Resumo:
O artigo trata da concepção de educação presente nas cartas do governador do Estado do Grão-Pará e Maranhão Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1751-1759). Essas cartas foram rastreadas e cotejadas de modo a identificar a materialização da concepção de educação do governador. Constatou-se que, a despeito da pouca visibilidade dada a esta personagem, Mendonça Furtado estava alinhado ao novo projeto educativo para a colônia portuguesa, não se deixando conduzir pelas estruturas sociais, econômicas, políticas e culturais que encontrou quando da sua chegada. Sua determinação e obstinação em levar a cabo o projeto estatal português de formação e educação de grupos humanos na Amazônia provocaram uma experiência trágica materializada em confrontos, fugas e rebeliões.
Palavras-chave: Estado do Grão-Pará e Maranhão; educação; Mendonça Furtado
Abstract:
This article deals with the conception of education present on the letters of the governor of the State of Grão-Pará and Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1751-1759). Those letters were tracked down to identify the materialization of the governor 's education concept. It was discovered that, despite the little visibility given to his character, Mendonça Furtado was aligned with the new educational project for the Portuguese colony, not allowing himself to be led by the social, economic, political, and cultural structures that he found on his arrival. His determination and obstination in conducting the Portuguese state project of formation and education of human groups on Amazon, led to a tragic experience materialized in confrontation, escapes and rebellions.
Keywords: State of Grão-Pará and Maranhão; education; Mendonça Furtado
Resumen:
El artículo trata de la concepción de educación presente en las cartas del gobernador del Estado del Gran Pará y Maranhão Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1751-1759). Se rastreó y cotejó esas cartas de modo a identificar la materialización de la concepción de educación del gobernador. Se constató que, a pesar de la poca visibilidad dada a este personaje, Mendonça Furtado estaba alineado al nuevo proyecto educativo para la colonia portuguesa no dejándose conducir por las estructuras sociales, económicas, políticas y culturales que encontró al llegar. Su determinación y obstinación en llevar a cabo el proyecto estatal portugués de formación y educación de grupos humanos en la Amazonia, provocó una experiencia trágica materializada en enfrentamientos, fugas y rebeliones.
Palabras clave: Estado de Grão-Pará y Maranhão; educación; Mendonça Furtado
Introdução
É bem conhecido pela historiografia o papel exercido por Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal1, nas reformas políticas e educacionais de Portugal e suas colônias na segunda metade do século XVIII. Porém, são poucos os estudos que se voltam para a atuação de Francisco Xavier Mendonça Furtado, seu irmão, governador e capitão-geral do Estado do Grão-Pará e Maranhão, de 1751 a 1759, coautor de muitas dessas reformas e seu executor na Amazônia portuguesa. Por isso, com base principalmente nas cartas escritas por ele, em sua maioria destinadas ao irmão, quando este exercia a função de secretário do Rei, objetiva-se, neste artigo, refletir sobre a concepção de educação manifestada por ele e como suas ideias foram materializadas durante o período de seu governo. A partir dessa importante personagem da história da governação colonial portuguesa no Norte do Brasil, buscou-se identificar, no contexto dos conflitos e lutas que sua presença ensejou, o lugar que a educação assumiu em contraposição à política educacional até então desenvolvida pelos jesuítas.
A colonização portuguesa na América se valeu de duas unidades administrativas distintas. Enquanto os primeiros colonizadores, no século XVI, criaram o Estado do Brasil, com sede em Salvador, tendo como alcance territorial máximo o sul do Piauí, somente no início do século XVII, com a expansão territorial, os portugueses estabeleceram uma nova colônia no Norte, em 1621, o Estado do Maranhão. Essa vasta região, que cobriu desde o norte do Piauí até a foz do rio Amazonas, teve governo e características próprias durante todo o período colonial. A sede desse governo oscilou entre as capitais São Luís e Belém, conforme o momento histórico político vigente. Em 1751, com a nomeação de Mendonça Furtado como governador e capitão-geral, o território passou a ser chamado de Estado do Grão-Pará e Maranhão. Um dos fatores que contribuíram para essa mudança foi a assinatura de um novo tratado de limites entre Portugal e Espanha em 03 de janeiro de 1750, conhecido como Tratado de Madrid, que exigia expedições para o oeste do Estado a fim de demarcar novos espaços pertencentes, agora, à Portugal. Por isso, era importante o estabelecimento do governo em uma região mais estratégica para que Portugal não corresse o risco de perder território para os espanhóis. Mediante esse propósito, uma das missões de Mendonça Furtado ao chegar na Amazônia, nomeado Comissário Régio das demarcações, era, justamente, garantir a posse das novas terras.
Cartas de um leal governador
A nomeação de Mendonça Furtado coincidiu com a ascensão de D. José I ao trono português após 44 anos de reinado do seu pai, D. João V. O novo soberano assumiu o reino em meio a uma crise econômica que forçava a busca de maiores recursos, e as colônias passaram a ser tratadas como territórios privilegiados para esse fim. A porção Norte da América portuguesa não havia alcançado o potencial econômico esperado e, por isso, o estabelecimento de um governo forte seria uma estratégia para obter do Estado os recursos necessários com vistas ao restabelecimento econômico do reino. Para isso, Mendonça Furtado se mostrou o candidato ideal, especialmente por ser irmão do secretário do Rei, o que lhe garantia a confiança necessária naquele momento.
No ato de nomeação, publicado em 26 de abril de 1751, em Lisboa, D. José justifica a escolha da seguinte forma:
Por confiar dele e de tudo de que o encarregar me servirá muito a meu contentamento e satisfação, me praz e hei por bem fazer-lhe mercê do título do meu Conselho, com o qual haverá́ e gozará de todas as honras, prerrogativas, autoridades, mercês e franquezas que hão e têm os do meu Conselho, e como tal lhe competem (Carta de mercê̂ do título do conselho de S. Majestade a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, 26 abr. 1751 apud Mendonça, 2005a, p. 67).
Conforme os termos de nomeação, Mendonça Furtado chegara ao Estado do Grão-Pará gozando de autonomia e poder para executar o projeto português, principalmente de alterar o funcionamento de arrecadação de impostos ao erário real. Na chegada, ele se deparou com os limites impostos pelo Regimento das Missões, em vigor desde 16862, o qual, de certa forma, promoveu o controle da organização social local pelos missionários. O governador considerava que essa legislação prejudicava os seus planos por dar, no seu entender, muito poder aos religiosos que tornaram os aldeamentos uma espécie de ‘reino paralelo’, nos quais os padres eram os soberanos e as leis e interesses do reino português eram colocados em segundo plano. Esse se tornou um dos pontos de maior vulnerabilidade para o novo governo, especialmente porque as Instruções Régias incluíam o aumento e a extensão do cristianismo, o que ratificava a união entre igreja e Estado (Instruções Régias, Públicas e Secretas Para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Capitão-General do Estado do Grão-Pará e Maranhão, 2005).
A data de nascimento de Francisco Xavier de Mendonça Furtado é incerta, sendo encontradas informações do ano de 1700 e de 1701. Mas há um consenso sobre o local do nascimento: freguesia de Nossa Senhora das Mercês, em Lisboa. Era, conforme Santos (2008), o segundo filho do capitão de cavalos Manuel de Carvalho e Ataíde e de D. Teresa Luísa de Mendonça, ambos naturais da capital do Reino.
Em 1720, sua mãe ficou viúva e contraiu novas núpcias com Francisco Luís da Cunha Ataíde. Bacharel em direito pela Universidade de Coimbra, Ataíde exerceu a função de chanceler da Relação do Porto e chanceler-mor do Reino a partir de 1747. Ao que as cartas indicam, Mendonça Furtado cultivava boa relação com seu padrasto, reportando-lhe situações pessoais e do governo. Ao saber de sua morte no terremoto de Lisboa em 1755, escreveu ao seu primo: “[...] sumamente senti que o Sr. Francisco Luís vivesse noventa anos, para vir a acabar naquela infelicidade, e igualmente senti as desordens que se seguiram à sua morte, que certamente me têm magoado” (Correspondência de 17 out. 1756 apud Mendonça, 2005c, p. 205).
A viuvez precoce de sua mãe exigiu o protagonismo do seu tio Paulo de Carvalho e Ataíde, o qual, desde cedo, acompanhou a vida dos sobrinhos. Ele foi professor catedrático da Universidade de Coimbra e Arcipreste da Igreja em Lisboa, sendo o sustentáculo da família e provável influenciador no modo como Mendonça Furtado pensava o mundo e agia sobre ele.
Em relação a sua formação, Santos (2008, p. 52) informa que
[...] [n]ada se sabe a respeito da formação e das atividades de Mendonça Furtado até os 35 anos de idade. É possível que tenha se dedicado a cuidar das propriedades da família - com as quais muito se preocupou durante a estadia no Pará - enquanto o irmão mais velho iniciava a carreira diplomática. Sabe-se, de acordo com seu memorial de serviços, que em 14 de abril de 1735 assentou praça no Regimento da Armada, no qual serviu quase 16 anos, desde o posto de soldado até o de capitão de mar-e-guerra, encerrando a carreira em 7 de janeiro de 1751, cerca de três meses antes de ser nomeado governador e capitão-general.
Percebe-se, com esse relato, que Mendonça Furtado tinha vasta experiência militar quando assumiu o governo do Estado do Grão-Pará e Maranhão em 1751, cargo que exerceu até 1759. Durante seu governo, expandiu os limites e a colonização da região através da criação de novos povoamentos, como: São José do Macapá, em 1752; Vilas de Bragança e Ourém, em 1754; Vila de Trocano, em 1755; Vila de Borba, em 1756; Vila de Barcelos, em 1757, dentre outros. Isso resultou em um processo de municipalização da região. Informa Silva (2004) que, no início do reinado de D. José, existiam no Pará apenas 5 vilas, o que igualmente ocorria no Maranhão; ao final do mesmo reinado, o Grão-Pará e Maranhão contavam com 65 vilas/municípios. Tal estratégia assegurou um dos objetivos da presença de Mendonça Furtado no Norte: a ocupação do território. Para reforçar a ocupação estratégica, foi promulgado o regimento do Diretório dos Índios3, instrumento jurídico que tentava incorporar os nativos da região ao sistema-mundo português quando os coloca em contato com os colonos nas vilas e incentiva o casamento interétnico, além de tentar transformar o braço indígena em mão produtiva ao empreendimento colonial.
O governo foi marcado pela criação da Companhia Geral do Comércio do Grão-Pará e Maranhão em 1755, com sede em Lisboa, que visava a fomentar a economia da região pela lei real de 07 de junho de 1755. Com isso, aboliu-se a administração temporal dos religiosos sobre os índios aldeados praticada desde a Lei do Regimento das Missões (Belém-Companhia Geral do Grão-Pará e do Maranhão, 1758). A Companhia gozava de privilégios excepcionais e retirava de particulares e religiosos o controle econômico ao concentrar sobre si: a) o monopólio do transporte; b) a venda de escravos e mercadorias; c) o reconhecimento oficial de funcionários como serventuários reais. Essas mudanças ocasionadas pela criação da Companhia provocarão contestações.
Durante o seu governo, Mendonça Furtado trocou intensamente correspondências com seu irmão, quando este era secretário do Rei, e estas permitem entrever, para além das questões políticas, econômicas e sociais, a concepção de educação do governador como condutora de parte de suas ações e decisões durante a administração. Como defendem os historiadores da História Cultural, correspondências são fontes de pesquisa. Le Goff, um expoente dessa abordagem, considera como documento tudo que permite recortar e estudar uma parte do passado, observando, contudo, que
[...] o documento não é inócuo. É, antes de mais nada, o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziram, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante os quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio (Le Goff, 2013, p. 496).
As cartas de Mendonça Furtado foram compiladas por Marcos Carneiro de Mendonça e publicadas pelo IHGB em 1963. Em 2005, foram publicadas pela Editora do Senado Federal e se encontram disponíveis para download gratuito no site da editora. O material é formado por três volumes e contém um total de 462 cartas, sendo 394 emitidas e 68 recebidas, no período de setembro de 1751 a julho de 1759. As cartas compreendem diversos interlocutores, mas, notadamente, o principal deles é o seu irmão Sebastião José de Carvalho e Melo. Do total das 394 cartas emitidas, 186 foram para ele, quase metade das correspondências, conforme o Quadro 1 a seguir.
O quadro demonstra o volume de correspondência emitido por Mendonça Furtado ao seu irmão e, por extensão, a preponderância do secretário de Estado português como seu principal interlocutor. Observa-se também que o segundo interlocutor de Mendonça Furtado, isto é, o segundo maior destinatário de suas correspondências, era o próprio D. José I. Com isso, constataram-se o alinhamento e a total concordância do governador do Estado do Grão-Pará com o projeto político português.
Em relação às correspondências recebidas, certificou-se que Mendonça Furtado recebeu cartas de: Tomé Joaquim da Costa Corte-Real, secretário de Estado do Ultramar; Sebastião José de Carvalho e Melo, secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra; D. José I, o Rei; Diogo de Mendonça Corte-Real, secretário de Estado do Ultramar; D. Miguel de Bulhões, bispo; Antonio Rolim de Moura, governador da Capitania do Mato Grosso; Francisco Portilho, traficante de índios no Alto Rio Negro; padre José Moreira, confessor do Rei D. José I; D. Lopo de Bragança, duque de Lafões; Duarte Antônio da Câmara, marquês de Tancos; Manuel B. de Melo e Castro, cônego; Pedro da Mota e Silva, secretário de Estado; Bernardo da Costa, mestre da Fragata de Guerra N. Senhora das Mercês; José Gonçalves da Fonseca, secretário de Estado. Do conjunto de 68 correspondências recebidas, 22 foram enviadas pelo secretário de Estado do Ultramar, 15 pelo irmão, secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, e 12 pelo Rei D. José I.
Ao analisar as correspondências recebidas, observa-se uma redução em relação ao número de cartas emitidas, e isso talvez se deva ao fato de o governador precisar prestar contas às autoridades do reino das situações encontradas no Estado e apresentar relatórios sobre decisões tomadas e enfrentadas.
Os assuntos das cartas enviadas e recebidas podem ser agrupados em três tipos: instruções, relatórios e particulares. As cartas com instruções compreendem correspondências que tratavam das várias ordenanças e orientações recebidas ora de Sebastião José, secretário Real, ora do próprio rei. Mas também abrangem as correspondências nas quais o próprio Mendonça Furtado ordenava instruções a equipes do seu governo. As cartas consideradas relatórios foram, em grande parte, enviadas pelo governador ao seu irmão. Nestas, relata as condições encontradas no Estado, apresenta solicitações de moradores que julgava necessitar de parecer do secretário e informa sobre o andamento de missões que lhe foram confiadas como a criação do povoado de Macapá e as expedições ao Rio Negro, por exemplo. As cartas de cunho particular tratam de assuntos familiares e/ou se dirigem a amigos deixados em Portugal.
Para este artigo, sobre tais documentos, questiona-se: no contexto da política do governo do Estado do Grão-Pará e Maranhão, que concepção de educação se encontra manifestada nas correspondências enviadas por Mendonça Furtado?
A voz do governador-emissor sobre relações e tensões no Estado do Grão-Pará e Maranhão
As cartas escritas por Mendonça Furtado oferecem indícios sobre a sua formação. Além da experiência de vida marcada pela atuação no campo militar, ele tinha, por exemplo, o domínio de outros idiomas, como francês e alemão.
Sua escolha para o governo do Estado do Grão-Pará não se baseou apenas em seu parentesco com o secretário do Rei D. José, mas, certamente, por seu conhecimento sobre temas fundamentais ao exercício do governo. A questão da liberdade dos índios era uma delas, responsável, inclusive, por tensões entre colonos e religiosos. A posição do governador estava embasada no pensamento do jurista espanhol Juan de Solórzano Pereira (1575-1655), para quem “[...] ninguém se possa chamar à posse de índios sem que mostre a origem da escravidão, porque a dita posse é de fato e, como tal, viciosa, por cuja razão não induz direito algum, e que à tal posse resiste o direito natural” (Correspondência de 08 nov. 1752 apud Mendonça, 2005a, p. 356).
Nos embates com os jesuítas, Mendonça Furtado utilizava argumentos obtidos em textos dos próprios jesuítas, como o padre Vieira, a fim de ressaltar que os religiosos haviam se distanciado de sua própria doutrina:
[...] e tendo lido em um daqueles dias as Vozes Saudosas do Pe. Antônio Vieira, e achando-me em um dia de chuva em casa sem ter que fazer, fundado nas doutrinas do dito padre, e em todas as que (se fizeram) sem perseguir a Companhia, fiz sobre aquela matéria o papel de que remeto a V. Exa a cópia, com ânimo de o divulgar e mostrar publicamente a esta gente, que não seguem mais doutrina que aquela que pode concorrer para o seu torpe lucro (Correspondência de 08 jul.1755 apud Mendonça, 2005b, p. 410).
Outro autor citado por Mendonça Furtado é Maquiavel, usado por ele correntemente para apontar o desvirtuamento dos padres da Companhia de Jesus, os quais, no entender do governador, teriam se deixado envolver pelos assuntos temporais em detrimento dos espirituais nos quais deveriam permanecer focalizados.
Como, porém, pelos nossos grandes pecados, se tem introduzido no mundo a abominabilíssima máxima de Maquiavel, de que a simulação da virtude aproveita e a mesma virtude estorva, para se adquirir os bens temporais, deste ponto saem por linha reta todas as desordens que repetidíssimas vezes vimos praticar e agora o experimentamos, assim nessa corte com o sermão do Pe. Balester como nesta capitania com as práticas e exercícios do Pe. Roque Hunderfurp, e no Pará com as do Pe. Aleixo Antônio, como já avisei a V. Exª na frota. (Correspondência de 10 nov. 1755 apud Mendonça, 2005b, p. 497).
Em carta endereçada ao Rev. João Batista, Mendonça Furtado tece elogios ao desenvolvimento do curso de Filosofia Experimental, sobre o qual havia recebido notícias, pontuando seu interesse em ser um dos alunos desse curso, a fim de aproveitar “[...] do trabalho que em tantos anos ocupou os maiores homens da Europa” (Correspondência de 12 nov. 1753 apud Mendonça, 2005a, p. 536).
Esse interesse fornece pistas para se entender o tipo de formação valorizada por Mendonça Furtado, que deveria articular instrução e civilidade, temas marcadamente presentes em suas cartas e que apontam para uma concepção de educação contextualizada naquele tempo. Aprender/ensinar determinadas habilidades e obter certos conhecimentos era importante para Mendonça Furtado, como se depreende das observações a respeito do seu sobrinho: “[...] aqui me escreveu Henrique uma carta em francês, a qual estimei infinitamente ver porque, além de ter um excelente trabalho de letra, me consta que cuida em aplicar-se quanto cabe nos seus tenros anos” (Correspondência de 12 jul. 1755 apud Mendonça, 2005b, p. 425).
Como bom católico, o governador demonstra também preocupação com a situação da cristandade encontrada no Estado. Para ele, a forma de catequese adotada nos aldeamentos com o controle religioso dos padres não estava surtindo o efeito de conversão desejado, mas produzindo efeitos contrários. Segundo ele,
[...] com grande mágoa assento e provo que não só se não tem convertido o gentio da terra, mas que, contrariamente, muitos cristãos têm não só tomado os costumes dos gentios, mas ainda têm seguido os seus, sendo maior lástima que até tenham entrado neste número muitos eclesiásticos (Cartas que foram na frota que saiu deste porto em 2 de fevereiro de 1752 apud Mendonça, 2005a, p. 110).
Em suas cartas, ele não esconde quem são seus aliados e seus desafetos. Acerca dos segundos, não economiza palavras para expressar toda a sua opinião sobre seu suposto caráter. Dentre os seus correligionários, destacam-se o bispo Frei Miguel Bulhões e o secretário do Estado João Antônio Pinto da Silva.
Sobre o Frei, considerado aliado, escreve ao seu irmão:
É um prelado de juízo, sumamente vivo, e de exemplar procedimento. Se, em lugar de se criar na Religião onde foi religioso, se educasse em parte onde se manejassem negócios políticos, teria S. Maj. nele um perfeito ministro, porque imagina bem, tem juízo e deseja eficazmente acertar. Até agora me tem parecido homem de honra. (Correspondência de 21 jan. 1752 apud Mendonça, 2005a, p. 265).
No excerto, o governador destaca que o frei era um religioso de caráter e deixa entrever a valorização de uma formação laica para a atuação política e econômica. Ainda assim, Bulhões tem um papel relevante como aliado de Mendonça Furtado e chega a assumir interinamente a administração do Estado quando o governador parte em expedição ao Rio Negro.
A relação com o Frei Miguel Bulhões comprova que Mendonça Furtado era um católico convicto e que seus embates com os religiosos das ordens instaladas na Amazônia eram referentes à atuação política e econômica que extrapolava, no seu entendimento, a função da igreja de conversão espiritual das almas ao cristianismo. Em seus argumentos, coloca-se como defensor da doutrina da igreja que, para ele, estava sendo deturpada pelos religiosos.
Sobre o secretário João Antônio Pinto da Silva, diz que “[...] é um moço que tem, além de um exemplaríssimo procedimento, um préstimo e talento sumamente estimável, e não esperava eu achar entre a confusão em que isto estava um homem semelhante. Eu estou sumamente gostoso com ele” (Correspondência de 28 dez. 1751 apud Mendonça, 2005a, p. 201).
Por outro lado, Mendonça Furtado amealhou desafetos durante seu governo no Estado, talvez por sua personalidade confrontadora. Dentre esses desafetos, sobressaíram-se os jesuítas, com destaque para os padres Gabriel Malagrida, José de Moraes (a quem chama de orgulhoso, soberbo e inquieto), ambos de Belém, e Anselm Eckart, do Rio Negro. A política administrativa e econômica perpetrada pelo governador retirava poder político dos jesuítas.
Os conflitos com o padre Malagrida se deram em torno da proposição da criação do Seminário em Cametá4, para o qual exigia que os religiosos recebessem pelo menos cinco seminaristas gratuitamente, o que aponta sua visão quanto ao papel das instituições religiosas enquanto instrumentos civilizadores do Estado.
Mas houve confrontos também com membros do próprio governo, como o Ouvidor Geral Manuel Luís Pereira. Ele é bastante destacado em suas cartas que revelam ter sido o seu principal desafeto. O ouvidor-geral é caracterizado como:
[...] mui curto de talento, sumamente malcriado e proporcionalmente atrevido, soberbo, e incivil, com o pior modo que eu vi a homem nenhum, deu-me o desgosto de me obrigar a dar uma Conta dele, quando eu menos o poderia esperar (Correspondência de 22 dez. 1751 apud Mendonça, 2005a, p. 183).
Não faltam considerações contra a presença do Ouvidor Geral, tais como as registradas na carta enviada ao pai: “Está geralmente malquisto com todos, e na verdade que este homem foi um grande castigo que veio para esta terra. Ele me tem apurado a paciência até o ponto que eu entendia que ela não chegava” (Correspondência de 06 nov. 1752 apud Mendonça, 2005a, p. 348).
O posicionamento do governador em relação a Manuel Luís Pereira de Melo reitera os argumentos correntes por ele defendidos de que encontrou um Estado com a justiça corrompida e dominada pelo ódio e pelas paixões, no qual os interesses do reino estavam sempre em segundo plano. A comprovação disso, ele próprio demonstra, estava nas fraudes registradas, por exemplo:
A lesão deste contrato me parece manifesta e notória porque tendo no mês de agosto esses rendeiros perto de sete anos de rendimento na sua mão, e não tendo ainda naquele tempo pago os primeiros três anos, achando-se com todo o cabedal que resta em seu poder, manejando-o e fazendo os pagamentos à sua vontade nos gêneros, e pelos preços que lhes parece, e a pessoas tão desamparadas como são aqueles soldados, se vê, evidentemente, que a menos de metade dos lucros faz o seu pagamento, quando lhes salva todo o cabedal da renda e os avanços que com ele faz no manejo do seu negócio. (Correspondência de 14 out. 1751 apud Mendonça, 2005a, p. 95).
O resultado disso era, segundo Mendonça Furtado, um Estado “[...] na última ruína, porque os Erários Reais se acham extintos, as Rendas Reais perdidas, e não bastam serem poucas se não mal administradas” (Correspondência de 02 dez. 1751 apud Mendonça, 2005a, p. 139).
No campo pessoal, Mendonça Furtado teve de lidar com recorrentes problemas de saúde relatados em vários momentos para seu irmão: “Não permite o estado da minha saúde que eu possa por ora fazer mais largas reflexões, porque uma das principais partes que a queixa que padeço me tem atacado é a cabeça, e não estou para fazer mui largos discursos” (Correspondência de 02 dez. 1751 apud Mendonça, 2005b, p. 46). Essas moléstias, segundo o governador, comprometiam, em parte, sua atuação.
O clima tropical local, muito diferente do europeu, também foi um problema para Mendonça Furtado, sobre o qual relata o seguinte:
O clima é calidíssimo e sumamente irregular, não tem tanto de sadio como me diziam. Como os poros andam sempre abertos, e de repente vêm umas grandes ventanias, há infinitas constipações e bastantes estupores, é necessário grande cuidado em não aproveitar o fresco. As noites ordinariamente são excelentes; porém sempre é clima totalmente oposto ao nosso, e na linha equinocial (Correspondência de 10 nov. 1751 apud Mendonça, 2005a, p. 165).
Apesar desses desafios, Mendonça Furtado demonstra em suas cartas uma motivação para transformar esse Estado na melhor colônia portuguesa, algo que seria possível, na sua concepção, com a civilização e a instrução da gente da terra. Isso evidencia um projeto educacional forjado em seu tempo, que tem primazia na condução das ações do governo.
Educação para Mendonça Furtado
Ao analisar os conceitos de educação e instrução presentes nos manuais educativos dos séculos XVIII e XIX, Fonseca (2016, p. 131) conclui que: “Educação e instrução designavam, de maneira geral, o processo de formação dos indivíduos para que se integrassem adequadamente à vida em sociedade, conforme as referências e valores aceitos e legitimados”.
Dentre os manuais analisados, destacam-se clássicos produzidos por Locke, Fénelon e Rousseau, que influenciaram escritores portugueses, inspirando principalmente a valorização da educação como instância formativa dos bons costumes diante da instrução. Sobre esses manuais, a autora ressalta “[...] a visão de que o acerto e o rigor do método seria garantia de uma educação bem-sucedida, pois ele seria responsável pela clareza das orientações para o ensino da leitura, da escrita, da civilidade e da doutrina, conforme regras estabelecidas para cada caso” (Fonseca, 2016, p. 137).
Na América portuguesa, existia uma ideia de educação como formação moral, mas sua efetivação não estava atrelada à educação escolar, ainda incipiente. Por isso, esses manuais serviam como norteadores da ação da família e da igreja, que estavam no centro do processo educativo. A partir de então, a educação na América portuguesa opera mudanças de costumes e comportamento. A catequese, que era a principal ferramenta dos inacianos para a conversão dos gentios, passa a ser secundarizada, pois constataram que nenhuma transformação seria verdadeira sem a mudança de costumes pagãos. Nesse sentido, podemos afirmar que a missão se tornou mais ‘educativa’ do que catequética propriamente dita, visto que os padres compreenderam que deveriam focar “[...] mais sobre a mudança de ‘costumes’ do que sobre a conversão ou o aprendizado da doutrina” (Santos, 2014, p. 36, grifo do autor).
Nesse contexto, os conceitos de educação e instrução se imbricavam e eram tratados de certa forma como recursos necessários ao processo de civilização dos indivíduos. Mas, sem dúvida, a educação tinha um sentido mais amplo e se referia “[...] à ideia de formação geral do indivíduo para o convívio social nos quadros culturais cristãos (católico)” (Fonseca, 2016, p. 136). Fonseca (2016) defende que educação era um tema que permeava o pensamento na sociedade do Antigo Regime no século XVIII, por se tratar de ação capaz de formar os súditos desejados pelo reino. Assim, é possível entrever pelo menos três perspectivas, desenvolvidas linhas à frente, que revelam o pensamento educacional de Mendonça Furtado em suas cartas. Essas perspectivas apontam para um ‘novo’ projeto educativo para o Estado do Grão-Pará e Maranhão e estão fundamentadas no Diretório que se deve observar nas povoações dos Índios do Pará, e Maranhão, em quanto Sua Magestade não mandar o contrário (1757), o qual, para Damasceno (2010), estudioso da educação na Amazônia colonial, é o mais importante documento de política educacional da história da América portuguesa, resultante da ruptura entre Estado português e jesuítas, e da assunção de uma política educacional estatal.
‘A primeira’ dessas ‘perspectivas’ é a formação para a realização de ofícios pertinentes ao desenvolvimento econômico do Estado. A palavra ‘ignorância’ aparece pelo menos 69 vezes nas cartas de Mendonça Furtado. Tais aparições ocorrem quando trata das populações indígenas, mas não só. Ele usa o termo ‘ignorância’ também para se referir aos colonos portugueses quando destaca que estes se limitavam a explorar as drogas do sertão como única alternativa econômica. Pior: apoiados na mão de obra indígena escravizada. Para ele, “[...] toda esta gente é ignorante em ínfimo grau” (Correspondência de 30 nov. 1751 apud Mendonça, 2005a, p. 133).
A falta de conhecimento na execução de algumas atividades, que ele atribui à ausência de formação educacional adequada, é ressaltada no primeiro relatório enviado ao seu irmão. A penúria econômica encontrada no Estado é relacionada à falta de quadros capacitados para o exercício das funções administrativas. Além do bispo Miguel de Bulhões, considerado um ‘homem de propósito’, e do secretário de governo João Pinto, chamado de ‘capacíssimo’, ele reclama de “[...] não achar uma única pessoa que me possa ajudar, nem de quem me fie em todo o comum deste povo” (Correspondência de 22 dez. 1751 apud Mendonça, 2005a, p. 183).
Provavelmente por sua experiência militar, Mendonça Furtado relata de forma detalhada e acurada a situação dos militares em exercício no Estado. Ressalta que o efetivo era formado de “[...] estropiados, velhos, ignorantes [...]”, “[...] sem nenhuma disciplina” (Correspondência de 02 dez. 1751 apud Mendonça, 2005a, p. 139). Para ele, esses militares não tinham a formação necessária para o exercício da função. Valores como disciplina eram desconhecidos pelo efetivo, o que, para Mendonça Furtado, significava uma demonstração da ausência de formação básica, pois se portavam como se não tivessem nunca ouvido falar “[...] nas obrigações do ofício que tinham” (Correspondência de 04 dez. 1751 apud Mendonça, 2005a, p. 149).
Em relatório enviado ao secretário do rei Diogo Corte-Real, em 1752, o governador faz uma descrição detalhada da situação de alguns membros do exército em que evidencia o quadro calamitoso em termos de capacitação e preparação para o serviço militar:
Está nesta Praça outro Sargento-Mor chamado Engenheiro, de 70 anos de idade e bastamente esquecido da sua profissão, se é que algum dia soube alguma coisa dela.
(Correspondência de 09 jan. 1752 apud Mendonça, 2005a, p. 229).
O mais antigo é João Pais de Amaral; consta-me que é um homem bem-nascido, acha-se com 78 anos de idade e 60 de serviço, nos quais entram 40 de capitão. Está cheio de achaques, estropiado e incapaz de fazer nem ainda a obrigação ordinária de entrar de guarda, da qual está desobrigado.
(Correspondência de 09 jan. 1752 apud Mendonça, 2005a, p. 230).
E da quinta que é ou devia ser da Artilharia, é capitão Francisco Fernandes, que tem 76 anos de idade e 55 de serviço, em que entram 15 de capitão. Está cheio de gota, cego e outros infinitos achaques; e há muito tempo que não faz a sua obrigação, porque lho embaraçam as moléstias que padece.
(Correspondência de 09 jan. 1752 apud Mendonça, 2005a, p. 230).
Mendonça Furtado considerava a questão da formação fundamental. Destaca que, mesmo em condições físicas adequadas, os oficiais não detinham as capacidades necessárias para “[...] disciplinar soldados, porque era impossível que pudessem ensinar o que nunca aprenderam” (Correspondência de 09 jan. 1752 apud Mendonça, 2005a, p. 230).
Ele reforça que a falta de homens de confiança no campo militar não se devia ao caráter, mas sim à má formação. Não se sentia seguro para confiar algumas missões a esses soldados por avaliá-los como incapazes de realizar tais missões. A solução imediata foi a solicitação ao Rei de oficiais “[...]que saibam do ofício e que possam ensinar a esta ignorantíssima gente; e todos os que vierem serão poucos para reduzir à ordem a confusão em que se acha o Militar em todo este Estado” (Correspondência de 03 dez. 1752 apud Mendonça, 2005a, p. 142). A estratégia pensada por Mendonça Furtado era justamente a formação de um efetivo local, e somente no reino ele considerava que encontraria os ‘professores’ capazes de realizar essa tarefa, e faz então a solicitação de formadores que pudessem atuar em tal desafio.
Ao que tudo indica, inicialmente, essa solicitação não foi atendida, ou pelo menos não no tempo em que achava necessário, visto que ele mesmo assume o papel de ‘professor’ dos soldados, conforme seu relato:
Pelo que respeita aos soldados, tenho trabalhado o que posso para os tirar da vileza, penúria e confusão em que os achei; como, porém, não tenho oficiais alguns, e é necessário que este trabalho carregue sobre mim, não estão tão adiantados como eu quisera, porém, em lugar de baeta preta, de que a maior parte andavam vestidos, e outros em veste, e descalços, os persuadi a que vestissem em uniforme de liagem, com canhões encarnados, com o qual já parecem soldados; vão-se desembaraçando bastantemente no exercício, marcham sofrivelmente; fazem fogo muito bem, finalmente já parece isto um Corpo Militar, porém, como já lhes disse, não posso fazer este pagamento, nem tenho esperança do meio por que os hei de socorrer, receio que tudo isto não vá́ adiante, porque é uma quantidade de pobres, os quais, sem comerem, é impossível que possam trabalhar (Correspondência de 09 nov. 1752 apud Mendonça, 2005a, p. 361).
A língua portuguesa como instrumento identitário e de dominação era a ‘segunda perspectiva’ que perpassava o modelo de educação concebido por Mendonça Furtado. Logo após sua chegada em 1751, ele relata ao seu irmão que, não obstante insistências e penalidades estabelecidas visando à obrigatoriedade do uso da língua portuguesa, esta continuava não sendo falada nem era ensinada nos aldeamentos.
Em carta escrita no início de 1754, o governador demonstra que o problema ainda persistia, pois, embora já tivesse determinado às ordens religiosas que introduzissem escolas nas aldeias a fim de ensinar a língua portuguesa aos índios, e todas respondido que logo atenderiam à ordem do governador, poucas haviam cumprido suas ordens. Mesmo se referindo a todas as ordens, ele destaca o mau exemplo dos padres da Companhia de Jesus, que lhe desobedeciam de forma obstinada e não se esforçavam para ensinar a língua do reino aos nativos. Para Mendonça Furtado, a escola e a educação deveriam estar subordinadas ao Estado, e a aprendizagem do português como língua oficial era considerada fundamental para que os valores e ideias reconhecidos pelo reino pudessem ser massificados na colônia. Por isso, a defesa do uso da ‘língua geral’5 pelos jesuítas poderia dificultar a comunicação de valores defendidos pela cultura da metrópole junto aos indígenas e se tornava um ponto de conflito irremediável. Em correspondência ao seu irmão, localizada entre as cartas que foram enviadas na frota que saiu em 2 de fevereiro de 1752, Mendonça Furtado exemplifica o que considerava absurdo em relação à ‘língua geral’:
A palavra Tupana na tal gíria é Deus; as duas Açu e Mirim é o mesmo que grande e pequeno, e são os ditos índios educados para explicarem Deus dizendo Tupana Açu Deus grande; e os santos, suas imagens e verônicas Tupana Mirim = Deus pequeno; e isto que eles dizem que é um modo de explicar, por não haver na tal língua a palavra Santo, sempre dado por elemento de religião a uma gente silvestre, lhes forma uma ideia de muitos deuses, o que é totalmente defendido e oposto à verdadeira fé que nos ensina a Igreja Católica (Cartas que foram na frota que saiu deste porto em 2 de fevereiro de 1752 apud Mendonça, 2005a, p. 113).
Os conflitos se davam especialmente porque o governador considerava a ‘língua geral’, já falada há mais de 100 anos no Estado, uma ‘gíria’ errônea, que deveria ser abolida, enquanto os jesuítas se preocupavam em se adaptar tanto quanto possível à cultura do local. Diferente destes, Mendonça Furtado entendia o português como língua superior e que, por isso, deveria ser obrigatoriamente usada na colônia.
É preciso ressaltar que os jesuítas, desde sua chegada, se esforçavam para aprender a língua da terra e traduzir os valores cristãos para a língua do próprio nativo. Como resultado, o padre Luís Figueira elaborou uma gramática da ‘língua geral’, falada no Norte do Brasil, em 1621, que provavelmente ainda era utilizada no séc. XVIII (Figueira, 1621). Nos ‘Exercícios Espirituais’ estabelecidos por Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, a espiritualidade conduziria o missionário a renunciar até mesmo sua própria língua para aprender e usar uma nova, com a qual pudesse pregar o Evangelho e arrebanhar mais almas para o reino divino. Na análise de Agnolin (2006, p. 173):
[...] os diferentes sentidos se encontravam numa matéria linguística (nova) que, em sua contínua mobilidade, teria revelado uma tentativa (contínua) de acomodação, realizando-se, também e paralelamente, pelo seu constituir-se como instrumento comunicativo performático.
Considerava Mendonça Furtado, entretanto, esse esforço realizado pelos padres em articular o vocábulo das línguas indígenas à doutrina católica uma ‘barbarização’ da língua portuguesa e da própria doutrina católica. Pode-se compreender melhor o argumento do governador e a fonte desses conflitos no excerto que se segue:
As Religiões, por seguirem a sua destinação, se dão à grande pena de fazer aprender aos religiosos, depois de saírem das aulas, a tal língua da moda geral, e perguntando eu a alguns para que era este trabalho, me responderam que eram a isso obrigados como missionários, porque assim o mandavam um Breve de Alexandre6; ao que lhes respondi que o Breve era para os missionários que iam pregar o evangelho às regiões aonde era preciso estabelecer-se e falar a língua do país para poderem fazer fruto com a sua missão, mas não no sistema presente, em que aos mestres e aos discípulos lhes era preciso, para se entenderem, largar cada um a língua materna para se comunicarem em uma gíria inventada para confusão e total separação dos homens e em notório prejuízo da sociedade humana (Cartas que foram na frota que saiu deste porto em 2 de fevereiro de 1752 apud Mendonça, 2005a, p. 113).
As possibilidades de exploração da região pelos religiosos demandavam contato com os índios, daí a necessidade de preservarem a ‘língua geral’, mais usada que o português. Para Leitão (2011), a escolha dessa língua poderia ser uma estratégia para dificultar o contato dos colonos portugueses com os indígenas e assim garantir a fixação destes nos aldeamentos. Além disso, ao permitir e/ou incentivar que os nativos utilizassem uma língua mais próxima à sua, os religiosos ganhavam a confiança deles e facilitavam o processo de catequização.
Isso se chocava com os planos de Mendonça Furtado, encarregado de povoar e expandir os domínios do reino na região. Por isso, em 1753, quando é fundada a vila de Santana do Macapá com a vinda de 200 família dos Açores, ele instrui Francisco Portilho e Melo, designado governador da nova vila, para se esforçar no ensino da língua portuguesa e não praticar a ‘língua da terra’. Ordena inclusive ao novo governador a tarefa de explicar aos indígenas palavras não entendidas em português, o incumbindo, ainda que indiretamente, de uma função formativa. Ele o orienta a falar com frequência a língua portuguesa com os que a dominam para que, por meio de sua prática, todos se tornassem ‘senhores dela’. Aos que já dominavam o português, determina que não falassem mais a língua geral e, como recompensa, receberiam tratamento diferenciado (Mendonça, 2005b).
Mendonça Furtado defendia que os próprios indígenas tinham interesse em aprender a língua portuguesa. Em um de seus relatos, ele trata disso:
Não posso deixar de referir a V. Exa, um caso que a este propósito me sucedeu com um Principal de uma destas aldeias. O qual vindo-me aqui falar em um negócio seu lhe mandei dizer pelo Intérprete, porque nenhum fala português, que S. Maj. os ‘mandava ensinar a ler e escrever, e lhe ordenava que falassem a língua portuguesa, porque eram seus vassalos’, e queria premiar aos que se fizessem beneméritos; a isto lhe vi levantar as mãos e fazer uma grande arenga na língua chamada Geral, e levantando os olhos ao céu, e como eu não entendia nenhuma palavra perguntei ao Intérprete o que dizia, respondeu-me que dava graças a Deus de ver chegado a tempo em que se pudesse acabar a cegueira e ignorância em que eram criados (Correspondência de 08 jan. 1752 apud Mendonça, 2005a, p. 228, grifo nosso).
Leitão (2011) corrobora essa visão ao ressaltar que as populações ameríndias eram marginalizadas por não dominarem a língua oficial. Isso diminuía seu poder de atuação linguístico e social, visto que elas eram obrigadas a dominar uma língua adicional ou depender de intérpretes, como exemplificado no excerto acima.
A despeito da tradução do intérprete, Mendonça Furtado se incomodava com o fato de, em sua visão, os padres descuidarem de sua função religiosa, de educar os povos “[...] no verdadeiro conhecimento da lei evangélica, na deformidade dos vícios e no santo temor de Deus” (Cartas que foram na frota que saiu deste porto em 2 de fevereiro de 1752 apud Mendonça, 2005a, p. 112). Como prova do insucesso nessa missão, ele relata que, depois dos primeiros anos na doutrina, os meninos, à medida que cresciam, passavam a exercer alguma atividade para os padres e não continuavam no estudo, muito menos a praticar a doutrina católica.
O governador evidencia o seu entendimento sobre o papel dos padres como mediadores da política do reino no processo de civilização e formação dos índios para o exercício de algum ofício, para além da simples catequização. Respaldava-se no parágrafo 22 da Instrução Régia de 1751, que o instruiu a “[...] evitar quanto vos for possível o poder temporal dos missionários sobre os mesmos índios, restringindo-o quanto parecer conveniente” (Instruções Régias, Públicas e Secretas para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Capitão-General do Estado do Grão-Pará e Maranhão, 31 maio 1751 apud Mendonça, 2005a, p. 75). Por isso, ele realizou uma junta de missões em 1752 para orientar os religiosos sobre a necessidade de seu engajamento no ‘projeto civilizatório’ que representava. Na ocasião, o governador destacou o trabalho produtivo dos missionários da ordem de Santo Antonio, com sua escola de ler e escrever na Ilha de Joanes7, como bom exemplo de trabalho, pois havia constatado ocorrer nesta a formação de um caixeiro que demonstrava fazer “[...] uma letra suficiente” (Correspondência de 08 jan. 1752 apud Mendonça, 2005a, p. 228).
Os padres não tinham como política civilizar os índios nos moldes estabelecidos pela Coroa, mas tão só catequizá-los e aldeá-los em torno de suas fazendas para realizar os serviços que precisavam. Nessa direção, tornam-se um empecilho para os planos de Mendonça Furtado. Ao instituir o Regimento do Diretório dos Índios, o governador atribui ao diretor das vilas, mesmo sem a jurisdição temporal dos missionários, a tarefa de ensinar os índios a viverem de modo civil. Como destaca Santos (2014), na concepção de Mendonça Furtado, todos deveriam ser submetidos às direções do reino.
Nas já citadas instruções repassadas a Francisco Portilho, Mendonça Furtado recomenda que a conversão dos indígenas ao modelo civilizatório ilustrado seja o objetivo precípuo de seu governo, despendendo trabalho com maior eficácia. De fato, a questão da conversão ao chamado processo civilizatório era um elemento ideológico que conduzia as ações do governador como autoridade máxima do Estado, submetida às determinações da Coroa.
O verbo civilizar e seus derivados (substantivos e adjetivos) são recorrentes nas cartas de Mendonça Furtado e, por isso, compõem a ‘terceira perspectiva’ a integrar o projeto educacional do governador.
De acordo com Santos (2021), o termo ‘Civilidade’ aparece na Enciclopédia de Diderot e D'Alembert como uma derivação da raiz latina civ- (civilité), quase como sinônimo de polidez e afabilidade, “[...] com o sentido de exercitar boas maneiras no convívio social, um significado próximo àquele de civilização como um processo de refinamento de costumes”.
No dicionário de Rafael Bluteau, revisado e publicado em 1798 por Antonio Moraes, o termo civil é traduzido como o “[...] que pertence à cidade, ou sociedade de homens, debaixo de certas leis” (Silva & Bluteau, 1789, p. 277). O vocábulo traz a distinção entre direito religioso e civil, esclarecendo que o segundo se refere ao homem enquanto membro do Estado secular submisso a um soberano. O mesmo dicionário explica o termo civilidade como urbanidade e cortesia. Ambos os conceitos permearam as representações de Mendonça Furtado anos antes, pois depreende-se de suas cartas, ao utilizar as palavras civil e civilidade, justamente a preocupação em estabelecer uma justiça separada da religiosa e ‘educar’ os nativos nos moldes da civilidade europeia ilustrada que se constituía.
A ideia de civilização que conduziu as práticas de Mendonça Furtado no Norte da América portuguesa, orientada pela política econômica e governamental do reino, que tentava acompanhar os avanços tecnológicos e culturais de outros impérios europeus, causou conflitos e embates que alteraram, substantivamente, o projeto educacional até então desenvolvido pelos jesuítas, provocando alterações nas relações sociais instituídas.
A posição de Mendonça Furtado em defender a liberdade dos índios na direção da formação de potenciais cidadãos portugueses capazes de se integrarem a uma civilização que lhes era alheia e exercer os ofícios para os quais tinham sido preparados no sentido de fazer avançar o projeto econômico do Estado monárquico português aponta, em meados do século XVIII, para o sentido de civilização registrado por Williams (1985) na Europa no final do século XVIII, intimamente relacionado ao pensamento ilustrado8 e à perspectiva de desenvolvimento individual do ser humano.
Civilização, para Mendonça Furtado, tinha o sentido de transformar os índios em pessoas úteis ao projeto econômico de Portugal, o que seria possível desde que eles “[...] fossem criados em obediência e disciplina” (Correspondência de 26 jan. 1754 apud Mendonça, 2005b, p. 109). O governador chega a considerar como uma das causas da ruína do Estado a privação dos índios dos conhecimentos e das matérias que poderiam habilitá-los para a civilidade. E argumenta, ainda, que o Estado dependia inteiramente da “[...] civilidade e da polícia dos seus habitantes [...]”, referindo-se aos indígenas (Mendonça, 2005c, p. 144).
No contexto dessa política, a criação da Companhia do Comércio, para além de uma estratégia econômica, se configura em ‘estratégia civilizadora’, já que a comercialização de homens e mulheres traficados e escravizados de África fazia parte do sistema vigente e passava a colocar em interação brancos europeus, negros africanos e indígenas no Norte da América portuguesa. A própria criação da Capitania de S. José do Rio Negro tem um intuito pedagógico, pois, de acordo com Mendonça Furtado, “[...] com o trato e comunicação dos brancos [...]”, os índios poderiam civilizar-se e instruir-se com mais facilidade (Correspondência de 11 out. 1755 apud Mendonça, 2005b, p. 489).
Para Mendonça Furtado, uma vez tratados com ‘civilidade’, os índios se colocariam ‘de boa fé com os moradores’, e assim seria possível fazer “[...] novas povoações que encham estes sertões, porque não pode haver outro caminho de serem povoados senão pelos naturais do país” (Correspondência de 18 jan. 1754 apud Mendonça, 2005b, p. 67).
O conceito de civilidade estava diretamente ligado à questão educativa. Por isso, ao fundar a Vila de Ourém, em 1753, composta de mais de 150 índios, ele tratou logo de abrir uma escola ‘para que os rapazes se possam criar com civilidade’. E, conforme o relato da carta, ele acompanhava o desenvolvimento dessa turma, que, segundo os relatórios recebidos, “[...] estava se criando muito bem e aprendendo nela a língua portuguesa” (Correspondência de 11 out. 1753 apud Mendonça, 2005a, p. 519).
Ao classificar qualidades consideradas boas e ruins nos moradores da colônia, Mendonça Furtado não só ratifica o modelo de governança que estava disposto a executar, mas também revela o modelo de formação que considerava necessário desenvolver nos grupos sociais envolvidos nas ações de colonização, o que passava, necessariamente, por um ‘novo’ projeto de educação mais eficiente para o processo ‘civilizatório’ almejado que se contrapunha ao jesuítico até então em marcha.
Nos escritos de suas correspondências, é possível identificar os perfis humanos que projetava e que relegava. O perfil indesejado que deveria ser banido (ou transformado) era o composto dos seguintes traços: ignorância, rusticidade, corrupção, malícia, orgulho, inquietação, soberba, lisonja, desonestidade, precipitação, desatenção, ambição, aleivosidade, infidelidade, embrulhação, falsidade, ociosidade ou preguiça. Este último traço, juntamente com o desprezo pelo trabalho manual, apresentado pelos colonos, era considerado pelo governador como responsável pela ‘penúria e miséria’ do Estado. Por isso, reforçava, junto aos seus subordinados, como governador da nova vila de Santana de Macapá, a instrução de que era preciso persuadir os moradores à dedicação ao trabalho, especialmente aquele voltado à cultura das terras, em detrimento da exclusiva extração das drogas do sertão.
Logo que V. mercê chegar àquela povoação, deve pôr todo o cuidado e esforço em persuadir e obrigar a esta gente ao trabalho e cultura das terras, advertindo-lhes que este foi o único fim para que S. Maj. os mandou transportar para este Estado, e que nele devem seguir a mesma vida e trabalho, com que foram criados em suas terras, certificando-lhes da parte de S. Maj. que o trabalho que fizerem pelas suas mãos nas suas terras, não os inabilitará para todas aquelas honras a que pelo costume do país pudessem aspirar; antes pelo contrário, o que maior serviço render ao público neste frutuoso e interessante trabalho de culturas das terras, terá́ preferências nas ditas honras a todos os mais que negligenciarem e descuidarem de uma tão preciosa e interessante obrigação (Correspondência de 18 dez. 1751 apud Mendonça, 2005a, p. 172).
O perfil desejado, a ser estimulado e reforçado, era o composto dos seguintes traços: inteligência, préstimo, habilidade, juízo, honra, virtude, bondade, talento, letramento, moderação, modéstia, desembaraço, simplicidade e retidão. Para Mendonça Furtado, este perfil a ser assimilado pelos grupos sociais da colônia e valorizado, principalmente, junto aos indígenas, provocaria a mudança almejada no Estado.
Dentre esses atributos, Mendonça Furtado destacou a inteligência como instrumento capaz de garantir o projeto do Rei para o Estado:
Em execução da real ordem de S. Maj. expressada no § 11 da minha Instrução ostensiva9, chamei à minha casa os principais moradores desta Cidade, e aos que me pareceram ‘mais inteligentes’ para conferir com eles tanto o número dos escravos negros que aqui deveriam entrar, como na forma do pagamento que se devia fazer dos seus preços, e o modo mais suave, e que com menos vexação e descômodo se poderiam fazer os pagamentos. (Correspondência de 28 jan. 1752 apud Mendonça, 2005a, p. 288, grifo nosso)
Quando soube do falecimento do governador da Capitania do Maranhão, Luís de Vasconcelos Lobo, em 1752, Mendonça Furtado tratou logo de traçar o perfil de seu substituto:
[...] é preciso um governador ‘inteligente’, de uma honra completa e zeloso do real serviço de S. Maj., para estar à testa destes importantes negócios, por que o não enganem e não encontremos precipício aonde íamos buscar o remédio (Correspondência de 26 mar. 1753 apud Mendonça, 2005a, p. 436, grifo nosso).
O destaque para a inteligência e para o papel de instruir aquela ‘rude gente’ permite entrever que, para Mendonça Furtado, o governador deveria ser alguém capaz de ensinar, que pudesse assumir um papel formador.
A questão dos ofícios, entendidos como formações laborais capazes de garantir o funcionamento econômico do Estado, já estava presente na Instrução Régia recebida por Mendonça Furtado quando da posse do governo do Estado. Nela, o Rei recomenda aos missionários que se ocupem da tarefa de ensinar aos índios algum ofício e se atentem para a civilidade destes, para “[...] serem mais capazes de servirem ao público, e que o contrário será do meu real desagrado” (Instruções Régias, Públicas e Secretas para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Capitão-General do Estado do Grão-Pará e Maranhão, 31 maio 1751 apud Mendonça, 2005a, p. 75).
Mendonça Furtado considerava os nativos da colônia “[...] sumamente hábeis para todas as artes que lhes quiserem ensinar” (Cartas que foram na frota que saiu deste porto em 2 de fevereiro de 1752 apud Mendonça, 2005a, p. 110). Porém, ele identifica que a atuação dos oficiais mecânicos se restringia aos conventos e colégios das ordens, faltando oficiais para exercerem essas funções nas demais instâncias do Estado, o que prejudicava o seu próprio desenvolvimento econômico. Portanto, seria necessária uma ‘política’ de formação de oficiais mais abrangente, não submetida à guarda dos jesuítas.
A formação de oficiais mecânicos pelos jesuítas tornou-se uma necessidade para a manutenção do complexo composto por fazendas, colégios, residência e igrejas, sustentando a tarefa evangelizadora.
Essas oficinas anexas aos colégios eram unidades que fabricavam manufaturas com base nas relações de produção entre um mestre e os aprendizes da ocupação manual ou mecânica. O processo de ensino e aprendizagem transcorria tal como nas corporações de ofício medievais, ou seja, envolvendo diretamente os padres jesuítas e os escolásticos dos colégios durante o trabalho produtivo das manufaturas. A aprendizagem decorria da observação e imitação, ou seja, no próprio processo de fazer as manufaturas (Ferreira Jr & Bittar, 2002, p. 707).
Na visão de Mendonça Furtado, esses oficiais seriam úteis na movimentação da economia do Estado caso atuassem fora do âmbito dos colégios, inclusive como formadores de outros oficiais, já que eles detinham o conhecimento do ofício. Sem esse contingente, seria impossível formar os perfis humanos desejados para atuar no desenvolvimento do Estado do Grão-Pará e Maranhão, pois a ignorância era a marca dos filhos da terra:
Enquanto aos filhos da terra, não individuo porque não conheço um único que seja capaz de se lhe encarregar negócio algum, por pequenas consequências que tenha, porque, além de serem sumamente ignorantes, têm radicadas no íntimo do coração umas prevenções diabólicas com que eles e seus pais e avós foram criados, e, supostas as grandes raízes que têm, não há que esperar por ora deles melhoramento (Correspondência de 26 fev. 1754 apud Mendonça, 2005b, p. 137).
No excerto, Mendonça Furtado ressalta novamente a ignorância, considerada má formação e incapacidade encontrada nos moradores do Estado. Mas, além disso, ele aponta ‘maus hábitos’ que seriam arraigados pela transmissão educacional de geração a geração e, por isso, não havia muita esperança de mudança comportamental para tal gente ‘desqualificada’.
Por conta disso, para a recuperação e o desenho da fortaleza de Macapá, que se achava em ruínas, e a confecção de um mapa com a localização exata de rios e ilhas, Mendonça Furtado solicita de Portugal “[...] um oficial engenheiro, hábil e capaz de satisfazer a ambas estas obrigações” (Correspondência de 09 jan. 1752 apud Mendonça, 2005a, p. 234). Em outro documento, ele deixa entrever que o problema não era a falta do profissional, mas o fato de que o responsável pela função era “[...] velho e está sumamente esquecido de sua profissão” (Correspondência de 25 jan. 1752 apud Mendonça, 2005a, p. 281). Conhecimento técnico e especializado era valorizado pelo governador e tido como essencial para o desenvolvimento econômico do Estado.
A outra divisão, porém, que há de subir pelo Madeira e pelo Guaporé́, é tão delicada como V. Exa justamente imagina, e será preciso que em Lisboa se elejam oficiais de que se fizer a mais inteira confiança, tanto de probidade como de ciência (Correspondência de 09 nov. 1752 apud Mendonça, 2005a, p. 262).
Em 1753, Mendonça Furtado recebeu o ajudante-engenheiro italiano Henrique Antonio Galluzzi, provavelmente em atendimento a sua solicitação. A exigência de pessoal qualificado corroborou a vinda de muitos estrangeiros para a Amazônia durante seu governo, propiciando a criação de um espaço de trocas culturais, o qual promoveu uma formação cultural híbrida entre os amazônidas. Muitos desses estrangeiros se estabeleceram na região e deixaram marcas de sua própria cultura, como é o caso do arquiteto italiano Antonio Landi, responsável pelo primeiro projeto urbanístico da cidade de Belém, que introduziu, como destaca Silveira (2018), a arquitetura neoclássica da Europa no contexto geográfico do espaço amazônico.
Considerações finais
De acordo com compilação de Mendonça (2005a, 2005b, 2005c) das correspondências do governador do Estado do Grão-Pará e Maranhão Francisco Xavier de Mendonça Furtado, enviadas no período de setembro de 1751 a julho de 1759, foram emitidas 394 cartas tratando de instruções, relatórios e demandas de moradores. Seu principal interlocutor foi o seu irmão Sebastião José de Carvalho e Melo, a quem enviou 186 correspondências.
A análise dessas correspondências permite apontar elementos que compunham a concepção de educação de Mendonça Furtado: a) a importância conferida a uma boa formação para a composição dos ofícios militares e civis para o desenvolvimento do Estado; b) o papel da língua portuguesa como instrumento de massificação de seu projeto; c) os ideais de civilidade para a formação de uma sociedade nos moldes do pensamento ilustrado.
A preocupação com uma formação que capacitasse colonos e indígenas no exercício de ofícios, capaz de impulsionar o desenvolvimento econômico, é recorrente em seus escritos, assim como a civilização dos índios.
As correspondências revelam um papel destacado do governador do Estado do Grão-Pará na formatação de um projeto educativo que veio a ser implantado com as reformas pombalinas. Percebeu-se que, a despeito da pouca visibilidade dada a ele, talvez pela preponderância do seu famoso irmão, Mendonça Furtado estava alinhado com Sebastião José de Carvalho e Melo na formatação de um novo projeto educativo para a colônia portuguesa que tentava por fim na educação jesuítica e preparar a colônia para as reformas educativas que viriam a ser implementas. Os resultados demonstram que toda essa política estatal, que retira a educação dos nativos da tutela dos missionários, longe de garantir a integridade dos indígenas, como ressalta Souza Júnior (2012, p. 23-24),
[...] produziram uma profunda reviravolta no modo de vida dos índios nos aldeamentos, vivenciada por eles como uma experiência trágica, que os levou intensificar as estratégias de resistência, materializadas numa quantidade e frequência maiores de fugas, de rebeliões mais numerosas, de construção e solidificação de redes de solidariedade, perpassadas por conflitos e contradições, com os outros contingentes de despossuídos, negros, mestiços, homens brancos pobres - já que o diretório dos Índios os deixou à mercê dos moradores, que, contrariando as normas pombalinas, tornaram suas vidas insuportáveis, no que dizia respeito à exploração e à opressão de que foram alvos.
Referências
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Marques de Pombal, ministro de Estado, protagonista da história portuguesa em meados do século XVIII, inaugurou uma nova era, conhecida como era pombalina, que promoveu reformas profundas no Estado português no sentido de retomar o crescimento econômico e recuperar seu poder político de outrora. Para isso, planejou e operacionalizou ações administrativas que impactaram, decisivamente, a colonização no Grão-Pará e Maranhão a partir da decisão de colocar sob o controle do Estado, e não mais de religiosos, a riqueza econômica e a formação cultural dos grupos humanos em contato, principalmente indígenas e colonos, e posteriormente escravos negros traficados, que passaram a fazer parte da cena amazônica com as decisões administrativas tomadas.
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Promulgada em 21 de dezembro de 1686, o Regimento das Missões do Estado do Maranhão e Grão-Pará conferiu aos padres missionários o poder político e temporal na administração das aldeias que organizavam. Ver Mello (2009).
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O Diretório que se deve observar nas povoações dos índios do Pará e Maranhão enquanto sua Majestade não mandar o contrário foi promulgado pelo governador Mendonça Furtado em 03 de maio de 1757, confirmado por Alvará Real em 17 de agosto de 1758 e vigorou até 1798. De caráter amplo, essa legislação transformou os aldeamentos em vilas dirigidas por um representante do governo e implementou reformas que visavam a povoar e civilizar o Norte do Brasil, como a obrigatoriedade do uso da língua portuguesa. Ver: Coelho (2005).
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Município localizado na mesorregião nordeste do hoje estado do Pará.
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Essa língua foi criada a partir das relações estabelecidas mormente nos aldeamentos, nas quais os jesuítas se esforçavam para traduzir a contento os símbolos cristãos para o universo indígena.
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Breve do Papa Alexandre VII (Fabio Gighi, nascido em 1599), que exerceu o papado de 1655 a 1667. O documento determina que missionários deviam conhecer a língua dos povos que iam evangelizar.
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Ilha de Joanes era a denominação dada à época à atual Ilha de Marajó.
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Entenda-se pensamento ilustrado como decorrente do movimento filosófico-literário-artístico-político iluminista, também conhecido como Esclarecimento ou Século das Luzes, no qual a ciência e a racionalidade crítica se sobrepunham à fé, à superstição e ao dogma religioso.
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No § 11 da Instrução, consta que: “Para a introdução dos escravos negros, em execução da Resolução de 27 de maio de 1750, é preciso que informeis, declarando o número dos negros que podem ser necessários; quantos se podem mandar cada ano; que possibilidade têm os moradores para os satisfazerem e sobre esta matéria ouvireis os principais moradores e pessoas mais inteligentes e interessadas nesta negociação; sobre os meios por que com menos vexação escômodo se pode fazer a introdução de escravos negros, e a forma do pagamento destes escravos; e com toda a distinção me informareis sobre esta matéria” (Instruções Régias, Públicas e Secretas para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Capitão-General do Estado Do Grão-Pará e Maranhão, 31 maio 1751 apud Mendonça, 2005a, p. 70).
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Rodadas de avaliação: R1: três convites; duas avaliações recebidas.
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Como citar este artigo: Buecke, J. E. O., & Araújo, S. M. S. Mendonça Furtado e o projeto educativo no Norte da América portuguesa na era da ilustração. (2022). Revista Brasileira de História da Educação, 22. DOI: http://doi.org/10.4025/rbhe.v22.2022.e236
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
11 Nov 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
-
Recebido
02 Out 2021 -
Aceito
07 Jun 2022 -
Publicado
06 Out 2022