Open-access Casos e exemplos na prática escolar de reflexão linguística

Cases and examples in the school practice of linguistic reflection

Resumos

Este artigo tem como objetivo o estabelecimento de uma distinção entre dois conceitos implicados na prática escolar de reflexão linguística - a oposição entre caso e exemplo. Faremos a delimitação teórica desses conceitos, assim como desenvolveremos a análise de algumas propostas de trabalho, com aspectos linguísticos de textos presentes em livros didáticos de Língua Portuguesa, a fim de propor uma descrição mais precisa dos conceitos aqui trabalhados. Argumentamos que a escolha pela reflexão em torno de casos em detrimento à tendência a apresentar exemplos é um passo essencial rumo ao estabelecimento, nas práticas nas aulas de língua portuguesa, de um procedimento de reflexão linguística como vem sendo proposto por inúmeros estudos em Linguística Aplicada.

reflexão linguística; ensino de língua portuguesa; material didático


This paper aims to establish a distinction between two concepts involved in the school practice of linguistic reflection - the opposition between case and example. First, the theoretical definition of these concepts is presented. Then, the analysis of a few proposals of work on linguistic aspects found in Portuguese language textbooks is done in order to advance a more precise definition of the concepts developed in this paper. We argue that the choice of basing linguistic reflection on cases rather than on presenting examples is an essential step towards the establishment of linguistic reflection in Portuguese language classes - as it has been proposed by many studies in Applied Linguistics.

linguistic reflection; Portuguese language teaching; textbook


Considerações Iniciais

Neste artigo, propomos uma distinção entre dois conceitos implicados na prática escolar de reflexão linguística - a oposição entre caso e exemplo. Os dois conceitos serão discutidos à luz de algumas propostas de trabalho com aspectos linguísticos de textos presentes em livros didáticos de Língua Portuguesa. Defendemos, essencialmente, que a renúncia à tendência a exemplificar em favor da reflexão em torno de casos é essencial para a constituição, nas práticas, de um procedimento de reflexão linguística nos termos que vêm sendo apresentados em diversos estudos e propostas acerca do ensino escolar da língua portuguesa. É fundamental, ainda, ressaltar que a discussão aqui proposta está unicamente relacionada ao contexto escolar, sem ter a intenção de questionar o uso de exemplos e contraexemplos no trabalho de várias correntes de estudos linguísticos. Dito isso, é importante considerar o fato de que o significado de "exemplo" dentro da escola e nos livros didáticos não pode ser confundido com o que significa "exemplo" no trabalho profissional de linguistas. Na primeira situação, encontramos no uso de "exemplos" uma tentativa de ilustrar um conceito já apresentado; enquanto na segunda, os "exemplos" são entendidos como um "modelo de uso" de determinada forma linguística, o qual pode levar ao estabelecimento de um novo conhecimento sobre a língua. Tratamos aqui da primeira noção de "exemplo".

Para tanto, iniciamos a discussão com uma retomada do que se tem dito acerca da prática de reflexão linguística em sala de aula, passamos ao estabelecimento teórico da distinção proposta para, então, observarmos situações de reflexão linguística em livros didáticos de língua portuguesa, a fim de desenvolver a descrição do que entendemos por caso e por exemplo. Finalizamos com o apontamento dos possíveis reflexos da distinção aqui proposta nas aulas de língua portuguesa. Passemos, então, à discussão sobre as diferentes visões sobre o trabalho com as formas linguísticas em aulas de língua portuguesa.

Do ensino de gramática à reflexão linguística: uma retomada das discussões ao longo desse percurso

Ensinar língua portuguesa no Brasil é uma prática social que envolve uma grande diversidade de contextos. Isso se deve, pelo menos em parte, ao processo de universalização da Educação Básica no Brasil, que foi iniciado a partir da metade do século XX. Desde então, o número de alunos matriculados nas escolas brasileiras aumentou substancialmente, chegando, em 2012, de acordo com os dados obtidos no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), a 50.545.050 alunos matriculados na Educação Básica em todo o país. Dentre eles, os alunos do 6º ano do Ensino Fundamental ao 3º ano do Ensino Médio têm aulas de Língua Portuguesa como componente curricular obrigatório, totalizando 26.790.630 alunos em 2012.

Diante dessa expansão do ensino, surgiram muitas críticas ao sistema educacional brasileiro em seus diferentes níveis. Nesse contexto, "o ensino de Língua Portuguesa tem sido, desde os anos 70, o centro da discussão acerca da necessidade de melhorar a qualidade de ensino no país" (Brasil, 1998, p.17). A desconsideração da realidade e dos interesses dos alunos, o uso do texto como pretexto para tratamento de aspectos gramaticais, a excessiva valorização da gramática normativa, assim como a descontextualização da metalinguagem e o trabalho mecânico com fragmentos linguísticos em frases soltas são algumas das críticas destinadas às aulas de Língua Portuguesa (Brasil, 1998), nas quais o ensino de gramática tem ocupado um local privilegiado.

Esse espaço de destaque recebido pelo ensino de gramática nas aulas de língua portuguesa levou a uma série de estudos e de reflexões sobre o assunto. Geraldi, em seu texto Unidades básicas do ensino de português, argumenta que a prática de análise linguística por ele proposta não partiria de textos "bem escritinhos" selecionados apenas para este fim, mas, antes disso, partiria do texto dos alunos, uma vez que "o ensino gramatical somente tem sentido para auxiliar o aluno" (Geraldi, 2011 [1984], p.74). No mesmo texto, o autor argumenta ainda que, a cada aula de prática de análise linguística, é preciso selecionar apenas um problema para análise e não uma lista de conteúdos gramaticais a serem explorados.

Nesse mesmo sentido, Possenti propõe, em seu texto Sobre o ensino de português na escola, que não é necessário ser ensinado o que já é sabido pelos alunos. Essa afirmação pode parecer redundante, contudo ela implica uma mudança substancial no que é, normalmente, feito nas aulas de língua portuguesa, pois sugere que "os programas anuais poderiam basear-se mais num levantamento do que falta ser atingido do que num programa hipoteticamente global que vai do simples ao complexo, preso a uma tradição que não se justifica" (Possenti, 2011 [1984], p.37). O autor argumenta também que não é a partir de exercícios que se aprende algo, mas sim por meio de práticas significativas. Possenti recorre, neste momento, à alusão à aquisição da linguagem por uma criança, a qual aprende a falar através da interação com adultos e outras crianças, sem a realização de exercícios específicos para esse fim. Ou seja, o domínio de língua decorre de práticas significativas e contextualizadas. Com esse exemplo, o autor desenvolve uma reflexão importante: se o processo de aprendizagem da linguagem oral ocorre através de práticas efetivas, por que não propormos algo semelhante para a linguagem escrita?

Franchi (2006 [1988]), quando aborda a questão do ensino de gramática, afirma que uma atitude negativa em relação à gramática passou a ser lugar comum entre educadores e estudiosos da linguagem. O autor retoma diferentes razões para essa postura diante da gramática, entre as quais se destacam: a insuficiência das noções e dos procedimentos da gramática tradicional; a inadequação dos métodos de ensino; a falta de relação entre o ensino de gramática e a produção e compreensão de textos; e o normativismo. Essas características do ensino da gramática tornam-na, para o autor, "estanque e restritiva", visto que "é no uso e na prática da linguagem ela mesma, e não falando dela, que se poderá reencontrar o espaço aberto da liberdade criadora" (Franchi, 2006 [1988], p.35).

Ao analisar a prática de ensino de gramática na escola, Franchi destaca, ainda, duas questões a serem consideradas para que haja compatibilidade do estudo gramatical com o aspecto criativo da linguagem: (i) a recuperação do "uso" da linguagem e (ii) as estratégias utilizadas no ensino da gramática. Sobre o primeiro aspecto, o autor lembra que o termo "uso" é ambíguo na literatura e que a gramática tradicional - quando o considera - faz registro do uso idiomático da modalidade padrão. Isto é, ao incorporar a noção de "uso", volta-se a uma concepção normativa, fazendo do uso da língua uma questão de obediência a dogmas. Franchi, então, conclui: "Que se deve aprender a modalidade culta? Claro. Mas isso não permite reduzir o estudo gramatical a um manual de etiquetas" (Franchi, 2006 [1988], p.77). Em relação ao segundo aspecto, o autor afirma, em consonância com os argumentos apresentados por Geraldi e Possenti, que a aprendizagem de gramática se dá apenas através de uma vivência rica, quando os fatos da língua são resultado de um trabalho efetivo e não de exemplos isolados. Diante desses argumentos, o autor defende uma concepção mais ampla da gramática (e do seu ensino), que extrapole exercícios de segmentação, classificação e nomenclatura.

Dando continuidade à discussão, Possenti (2012[1996]) esclarece que

Falar contra a "gramatiquice" não significa propor que a escola só seja "prática", não reflita sobre as questões de língua. [...] Trata-se apenas de reorganizar a discussão, de alterar as prioridades (discutir os preconceitos é mais importante do que fazer análise sintática - eu disse mais importante, o que significa que a análise sintática é importante, mas é menos...). Além do mais, se se quiser analisar fatos da língua, já há condições de fazê-lo segundo critérios bem melhores do que muitos utilizados atualmente pelas gramáticas e manuais indicados nas escolas. [grifo no original] (Possenti, 2012 [1996], p.56)

Nesse sentido, a discussão feita por Sírio Possenti (1996) sobre o dado em Análise do Discurso também é pertinente para a proposta apresentada neste artigo. O autor argumenta que existem dois tipos de dados: o dado dado e o dado dado. Para distingui-los, Possenti define o dado dado como aquele que é herdado, doado, em oposição ao dado dado, o qual serve e é realmente dado. A indicação do autor de que os dados investigados pela Análise do Discurso são de natureza distinta foi importante para afinar a nossa percepção de que as sentenças e os enunciados aos quais as definições dos conhecimentos linguísticos são atreladas, independentemente do fato de eles as antecederem ou as sucederem, também são essencialmente diferentes.

Outra contribuição importante para a discussão desenvolvida até este ponto são os três defeitos - apontados por Perini (2005 [1997]) - no ensino de gramática: (i) seus objetivos estão mal colocados; (ii) a metodologia adotada é inadequada; e (iii) a própria matéria carece de organização lógica. O autor aponta, como principal mecanismo para combater esses três aspectos, a conscientização do gramático (e do professor) de que é preciso dizer o que a língua é, não o que ela (segundo ele) deveria ser. Esse deslocamento de foco para os fatos da língua reforça, mais uma vez, a pertinência da distinção entre caso e exemplo, proposta neste artigo.

Faz-se aqui necessária, também, a retomada de contribuições apresentadas por Geraldi para a reflexão sobre o ensino de gramática nas aulas de língua portuguesa, uma vez que suas ideias são - em grande medida - precursoras desta discussão. O autor adota uma concepção interacionista da linguagem, em que são três os eixos centrais: a historicidade, o sujeito e o contexto social. Essa concepção provoca importantes deslocamentos na prática de sala de aula: passa-se do ensino de reconhecimento de verdades científicas a um ensino como conhecimento e produção, assim como do discurso único do professor para uma atividade de interlocução em sala de aula.

Inseridas nesta perspectiva, as práticas de leitura e escrita criam condições para atividades de interação efetivas em sala de aula. A análise linguística se daria, portanto, no interior dessas práticas e a partir delas. Geraldi delimita a expressão "análise linguística", destacando que, ao usar o termo, pretende fazer referência ao conjunto de "atividades que tomam uma das características da linguagem como seu objeto: o fato de ela poder remeter a si própria, ou seja, com a linguagem não só falamos sobre o mundo ou sobre nossa relação com as coisas, mas também falamos sobre como falamos" (Geraldi, 2003 [1991], p.189). Dentro da análise linguística, encontram-se, por sua vez, as atividades epilinguísticas e metalinguísticas. As primeiras refletem sobre a linguagem, tendo como objetivo o uso dos recursos expressivos em função de atividades linguísticas nas quais há engajamento. As segundas, por outro lado, constituem-se como uma reflexão analítica sobre os recursos expressivos, levando à construção de noções que possibilitam a sua categorização. Em uma prática de ensino que tem como alvo a prática social, predominariam, por conseguinte, as atividades epilinguísticas.

Uma maneira de desenvolver a prática de análise linguística delimitada por Geraldi é a proposta por Bagno (2002): realização de pesquisa linguística nas aulas de língua portuguesa. O autor coloca a análise linguística realizada por meio de pesquisa como um dos pilares da educação linguística. Bagno reconhece que uma pesquisa sobre a língua só poderá ser feita a partir de determinado período do percurso escolar, no entanto, considera ser este o modo mais adequado de não se apoiar nas conceituações da gramática normativa, mas sim de empreender uma teorização/investigação da língua.

O breve percurso da reflexão teórica acerca do ensino de gramática apresentado nesta seção se difundiu nos estudos em Linguística Aplicada. Segundo Mendonça (2006), as discussões sobre essa questão nas últimas décadas fizeram emergir e se consolidar "a proposta da prática de análise linguística (AL) em vez de aulas de gramática" (p.199). Em suma, essa visão se contrapõe ao chamado "ensino tradicional de gramática" (Bunzen, 2009, p.88), em que o professor ensina uma técnica de analisar e classificar elementos da língua, considerando esses elementos em si mesmos. Isto é, por um lado - no ensino de gramática - a língua é tratada como um sistema fechado, e os conhecimentos gramaticais são o foco de ensino, sendo, normalmente, apresentados de forma normativa; por outro lado - na análise linguística - a língua é vista como uma ação interlocutiva situada, sujeita às interferências dos falantes, e os usos passam a ser o foco de ensino.

É importante salientar que a análise linguística não elimina a gramática, ao invés disso, ela a engloba, porém, o faz "num paradigma diferente, na medida em que os objetivos a serem alcançados são outros" (Mendonça, 2006, p.206). A mudança de paradigma está fundamentada, portanto, no deslocamento da centralidade da norma padrão para os efeitos de sentido. Na perspectiva de ensino de uso da língua, portanto, a prática de análise linguística constitui, ao lado da leitura e da produção de textos, os eixos básicos do ensino de língua materna. Podemos defini-la, então, como

parte das práticas de letramento escolar, consistindo numa reflexão explícita e sistemática sobre a constituição e o funcionamento da linguagem nas dimensões sistêmica (ou gramatical), textual, discursiva e também normativa, com o objetivo de contribuir para o desenvolvimento de habilidade de leitura/escuta, de produção de textos orais e escritos e de análise e sistematização dos fenômenos linguísticos (Mendonça, 2006, p.208).

A maneira como se dá a relação entre os três eixos, no entanto, ainda é um desafio para professores e pesquisadores envolvidos com o ensino de língua materna. Por isso, a discussão sobre o lugar da análise linguística em uma perspectiva de ensino do uso da língua, de ação social pela linguagem, mostra-se pertinente.

A fim de contribuir para o entendimento da relação entre os três eixos, Simões et al. (2012) desenvolvem a abordagem de análise linguística sintetizada por Mendonça (2006). Neste momento, percebe-se a adoção do termo "reflexão linguística" no lugar de "análise linguística", a fim de reforçar a mudança de paradigma: saem de cena a classificação e a identificação de conteúdos gramaticais para a entrada da reflexão sobre os fatos da língua. Para as autoras, a reflexão linguística está a serviço: (i) da reescrita do texto pelos alunos (em especial); (ii) da construção de competências de escrita e leitura; e (iii) da construção de conhecimentos sobre a língua portuguesa (conhecimentos sistemáticos, mas articulados aos usos da língua).

Um aspecto importante dessa mudança de paradigma na abordagem dos conhecimentos linguísticos é a forma de trabalho predominante em cada situação. Se o observarmos, chegaremos - por um lado - ao método de trabalho expositivo, seguido de treinamento, constituinte do ensino de gramática e - por outro lado - ao método reflexivo, que tem a língua em uso como ponto de partida e de chegada, além de privilegiar a pesquisa e a resolução de problemas, característico da prática de reflexão linguística (Simões et al., 2012). Essa distinção deriva do longo período de reflexões já mencionadas sobre o assunto e da noção de "ciclo uso-reflexão-uso", segundo a qual o uso é, ao mesmo tempo, o ponto de partida e a finalidade do ensino. O trabalho baseado no uso é fundamental, pois motiva a reflexão sobre a linguagem, de maneira a salientar tanto as funções cognitivas da linguagem - responsáveis por estruturar a compreensão do mundo e de nós mesmos - quanto as suas funções socioculturais - relacionadas ao momento da interlocução e à interação social. Esse aspecto é importante para este artigo porque dele decorre a pertinência de se propor a diferenciação entre exemplo e caso no trabalho com os recursos linguísticos. Argumentamos, ainda, que identificar essa distinção pode ajudar o professor a entender uma diferença central entre a abordagem exclusivamente expositiva e a reflexiva, podendo, assim, repensar a sua prática.

Outros dois aspectos dessa mudança de paradigma ainda podem ser considerados para justificar a distinção aqui proposta, são eles: o foco de trabalho e o tratamento dos conteúdos gramaticais. Sobre o primeiro, pode-se dizer que, no ensino de gramática, o foco está na definição de categorias e funções, enquanto na prática de reflexão linguística, o foco passa a estar nos fatos da língua. Em relação ao segundo aspecto, nas aulas de gramática, os conteúdos são ensinados conforme uma ordem fixa e com pretensão à exaustividade, em contraposição à reflexão linguística, que seleciona os conteúdos a partir da sua relevância para certos usos da língua (Simões et al., 2012). Os dois aspectos citados estão relacionados com o movimento espiralado e progressivo proposto pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil, 1998) para a abordagem dos conteúdos e embasam a distinção a ser estabelecida entre as ações de elencar exemplos e explorar casos.

A retomada aqui desenvolvida mostra-se relevante para a distinção a ser estabelecida, uma vez que a escolha entre uma das duas práticas, a saber, a exposição de exemplos ou a exploração de casos, está intimamente relacionada à visão que se tem sobre o trabalho com as formas linguísticas em sala de aula. Essa relação será desenvolvida na seção a seguir.

Distinção entre casos e exemplos

Chegou a hora de estabelecermos, de maneira objetiva, a distinção entre casos e exemplos. Em seguida, com o intuito de melhor desenvolvermos a contribuição a que este artigo se propõe, apresentaremos breves análises de como tais conceitos estão presentes em livros didáticos de língua portuguesa, aprovados pelo Programa Nacional do Livro Didático.

Casos e exemplos: dimensão teórica

O desenvolvimento de uma prática de ensino de uso da língua está alinhado com a ideia de uma escola que propicie um letramento diversificado aos alunos. Nesse sentido, usos mais padronizados da língua são apenas repertórios pertencentes a certa variedade, que podem ser alvo de reflexão. Além disso, para Simões et al. (2012), "sendo compromisso da escola diversificar os sentidos do letramento na vida dos alunos, o estudo da norma padrão será consequência do trabalho a ser feito" (p.178).

Apesar de as discussões sobre o deslocamento do ensino de gramática para a reflexão linguística terem se intensificado e apontado mudanças - como as citadas anteriormente - para o trabalho com as formas linguísticas, é, ainda, necessário o estabelecimento de orientações mais específicas que ajudem a nortear a realização dessa nova prática. Para tentar progredir nesse sentido, propomos que se tenha um olhar atento para a maneira como os conceitos são desenvolvidos, em especial, para as sentenças e os enunciados aos quais as definições apresentadas são atreladas.

Argumentamos que essas sentenças e enunciados podem ser classificados de duas formas: como casos ou como exemplos. O primeiro grupo constitui-se de enunciados que servem de ponto de partida para a reflexão linguística, funcionando, então, como dado para uma pedagogia de construção do conhecimento pelo próprio estudante; enquanto o segundo grupo se caracteriza por ser uma lista de sentenças apresentadas a fim de ilustrar uma definição pronta. O que distingue caso e exemplo é, portanto, a função deles no trabalho com os conhecimentos linguísticos. Enquanto o exemplo tem a função de, a partir de uma definição, elencar possibilidades do que foi explicado, o caso funciona como um dado para a construção de um conceito. Nos momentos em que o trabalho com os conhecimentos linguísticos parte de um caso, ressaltando as funções que o fenômeno tem em um texto e em um contexto determinados, realiza-se o proposto por uma abordagem de ensino de uso da língua, uma vez que "o ensino de português está fundamentado na centralidade do texto, mesmo quando o foco recai sobre itens do repertório linguístico que servem para compô-lo" (Rio Grande do Sul, 2009, p.72). Por outro lado, a apresentação de uma lista de exemplos sugere que determinado conhecimento linguístico se esgota em si mesmo, ignorando-se o seu uso. A presença de casos, em vez de exemplos, estaria, portanto, em consonância com a abordagem de ensino da língua em uso, visto que, dessa forma, parte-se do uso da língua para a reflexão linguística.

Além disso, ficaria difícil uma lista de exemplos dar conta da amplitude dos conhecimentos linguísticos. É provável que, quaisquer que fossem os exemplos apresentados, eles não abrangessem a riqueza do fenômeno abordado. Por outro lado, ao propor o trabalho com determinado conhecimento linguístico em diferentes momentos e atrelado a tipos textuais diversificados, partindo de casos, seria possível estimular a reflexão sobre diferentes aspectos do fenômeno, ampliando o entendimento do aluno acerca do funcionamento do recurso trabalhado.

A distinção teórica proposta enfatiza, portanto, que o exemplo tem por característica ser ilustrativo, isto é, ele pressupõe um entendimento a ser ilustrado; já o caso é algo para ser compreendido, em outras palavras, ele exige um entendimento. Pode parecer que há, nessa distinção teórica, uma associação entre as noções de exemplo e de casoe os raciocínios de dedução e indução, respectivamente. Todavia, a breve discussão sobre esses conceitos feita a seguir busca evidenciar que essa relação associativa não se sustenta.

O raciocínio é, para Sternberg (2006), "o processo de tirar conclusões a partir de indícios e de evidência"1 (p.499). Esse processo tem sido, desde Aristóteles, dividido em dois tipos: dedutivo e indutivo. O primeiro deles é definido como o "processo de raciocínio a partir de uma ou mais afirmações gerais relacionadas ao que é conhecido para chegar a uma conclusão logicamente certa"2(Sternberg, 2006, p.499). Em outras palavras, no raciocínio dedutivo, parte-se do geral para o particular. Este percurso se dá através de proposições lógicas, isto é, de asserções que podem ser verdadeiras ou falsas, as quais levam a uma conclusão. Dois dos principais tipos de raciocínio dedutivo apresentados por Sternberg são o condicional e o silogístico. O condicional se caracteriza pela presença de proposições se-então, como em "Se dez é um número par, então ele é divisível por dois". Já o silogístico é, como o nome sugere, baseado em silogismos - ou seja, em argumentos dedutivos que levam à conclusão a partir de duas premissas, sendo uma delas a premissa maior e outra, a menor - como em "Todo número par é divisível por dois. Dez é par. Logo, dez é divisível por dois".

No raciocínio indutivo, por outro lado, "partimos da observação e análise dos fatos, concretos, específicos, para chegarmos à conclusão, i.e., à norma, regra geral, lei, princípio, quer dizer, à generalização"[grifos no original] (Garcia, 2006, p.306). Partimos, portanto, do específico rumo ao geral. As conclusões do raciocínio indutivo não são logicamente embasadas como as dedutivas; elas se sustentam, antes disso, pelas evidências disponíveis e pela probabilidade decorrente dessas evidências.

A partir das definições apresentadas, é possível perceber que, em ambos os raciocínios, há uma construção de conhecimento no percurso até a conclusão. Na dedução, isso acontece porque, estando ela relacionada a um princípio, é preciso haver um ganho de conhecimento a partir das premissas para que se possa chegar à conclusão. Já na indução, só é possível chegar à conclusão se, a partir da análise das evidências específicas, constrói-se um conhecimento mais geral. Dito isso, podemos esclarecer que a diferença proposta neste trabalho não acontece entre dedução e indução, mas é, na verdade, entre repetição e indução. Argumentamos que a listagem de exemplos fechados, que apenas repetem um princípio, não produz conhecimento novo, ao contrário do que foi apresentado anteriormente sobre os raciocínios dedutivo e indutivo. Enfim, construir conclusões a partir de um princípio é dedução, e não é o que acontece com exemplos explicativos, visto que eles são mais derivações do que princípios. Ao privilegiarmos o uso de casos como ponto de partida para a reflexão linguística, propomos um processo de reflexão linguística inicialmente indutivo, mas no qual os processos de dedução e de indução se alternem.

A seguir, apresentamos breves análises de como o uso de casos e exemplos aparece em livros didáticos de língua portuguesa, aprovados pelo Programa Nacional do Livro Didático, para os anos finais do Ensino Fundamental. Nossa intenção, com isso, é proporcionar uma compreensão mais apurada da distinção proposta no presente artigo.

Casos e exemplos: dimensão prática

A fim de desenvolver essa distinção teórica proposta entre a apresentação de exemplos e a reflexão sobre casos, será discutida a maneira como três coleções de livros didáticos dedicadas aos anos finais do Ensino Fundamental realizam o trabalho com diferentes conhecimentos linguísticos. Optamos por explorar os livros didáticos neste momento porque eles também são alvo de críticas destinadas às aulas de Língua Portuguesa, assim como as ações de excessiva valorização da gramática normativa e de trabalho mecânico com fragmentos linguísticos em frases soltas - citadas na seção inicial deste trabalho. Segundo Batista (2003), alguns aspectos contestados são o seu caráter ideológico e discriminatório, a sua desatualização, as suas incorreções conceituais e as insuficiências metodológicas. Os três últimos aspectos da crítica, em especial, estão relacionados à distinção aqui proposta, pois se referem diretamente ao trabalho com as formas linguísticas, proposto por esses materiais didáticos.

Outra característica dos livros didáticos que nos faz abordá-los neste momento é o fato de que eles, mesmo com tantas críticas, tornaram-se, muitas vezes, uma das poucas formas de documentação e consulta de que professores e alunos fazem uso. Para Batista (2003), o livro didático "tornou-se, sobretudo, um dos principais fatores que influenciam o trabalho pedagógico, determinando sua finalidade, definindo o currículo, cristalizando abordagens metodológicas e quadros conceptuais, organizando, enfim, o cotidiano da sala de aula" (Batista, 2003, p.28).

Nesse cenário, optamos por observar coleções aprovadas pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), visto que, como salientam Batista et al. (2008), estando o livro didático presente cotidianamente na sala de aula e sendo um dos elementos básicos da organização do trabalho docente, a avaliação do PNLD "terminou por resultar numa política do Estado não apenas de intervenção no campo editorial e de controle de sua produção, mas também, por essa via, de intervenção no currículo e de seu controle" (p.53). Argumentamos, portanto, que, quando se assume que o PNLD exerce, também, uma intervenção no currículo escolar, é importante considerar a sua avaliação ao selecionar os livros didáticos a serem investigados.

Especificamente sobre a mudança do ensino de gramática para a reflexão linguística, Bunzen (2009), ao analisar os livros destinados às séries iniciais do Ensino Fundamental pelo PNLD 2005 e investigar a maneira como eles vêm trabalhando com os conhecimentos linguísticos, observou uma mudança. Conforme o autor, "nota-se um movimento maior em direção à construção/reflexão do que um enfoque centrado na tradição gramatical, na transmissão de conhecimento e na prioridade do trabalho de dedução" (Bunzen, 2009, p.106). Mesmo tendo, ainda, vários aspectos a serem revistos (como o trabalho com os fenômenos sociolinguísticos e a sistematização dos conhecimentos linguísticos construídos, por exemplo), o autor ressalta uma maior aproximação entre o que é apresentado pelos livros didáticos e o que orientam os PCN.

Os livros didáticos aqui analisados fazem parte do corpus de análise de Gil (2012), em que a autora se deteve na análise do trabalho proposto com uma forma linguística específica nas coleções aprovadas pelo PNLD 2011, dedicado à avaliação de livros para os anos finais do Ensino Fundamental. Das dezesseis coleções aprovadas por aquela edição do Programa, foram incluídas no corpus de análise aquelas que continham, na lista de conhecimentos linguísticos abordados - apresentada ao longo da resenha das obras feita pelos avaliadores do PNLD 2011 -, menção explícita à forma linguística foco daquela pesquisa. Um total de sete coleções atendeu a esse critério, das quais três foram selecionadas para as breves análises aqui apresentadas.

A seleção dessas três coleções se deu pela representatividade que as situações descritas a seguir têm dos usos possíveis dos conceitos focos deste artigo: casos e exemplos. Para chegar a este recorte, foram desenvolvidas análises das seções de trabalho com as formas linguísticas de todas as coleções que constituíam a amostra inicial. Tal análise se deu a partir das seguintes questões norteadoras: (i) as sentenças que acompanham a definição do conceito são enunciados que servem de ponto de partida para a análise linguística ou são uma lista de sentenças apresentadas a fim de ilustrar uma definição pronta? (ii) tais sentenças são fragmentos isolados ou estão contextualizadas? (iii) tais sentenças contribuem para a construção do conhecimento ou são repetições de um conceito pronto?

A primeira situação a ser observada é o trabalho realizado no volume do 7º ano da coleção Português: ideias e linguagens sobre o uso dos tempos verbais do Indicativo. O livro didático (doravante LD) inicia a seção sobre esse assunto retomando a definição de modo Indicativo e dizendo que serão retomados os tempos desse modo e seus usos. Em seguida, é introduzido o subtítulo "Presente", que abre uma breve seção onde são elencadas três situações de uso desse tempo verbal. Ao final de cada situação listada, há uma sentença que exemplifica o uso explicado. Depois da apresentação dos três usos, há uma tirinha com verbos no presente junto à solicitação de que o aluno indique a finalidade do uso de cada verbo grifado. Entre essa seção e a seguinte, intitulada "Pretérito", há quatro exercícios sobre o presente do indicativo, os quais não serão analisados aqui por não estarem no escopo deste trabalho.

A seção "Pretérito" é subdividida em três: Pretérito perfeito, Pretérito imperfeito e Pretérito mais-que-perfeito. A primeira e a terceira subseções têm exatamente a mesma estrutura que a seção sobre o presente. A segunda, sobre o imperfeito, apresenta apenas uma diferença em sua estrutura: os exemplos são apresentados antes com seus verbos grifados e a explicação sobre os usos desse tempo se inicia com a afirmação de que "os verbos em destaque estão no pretérito imperfeito do indicativo" (Delmanto; Castro, 2009, p.33). A seguir, são listados os usos do tempo verbal e, após cada situação de uso, há uma indicação de qual das frases apresentadas anteriormente ilustra aquele uso. Após as três subseções há, novamente, uma lista de exercícios. Dentre as sentenças e enunciados apresentados como exemplos, alguns foram retirados de um trecho adaptado da obra Dom Quixote, o qual aparece no início da unidade, e outros foram criados. Além disso, o trabalho com os dois tempos de futuro não aparece neste momento, sendo desenvolvido na unidade seguinte.

No que se refere à distinção aqui proposta, a situação descrita acima representa o que chamamos de apresentação de exemplos, pois as sentenças e os enunciados têm a função de apenas ilustrar as definições de uso apresentadas. Dizemos isso porque em nenhum momento é proposta uma reflexão a partir das sentenças e dos enunciados apresentados; pelo contrário, eles pressupõem um entendimento a ser ilustrado. É importante salientar que não importa a ordem em que as sentenças são apresentadas para defini-las como exemplos ou casos; elas podem vir antes da definição, como na seção sobre o pretérito imperfeito, sem que desempenhem a função de casos. Em outras palavras, mesmo antes da definição, se as sentenças não são alvo de reflexão e de análise, elas continuam sendo consideradas exemplos. O mesmo se pode dizer quanto à fonte dos enunciados apresentados: ser ou não retirados de um texto não é o suficiente para dizer que um enunciado é caso ou exemplo. Na situação descrita, alguns exemplos eram retirados do texto apresentado pela unidade e outros, não; contudo, todos eles desempenhavam a mesma função - a saber, ilustrar o conceito apresentado - e é isso o que importa para a distinção proposta por este artigo.

Observaremos, agora, o trabalho realizado pela coleção Português: uma proposta para o letramento com as conjunções adversativas. Essa reflexão é proposta no volume dedicado ao 6º ano do Ensino Fundamental e inicia com a retomada de três trechos do texto "A filha", de Samir Meserani, o qual abre a unidade. Em cada um dos trechos retomados há uma conjunção adversativa ("porém", "entretanto" e "mas", respectivamente), as quais estão grifadas. Abaixo do quadro com os excertos, pede-se que o aluno observe as duas ideias presentes no primeiro trecho: elas são apresentadas separadamente e ligadas, através de uma seta, à afirmação de que "há um contraste, uma oposição, um desacordo entre as duas ideias" (Soares, 2002, p.67). Em seguida, é dito que "a palavra porém liga as duas ideias, deixando claro o contraste" [grifos no original] (Soares, 2002, p.67). Após essa observação, há três questões de reflexão para os alunos. A primeira delas parte da afirmação de que as palavras grifadas nos outros dois trechos (entretanto e mas) também unem ideias que se opõem e pede para que os alunos identifiquem que ideias são essas. A segunda questão pergunta aos alunos se seria possível substituir a palavra "porém" por "entretanto" ou por "mas", e vice-versa, sem que houvesse alteração de sentido. Por fim, a terceira questiona os alunos se seria possível substituir um dos três termos grifados ("porém", "entretanto" e "mas") pela palavra "porque" sem que houvesse alteração de sentido. Para concluir o trabalho com essas conjunções, o LD apresenta exercícios em que elas são o foco. Outra observação a ser feita é o fato de que, em contraste com a situação analisada anteriormente, não há título ou subtítulos ao longo do trabalho proposto com as conjunções e foi feita a opção de não se abordar a nomenclatura da gramática tradicional neste momento.

Argumentamos que, nesta situação, há uma exploração de casosextraídos de um texto, pois os trechos apresentados funcionam como um dado para a construção de um conceito. No trabalho observado acima, por meio de questionamentos aos alunos, são ressaltadas as funções que determinados nexos têm no texto em que aparecem. Em outras palavras, os trechos são tratados como algo para ser compreendido, que exige um entendimento. Pode-se perceber que, diferentemente da função desempenhada pelos exemplos do trabalho descrito sobre o uso dos tempos do indicativo, há um estímulo à reflexão sobre os casosde conjunções adversativas.

Sobre a opção por não apresentar a nomenclatura, podemos supor que seja justificada pelo privilégio das atividades epilinguísticas (atividades de reflexão sobre a linguagem) nesta etapa de ensino (6º ano). Como orientam os PCN, o aumento das atividades metalinguísticas (com foco na nomenclatura e em sistemas classificatórios) deve acontecer ao longo dos anos de ensino fundamental, o que justifica a sua ausência no volume dedicado ao 6º ano e indica a possibilidade de que, se a coleção realizar a abordagem dos conteúdos num movimento espiralado e progressivo ao longo dos anos escolares, a nomenclatura seja abordada nos volumes subsequentes.

A terceira situação a ser observada é o trabalho proposto pelo volume do 7º ano da coleção Radix sobre os advérbios. O LD apresenta, inicialmente, três enunciados retirados do texto que aparece no início da unidade e pede que o aluno identifique as expressões que indicam lugar, finalidade e tempo, respectivamente. Mais adiante, outro enunciado do texto é retomado: "Pensar globalmente e agir localmente"; então, segue-se a observação de que "globalmente" e "localmente" indicam o modo como as ações "pensar" e "agir" devem ser praticadas. Após, aparece a explicação de que essas duas palavras são advérbios e que "advérbio é a palavra que, em princípio, relaciona-se com o verbo acrescentando-lhe circunstâncias de tempo, lugar, modo, negação, intensidade, afirmação, dúvida etc." [grifos no original] (Terra; Cavallete, 2009, p.139). Seguem-se à explicação quatro enunciados - também retirados do texto apresentado no início da unidade - em que os advérbios estão grifados, com setas ligando-os aos verbos com os quais se relacionam e com uma palavra indicando a sua circunstância embaixo de cada um. Por fim, há a observação de que os advérbios também se referem a adjetivos e a outros advérbios para exprimir modo ou intensidade e, mais uma vez, dois enunciados são apresentados como exemplos.

A situação descrita é interessante para a distinção aqui proposta, pois nela podemos observar a presença tanto de casos quanto de exemplos. Por um lado, os enunciados apresentados logo no início são alvo de reflexão e análise por parte dos alunos e, a partir dessa definição, um conhecimento é sistematizado. Por outro lado, os enunciados apresentados após a definição têm a função de ilustrar o que foi dito, sem que os alunos sejam estimulados a refletir sobre eles. Essa situação mostra que há momentos em que podemos encontrar sentenças e enunciados exercendo as duas funções, ou seja, elas não são excludentes.

Procuramos, ao longo dessa seção, aprofundar a distinção teórica proposta ainda nas considerações iniciais. As situações observadas, por sua vez, tiveram o objetivo de desenvolver a descrição do que entendemos por "caso" e por "exemplo", enfatizando a função desempenhada por eles.

Considerações Finais

Foram feitas, no início deste trabalho, algumas considerações sobre o ensino de língua materna, em especial, sobre o lugar do trabalho com os conhecimentos linguísticos. Gagné (2002), ao propor uma reflexão sobre o ensino de francês nas escolas regulares da França, argumenta que há duas orientações principais no que diz respeito ao ensino da língua materna: uma pedagogia da língua e uma pedagogia da fala. Esse argumento é interessante principalmente pelo desdobramento apresentado pelo autor: "de concepção mais prescritiva, a primeira orientação se concentra no código. A segunda orientação, mais descritiva e mais funcional, se concentra na utilização do código" [grifos nossos] (Gagné, 2002, p.196). A fim de apresentar, mais adiante, uma proposta de síntese entre as duas abordagens, Gagné aprofunda a descrição das duas orientações, trazendo questionamentos sobre o papel desempenhado por elas na formação dos alunos. Um desses questionamentos é pertinente para a argumentação aqui proposta, pois Gagné aponta que, ao priorizar o código em detrimento do seu uso, a perspectiva mais prescritiva acaba por

esquecer que a criança normal de 4-5 anos desenvolveu uma competência linguística impressionante, como demonstram suas realizações de concordância oral em gênero do adjetivo. No entanto, ao final de seis anos de escolarização, diversas crianças não dominam em seus textos escritos as regras de concordância simples e a morfologia escrita dos adjetivos correntes. Não é espantoso? Num caso, o aprendizado se fez pela utilização da linguagem em situações de comunicação. No outro, a escola quer que ele se faça a partir de um aprendizado explícito de regras de gramática e de um raciocínio hipotético-dedutivo [...]. Gagné, 2002, p.203)

Neste ponto, a discussão de Gagné dialoga com a distinção que propomos, pois, assim como foi argumentado ao longo deste artigo, é destacado o trabalho realizado a partir da reflexão sobre o uso (casos). Dito isso, defendemos que o professor de língua materna pode valer-se da consciência relativa às diferentes funções desempenhas por casos e exemplos para desenvolver a prática de reflexão linguística em sala de aula.

Além disso, a distinção analítica feita entre exemplo e caso pode ser importante para que os professores, ao selecionar as coleções de livros didáticos a serem adotadas, possam observar a postura das coleções no trabalho com os conhecimentos linguísticos. Ressaltamos que a presença de casos possibilita que se parta do uso da língua para a reflexão linguística. Diante disso, ter um olhar atento à opção feita pelas coleções entre apresentar exemplos ou partir de casos é um bom critério para a avaliação e a escolha dos livros didáticos por parte dos professores. Defende-se isso porque a postura das coleções no trabalho com os conhecimentos linguísticos é um aspecto que deve ser observado pelos professores, no momento da escolha da coleção a ser adotada, e a distinção entre exemplo e caso mostra-se produtiva para essa análise.

Seja para a elaboração de suas aulas, seja para a escolha de material didático, a distinção teórica desenvolvida objetiva oferecer aos professores uma orientação relacionada à prática em meio às discussões sobre a mudança de paradigma do ensino de gramática para a reflexão linguística.

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  • 1
    Tradução nossa. Original: "is the process of drawing conclusions from principles and from evidence".
  • 2
    Tradução nossa. Original: "is the process of reasoning from one or more statements regarding what is known to reach a logically certain conclusion".

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2015

Histórico

  • Recebido
    09 Jun 2014
  • Aceito
    29 Out 2014
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