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Doença de Chagas e transfusão de sangue no Brasil: vigilância e desafios

Chagas'disease and blood transfusion in Brazil: surveillance and challenges

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Doença de Chagas e transfusão de sangue no Brasil: vigilância e desafios

Chagas'disease and blood transfusion in Brazil: surveillance and challenges

João C. P. Dias

Pesquisador senior da Fundação Oswaldo Cruz (Ministério da Saúde), Brasil. Médico, Doutor em Medicina. Membro titular do Comitê de Doenças Para­sitárias da Organização Mundial da Saúde

Correspondência Correspondência: Centro de Pesquisas Renè Rachou Fiocruz Avenida Augusto de Lima 1.715 – Barro Preto 30.190-002 – Belo Horizonte-MG – Brasil E-mail: jcpdias@cpqrr.fiocruz.br

Comprovada nos anos 50, a transmissão transfusional do Trypanosoma cruzi foi considerada problema grave de saúde pública entre nós, estimando-se que, ao início da década de 80, cerca de 20 mil novos casos de doença de Chagas transfusional (DCT) eram produzidos anualmente no Brasil. Freqüentemente despercebidos e óligo-sintomáticos, os casos raramente eram notificados e não despertavam maior interesse entre as autoridades sanitárias. Naquela época, os próprios hemoterapeutas desconheciam as nuances do problema e tinham dificuldades para o diagnóstico e o encaminhamento de doadores soropositivo.1 Por seu turno, a soro­logia praticada prendia-se a uma técnica de difícil execução, a reação de fixação de complemento, com sérios problemas de padronização. Acrescia o fato de que um elevado contingente de transfusões correspondia a sangue total, agravado pela existência de doadores remunerados e transfusões braço a braço. A sorologia pré-transfusional de doadores não era obrigatória e somente uma pequena parcela de serviços praticava a quimioprofilaxia com violeta de genciana, tão eficaz na experiência de Goiás e do Triângulo Mineiro. Tudo isso era agravado pela ausência de prioridade no próprio programa de controle do inseto vetor, o que resultava em cerca de 80 mil novas pessoas infectadas a cada ano, em maioria jovens que pouco a pouco iam abastecendo os bancos de sangue de candidatos à doação.1 Em paralelo, o problema se intensificava pela cada vez maior migração rural-urbana no Brasil, desencadeada principalmente após a II Grande Guerra, carre­ando para os principais centros de transfusão milhares de chagásicos.2

Não obstante, graças a grande articulação da comunidade científica, em meados dos anos 80 surgiram importantes avanços na luta contra a doença de Chagas no Brasil, basicamente com a priorização da luta antivetorial e, a seguir, com fundamentais modificações na hemoterapia. O programa antivetorial foi posto a pleno e a sociedade discutiu a questão do sangue na VIII Conferência Nacional de Saúde (1986) e na nova Constituição (1988): ampliou-se a cobertura da luta química para cerca de 2.450 municípios (mais o estado de São Paulo), proibiu-se o doador remunerado, normatizou-se a prática da hemoterapia, criou-se um sistema nacional de sangue e hemoderivados, foi instituída a obrigatoriedade da seleção sorológica dos candidatos à doação. Rápida e progressivamente essas medidas foram causando enorme impacto na transmissão da parasitose humana, atestado pelo virtual desaparecimento de casos agudos e por ínfimos índices de sorologia positiva em crianças, inicialmente pesqui­sada em São Paulo e Minas Gerais (Bambuí e Vale do Jequitinhonha). Quanto à DCT, naturalmente o primeiro impacto foi sobre a questão da cobertura sorológica de candidatos, que cresceu de menos de 20% de serviços praticantes nos anos 1970 para 67% ao final dos anos 80, por pesquisa direta.3 Outro marco conseqüente foi a progressiva queda da taxa de prevalência geral da infecção entre candidatos à doação no País, caindo de cerca de 7,0% nos anos 70 para 4,4% em meados da década seguinte, para cifras entre 0,6% e 0,7% ao fim dos anos 90. Em 2004, obteve-se 0,6% nos laboratórios de origem e 0,5% num serviço de referência, através de uma ampla pesquisa nacional.4 Para tal descenso, no caso do Brasil os estudiosos soem coincidir que dois fatores principais intervêm, a saber: a) a redução progressiva de candidatos à doação infectados em baixas idades, fruto das ações de controle do vetor otimizadas e mantidas há vinte anos; com efeito, é cada vez menor o registro de candidatos soro­po­sitivos com menos de 30 anos (especialmente com menos de 20, em contraste com bem maiores positividades acima dos 40 e 50 anos.1,3,4 b) O efeito benéfico do sistema regular de triagem sorológica, que tende a retirar do universo de candidatos aqueles que tiveram sorologia anterior reagente. O resíduo maior de positividade entre candidatos foi mapeado em dois momentos pontuais, sempre coincidindo com municípios menores de áreas mais pobres e com antecedentes recentes de vetores domiciliados.3,4 Dados similares também podem ser conseguidos através de registros regulares da CPNSH/Ministério da Saúde, para os últimos anos.

Hoje, os riscos de transmissão da DCT no Brasil são mínimos, tendo sido estimados entre três e vinte ocorrências no contexto de mais de 4 milhões de transfusões anuais, numa mesa-redonda do último Congresso da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (Terezina, 2006). Isto pode e deve ser considerado como uma vitória da sociedade brasileira, passando pelas autoridades sanitárias, pelos usuários, pesquisadores e hemoterapeutas, técnicos coordenadores do sistema de sangue e hemo­derivados. Também há legítima euforia com a drástica redução das infestações intradomiciliares por triatomíneos em toda a área endêmica, destacando-se a virtual eliminação do Triatoma infestans, principal vetor da doença de Chagas no Brasil até a década de 1990. No plano da doença humana, tem sido constatada uma impressionante redução da prevalência da infecção em baixas idades. Como informação, dados preliminares de um inquérito sorológico nacional para crianças menores de 5 anos mostram que, em 100 mil amostras já processadas, o coeficiente de prevalência não ultrapassa 0,01%, assim mesmo com a ressalva de que a maioria dos raros soropositivos podia dever-se a transmissão congênita. Aliás, a transmissão vertical do T. cruzi no Brasil sempre foi discreta (risco de 1% ou menos), tendendo a decrescer. Outros dados importantes corres­pon­dem a uma crescente queda da mortalidade devida à esquizotripanose em todo o país, baixando de mais de 10 mil casos anuais nos anos 70 para algo em torno de 4.500 nos dias atuais. Reforçam este dado o deslocamento dos óbitos para idades mais elevadas e a também redução progressiva de internações anuais por doença de Chagas, nos registros do Ministério da Saúde (datasus.gov.br). Tais câmbios na morbi-mortalidade são bastante consistentes e podem explicar-se por diferentes fatores, provavelmente em associação, destacando-se: a) urbanização dos chagásicos, que oportuniza mais adequada e precoce atenção médica-previdenciária; b) redução do esforço físico nas cidades, frente a grande carga de esforço na zona rural, no passado; e, c) eliminação ou forte redução de reinfecções exógenas pelo T. cruzi.

Assim, ainda dentro de um século de sua descoberta, a doença de Carlos Chagas está sendo vencida no Brasil, também em outros países. Como desafios principais entre nós encontram-se a manutenção da vigilância entomológica e da qualidade do sangue transfundido, ao lado de melhor cobertura médica e previdenciária para os cerca de 2.500.000 de indivíduos infectados no passado. Também se destacam situações novas, como uma virtual emergência da endemia na Amazônia e a ocorrência esporádica e imprevisível de casos de transmissão oral do parasito. Portanto, ainda há o que fazer em doença de Chagas, inclusive pesquisa e otimização de recursos e técnicas para seu controle e atenção.

O controle da doença de Chagas no Brasil no geral é possível, sabendo-se que, atualmente, a maioria das ações finalísticas de saúde compete aos níveis municipais e estaduais. Na verdade, os alvos principais do controle têm sido os vetores domiciliados e a qualidade das transfusões de sangue. Para ambos há suficiente conhecimento e insumos. Situações de transmissão oral e congênita devem continuar surgindo, em caráter esparso e aleatório, a merecer continuada atenção e busca de soluções. Em ambos os casos, a estratégia mais viável compreende a rápida descoberta dos casos, seu tratamento e o rastreamento epidemiológico dos mesmos, com vistas à descoberta de outros e às análises e intervenções pertinentes sobre os fatores de risco.5

No caso da DCT, é altamente louvável que os hemo­terapeutas se empenhem em consolidar os logros obtidos. A discussão deste tema na Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia é oportuna e de bom alvitre, tanto por reforçar a atenção sobre o problema como, especificamente, para discutir o perfil dos candidatos à doação infectados pelo T. cruzi. Três pontos, a propósito, merecem ser ressaltados, correspondendo ao que se entenderiam hoje como principais desafios quanto à DCT no Brasil. O primeiro liga-se ao problema da continuidade das ações de prevenção, que têm um custo a ser mantido, num contexto de cada vez menor visibilidade do problema. De outro lado, ficam as necessidades de atenção médica e social para os candidatos à doação ainda infec­tados (estimados hoje entre 20 e 30 mil detectados por ano), no que toca a sua detecção, encaminhamento e tratamento adequados. Um terceiro ponto corresponde às necessidades de investigação e aperfeiçoamento técnico de estratégias e insumos empregados no controle e manejo da DCT e que, embora já eficientes, podem e devem ser melhorados. O que se espera é que o sistema continue ativo e atuante, com screening sorológico dos candidatos à doação durante pelo menos os próximos vinte anos, o que cobrirá os candidatos de maior risco (acima de 30 anos) e virtualmente levará ao esgotamento das fontes de infecção. A cobertura ideal será 100% do sangue a transfundir. Como serão cada vez menores as taxas de prevalência e de risco, ocorre o perigo natural de que a atividade possa ser diminuída ou suspensa, face aos custos operacionais e técnicos, cabendo aos técnicos e políticos a tarefa de sua manutenção. Como corolário, espera-se que progressivamente sejam melhorados os critérios e condições de manejo nos serviços de hemoterapia, no sentido de serem ainda melhoradas as indicações e procedimentos em Medicina Transfusional. Quanto aos infectados, sua detecção e encaminhamento – em princípio – correspondem ao próprio sistema de sangue e hemoderivados, em estreita parceria com a rede básica de saúde. Trata-se do maior volume de entradas do chagásico no SUS, atualmente, pressupondo uma rede preparada para receber e manejar adequadamente os infectados, nos diversos níveis de atenção. Hoje há muito que fazer pelo chagásico crônico (a total maioria dos casos em DCT), em termos de prevenção secundária do agravo e, mesmo, com benefícios possíveis de tratamento específico. No último ponto, inovações e aprimoramentos desafiam os interessados em DCT, tais como o aperfeiçoamento das técnicas diagnósticas (custo, praticidade, sensibilidade e especificidade etc.), incursões novas no campo da quimio­profilaxia, análises de fatores de risco, desenvolvimento de marcadores de transmissão etc. Todos esses aspectos são muito importantes e merecem novas publicações na Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia.

Referências Bibliográficas

1. Dias JCP. O controle da doença de Chagas no Brasil. In Silveira AC (org.) El control de la enfermedad de Chagas em los países del Cono Sur de América: historia de uma iniciativa internacional 1991/2001. OPS, Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro, 2002:145-205.

2. WHO. Control of Chagas'disease. WHO Technical Report Series 905. Genève, World Health Organization, 2002. 109 p.

3. Moraes-Souza H, Wanderley Dmv, Brener S, Nascimento Rd, Antunes Cmf, Dias Jcp. Hemoterapia e doença de Chagas trans­fusional no Brasil. Bol Of Sanit Panam 1994;116:406-418.

4. Wendel S. Risco da transmissão da infecção por Trypanosoma cruzi por via transfusional no Brasil. Tese. Faculdade de Medicina da USP, São Paulo, 2005. 404 p.

5. Brasil (Ministério da Saúde). Consenso Brasileiro em Doença de Chagas. Rev Soc Bras Med Trop 2005;38 (supl. III):29.

Recebido: 28/04/2006

Aceito: 10/05/2006

Avaliação: O tema abordado foi sugerido e avaliado pelo editor.

Conflito de interesse: não declarado

  • Correspondência:

    Centro de Pesquisas Renè Rachou Fiocruz
    Avenida Augusto de Lima 1.715 – Barro Preto 30.190-002 – Belo Horizonte-MG – Brasil
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Jan 2007
    • Data do Fascículo
      Jun 2006
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