuais negros, refletindo sobre experiências e retirando da obscuridade e do silenciamento sujeitos negados por uma sociedade que ainda não descolonizou seu modo de pensar as relações raciais e que, em grande medida, mantém modos de pensar e agir próprios do período escravista.

Anos de formação: segregação e mobilidade social

Abdias Nascimento nasceu no dia 14 de março do ano de 1914 na cidade de Franca, interior de São Paulo. É o segundo dos sete filhos do casal José Ferreira do Nascimento (Seu Bem Bem) e Georgina Ferreira do Nascimento (Dona Josina). O pai, oriundo do município mineiro de Formiga, cidade vizinha de Franca, fora sapateiro na fase artesanal da indústria coureira da região. A mãe, natural de Uberabinha, cidade mineira que, mais tarde, se tornaria Uberlândia, era cozinheira, doceira, costureira e ama de leite. As avós, Dona Ismênia (avó paterna) e Dona Francelina (avó materna), foram escravas nas fazendas da região. A família Nascimento professava a religião católica, de modo que Abdias Nascimento e seus irmãos receberam uma formação católica tradicional: aulas de catecismo e primeira comunhão.

Em suas memórias, Abdias Nascimento relata que, na cidade de Franca, “[...] os negros eram todos católicos, ou, quando muito, católicos e kardecistas” (Semog & Nascimento, 2006Semog, É., & Nascimento, A. (2006). Abdias Nascimento: o griot e as muralhas. Rio de Janeiro, RJ: Pallas., p. 46), assim como ele categorizou a própria mãe. Outros relatos do intelectual trazem a informação de que Dona Josina “[...] detinha um grande conhecimento sobre ervas. Por essa sabedoria, era uma pessoa muito procurada [...] pois curava e ajudava muita gente” (Semog & Nascimento, 2006, p.30). O reconhecimento como alguém que curava e aconselhava não só a vizinhança, mas também pessoas de classe mais alta foi um fator que contribuiu para a mobilidade social de Abdias Nascimento, pois seriam os contatos influentes dela que lhe abririam algumas portas.

A relação da família de Abdias Nascimento com a religião é um aspecto marcante em suas memórias da infância, evidenciando uma relevância em sua formação. Das lembranças das festas católicas, em que a mãe se envolvia na organização das quermesses, Nascimento traz informação sobre a presença dos negros nessas festas:

No mês de maio, aconteciam as grandes festas; eram celebrações de predominância católica, onde comparecia a negrada mais urbana. Havia poucos negros na cidade, mas todos apareciam nas festas católicas, e assim, reunidos, davam a impressão de serem muito mais do que realmente eram (Semog & Nascimento, 2006Semog, É., & Nascimento, A. (2006). Abdias Nascimento: o griot e as muralhas. Rio de Janeiro, RJ: Pallas., p.44).

Em sua opinião, “[...] essas festas eram espaços coletivos de que a comunidade dispunha para estar junta, pois não existia uma associação ou uma entidade negra” (Semog & Nascimento, 2006Semog, É., & Nascimento, A. (2006). Abdias Nascimento: o griot e as muralhas. Rio de Janeiro, RJ: Pallas., p. 45). É provável que a convivência com o mesmo grupo étnico tenha aproximado Abdias Nascimento de experiências que colaboraram para a sua formação.

O jovem Abdias Nascimento cresceu em uma família que, segundo ele, “[...] era muito pobre, sempre envolvida na luta pela sobrevivência” (Semog & Nascimento, 2006Semog, É., & Nascimento, A. (2006). Abdias Nascimento: o griot e as muralhas. Rio de Janeiro, RJ: Pallas., p. 51). Apesar das condições de vida bastante adversas, ele buscou uma formação escolar e profissional, assim como parte significativa da população negra. Testemunho dessa crença na escola pode ser visto no jornal O Clarim, publicado pela imprensa negra paulista: “Oh paes! Mandae vossos filhos ao templo da instrucção intelectual - a escola - não os deixeis analfabetos como dantes!”. O periódico reforça, também, a relação entre a educação formal dos negros e a construção do espírito nacional: “[...] aproveitae o precioso tempo para engrandecer a nossa raça e o nosso querido Brasil” (O Clarim,1924O Clarim. (1924, 03 de fevereiro)., p. 02).

Abdias Nascimento, aos sete anos de idade, estava matriculado no Grupo Escolar Coronel Francisco Martins, na cidade de Franca. A pessoa responsável por sua inserção na primeira escola pública da cidade foi sua mãe. De acordo com ele, Dona Josina valorizava a escolarização e, por isso, estimulava o interesse dos filhos pelo estudo. Não obstante, a experiência escolar guardava dissabores, pois em vários momentos de suas memórias sobre o ensino primário, Abdias Nascimento relata cenas de discriminação. A primeira diz respeito ao tratamento dispensado pelas professoras a ele. Ao se referir, por exemplo, a um mau comportamento, diziam: “[...] volta para o seu lugar, tição”! Quando a observação era sobre a execução de uma tarefa, ele ouvia: “[...] esse negrinho aí não fez o trabalho direito” (Semog & Nascimento, 2006Semog, É., & Nascimento, A. (2006). Abdias Nascimento: o griot e as muralhas. Rio de Janeiro, RJ: Pallas., p. 49). A outra experiência marcante é a história de um menino negro, muito pobre, órfão de pai e mãe, que era seu companheiro de escola:

Ninguém sabe ao certo como ele sobrevivia, pois andava todo esmolambado, tinha bicho-de-pé, e o citado fazia o maior sacrifício para frequentar as aulas, pois não tinha a mínima condição. Havia também a mãe de um outro colega de escola, uma mulher que era o próprio espírito de porco, que, não sei por que cargas d’água, um dia encrencou com o Filisbino e, em pleno meio da rua, começou a bater no menino, aplicando-lhe uma surra tremenda, enquanto as pessoas olhavam aquilo com a maior passividade e indiferença (Semog & Nascimento, 2006Semog, É., & Nascimento, A. (2006). Abdias Nascimento: o griot e as muralhas. Rio de Janeiro, RJ: Pallas., p. 50).

Sobre o interesse pelo teatro desde a infância, ele declara ter sofrido discriminação, ainda que a consciência desta só tenha sido alcançada muitos anos mais tarde:

Foi em Franca onde eu vi pela primeira vez teatro, sobretudo o teatro de fantoches. E desde essa infância, assistindo ao teatro de fantoche, o teatro provocou em mim uma curiosidade e um encantamento. Mas já naquela época eu mordi do amargo fruto do racismo, porquanto, no Grupo Escolar Coronel Francisco Martins, onde eu fiz meu primeiro ciclo de estudos, eu nunca fui um dos alunos escolhidos para as festas de fim de ano. Eu decorava todos os monólogos, as poesias que todos os garotos representavam, aprendia todas as danças, todos os gestos, todas as mímicas [...] E estou convencido de que não seria um mau ator naquelas festas de fim de ano; porém, eu jamais fui escolhido para representar. [...] Naquela época, naturalmente, eu não tinha muito claras as razões pelas quais eu era excluído daquelas festas (Semog & Nascimento, 2006Semog, É., & Nascimento, A. (2006). Abdias Nascimento: o griot e as muralhas. Rio de Janeiro, RJ: Pallas., p. 47).

Notícia publicada no jornal A Voz da Raça corrobora essa impressão de Abdias Nascimento sobre o tratamento discriminatório dos professores com relação às crianças negras nas escolas:

Há pouco tempo um nosso patrício negro me contara uma história do seu filho inteligente, que ia mal amparado pela escola porque a sua professora declarara em plena classe que ‘Negro com ela não aprende’, como si o negro frequentando uma escola pública pedisse uma esmola (A Voz da Raça, 1933A Voz da Raça. (1933, 06 de maio)., p. 2).

Ainda no mesmo artigo, assinado por Castelo Alves, outra situação de discriminação é relatada. Conforme o jornalista, um professor teria afirmado, sobre o ingresso de meninos negros nos grupos de escoteiros, que “[...] os negrinhos fariam fiasco” (A Voz da Raça, 1933A Voz da Raça. (1933, 06 de maio)., p. 2). Nas duas situações, evidencia-se a postura discriminatória e excludente dos professores direcionada aos alunos negros, da qual depreende-se a existência sistemática de preconceito racial contra as crianças negras.

Araújo (2013Araújo, M. L. P. (2013). A escolarização de crianças negras paulistas (1920-1940). (Tese de Doutorado), Universidade de São Paulo, São Paulo.), a respeito da história da educação paulista republicana, demonstra que menos de 10% da população escolar era de crianças negras. O autor também apresentou evidências de que, após a frequência na escola primária, as crianças negras eram encaminhadas para um ofício. Esse aspecto pode ser evidenciado pela trajetória de Abdias Nascimento, já que, aos 11 anos, ele ingressou na Escola de Comércio do Ateneu Francano para estudar contabilidade no período noturno. De acordo com suas memórias, ele “[...] frequentava o grupo escolar no período da manhã, trabalhava à tarde e ia para o Ateneu Francano à noite” (Semog & Nascimento, 2006Semog, É., & Nascimento, A. (2006). Abdias Nascimento: o griot e as muralhas. Rio de Janeiro, RJ: Pallas., p. 51). Segundo Macedo (2005Macedo, M. J. (2005). Abdias do Nascimento:a trajetória de um negro revoltado (1914-1968) (Dissertação de Mestrado). Universidade de São Paulo, São Paulo.), sua matrícula na escola profissionalizante só foi possível porque sua mãe intercedeu em seu favor com o prefeito da cidade, conseguindo, assim, uma bolsa de estudos.

Depreendemos que o jovem Abdias Nascimento buscou aproveitar tais oportunidades quando, em 1929, aos 15 anos de idade, profissionalizou-se contador no Curso Commercial de Franca.

Figura 1
Quadro de formatura de Abdias Nascimento, em 1929Nascimento, A. (1929). O griot. Recuperado de: https://www.itaucultural.org.br/ocupacao/abdias-nascimento/o-griot/
https://www.itaucultural.org.br/ocupacao...
.

O quadro de formatura, como mostra a Figura 1, permite inferir que Abdias Nascimento foi o único negro dos sete formandos, além de revelar a ausência de negros no corpo docente da instituição.

No jornal O Alfinete, de 03de setembro de 1918, José Benedicto Martins expressa a importância dada, à época, para a necessidade de se ter um ofício, como forma de inserção social da população negra:

É preciso que os pretos tenham a aspiração de querer ser alguma cousa no futuro; para isso é preciso que todos tenham força de vontade, ensinando aos vossos filhos o que nosso paes não apreenderam. Avante! Meus irmãos de cor, caminhae com o progresso da nossa capital, mandae vossas filhas, para aprenderem costura bordados e engomados; vossos filhos, depois que saírem do Grupo Escolar, mandae-os aprender officio de sapateiro, funileiro, mecânico, encadernador e typographo etc. (O Alfinete, 1918O Alfinete. (1918, 03 de setembro)., p. 2).

Notamos que os ofícios sugeridos pelo jornalista se localizam em posições modestas na hierarquia do mercado de trabalho, de modo que a profissão de contador, alcançada por Abdias Nascimento, situa-o em uma condição de ascendência social, considerando as expectativas profissionais da população negra no período. É possível inferir que o jovem Abdias Nascimento percebia, mesmo que sua consciência sobre as questões raciais ainda não estivesse constituída, que era preciso superar desafios e buscar novas experiências formativas. A segregação e o racismo se faziam presentes, entretanto existiam formas de resistência e caminhos para a mobilidade social, dentre os quais a formação escolar e profissional.

A experiência militar: entre o evento e o estrutural

No final da década de 1920, sob o governo do presidente Washington Luís, o Brasil vivia uma política econômica de austeridade. Decidido a romper com o tradicional acordo da República Velha de revezamento no poder entre os políticos de Minas Gerais e de São Paulo, a conhecida política do café com leite, o presidente indicou para sucedê-lo, para o quadriênio de 1930-1934, o paulista Júlio Prestes. Em oposição aos planos de Washington Luís, constituiu-se, então, a Aliança Liberal, com o objetivo de apoiar as candidaturas de Getúlio Vargas e João Pessoa à Presidência e à Vice-Presidência da República, respectivamente.

É nesse contexto político que o jovem Abdias Nascimento, aos 15 anos e na condição de membro da delegação de atletas da cidade de Franca, visita, pela primeira vez, a cidade de São Paulo. Tratava-se de um evento político-esportivo que visava a promover a candidatura de Júlio Prestes e, nesta ocasião, Abdias Nascimento, alheio à atividade política, sentiu grande interesse pelo desfile da Guarda Civil de São Paulo. Esta divisão da polícia paulista foi criada em 1926 e era inspirada nas forças policiais francesas. A relevância de relatar tal episódio na trajetória de Abdias Nascimento se justifica pelo impacto que este provocou sobre ele e, sobretudo, por entendermos que este evento foi determinante para o seu engajamento na luta pela igualdade racial. Naquele contexto, era comum que os jovens oriundos do interior do estado e pertencentes às camadas populares vissem nas forças militares uma oportunidade de ascensão social. Abdias Nascimento, em suas memórias, relata como foi a sua experiência ao assistir ao desfile da Guarda Civil e porque esta foi tão marcante:

Ouviu-se primeiro o repicar das caixas e a marcação do surdo, mas só algum tempo depois foi que apareceram, lá no princípio da avenida, os primeiros soldados da Guarda, acompanhados pela banda toda garbosa e bem ensaiada, com os seus sopros e instrumentos de percussão. Os guardas, enfileirados de forma simétrica, iam marchando com passos de uma firmeza marcial, e aquilo tudo me provocou uma sensação emocionante e me deixou arrepiado. Eu estava ali, no meio dos atletas de Franca, com o pescoço esticado feito um ganso para conseguir ver a Guarda Civil que se aproximava, mas só conseguia enxergar aqueles guardas brancos, muito brancos. Eram todos louros, grandes, parrudões, pareciam até que eram de outro país, pois eu nunca tinha visto tantos juntos. E o desfile foi acontecendo, acontecendo, e nada de aparecer um guarda negro (Semog & Nascimento, 2006Semog, É., & Nascimento, A. (2006). Abdias Nascimento: o griot e as muralhas. Rio de Janeiro, RJ: Pallas., p. 59-60).

Inicialmente, essa descrição pode ser interpretada como uma memória reelaborada, já com base nas suas vivências posteriores. Porém, no tensionamento entre as suas memórias e outras fontes, chega-se a algumas conclusões. Sua percepção sobre a ausência de negros na Guarda Civil se confirma quando analisamos o edital de recrutamento para novos Guardas Civis no ano de 1929, republicado pelo jornal Diário Nacional (1929Diário Nacional. (1929, 12 de junho)., p. 3):

Leiam os leitores o seguinte edital publicado no ‘Tribuno Popular’, de Itapetininga, a 9 de junho corrente: Candidatos para a Guarda Civil de São Paulo [...] Os candidatos deverão reunir as condições essenciais exigidas pelo respectivo regulamento e que são: 1 metro e 72 centímetros de altura, no mínimo, saber ler e escrever, ter boa conducta, idade mínima de 22 annos, preferindo-se homens robustos, maiores de 25 annos, de côr branca, de bôa dentição e constituição physica perfeita.

A publicação desse edital em um jornal da época, conhecido como um instrumento de ação partidária de oposição a Júlio Prestes, traz consigo uma crítica direta ao então presidente de São Paulo, acusando-o de afrontar a maioria negra do povo brasileiro. De acordo com Gomes (2005Gomes, F. (2005). Negros e política (1888- 1937). Rio de Janeiro, RJ: Zahar.), houve uma grande campanha da população negra organizada contra o decreto do governo paulista, o que resultou na sua suspensão. Abdias Nascimento afirma não ter consciência, naquele momento, dessa lógica de segregação dos negros, porém, nas suas memórias, declara que aquela experiência foi marcante na sua juventude.

Nesse episódio, corroborado pelos jornais de época, flagramos o encontro entre as impressões de Abdias Nascimento sobre o desfile da guarda e a lógica estrutural do racismo, que informava a produção de editais públicos e de práticas discriminatórias de seleção para a ocupação de cargos no âmbito do Estado. Não obstante, o incômodo em relação à seleção da Guarda Civil não o impediu de ver na capital do estado um lugar repleto de possibilidades que ultrapassavam em muito os limites da pequena e provinciana cidade de Franca.

Abdias Nascimento saiu de Franca em 1930, aos dezesseis anos, e entrou como voluntário no Exército, apesar da idade mínima para o alistamento ser de 18 anos de idade. De acordo com as suas memórias, a questão foi resolvida com a ajuda de um funcionário da Câmara Municipal de Franca, o qual, como conhecido da família, alterou a sua certidão de nascimento (Semog & Nascimento, 2006Semog, É., & Nascimento, A. (2006). Abdias Nascimento: o griot e as muralhas. Rio de Janeiro, RJ: Pallas.). Em São Paulo foi designado para o Segundo Grupo de Artilharia Pesada, no Quartel Militar de Quitaúna, atual Osasco. Esse movimento do interior para a capital representou, em grande medida, a situação das populações negras descendentes da abolição. As frustrações vividas no espaço de experiência se combinavam com os horizontes de expectativas de integração à ordem social vigente, aspirando uma valorização social e moral. As expectativas das populações negras após a abolição, segundo a ótica de Fernandes (2008Fernandes, F. (2008). A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo, SP: Globo., p. 64),

[...] conduziam as aspirações e as identificações predominantes na direção da equiparação com os brancos das camadas superiores. O êxito dos imigrantes fortaleceu ainda mais as expetativas daí decorrentes. Todavia, as alternativas reais iam da caboclização no campo à pauperização nas cidades, passando por ‘contratos de trabalho’ que não traduziam melhora sensível da situação da existência anterior, piorando-a muitas vezes.

Quando Abdias Nascimento chegou ao quartel, o país vivia os tempos da Revolução de 1930, que marcou a ascensão de Getúlio Vargas, representando as oligarquias dissidentes no poder. Nascimento foi designado para a Casa das Ordens, da 11ª Companhia, do 4º Regimento de Infantaria. A ocupação dessa posição foi, segundo ele afirma, devido ao diploma de curso secundário, que o diferenciava da maioria do contingente. O trabalho na Casa das Ordens lhe possibilitou outras formações, que o levaram a ser promovido a cabo. Nesse sentido, a formação escolar de Abdias Nascimento representava uma distinção social entre seus pares, que permaneceram na posição de soldados.

Como membro do exército e lotado em um regimento do estado de São Paulo, Nascimento participou da Revolução Constitucionalista, em 1932. Ele foi convocado para a frente de batalha, quando chegou a ser ferido, embora sem gravidade. E foi no campo de batalha que conheceu a Legião Negra, que era um batalhão composto apenas por negros. Sobre isso, conforme Gomes (2005Gomes, F. (2005). Negros e política (1888- 1937). Rio de Janeiro, RJ: Zahar., p. 67),

[...] em virtude do trabalho de ‘arregimentação dos homens de cor’, centenas alistaram-se no Exército Constitucionalista. Imediatamente eram instruídos militarmente, equipados e uniformizados. Em 20 de julho de 1932, a equipe de reportagem do Correio de São Paulo informava que, em apenas quatro dias, o alistamento alcançara mais de 500 negros.

A Legião Negra representou uma dissidência da Frente Negra Brasileira (FNB), entidade criada para defender a causa das populações negras, a qual, apesar da sua sede em São Paulo, se manteve equidistante do conflito em função da sua fidelidade a Getúlio Vargas. Já a Legião Negra esteve em várias frentes de batalha na Revolução de 1932, quando os soldados negros intentavam demonstrar o engajamento da raça na definição dos destinos do país (Gomes, 2005Gomes, F. (2005). Negros e política (1888- 1937). Rio de Janeiro, RJ: Zahar.).

Neste item, buscamos identificar o tortuoso processo de formação de Abdias Nascimento, considerando tanto a formação escolar inicial como as experiências formativas no âmbito do Exército, destacando as oportunidades e os reveses que marcaram a sua trajetória, de modo que, na sequência, investiremos na exposição e na análise da continuidade desse processo de formação que resultou no seu engajamento político.

O momento do engajamento: as experiências na Frente Negra Brasileira (FNB) e na Ação Integralista Brasileira (AIB)

Após a abolição da escravatura, os debates em torno das questões raciais assumem outros contornos. O fato de, por força da lei, o regime escravagista ter terminado não garantiu aos libertos uma integração à ordem social. A implementação de um processo de construção de igualdade e de acesso aos direitos sociais continuava partindo dos próprios negros, que nunca aceitaram passivamente a sua condição (Munanga & Gomes, 2006Munanga, K., & Gomes, N. L. (2006). O negro no Brasil de hoje. São Paulo, SP: Global.). Impedidos de manifestar a sua religiosidade de matriz africana, excluídos de espaços culturais e recreativos destinados exclusivamente para os brancos, o negro brasileiro se organizou e reivindicou a cidadania.

Em São Paulo, dentre os meios utilizados para vocalizar os interesses da comunidade negra, estava a imprensa. Miriam Nicolau Ferrara (1985Ferrara, M. N. (1985). A imprensa negra paulista (1915/1963). Revista Brasileira de História, 5(10), 197-207.) identificou, entre 1915 e 1923, os seguintes jornais: O Menelick (1915), A Rua (1916), O Xauer (1916), O Alfinete (1918), O Bandeirante (1919), A Liberdade (1919), A Sentinela (1920), O Kosmos (1922) e Getulino (1923). As publicações, em regra, diziam respeito a notícias de casamentos, aniversários e falecimentos, mas também havia poemas, anúncios publicitários e avisos à comunidade. Entre 1924 e1937, a pesquisadora identificou os seguintes jornais: O Clarim d’Alvorada (1924), Elite (1924), Auriverde (1928), O Patrocínio (1928), Progresso (1928), Chibata (1932), Evolução (revista-1933), A Voz da Raça (1933), Tribuna Negra (1935) e A Alvorada (1936). Esse período, em contraste com o anterior, foi marcado pela presença explícita de reivindicações por direitos políticos, culturais e profissionais. Somava-se à imprensa as associações recreativas e culturais. Segundo Domingues (2007Domingues, P. (2007). Movimento negro brasileiro: alguns apontamentos históricos. Tempo,12(23), 100-122. Recuperado de: https://doi.org/10.1590/S1413-77042007000200007
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
), em São Paulo, entre 1907 e 1937, foram criadas 123 associações negras. Dentre estas, a mais representativa foi a Frente Negra Brasileira, fundada na cidade de São Paulo, em 16 de setembro de 1931.

O contexto nacional era de crise econômica e de transformações políticas que, de acordo com Gomes (2005Gomes, F. (2005). Negros e política (1888- 1937). Rio de Janeiro, RJ: Zahar.), a população negra e suas lideranças perceberam como importantes para debater a questão racial. A palavra frente era muito utilizada no vocabulário político da época; além disso, a FNB “[...] não era mais uma associação, e sim uma frente que deveria alcançar várias regiões e reunir lideranças e iniciativas diversas do ‘meio negro’” (Gomes, 2005Gomes, F. (2005). Negros e política (1888- 1937). Rio de Janeiro, RJ: Zahar., p. 52). A adesão de negros e negras possibilitou a expansão de filiais da associação em várias cidades paulistas, mineiras, capixabas, baianas e gaúchas. Gomes (2005Gomes, F. (2005). Negros e política (1888- 1937). Rio de Janeiro, RJ: Zahar.) apresenta estimativas que indicavam em torno de 100 mil membros espalhados pelo Brasil, cerca de 6 mil apenas na cidade de São Paulo e mais de 2 mil em Santos. Consolidada, a instituição chegou a organizar-se como partido político em 1936, sendo dissolvido no ano seguinte, após a proclamação do Estado Novo.

Com a derrota dos paulistas em 1932, Abdias Nascimento iniciou a sua participação na FNB. De início, como militante anônimo, descreveu a sua participação nas ações de combate contra a discriminação racial como um princípio de militância (Semog & Nascimento, 2006Semog, É., & Nascimento, A. (2006). Abdias Nascimento: o griot e as muralhas. Rio de Janeiro, RJ: Pallas.). Sobre essa experiência, expressou a seguinte percepção: “Aquela militância na Frente Negra trouxe uma série de descobertas importantes, e também me permitiu ir construindo um novo tipo de consciência, uma visão mais ampla das problemáticas raciais” (Semog & Nascimento, 2006Semog, É., & Nascimento, A. (2006). Abdias Nascimento: o griot e as muralhas. Rio de Janeiro, RJ: Pallas., p. 78).

A experiência na cidade de São Paulo marcou a aproximação de Abdias Nascimento com a FNB e com o movimento negro organizado, porém uma série de episódios impactaram a sua vida na cidade, levando-o a mudar-se para a cidade do Rio de Janeiro. Foram sucessivas reações, posteriormente racionalizadas pela memória, contra o racismo estrutural que permeava a vida cotidiana das populações negras, que viviam vigiadas e constrangidas a espaços sociais limitados. O episódio derradeiro ocorreu em um bar, em 1936, quando Abdias Nascimento e outro colega de farda negro se envolveram em uma briga:

Éramos cabos do exército e estávamos à paisana. Pois bem, resolvemos ir a um bar que se chamava Majestic, na rua Aurora ou rua Vitória. Chegamos lá e se repetiu aquela coisa de sempre: só podíamos entrar pela porta dos fundos. O motivo? Porque éramos negros. É claro que foi inevitável que acontecesse uma grande cena de pugilato, com pancadaria, quebra-quebra, palavrões e gritarias em todas as direções (Semog & Nascimento, 2006Semog, É., & Nascimento, A. (2006). Abdias Nascimento: o griot e as muralhas. Rio de Janeiro, RJ: Pallas., p. 79-80).

O desfecho desse evento foi além do que os dois amigos esperavam. No meio da confusão, surgiu um delegado de Ordem Política e Social do Estado de São Paulo (DOPS). Conforme a descrição de Abdias Nascimento, o delegado agiu com arrogância e intimidação, ficando do lado dos sujeitos que os estavam discriminando. Em suma, os dois militares acabaram presos e, posteriormente, foram expulsos do Exército. Fora deste, sem emprego, sem ter onde morar e sem ter como se manter, Abdias Nascimento decide mudar-se para o Rio de Janeiro.

Na capital da República, a partir de 1936, um novo movimento em direção ao engajamento: Ação Integralista Brasileira (AIB). De acordo com Semog e Nascimento (2006Semog, É., & Nascimento, A. (2006). Abdias Nascimento: o griot e as muralhas. Rio de Janeiro, RJ: Pallas., p. 82),

[...] o que me [Abdias Nascimento] levou ao integralismo foi sua posição anti-imperialista e antiburguesa. O que me interessava era a luta contra o imperialismo, contra a penetração americana. A possibilidade de estar num movimento com esse fim me empolgava e me tocava profundamente. O apelo do integralismo era bem mais amplo, principalmente quanto ao nacionalismo; havia uma preocupação marcante quanto à defesa da identidade nacional, do patrimônio cultural, das riquezas e reservas naturais.

Abdias Nascimento, muito jovem, com apenas 23 anos, tornou-se revisor do jornal integralista A Offensiva e, em 1937, foi preso e condenado, acusado de propaganda contra o regime vigente. Cumpriu pena na Penitenciária Frei Caneca até abril de 1938. Segundo Abdias Nascimento, essa experiência propiciou uma situação interessante,

[...] porque lá estava presa toda a turma do Partido Comunista que tinha participado do levante comunista de 1935. Durante essa prisão, conheci muita gente boa e fiz muitas amizades, dentre essas o major Trifino Correia4 4 Trifino Correia foi um dos líderes do tenentismo no Rio Grande do Sul, em 1924. Foi, também, subcomandante da Coluna Prestes. Nas jornadas de 1935 integrava o diretório da ANL e participou como líder do levante comunista. . O líder Luís Carlos Prestes também estava preso lá, mas ficava separado, na sala da capela (Semog & Nascimento, 2006Semog, É., & Nascimento, A. (2006). Abdias Nascimento: o griot e as muralhas. Rio de Janeiro, RJ: Pallas., p. 89).

A detenção foi publicada no O Jornal, em 28 de dezembro de 1937, com a foto dos envolvidos (Figura 2). Abdias Nascimento consta na primeira posição, observando-se da esquerda para a direita.

Figura 2
Manchete de O Jornal, de 28 de dezembro de 1937

De acordo com a pesquisa de Jaqueline T. Sentinelo (2010Sentinelo, J. T. (2010). O lugar das raças no projeto de nação da Ação Integralista Brasileira. Revista Espaço Acadêmico, 9(108), p. 145-152.), o discurso da integração das raças foi uma estratégia do integralismo para arregimentar a população negra e, assim, se fortalecer como organização política representante de todos os habitantes da nação. Além disso, algumas lideranças da FNB compartilhavam dos ideais integralistas de unidade nacional e de formação de uma raça brasileira. A própria FNB apoiava o integralismo, especialmente pela ideia disseminada pelo movimento sobrea necessidade de uma segunda abolição, já que a primeira foi insuficiente. Não por acaso, o lema FNB (Deus, Pátria, Raça e Família) era inspirado no bordão integralista, com o acréscimo da palavra raça. Soma-se a esses aspectos o fato de que as barbáries do fascismo, do nazismo e do holocausto ainda não eram internacionalmente conhecidas e condenadas.

Para além da fugaz passagem pela AIB, a cidade do Rio de Janeiro proporcionou a Abdias Nascimento um novo conjunto de experiências que o aproximaram da cultura afro-brasileira e da militância no movimento negro. Na capital fluminense, ele foi morar em um quarto no morro da Mangueira, próximo à sede da escola de samba. Essa proximidade lhe propiciou diálogo com a comunidade, recebendo “[...] lições de cultura popular quando conversava com aquele pessoal” (Semog & Nascimento, 2006Semog, É., & Nascimento, A. (2006). Abdias Nascimento: o griot e as muralhas. Rio de Janeiro, RJ: Pallas., p. 88). No ano seguinte, ele se mudou para a Baixada Fluminense, em Duque de Caxias. Ali conheceu e conviveu com Solano Trindade, que era um grande conhecedor da cultura negra e próximo do Partido Comunista Brasileiro. Nesse sentido, a mudança marcou, também, o seu desligamento formal do movimento integralista e, sobretudo, um deslocamento gradativo para posições políticas de esquerda que, doravante, caracterizariam a sua visão ideológica.

Outro intelectual com quem ele conviveu foi Abigail Moura, compositor e maestro regente da Orquestra Afro-Brasileira. Foi com o maestro que Abdias Nascimento conheceu a tradição musical afro-brasileira em várias expressões para além do samba. Nas palavras de Abdias Nascimento, é perceptível o reflexo que esses contatos tiveram na sua formação:

Essas relações e amizades me permitiram ir cada vez mais fundo na construção de uma consciência da minha dimensão africana, que eu já estava quase perdendo; se não fosse esse acaso biográfico, eu acabaria sendo igual a tantos, mais um desses intelectuais esquecidos das suas origens [...] esse contato com a religião africana e com as minhas origens me fez meditar, refletir sobre a minha vida, e sobre o meu povo. Eu próprio percebia a minha transformação. O mundo em volta tomava outro sentido; ser negro passava a ter outros significados, bem distintos daqueles aos quais os brancos, ou os racistas, tentavam nos reduzir (Semog & Nascimento, 2006Semog, É., & Nascimento, A. (2006). Abdias Nascimento: o griot e as muralhas. Rio de Janeiro, RJ: Pallas., p. 87-88).

Foi nesse período que ele decidiu transferir a sua matrícula do Curso de Economia, iniciado em São Paulo na Escola de Comércio Alves Penteado, para a Universidade do Rio de Janeiro, terminando seus estudos em 1938.

É possível afirmar que as experiências em São Paulo e no Rio de Janeiro, na década de 1930, foram decisivas para tornar Abdias Nascimento um aspirante ao campo intelectual. A Revolução Constitucionalista, a Frente Negra Brasileira, a expulsão do exército, a adesão ao integralismo, a prisão, a conclusão do curso superior e o estudo das tradições culturais afro-brasileiras representaram um conjunto de experiências desencadeadoras de uma reflexão sistemática sobre a necessidade do engajamento político e cultural. Não obstante, se a consciência estava amadurecendo, faltava, ainda, uma inserção mais sólida no campo intelectual e um meio concreto de intervenção social capaz de disseminar saberes emancipatórios para a população negra.

O intelectual e a sua rede de sociabilidade: a Santa Hermandad de la Orquidea

Na condição de capital da República, a cidade do Rio de Janeiro atraía muitos jovens interessados em arte e política. Inserido nesse contexto, Abdias Nascimento conviveu com os escritores Napoleão Lopes Filho e Gerardo de Mello Mourão. Este último também foi membro da AIB, na qual exerceu a função de diretor do jornal da organização, O Povo. No contato com esses intelectuais, Nascimento identificou interesses comuns relacionados à arte, à cultura e à política, ampliando essas reflexões e debates, quando, por meio de Gerardo de Mello Mourão, conheceu três poetas e escritores argentinos: Godofredo Iommi, Efraín Tomás Bo e Juan Raúl Young. Os seis membros do grupo desenvolveram uma estreita convivência e “[...] juraram um pacto de vivência estética e existencial que chamaram de Santa Hermandad de la Orquidea” (Nascimento, 2014Nascimento, E. L. (2014). Abdias Nascimento: grandes vultos que honraram o Senado. Brasília, DF: Senado Federal. Coordenação de Edições Técnicas., p. 139).

Sobre isso, Nascimento relata:

[...] e assim vivíamos, e nos chamávamos a Santa Hermandad de la Orquídea. Porque a Orquídea não tem vida própria; a Orquídea sobe à vida da árvore e nós à vida do divino: disto vivíamos; do divino. Era uma aventura a Santa Hermandad de la Orquídea (Nascimento, 2014Nascimento, E. L. (2014). Abdias Nascimento: grandes vultos que honraram o Senado. Brasília, DF: Senado Federal. Coordenação de Edições Técnicas., p. 140).

O grupo promovia leituras e debates de inúmeros autores clássicos, dentre os quais, destacamos Dante Alighieri, Miguel de Cervantes e Johann Hölderlin. A aproximação de Abdias Nascimento com leituras eruditas e idiomas estrangeiros revela um fator constituinte essencial do processo de formação do intelectual. O capital cultural e político do grupo era amplo e multifacetado. Abdias Nascimento havia concluído o curso de Ciências Econômicas, enquanto Gerardo de Mello Mourão foi seminarista e cursou por algum tempo a Faculdade de Direito. Este, desde a infância, estudou latim, grego, alemão e música, interessando-se pelo jornalismo e pela literatura. Napoleão Lopes Filho era poeta e escritor, enquanto Godofredo Iommi estudou economia e foi Presidente da Federação Universitária de Buenos Aires. Efraim Thomás Bó e Juan Raul Young foram estudantes universitários ligados ao Partido Comunista Argentino. Com essas qualificações e experiências, o grupo se autodenominou como periodistas (jornalistas) e passaram a percorrer o Brasil e alguns países da América Latina realizando conferências sobre temas relacionados à economia, à poesia, à literatura e até à filosofia. A itinerância do grupo foi viabilizada com meios econômicos escassos, mas com muita engenhosidade, estabelecendo em cada parada novas relações para a configuração da sua rede de sociabilidade.

Na cidade de Lima, capital do Peru, uma das paradas da irmandade, Abdias Nascimento viveu uma experiência, segundo ele, transformadora. Na sua percepção,

[...] esse movimento interior se deu pela oportunidade que tive de assistir, pela primeira vez, à peça O Imperador Jones. Foi numa montagem do Teatro del Pueblo, com quem mais tarde tive outros contatos, e o imperador era interpretado pelo ator argentino Hugo D’Eviéri, evidentemente branco, que se pintava todo de preto para retratar o personagem. Aí é que eu compreendi - porque já tinha mais idade, mais experiência, já havia passado por esses movimentos de reivindicação negra - percebi toda essa coisa. Está aí porque eu nunca pude atuar em teatro, porque eu nunca vi ator negro, porque eu nunca vi uma peça só para negros, nunca vi a cultura negra representada no palco: é porque os brancos não deixam[...]aquela circunstância me deixou abismado, pensativo, concentrado, em ebulição. Foi como uma sensação de surpresa, mas com um impacto diferente. Senti minha alma agitada, de tal maneira, como se eu tivesse encontrado alguma coisa que há muito procurava, sem saber bem o que era, mas de grande importância. Fiquei emocionado, com os olhos marejados; e ali mesmo, no teatro, antes que a peça O Imperador Jones terminasse, a chama mais nova de um fogo anunciador se acendia dentro de mim. De forma límpida e definitiva, eu decidi ali mesmo: vou para o Brasil e vou fazer teatro negro. E mais, vou começar com essa peça (Semog & Nascimento, 2006Semog, É., & Nascimento, A. (2006). Abdias Nascimento: o griot e as muralhas. Rio de Janeiro, RJ: Pallas., p. 108-109).

Em seu livro O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado (1978), Abdias Nascimento explicita um entendimento mais bem elaborado sobre a experiência, ao tratar das peças teatrais que eram encenadas no teatro brasileiro:

As peças que se montavam nesses palcos refletiam com absoluta intransigência a vida, os costumes, a estética, as ideias, e o completo ambiente social e cultural da sociedade dominante, branca - como se mais da metade da população, de origem africana, não existisse. Quando um ator ou atriz de origem africana tinha a oportunidade de pisar um palco, era, invariavelmente, para representar um papel exótico, grotesco ou subalterno; um dos muitos estereótipos negros destituídos de humanidade (Nascimento, 1978Nascimento, A. (1978). O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra., p. 162).

Nesses termos, trabalhar contra a rejeição do negro como ator e intérprete de si próprio passou a orientar o horizonte de expectativas de Abdias Nascimento, que buscou formação teatral. Assim, ele seguiu, juntamente com dois membros da irmandade, Godofredo Iommi e Raul Young, para Buenos Aires. Na capital argentina, Abdias Nascimento conseguiu uma bolsa de estudos na Faculdade de Economia e, dessa forma, pôde sustentar-se por um ano, durante o qual se dedicou a conhecer sobre cenários, montagens, direção, interpretação e detalhes de produção teatral no Teatro del Pueblo. O objetivo desse teatro-escola era promover experiências dramatúrgicas inovadoras e divulgar a arte para o povo. Sobre essa experiência, Nascimento relata:

Passei a ser um frequentador assíduo do Teatro del Pueblo que era uma espécie de escola livre de teatro [...] Todas as peças, logo depois dos espetáculos, eram discutidas com a plateia. Discutiam-se o texto, a direção, a interpretação, o cenário, o vestuário. Tudo era objeto de discussão, de reflexão e de crítica (Semog & Nascimento, 2006Semog, É., & Nascimento, A. (2006). Abdias Nascimento: o griot e as muralhas. Rio de Janeiro, RJ: Pallas., p. 110).

A vivência no exterior e a experiência com a Hermandad Orquidea foram fundamentais para a sua formação como intelectual, de modo que, nesse período, já é possível identificar na sua trajetória a articulação entre a consciência política, a inserção no campo intelectual e a estratégia de intervenção social a partir do teatro, entendido como um meio de engajamento e de formação da comunidade negra.

O plano estava traçado: voltar para o Brasil e trabalhar por um projeto dramatúrgico engajado na causa das populações negras. Contudo, a vida guarda muitos reveses. No período em que Abdias Nascimento esteve fora do país, o Exército Brasileiro instaurou um processo disciplinar contra ele, condenando-o à revelia a um ano de prisão. Abdias Nascimento teve notícia do inquérito e recebeu voz de prisão assim que retornou ao Brasil, em 1943. Não foram encontrados registros, nas fontes disponíveis, que permitam um detalhamento desse episódio. As únicas informações a respeito dessa prisão que dispomos são as que constam no livro Submundo: cadernos de um penitenciário, escrito por Abdias Nascimento enquanto cumpria a pena. Segundo essa fonte, o inquérito dizia respeito a um fato ocorrido quando ele trabalhava com serviços administrativos no quartel e se recusou a datilografar um balancete, insubordinando-se à ordem de um tenente. Essa falta, aparentemente de pouca gravidade, levou-o à penitenciária do Carandiru, em São Paulo.

No cárcere, Abdias Nascimento encontra um projeto de gestão da penitenciária, a qual tinha como diretor e idealizador o médico Flamínio Fávero, que visava regeneração dos presos a partir da inserção de atividades laborais e artísticas na rotina carcerária. Nessa proposta, foram incluídas inúmeras atividades culturais, dentre as quais o teatro. Fazendo da tragédia da prisão uma oportunidade, Nascimento liderou a criação do Teatro do Sentenciado. A estreia do grupo teatral, noticiada pela imprensa paulista (Figura 3),

[...] foi uma grande festa para nós, os componentes do teatro. Porque não só demonstramos praticamente as possibilidades artísticas do sentenciado[...], como, principalmente, se descortinava o panorama da mais discutida inovação do Dr. Flamínio: a fundação de um teatro, no qual as peças fossem representadas pelos próprios sentenciados (Nascimento, 1943Nascimento, A. (1943). Submundo: cadernos de um penitenciário (p. 457, documentos microfilmados). Rio de Janeiro, RJ: Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-brasileiros - IPEAFRO. Seção TEN. , p. 348-349).

Figura 3
Matéria publicada no jornal A Noite, SP, em 16 de novembro de 1943

O conhecimento acumulado na Argentina, no teatro-escola Teatro del Pueblo, ganhou materialidade na experiência do Teatro do sentenciado, que funcionou como um primeiro experimento teatral. Nesse sentido, a experiência dramatúrgica, vivida durante o ano em que esteve na penitenciária, possibilitou a Abdias Nascimento a identificação da arte como um instrumento de formação, capaz de conscientizar os marginalizados da sociedade.

Teatro Experimental do Negro: disseminando saberes emancipatórios

Foi no ano de 1944, quando o contexto político do país era de retomada gradativa das liberdades democráticas, que Abdias Nascimento deixou a prisão. Se durante o regime do Estado Novo os sindicatos e as associações culturais ficaram sob vigilância permanente dos órgãos de repressão e de segurança do governo, incluindo a comunidade negra organizada, agora, o momento era de retomada dos projetos defendidos por esses grupos. Sobre esse novo cenário, Munanga e Gomes (2006Munanga, K., & Gomes, N. L. (2006). O negro no Brasil de hoje. São Paulo, SP: Global., p. 121) afirmam:

[...] a partir de 1943, começou no Brasil um intenso movimento pela volta da democracia. Os danos causados pelo Estado Novo no Brasil e a segunda grande guerra em curso aumentaram ainda mais a consciência de direitos de uma parcela da população brasileira. É nesse contexto que também os negros continuam a sua luta para se organizarem, exigindo seus direitos.

Nessa nova conjuntura, Abdias Nascimento afirma que, ao sair do presídio, estaria decidido a implementar o seu projeto de fundar um teatro do e para o negro. Com esse intuito, buscou, em São Paulo, estabelecer alguns contatos que viabilizassem o projeto, os quais não corresponderam às expectativas. Mudou-se, então, para o Rio de Janeiro, levando à frente o projeto imaginado em Lima, planejado em Buenos Aires, experimentado na prisão do Carandiru e, finalmente, em vias de execução no Rio de Janeiro.

Para Macedo (2005Macedo, M. J. (2005). Abdias do Nascimento:a trajetória de um negro revoltado (1914-1968) (Dissertação de Mestrado). Universidade de São Paulo, São Paulo.), Abdias Nascimento considerava que o projeto dramatúrgico teria uma recepção melhor no Rio de Janeiro, se comparado a São Paulo, já que aquela cidade possuía um campo teatral mais estabelecido. Sendo assim, ele mudou-se novamente para o Rio de Janeiro e rapidamente o seu empreendimento ganhou apoio e publicidade. O periódico O Jornal, em 17 de outubro de 1944, publicou uma entrevista de Abdias Nascimento, evidenciando os apoios recebidos, tanto da comunidade negra interessada em conhecer e envolver-se com o projeto como de artistas e intelectuais, conforme apresenta-se a seguir:

O Teatro Experimental do Negro está definitivamente fundado, graças ao apoio que recebemos do diretor do Teatro do Estudante do Brasil, Pascoal Carlos Magno[...]desde que a imprensa noticiou a fundação do Teatro do Negro, temos recebido as melhores e maiores demonstrações de apoio e simpatia, demonstrações vindas de todas as camadas sociais. Os negros foram os primeiros a se interessar pelo seu teatro, procurando entrar em contacto conosco a fim de se colocarem à nossa disposição. Bibi Ferreira nos ofereceu o teatro Fênix para darmos espetáculos às segundas-feiras; Dulcina e Odilon se puseram à nossa disposição para o que precisarmos. Jaime Costa, com sua longa experiência e pondo no povo suas melhores esperanças quanto ao futuro do teatro brasileiro; Luiza Barreto Leite e muitos outros artistas profissionais se manifestaram solidários conosco. Depois, não é somente apoio dos artistas, o que por si só já seria muito; mas também dos intelectuais (O Jornal, 1944O Jornal. (1944, 17 de outubro)., p. 2).

A primeira atividade do TEN foi colaborar na montagem da peça Palmares, em dezembro de 1944. No entanto, para além da atividade teatral, o TEN desenvolveu uma diversidade de ações centradas na temática racial, como convenções, conferências e seminários. Também organizou concursos de beleza e de artes plásticas, ofereceu cursos de alfabetização, iniciação artístico-cultural, editou e publicou o jornal Quilombo.

Figura 4
Aula de alfabetização realizadas pelo Teatro Experimental do Negro

Engajado nesse propósito, o TEN se propôs a valorizar o povo negro no Brasil a partir da educação e da arte. Para isso, mostrou-se necessário alfabetizar os primeiros participantes, recrutados entre operários, empregados domésticos, favelados sem profissão definida e/ou modestos funcionários públicos. No curso de alfabetização, promovido pelo TEN e ministrado pelo escritor Ironides Rodrigues (Figura 4), havia cerca de 600 pessoas inscritas, entre homens e mulheres. Era ofertado, ainda, o curso básico de iniciação à cultura geral, que ficava a cargo de Aguinaldo Camargo. Abdias Nascimento lecionava interpretação teatral.

O TEM ganhou autonomia quando montou a primeira produção exclusiva. Foi a mesma peça que chamou a atenção de Abdias Nascimento sobre a falta de oportunidades do negro na dramaturgia, O Imperador Jones, do americano Eugene O’Neill, em 8 de maio de 1945, encenada no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Nessa produção, em contraste com a peça encenada na cidade de Lima, em 1940, o ator principal, o Imperador, foi encenado por um ator preto. Ruth de Souza, que se tornaria uma das maiores atrizes do teatro brasileiro, atuou nessa montagem, no único papel feminino dessa peça. Abdias Nascimento, além de autor, diretor, produtor e professor de teatro, atuou como ator (Figura 5).

Figura 5
Abdias Nascimento no papel de Otelo, na peça de William Shakespeare, s.d.

Considerações finais

O interesse por esta pesquisa se fundamentou na ideia de oferecer um tributo ao investimento intelectual e político de Abdias Nascimento. Sendo assim, considerando as características desse personagem, entendemos que a maior homenagem que poderíamos proporcionar a ele seria um estudo minucioso e crítico da sua trajetória, sem fazer concessões à narrativa laudatória e à mitificação desse intelectual. Tentamos evitar, seguindo as recomendações de Bourdieu, a ilusão biográfica, interpretando a trajetória do personagem nas suas contingências, contradições e descontinuidades, que são próprias da experiência de vida.

Dessa forma, este trabalho dedicou-se a demonstrar o processo de formação e de consolidação de Abdias Nascimento como intelectual, identificando-o como um homem negro, que pode representara luta de um grupo social historicamente segregado e marginalizado. Articulado a isso, buscamos identificar as ações realizadas pelo intelectual, no seu intento de disseminação de saberes emancipatórios, a partir do Teatro Experimental do Negro. Tais ações expressam a constituição de um conhecimento que se produziu na experiência da vida cultural, orientado para transformar sujeitos oprimidos em agentes políticos ativos.

Assim sendo, a pesquisa se propôs a analisar o período de formação do intelectual, focando, especialmente, o processo longo, tortuoso e contraditório que o levou ao engajamento, de modo a circunscrevermos o estudo ao período entre as décadas de 1920 e 1940. Exploramos diversas fontes que testemunham a trajetória de Abdias Nascimento, inclusive suas próprias memórias, ainda que tenhamos tido o cuidado de relativizá-las, como no episódio no qual ele afirma que assumiu a causa da emancipação dos negros em um momento de súbita consciência, como se, nas palavras dele, um fogo anunciador tivesse descortinado uma realidade ainda não percebida. Não se trata de duvidar do sentimento retratado pelo personagem analisado, mas sim de postular uma explicação histórica sobre o engajamento do intelectual na cena pública, como um processo longo, descontínuo e desprovido de determinações, sejam elas biológicas ou psicológicas.

Intentamos tensionar, permanentemente, os espaços de experiências e os horizontes de expectativas de Abdias Nascimento, interpretando tanto a conjuntura de segregação e os movimentos em direção ao engajamento como os projetos, os sonhos e os desejos do intelectual de transformação da realidade do país. Sendo assim, a análise proporcionou, para além da trajetória de Abdias Nascimento, uma compreensão da história dos afro-brasileiros, identificando suas adversidades cotidianas, seus esforços e seus permanentes desafios. Assim, Abdias Nascimento apresenta-se como a figura de um homem preto, nascido no início da segunda década do século XX, neto de negros escravizados, filho de um sapateiro e de uma doceira, que representa em grande medida a história dos negros e, por extensão, da discriminação racial no Brasil.

Sua trajetória é um testemunho das relações existentes na composição econômica, ética, estética e religiosa da sociedade que se formou no país no período colonial. Centrada em uma cosmovisão europeia, a sociedade brasileira submeteu, à força, o africano, rompendo violentamente com seus costumes, suas tradições, degradando os valores da metafísica, da moral e da beleza negra. Contudo, o negro continuou resistindo e reagindo a fim de manter vivos seus costumes, crenças e valores.

O projeto do TEN, enquanto intervenção para a construção de conhecimentos próprios, nascidos na experiência social e política, é compreendido como uma ação educativa de valorização da cultura, da história e dos saberes elaborados pela população negra. Além disso, reconhece-se que esse projeto educativo possui um caráter emancipatório, uma vez que é produzido por um povo que tem a sua história marcada por um contexto de opressão e de dominação, mas que, ainda assim, segue persistindo e apresentando questões que problematizam a sua marginalização. Sendo assim, esta pesquisa procurou demonstrar que existe um tipo específico de conhecimento que transforma, que legitima e fortalece as ações por reivindicação de direitos; conhecimentos que enfrentam, contrapõem e dialogam com os conhecimentos acadêmicos convencionais.

E assim entendemos que, seguindo a senda do conceito de intelectual de Vieira (2011Vieira, C. E. (2011). Erasmo Pilotto: identidade, engajamento político e crenças dos intelectuais vinculados ao campo educacional no Brasil. In J. L. Leite, & C. Alves (Orgs.), Intelectuais e história da educação no Brasil: poder, cultura e políticas (p. 25-54) Vitória, ES: EDUFES.), flagramos a formação do sentimento de pertença de Abdias Nascimento ao grupo social dos intelectuais, a partir da sua familiaridade com a linguagem, com os temas e com os problemas da cultura. Nesse sentido, a rede de sociabilidade do intelectual negro do interior de São Paulo, constituída nesse período no Brasil e em diversos países da América Latina, foi decisiva para esse movimento de engajamento nas disputas em curso no espaço público. Da mesma forma, vislumbramos a sua crença na educação como princípio e instrumento emancipatório.

Por fim, desejamos, ainda, que a discussão sobre Abdias Nascimento possa ser aprofundada e ampliada em novas pesquisas, bem como sirva de motivação para trazer à luz a trajetória de outras e outros intelectuais, negras e negros.

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  • A Voz da Raça (1933, 06 de maio).
  • 1
    Entendemos trajetória intelectual da forma como foi formulada por Bourdieu, no clássico argumento sobre a ilusão biográfica. Biografias ilusórias porque impõem uma racionalização arbitrária ao vivido, de modo a produzir um ser uno, coerente e movido, de maneira inabalável, por um propósito de vida. Para Bourdieu, a trajetória deve ser compreendida como uma “[...] série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) num espaço [...] sujeito a incessantes transformações” (Bourdieu, 1996Bourdieu, P. (1996). A ilusão biográfica. In: M. Ferreira (Org.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, p. 183-191., p. 189).
  • 2
    Sobre os conceitos de espaço de experiência e horizonte de expectativas, ver Reinhard Koselleck (2006Koselleck, R. (2006). Futuro passado: contribuições à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto.), Futuro passado: contribuições à semântica dos tempos históricos, especialmente o capítulo ‘Espaço de experiência e horizonte de expectativa: duas categorias históricas’.
  • 3
    A peça em questão era O Imperador Jones, assistida por Abdias Nascimento na cidade de Lima, no Peru, no início dos anos de 1940, na qual o personagem principal era um homem negro, porém foi representado por um ator branco, devidamente maquiado.
  • 4
    Trifino Correia foi um dos líderes do tenentismo no Rio Grande do Sul, em 1924. Foi, também, subcomandante da Coluna Prestes. Nas jornadas de 1935 integrava o diretório da ANL e participou como líder do levante comunista.
  • Rodadas de avaliação:

    R1: quatro convites; três avaliações recebidas
  • 15
    Como citar este artigo: Vieira, C. E., & Correa, F. M. Abdias Nascimento: a trajetória de um intelectual negro engajado na disseminação de saberes emancipatórios entre as décadas de 1920 e 1940. (2022). Revista Brasileira de História da Educação, 22. DOI: http://dx.doi.org/10.4025/rbhe.v22.2022.e215 Este artigo é publicado na modalidade Acesso Aberto sob a licença Creative Commons Atribuição 4.0 (CC-BY 4).

Editado por

Editores-associados responsáveis: Adlene Arantes E-mail: adlene.arantes@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-7007-0237
José Gonçalves Gondra E-mail: gondra.uerj@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-0669-1661
Surya Aaronovich Pombo de Barros E-mail: surya.pombo@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-7109-0264

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    19 Nov 2021
  • Aceito
    20 Fev 2022
  • Publicado
    01 Jul 2022
Sociedade Brasileira de História da Educação Universidade Estadual de Maringá - Av. Colombo, 5790 - Zona 07 - Bloco 40, CEP: 87020-900, Maringá, PR, Brasil, Telefone: (44) 3011-4103 - Maringá - PR - Brazil
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