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O classicista digital e os elementos emergentes de uma atividade de trabalho entre os artefatos antigos e os recursos computacionais

The digital classicist and the emerging elements of a work activity between ancient artifacts and computational resources

RESUMO

O artigo visa discutir o trabalho do classicista digital, a partir da concepção de gênero profissional (Clot, 2000CLOT, Y.; FAÏTA, D. Genres et styles en analyse du travail: concepts et méthodes. Travailler, v. 4, p. 7-42, 2000.). Para isso, valemo-nos de textos orais e da análise textual proposta pelo Interacionismo Sociodiscursivo, a fim de verificar suas atividades acadêmicas e as características emergentes de seu métier. Os resultados revelam elementos quanto ao deslocamento institucional do classicista digital; ao uso de inglês como língua internacional; à diversidade do grupo de trabalhadores; ao ambiente interacional conflituoso, mas enriquecedor; aos artefatos computacionais e ao uso e criação de dados digitais; ao compartilhamento e à colaboração entre pesquisadores e colaboradores; e à necessidade de estabelecimento do agir e de procedimentos científicos que se adaptam conforme as inovações tecnológicas.

PALAVRAS-CHAVE:
Classicista digital; Humanidades Digitais; Clássicas Digitais; Interacionismo Sociodiscursivo; Gênero profissional

ABSTRACT

This article aims to discuss the work of the digital classicist, based on the concept of professional genre (Clot, 2000CLOT, Y.; FAÏTA, D. Genres et styles en analyse du travail: concepts et méthodes. Travailler, v. 4, p. 7-42, 2000.). For this, we make use of oral texts and the textual analysis proposed by Sociodiscursive Interactionism, in order to verify their academic activities and the emerging characteristics of their métier. The results reveal elements regarding the institutional displacement of the digital classicist; the use of English as an international language; the diversity of the group of workers; the conflicting but enriching interactional environment; the computational artifacts and the use and creation of digital data; sharing and collaboration between researchers and collaborators; and the need to establish scientific actions and procedures that adapt according to technological innovations.

KEYWORDS:
Digital classicist; Digital Humanities; Digital Classics; Sociodiscursive Interactionism; Professional genre

1 Introdução

Os classicistas estão na vanguarda da implantação de recursos computacionais aplicados aos objetos de estudo do campo da Humanidades, abrindo o caminho das Humanidades Digitais. Tal papel foi assumido pelo jesuíta Roberto Busa, padre italiano que se dedicou à investigação da obra de Tomás de Aquino e estabeleceu sua missão a criação de léxico lematizado de seus livros. Um trabalho longo e demorado, que fora iniciado no final dos anos 40, mas só completado nos anos 80, quando outras propostas também explorariam técnicas computacionais para a divulgação, manutenção e estudo dos textos da antiguidade clássica. Dentre elas, citamos o Thesaurus Linguae Graecae (TLG), com início em 1972, e a Biblioteca Digital Perseu (BDP), com início em 1987, ambas bibliotecas digitais que contam com um acervo significativo de língua e literatura grega, no primeiro caso, e de outros idiomas históricos como latim, árabe etc., no segundo.

Mais do que a digitalização de obras clássicas, o TLG e a BDP oferecem uma série de recursos para análise e interpretação dos textos. Tradução dos textos para a língua inglesa, analisador morfológico automático, dicionários on-line, comentários, frequência de palavras e palavras-chaves importantes de uma obra são uma amostra do que se encontra disponível na BDP. As ferramentas foram incrementadas ao longo dos anos desde a sua formulação e demonstram uma maturidade na disponibilidade de acesso aos textos clássicos, fato que marca uma progressão na incorporação sistematizada para o enriquecimento e a compreensão dos textos.

Nesse ínterim, emerge do campo das Humanidades um grupo de professores e pesquisadores que incorporam, em seus estudos, suas pesquisas e seus trabalhos, ferramentas e técnicas digitais e computacionais, o qual denominamos classicistas digitais. Conforme o domínio The Digital Classicist, hospedado pelo Instituto de Estudos Clássicos da Universidade de Londres, a iniciativa se coloca “como uma comunidade decentralizada e internacional de pesquisadores e estudantes interessados na aplicação de métodos e tecnologias digitais inovadoras para a pesquisa do mundo antigo”1 1 Original: “[...] a decentralised and international community of scholars and students interested in the application of innovative digital methods and technologies to research on the ancient world. The Digital Classicist is not hard-funded, nor owned by any institution”. (The Digital [...], ca. 2008THE DIGITAL Classicist. [S. l.], ca. 2008. Disponível em: Disponível em: https://www.digitalclassicist.org/ . Acesso em: 30 ago. 2022.
https://www.digitalclassicist.org/...
, n. p.). A descrição traz duas questões acerca de uma identificação profissional: em primeiro lugar, comunidade desvela uma concepção de um coletivo, e em segundo, decentralizada e internacional demostra tratar-se de uma comunidade que se encontra em diversos lugares do mundo, não conectadas geograficamente, mas pelos objetos e objetivos em comum.

Nessa direção, a classicista Terras (2010TERRAS, M. The Digital Classicist: disciplinary focus and interdisciplinar vision. In: BODARD, G.; MAHONY, S. (Ed.). Digital Research in the study of classical antiquity. Farnham: Ashagate, 2010. p. 171-189.) fornece uma contribuição a esse respeito. Apesar do pioneirismo, os classicistas digitais se veem em uma posição que os força a definir seu campo de investigação distinto daqueles classicistas que não utilizam métodos computacionais para que possam ter o reconhecimento. No entanto, a autora apresenta uma série de questionamentos sobre o trabalho do classicista digital, os quais tomo emprestado:

Quais são as abordagens metodológicas de um classicista digital? Existe uma cultura que une os estudiosos? ou a comunidade classicista digital é meramente isso - uma comunidade de prática, que compartilha teorias de significado e poder, coletividade e subjetividade, mas é pouco mais que uma rede de apoio para acadêmicos que usam métodos extremos em seu próprio campo individual, estabelecido e clássico discurso (Terras, 2010TERRAS, M. The Digital Classicist: disciplinary focus and interdisciplinar vision. In: BODARD, G.; MAHONY, S. (Ed.). Digital Research in the study of classical antiquity. Farnham: Ashagate, 2010. p. 171-189., p. 177).

A partir disso, o que significa ser classicista digital? O uso de digital é necessário no mundo contemporâneo em que as tecnologias computacionais estão presentes em diferentes camadas sociais? Ela não se tornou tão corriqueira que os tempos modernos do século XXI não demandariam mais a necessidade de uso de tal termo para retratar a inserção das tecnologias e ferramentas digitais e computacionais nas áreas das Humanidades? E quanto à “comunidade”? Novamente comunidade é usada implicando, nesse contexto, o compartilhamento de práticas, de atividades na dimensão da pesquisa e do ensino. Entretanto, surge outra questão: em que ponto essa comunidade se distingue da comunidade dos classicistas não digitais? Não é cabível estabelecer uma divisão dicotômica, que possa vir a ser reducionista, entre um discurso do uso e do não uso de tecnologias digitais pelos classicistas, visto que eventualmente alguém se deparará e usará recursos digitais, entre eles, as bibliotecas digitais que possuem acervos em domínio público ou ainda dicionários digitais. No entanto, compreendemos que a manipulação das tecnologias digitais acontece em graus diferentes entre sujeitos diferentes: de um lado, temos os classicistas digitais que se dedicam a metodologias e práticas para o estudo de textos da antiguidade, e de outro, temos os classicistas da era digital que não se ocupam necessariamente com a aplicação e nem a criação de métodos computacionais, porém podendo vir a utilizar os produtos resultantes desses projetos e atividades.

Desse modo, o presente artigo2 2 Este artigo é resultado da tese de doutoramento A emergência de um classicista digital: uma perspectiva linguística sobre a atividade de trabalho (2021), sob a orientação da Profa. Dra. Anise de Abreu Goncalves D’Orange Ferreira. assume que os classicistas digitais configuram um grupo profissional em uma concepção de gênero profissional (Clot, 2000CLOT, Y.; FAÏTA, D. Genres et styles en analyse du travail: concepts et méthodes. Travailler, v. 4, p. 7-42, 2000.), em que os trabalhadores compartilham entre si regras não escritas, as quais regem de uma forma ou de outra, as atividades de trabalho. Para o estudo, os dados foram obtidos de duas entrevistas orais e uma instrução ao sósia com a participação de uma professora do curso de Humanidades Digitais de uma universidade alemã.

2 Da linguagem, do desenvolvimento e do gênero

Na perspectiva do Interacionismo Sociodiscursivo (ISD), a linguagem é o ponto central de sua formulação teórica, pois ela se desdobra em práticas sociais, e é por meio dela que é possível depreender o desenvolvimento de capacidades epistêmicas e praxiológicas dos sujeitos. O homem, como ser consciente, dotado de pensamento e de linguagem, age diante do mundo, mas sua relação não é de forma direta. O homem cria meios ou instrumentos que possam intermediar aquilo que é da ordem do psicológico e aquilo que é da ordem do físico, e partir disso, estabelece interações sociais que configuram o ambiente humano.

A interação leva à criação de atividades coletivas, isto é, um agir compartilhado entre os indivíduos que se mobiliza por um objetivo em comum. Consequentemente, elas se organizam de acordo com regras e normas escritas ou não escritas, o que nos leva às formações sociais. A linguagem desempenha função visceral na formulação das atividades e nas formações sociais, na medida em que é um elemento mediador da psique humana com o mundo físico. Nesse sentido, a linguagem se expressa e se constitui da manifestação dos textos, considerados unidades globais de significados, os quais só existem devido ao seu contexto interacional e às práticas sociais, compreendendo que as condutas humanas são ações significantes, e os textos, ações situadas (Bronckart, 2012BRONCKART, J.-P. Atividades de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sociodiscursivo. Tradução de Anna Rachel Machado e Péricles Cunha. São Paulo: Educ, 2012.). Em outras palavras, o ISD se orienta como uma teoria que dialoga e investiga a relação da linguagem com o desenvolvimento humano.

Vygotsky (2008VYGOTSKY, L. S. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2008.), psicólogo russo de posição interacionista, é o principal nome que influencia a formação do quadro teórico do ISD. Crítico ao posicionamento científico da psicologia da época que imputava à natureza humana um aspecto dualista do ser, no qual havia uma lacuna entre o desenvolvimento de capacidades da dimensão fisiológica e das capacidades psicológicas, o autor rejeita tal posição e assume uma visão monista do organismo vivo em que o elemento psíquico e o biológico não poderiam ser mais analisados de forma independente. Isso reflete na concepção de desenvolvimento humano, uma vez que o homem é um ser que faz o uso de instrumentos que medeiam suas relações e suas formações sociais, de modo que a mediação se torna um elemento importante para o estabelecimento de pensamento consciente e, consequentemente, para as mudanças nos níveis psíquicos ou físicos. No entanto, a teoria vygotskyana não proporciona um elemento integrador para a análise dos dois níveis, devendo recorrer ao conceito de atividade proposto por outro psicólogo russo, Leontiev (2004LEONTIEV, A. O Desenvolvimento do Psiquismo. São Paulo: Centauro, 2004.). Em sua concepção, o desenvolvimento humano ocorreria na interface das relações no mundo exterior que seriam internalizadas e passariam a ser atividades na dimensão interna dos sujeitos. Em sua teoria, Leontiev analisa as condutas humanas por um prisma do materialismo histórico e dialético de Marx, considerando que os indivíduos agem sobre os objetos do mundo com uma finalidade. Isso mobiliza processos de natureza física ou psíquica, o que demonstraria que tais processos e suas intenções iniciais devem coincidir com os atos finais na cadeia processual, pois não havendo coincidência, tornar-se-ia ação. Leontiev insere, nas condutas humanas, um elemento psicológico para a compreensão da relação com o mundo físico e exclui da ação os aspectos subjetivos dos indivíduos, diferentemente do que se passa com as formulações do Interacionismo Sociodiscursivo que já vê embutido nas ações os objetivos e as intenções, fazendo, assim, distinção entre o plano individual e o coletivo no agir.

Na mesma direção, o sociólogo Habermas (2012HABERMAS, J. Teoria do Agir Comunicativo 1: Racionalidade da ação e racionalização social. Tradução: Paulo Astor Soethe. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.) desenvolve uma teoria sobre a linguagem e as ações humanas. Para o filósofo e sociólogo, agir é uma forma de interação e cooperação entre indivíduos que é intermediado pela linguagem. Desse modo, as atividades humanas devem ser vistas como um agir comunicativo em que os homens se mobilizam e se fazem mover por meio da linguagem. Quando o agir comunicativo é mobilizado, o homem carrega e compartilha conhecimentos e avaliações sobre os mundos que estão implicados nessa interação e produção verbal - o mundo físico que faz referência ao mundo imediato, o social que alude à socialização entre grupos sociais e o subjetivo que remonta às características subjetivas dos indivíduos. Essa organização é retomada por Bronckart (2012BRONCKART, J.-P. Atividades de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sociodiscursivo. Tradução de Anna Rachel Machado e Péricles Cunha. São Paulo: Educ, 2012.) quanto à criação de mundos discursivos e para a constituição das produções textuais, uma vez que estas são determinadas fortemente pelo contexto de produção, influenciando diretamente a estrutura organizacional e o conteúdo temático dos textos.

No campo da filosofia da linguagem, o russo Volochinov (2017VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório de Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017.) propõe uma análise descendente da linguagem, isso significa que se deve partir dos meios sociais para as estruturas linguísticas formadoras dos textos. Com essas contribuições, Bakhtin (2016BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016.) estabelece sua teoria dos gêneros dos discursos em que considera que os textos são enunciados que surgem da diversidade de interações sociais e das organizações sociais, se definem e se materializam das atividades humanas. Embora possam ser infinitas, a formulação das estruturas linguísticas se caracteriza por uma certa constância, criando estabilidade na produção verbal ou tipos de estruturas. Isso significa que as diferentes situações da vida humana mobilizam certas formas linguísticas que se estruturam e se agrupam de acordo com as condições de produção e os conteúdos temáticos.

Assim, tomando das fontes da psicologia, da sociologia e da filosofia da linguagem, o ISD propõe o texto como um dos eixos centrais de suas investigações, pois entende que é por meio deles, constituídos nas interações verbais, que a língua natural e as atividades humanas podem ser analisadas, dado que caracterizam por ser “uma produção de linguagem situada” (Bronckart, 2012BRONCKART, J.-P. Atividades de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sociodiscursivo. Tradução de Anna Rachel Machado e Péricles Cunha. São Paulo: Educ, 2012.) nas coordenadas do tempo e do espaço. Bronckart define situada a produção textual, visto que se insere em um contexto específico de situação real envolvendo os indivíduos sociais e suas atividades, e por sua vez, embutem sentidos e urgências (necessidades) das interações sociais. Os textos mobilizam recursos lexicais e sintáticos de uma língua ao mesmo tempo que se organizam de acordo com modelos textuais definidos, os gêneros de textos, mostrando-se adaptáveis e úteis para uma situação ou outra. Os modelos, por consequência, existem, pois surgem de um arquitexto, um repertório de modelos textuais compartilhado por uma comunidade linguageira que apresentam

características semióticas mais ou menos identificáveis, mas eles também são portadores de indexações sociais, identificáveis, pois, na medida em que cada gênero, necessariamente, é objeto de avaliações sociais, ele é visto como sendo adaptado para comentar um determinado agir geral, como possível de ser mobilizado em uma ou outra situação de interação ou como tendo um determinado valor estético (Bronckart, 2008BRONCKART, J.-P. O agir nos discursos: das concepções teóricas às concepções dos trabalhadores. Campinas: Mercado de Letras, 2008., p. 87-88).

Na perspectiva do ISD, os textos dependem fortemente do contexto de produção e se estabelecem como um folhado textual, composto por três camadas. Quanto ao contexto, o indivíduo lidará com parâmetros físicos e sociossubjetivos que influenciarão seu modo de organização linguístico-textual. Lugar de produção, momento de produção, emissor e receptor são elementos que retomam os aspectos do mundo físico da interação verbal. O lugar social que revela a formação social implicada, a posição social do emissor e do receptor e os objetivos da produção textual se relacionam com as questões de níveis sociais e subjetivos dos indivíduos.

Em relação à estrutura, o texto se organiza e se hierarquiza em três níveis. A infraestrutura geral é a mais profunda das camadas. É composta pelo plano geral do texto que apresenta o conteúdo temático, pelos tipos discursivos definidos como segmentos que se articulam entre si, e as sequências responsáveis pela linearidade dos conteúdos textuais. Os tipos discursivos se definem em relação à ação do indivíduo, ao mundo discursivo construído na interação social e no agir linguageiro, podendo se configurar nos eixos de disjunção e conjunção em que o mundo ordinário se distancia, o que cria a ordem do narrar ou se aproxima do mundo discursivo, criando a ordem do expor, não fazendo ou fazendo respectivamente referências às coordenadas espaço-temporais. Além disso, o agente do mundo ordinário pode se fazer presente no mundo discursivo, ser implicado, ou não, em que há a autonomia entre os agentes de ambos os mundos. Isso permite a formulação do discurso interativo que se configura na ordem do expor e do plano implicado; a do discurso teórico, da ordem do expor e do plano autônomo; a do relato interativo que é da ordem do narrar e do plano implicado, enquanto a narração é da ordem do narrar e do plano autônomo. As sequências textuais são planificações do conteúdo temático. Elas se definem segundo suas funções e podem ser narrativas, argumentativas, explicativas, dialogais e injuntivas (Adam, 2008ADAM, J.-M. A linguística textual:introdução à análise textual dos discursos. São Paulo: Cortez, 2008.).

No nível intermediário, temos os mecanismos de textualização responsáveis pela progressão temática que são de três naturezas: a) os mecanismos de conexão são os principais articuladores da textualização, fazem ligação e transição entre tipos discursivos e sequências (Bronckart, 2012BRONCKART, J.-P. Atividades de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sociodiscursivo. Tradução de Anna Rachel Machado e Péricles Cunha. São Paulo: Educ, 2012.) e são elementos linguísticos de categorias gramaticais diversas, podendo ter valores semânticos, por exemplo, temporais como depois, antes de; lógicos como porque, uma vez que, logo, assim; ou de espaço como sobre, acima de dentre outros; b) os mecanismos de coesão nominal dizem respeito às relações entre os argumentos textuais, exercendo função referencial; c) os mecanismos de coesão verbal trazem coerência temática dos sintagmas verbais expressando os valores de temporalidade, de aspecto e modalidade verbais.

O último nível formado pelos mecanismos enunciativos se relaciona com a coerência pragmática e com avaliações sobre os conteúdos temáticos. Neles notam-se os posicionamentos dos agentes mobilizados no discurso, as vozes que circulam pelos textos e as quais podem ser responsabilizadas nos enunciados. Assim, é possível se deparar com posicionamentos enunciativos a partir da voz do autor, a qual se associa ao produtor do texto; a partir de vozes de personagens que se tornam figuras a quem atribuímos palavras ou partes de um texto, e por último; a partir de vozes sociais que representam ou desvelam grupos sociais, externas à enunciação, mas presentes pela relação entre linguagem, atividades e formações sociais. As modalizações são a segunda categoria enunciativa e se definem como comentários e avaliações sobre o que se diz. Bronckart (2012BRONCKART, J.-P. Atividades de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sociodiscursivo. Tradução de Anna Rachel Machado e Péricles Cunha. São Paulo: Educ, 2012.) define-as de acordo com os mundos discursivos apontados por Habermas, em quatro categorias e funções:

  • a) modalizações lógica, calcada no mundo objetivo, faz avaliações quanto à questão da verdade, validade e probabilidade. Exemplo:

L231-238 IS F2: Você não sabe a língua, mas tem de passar o OCR no grego antigo, e tem de usar se funcionar. Com alinhamento de tradução, talvez eu tenha estudantes que queiram experimentar com um alinhamento de tradução, e eles podem isso com quaisquer línguas que eles saibam e para ver se têm dificuldades em alinhar ou eu posso pedir-lhes para ler alinhamento de texto com uma outra língua que eles não conhecem. Sim, definitivamente, há muitos problemas possíveis diferentes.3 3 As transcrições são identificadas por L - as linhas em que aparecem os excertos; por E - primeira ou segunda entrevista; por IS - instrução ao sósia, e por F - identificando o falante 1, o pesquisador que está coletando os dados e o falante 2, a professora participante da pesquisa. Texto original: You don’t know the language, but you have to OCR ancient Greek, and you have to use if it works. With translation alignment maybe I have students they want to experiment with a translation alignment, and they can that with any languages they know and to see if they have difficulties in aligning or I can ask them to read alignment of text with another language they don’t know. Yes, definitely, there are many different possible problems.

  • b) modalização deôntica, com relação ao mundo social, revela comentários com base na ideia da obrigatoriedade ou do dever social. Exemplo:

L156-157 E1 F2: No ambiente digital, nós temos de debater (ambos)... e a dificuldade é repensar o modo que trabalhamos como acadêmico.4 4 Texto original: In digital environment we have to debate (the both)... and the difficulty is to rethink the way we work as scholar.

  • c) modalização apreciativa, do mundo subjetivo, apresenta avaliações quanto à qualidade do conteúdo temático. Exemplo:

L186-192 E1 F2: Então, isso é... agora estou no terceiro ano como professora, então (não poderia) ser melhor, claro; no começo foi um pouco demorado, mas mais para as responsabilidades. Esse é o ponto... e... não... para o restante, eu tenho de dizer que estou feliz em ensinar. Para a pesquisa... para a pesquisa, eu gostaria de ter mais cientistas da computação, porque preciso deles, mas não é fácil... mas...5 5 Texto original: So this is...now I am in the third year of teaching, so it (couldn’t) be better, of course, at the beginning was a bit time-consuming, but more for the responsibilities. This is the thing. and... no... for the rest I have to say that I am happy for the teaching. For the research... For the research I would like to have more computer scientists, because I need them, but it’s not easy... but...

  • d) modalização pragmática, sociossubjetiva, traz responsabilização e capacidades de agir, apresentando intenções dos actantes. Exemplo:

L130-134 E1 F2: Eu tenho sempre tentado combinar ambos [pesquisa e ensino]. Agora mais do que antes, porque Humanidades Digitais e Filologia Digital... ah... tem uma conexão forte entre ensino e pesquisa, porque precisamos produzir muitos dados digitais e, por isso, temos a ideia [que] é ajudar alunos a trabalhar nos dados e produzi-los.6 6 Texto original: I have been always trying to combine both. [pesquisa e ensino] Now more than before, because Digital Humanities and Digital Philology... ahn... have a strong connection between teaching and researching, because we need to produce a lot of digital data and so we have the idea is to help students to work on the data and to produce them.

As categorias propostas pelo ISD propõem que as atividades humanas sejam depreendidas por meio da expressão linguística. Desse modo, como o foco dessa investigação é a atividade de trabalho, acrescentamos à pesquisa os contributos da Ergonomia, mais especificamente, a francófona e da Clínica da Atividade.

Tradicionalmente, o trabalho é visto como uma atividade problemática que lida com a questão do que se deve fazer e o que se é feito. Nas palavras de Dejours (2004DEJOURS, C. Subjetividade, trabalho e ação. Production, São Paulo, v. 14, n. 3, p. 27-34, dez. 2004. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-65132004000300004. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/prod/a/V76xtc8NmkqdWHd6sh7Jsmq/?lang=pt Acesso em: 19 jul. 2020.
https://www.scielo.br/j/prod/a/V76xtc8Nm...
), o trabalho é uma atividade lacunar que se compreende entre o que é prescrito pelas instituições, que tomam o corpo de agentes reguladoras do agir, e do que é realizado na prática pela ação do indivíduo. Assim, define-se o trabalho “sendo aquilo que o sujeito deve acrescentar às prescrições para poder atingir os objetivos que lhe são designados [...]” (Dejours, 2004DEJOURS, C. Subjetividade, trabalho e ação. Production, São Paulo, v. 14, n. 3, p. 27-34, dez. 2004. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-65132004000300004. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/prod/a/V76xtc8NmkqdWHd6sh7Jsmq/?lang=pt Acesso em: 19 jul. 2020.
https://www.scielo.br/j/prod/a/V76xtc8Nm...
, p. 28). A não coincidência entre o que se objetiva e o que se realiza insere na análise do trabalho uma ordem psíquica que nos inquere à adaptação de ferramentas e das ações na atividade de trabalho.

Nesse viés, Clot (2006CLOT, Y. A função psicológica do trabalho. Tradução de Adail Sobral. São Paulo: Vozes, 2006.) pondera a formulação dos conceitos de real da atividade, gênero de atividade e estilo de ação para uma análise psicológica do trabalho. Considerando o problema instaurado entre o prescrito e o realizado, o autor defende a existência de uma terceira instância que se coloca nesse meio, nomeada real da atividade. Ela se formaliza como aquilo que se tensionava a ocorrer, aquilo que se vê como a expectativa, a frustação e/ou a idealização do trabalho, considerando as atividades buscadas. Essa conceitualização é importante, pois é neste instante que emergem as questões subjetivas, os conflitos, as emoções, e se revelam a capacidade de adaptação e os processos físicos e psicológicos dos sujeitos para as atividades de trabalho. Dessa forma, o real da atividade consistiria no prescrito, no realizado e nas tentativas postas nessa terceira instância.

Estabelecer uma dimensão subjetiva na atividade de trabalho conduz a uma releitura da atividade humana em que o agir é determinado conforme a organização social, e é fonte de desenvolvimento humano. Por isso, Clot (2006CLOT, Y. A função psicológica do trabalho. Tradução de Adail Sobral. São Paulo: Vozes, 2006.) interpreta a atividade de trabalho por uma perspectiva de gênero, termo e conceito que empresta de Bakhtin. Em sua formulação, toda atividade humana se caracteriza pelo agir triplamente dirigido, pois conta com um sujeito que assume a ação, se apropriando de um objeto físico ou semiótico que se torna não só meio para a ação, mas ganha centralidade no processo, e por fim, que se direciona a um destinatário. No entanto, a questão é em que sentido e/ou o que move a dinâmica tripla? Haveria uma instância que regularia e mediaria a relação entre os três elementos definida gênero profissional (Clot; Faïta, 2000CLOT, Y.; FAÏTA, D. Genres et styles en analyse du travail: concepts et méthodes. Travailler, v. 4, p. 7-42, 2000.; Clot, 2006CLOT, Y. A função psicológica do trabalho. Tradução de Adail Sobral. São Paulo: Vozes, 2006.). Ele se define

como dispositivo aberto de regras impessoais seguidas, ao menos por algum tempo, por um coletivo de trabalho no uso dos objetos e no intercâmbio entre os sujeitos. Essas regras não escritas - e essas traduções de regras oficiais - operam nos enunciados verbais e nos instrumentos produzidos num meio profissional e que conferem a seu “falar” e a seu “tocar” um caráter original, bem além das ferramentas e dos signos utilizados. Como vimos, o gênero é feito para agir, se realiza na situação vivida, ou melhor, assume uma inflexão nesse momento (Clot, 2006CLOT, Y. A função psicológica do trabalho. Tradução de Adail Sobral. São Paulo: Vozes, 2006., p. 153).

O gênero profissional é um modo de organização praxiológica e psicológica que leva os sujeitos, em suas práticas sociais, a compartilharem certos agires dentro de um limite que se determina pela história das atividades coletivas e de seus agrupamentos sociais. É uma herança histórica que permite a formação de uma coletividade, nunca acabada, porém sempre em movimento. Os acordos não escritos sobre as atividades influenciam o agir dos sujeitos, mas permitindo-lhes também sua atualização.

Isso nos leva ao terceiro conceito sobre a atividade de trabalho que consiste no estilo de atividade. Uma vez que o gênero se configura por uma certa estabilidade, os sujeitos pertencentes a uma atividade podem introduzir em sua rotina novas práticas, instrumentos ou formas de se colocarem em relação ao outro. A ação individual, que se define dentro de um gênero, é fonte efervescente de movimentação do próprio gênero, como uma força centrífuga que tende à inovação e à atualização dos parâmetros das atividades. Esse aspecto traz dinamicidade, permitindo que os gêneros se façam movimentar, agindo de uma forma que não se tornem estagnados, logo, findos.

O presente artigo está em consonância com a ideia de Clot ao conceber que o trabalho do classicista digital se configura como um gênero profissional que se põe diferente do que os classicistas tradicionais têm desenvolvido. Desse modo, seguindo procedimentos de coleta de textos orais e com o pressuposto de que é somente a partir deles que podemos depreender as atividades humanas, a investigação seguiu os níveis de análise textuais propostos pelo Interacionismo Sociodiscursivo. As categorias determinadas pelos níveis permitem uma análise individualizada desses aspectos, no entanto é preciso considerá-la também de forma ampla dialogando uma camada com a outra para depreender os elementos que caracterizam, conforme nossos dados, a atividade do classicista digital. Desse modo, na próxima seção apresentam-se o contexto da pesquisa e os procedimentos metodológicos.

3 O contexto da investigação e os procedimentos metodológicos

A pesquisa obteve a colaboração de uma professora do curso de graduação e de mestrado em Humanidades Digitais de uma universidade na Alemanha. Sua formação inicial é em Estudos Clássicos na Itália, assim como seu título de mestrado e de doutorado. Realizou estágio de pós-doutoramento na Universidade Tufts, entre os anos de 2010 e 2013 nos Estados Unidos, na qual teve experiência de docência de línguas clássicas com o auxílio de ferramentas digitais. A experiência despertou interesse da professora na aplicação de técnicas computacionais para o estudo e a pesquisa da antiguidade clássica, e, desde então, está inserida em atividades acadêmicas relacionadas às Humanidades Digitais, Clássicas Digitais e Filologia Digital.

O curso de Humanidades Digitais fica alocado no Instituto de Informática e Matemática da universidade, possuindo um departamento próprio, o qual é formado por quatro docentes, sendo três de base formativa no campo dos Estudos Clássicos e um no das Ciências Computacionais. A grade curricular se divide em três grandes campos como as Ciências da Computação, as Humanidades e as Humanidades Digitais e as pesquisas ativas estão relacionadas a seis projetos principais: a) Treebank de dependência de Latim e Grego antigo, b) Filologia Global, c) Textos fragmentários, d) Catálogo de manuscritos, e) Latim e Grego abertos e f) Persa aberto. É considerando, principalmente, o panorama acadêmico da instituição e formativo da professora que a coleta de dados ocorreu, uma vez que no Brasil a presença de classistas digitais é tímida.

Os dados obtidos vieram de duas entrevistas e uma instrução ao sósia, totalizando quase uma hora e cinquenta de minutos de áudio. Todas as interações verbais foram gravadas no escritório do departamento da própria professora, ocorrendo em momentos diferentes no semestre de 2018-2019. A primeira se caracterizou por questões generalistas acerca do perfil profissional da participante, da instituição e da caraterização dos alunos. A segunda, ancorada nas respostas da primeira, se aprofundou em elementos pontuais como estrutura do curso, relação entre os profissionais de formações diferentes, programa das disciplinas e a relação com a instituição. A terceira gravação consistiu em um método de coleta de dados denominada instrução ao sósia (IS). É um procedimento formulado pelo médico italiano Oddone7 7 Cf.: ODDONE, Ivar; RE, Alessandra; BRIANTE, Gianni. Redécouvrir l’expérience ouvrière: vers une autre psychologie du travail? Paris: Messidor, 1981. , nos anos 70, que fora aplicado em uma montadora de carros no qual o interveniente propõe uma situação fictícia ao trabalhador.

A instrução ao sósia se desenha como uma técnica em que há a troca de papel entre os interagentes que fora adotada pela Ergonomia do Trabalho e pela Clínica da Atividade. O pesquisador se coloca na posição do próprio trabalhador, por isso sósia, enquanto o trabalhador contribui com as coordenadas de como o seu substituto deve agir em um dia de trabalho, sem que os demais colegas percebam a troca. Assim, há um deslocamento do sujeito das suas atividades (Clot, 2006CLOT, Y. A função psicológica do trabalho. Tradução de Adail Sobral. São Paulo: Vozes, 2006.) que se instaura em uma dinâmica psicolinguística visando a mudanças do trabalho, pois colocando o sujeito face a si mesmo levará ao desenvolvimento psicológico. O processo é caracterizado por três fases. A primeira torna-se um simulacro - em um jogo de papéis gravado em áudio, o pesquisador assume o papel do trabalhador, e o trabalhador se torna instrutor, como já mencionado anteriormente. Posterior, a transcrição da interação é realizada pelo próprio trabalhador, e por fim, se faz uma ponderação escrita sobre os dados contidos na instrução e sobre sua condição de trabalho. Como a pesquisa não tinha o objetivo de intervir nas atividades de trabalho, uma vez que não se pressupunha haver um problema nesse contexto, mas obter dados de pesquisa, a técnica se ateve à primeira etapa e a transcrição fora feita pelo próprio pesquisador.

As gravações foram transcritas no programa Partitur, visto que permite a transcrição e anotação em níveis, de modo que se pode seguir as categorias de análise textual de acordo com Bronckart (2006BRONCKART, J.-P. Atividade de linguagem, discurso e desenvolvimento humano. Organização de Anna Rachel Machado e Maria de Lourdes Meirelles Matencio. Campinas: Mercado de Letras, 2006., 2008BRONCKART, J.-P. O agir nos discursos: das concepções teóricas às concepções dos trabalhadores. Campinas: Mercado de Letras, 2008., 2012BRONCKART, J.-P. Atividades de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sociodiscursivo. Tradução de Anna Rachel Machado e Péricles Cunha. São Paulo: Educ, 2012.), Machado e Bronckart (2009MACHADO, A. R.; BRONCKART, J.-P. (Re-)Configurações do trabalho do professor construídas nos e pelos textos: a perspectiva metodológica do grupo ALTER-LAEL. In: ABREU-TARDELLI, L. S.; CRISTOVÃO, V. L. L. (Org.). Linguagem e educação: o trabalho do professor em uma nova perspectiva. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2009. p. 31-77.) e Bulea (2010BULEA, E. Linguagem e efeitos desenvolvimentais da interpretação da atividade. Tradução de Eulália Vera Lúcia Fraga Leurquin, Lana Lúcia Espínola Rodrigues Figueirêdo. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2010.). Desse modo, os textos são constituídos e avaliados em três níveis: organizacional, enunciativo e semântico. No primeiro, temos os elementos principais que estruturam a forma textual. O plano global trata do conteúdo temático e aparece em forma de síntese dos conteúdos. Os tipos discursivos são segmentos textuais que se relacionam com os actantes e o mundo discursivo, assim se formalizam em discurso interativo ou em discurso teórico na ordem do expor, ou em relato interativo ou em narração na ordem do narrar. Os tipos de sequências de textos se caracterizam pelo modo que o conteúdo se junta e é planificado desempenhando funções narrativas, argumentativas, dialogais ou injuntivas (Adam, 2008ADAM, J.-M. A linguística textual:introdução à análise textual dos discursos. São Paulo: Cortez, 2008.). Os mecanismos de textualização são os responsáveis pela progressão temática, como os organizadores textuais - conectivos e marcadores temporais -, a coesão nominal e a verbal.

O segundo nível, o enunciativo, permite a coerência pragmática, sendo formado pelas marcas de pessoas, marcadores espaço-temporais, vozes - posicionamento em relação ao que é enunciado, e as modalizações. No nível semântico, o comportamento dos actantes é reanalisado e reinterpretado a partir de agir individual ou coletivo, por ordens internas próprias ou por forças externas, e com a utilização de certos artefatos, semióticos ou físicos.

Assim, a partir da análise desses elementos textuais foi possível levantar alguns elementos caracterizadores do trabalho do classicista digital. Como os níveis procedimentais de análise constam um número considerável de elementos a serem analisados e já explorados anteriormente, esse artigo não os abordará detalhadamente, mas serão formalizados e exemplificados, quando necessário, nos elementos emergentes que caracterizam sua atividade profissional. Na próxima seção, discutiremos tais fatos.

4 Elementos emergentes do trabalho do classicista digital

Os dados obtidos das entrevistas e da instrução ao sósia por meio dos níveis procedimentais de análise permitiram-nos descrever, discutir e explorar características gerais do trabalho do classicista digital, tanto no seu ensino quanto na pesquisa. São elementos emergentes, visto que os dados obtidos são indicativos do agir do classicista digital de um gênero profissional que, assim como sua área e essa pesquisa, vem se formalizando e exigindo mais aplicações investigativas.

a) Deslocamento institucional

O primeiro elemento que marca o trabalho do classicista digital é o seu deslocamento dentro da instituição. Tradicionalmente o profissional da área de Clássicas está alocado em uma faculdade de ciências humanas, no entanto, a realidade da professora participante é diferente. Seu cargo pertence a uma faculdade de matemática e informática, o que impactará na reorganização de suas atividades como classicista. Em suas palavras:

L66-73 E1 F2: Bem, primeiro eu tenho que dizer isso, que esses cursos são baseados na fac... no... no, no Instituto de Ciência da Computação... ((0,7s)) no currículo de Humanidades Digitais, o que significa que a maioria dos meus alunos são cientistas da computação. Alguns deles são humanistas com interesse em... ahh... Humanidades Digitais. Então não tenho alunos com conhecimento de grego e latim. Esta é a primeira coisa importante e foi um desafio para mim, porque vindo da área da Filologia e da Filologia Digital aplicada ao Grego e ao Latim antigos, tenho que mudar o meu ensino.8 8 Texto original: Well, first I have to say this that these courses are based in the fac... in the... in the, in the Institute of Computer Science... ((0,7s)) in curriculum of Digital Humanities which means that most of my students are computer scientists. Some of them are humanists with interest in... ahh... Digital Humanities. So I don’t have students with knowledge of Greek and Latin. This is the first thing important and this was a challenge for me, because coming from the field of Philology and Digital Philology applied to the ancient Greek and Latin, I have to change my teaching.

Estar em um instituto de ciências da computação leva a professora a repensar seu modo de ensinar, já que sua formação e experiências de trabalho anteriores estavam na área de Estudos Clássicos. Mesmo quando lecionou na Universidade Tufts, pôde ensinar tópicos sobre a cultura e o pensamento político da Grécia Antiga, usando dados digitais e traduções em língua inglesa, visto que o foco era relacionado aos problemas das humanidades. No contexto alemão, o ensino deve priorizar aspectos filológicos para a manipulação e análise dos textos antigos, como os problemas de decodificação e digitalização, a extração automática de dados e outras, conforme veremos adiante.

A ideia de deslocamento aparece de modo reiterado na segunda entrevista da professora, mas não se limita mais à questão institucional. Sua trajetória exigiu um percurso entrelugares, especificamente Itália, EUA e Alemanha, e interlínguas, italiano, e principalmente inglês. Em suas palavras foi uma jornada do ponto de vista “de países, de continentes e de instituições” (L457-465 E2 F2). Mas qual o resultado desse percurso? Isso implica que a professora traçou um caminho que permitiu o seu contato com diversas perspectivas de ensino e de pesquisa, podendo vivenciar novas experiências e aplicá-las na sua vida acadêmica.

b) Inglês como língua internacional

Embora o curso de Humanidades Digitais seja oferecido em uma universidade alemã, a língua de ingresso tanto na graduação quanto no mestrado é o inglês no nível B2, de acordo com o Quadro Europeu Comum de Referência para Línguas. Para a candidatura, não há exigência de conhecimento prévio de grego, latim e outros idiomas.

O foco de ensino no curso de Humanidades Digitais se difere da graduação em Estudos Clássicos ou Letras com enfoque ou habilitação em uma língua antiga e reflete também no alunado que busca os estudos na área, em sua maioria, cientistas da computação. Saem do holofote as questões linguístico-literárias dos textos da antiguidade, vindo outros assuntos assumirem a posição de destaque, como os problemas da digitalidade dos textos clássicos, a codificação e anotação de textos, a criação de edições digitais e ferramentas para a análise e interpretação de obras.

c) Diversidade do grupo de trabalhadores

A diversidade na formação dos trabalhadores é um fator determinante no trabalho do classicista digital. As humanidades digitais surgem como um campo de conhecimento interdisciplinar (Schreibman; Siemens; Unsworth, 2004SCHREIBMAN, S.; SIEMENS, R.; UNSWORTH, J. The Digital Humanities and Humanities Computing: An Introduction. In: SCHREIBMAN, S.; SIEMENS, R.; UNSWORTH, J. (Ed.). A companion to digital humanities. Oxford: Blackwell Publishing, 2004. p. XXII-XXVII.; Hockey, 2004HOCKEY, S. The History of Humanities Computing. In: SCHREIBMAN, S.; SIEMENS, R.; UNSWORTH, J. (Ed.). A companion to digital humanities. Oxford: Blackwell Publishing, 2004. p. 3-19.) que agrega um diálogo entre o fazer científico das ciências da computação, matemática e correlatas com as Humanidades. Desse modo, temos cientistas da computação e afins e os pesquisadores das Humanas em suas diversas facetas que contemplem as áreas de investigação sobre mundo antigo trabalhando em conjunto dos discentes e outros colaboradores não ligados necessariamente ao meio acadêmico.

Essa diversidade tem início na ação de Busa quanto à lematização da obra de Aquino. O agir de Busa direcionou o olhar dos classicistas para um fator não comum aos seus colegas classicistas contemporâneos. Quando procedimentos de automatização lexical são usados, o padre insere e fornece um novo tópico ao grupo de classicistas. Esse elemento que poderia vir a abalar as estruturas de uma classe de trabalhadores se torna uma ponte para a mudança e o desenvolvimento de seu próprio agir, isto é, o que Caroly (2010CAROLY, S. Activité collective et réélaboration des règles: des enjeux pour la santé au travail. 2010. These (Habilitation a diriger des recherches) - Sciences de l’Homme et Société. Université Victor Segalen - Bordeaux II, 2010. Disponível em Disponível em https://theses.hal.science/tel-00464801v2 Acesso em: 22 mar 2024.
https://theses.hal.science/tel-00464801v...
) chama de margens de manobra. Os trabalhadores agem dentro de um domínio que é acordado entre eles, não necessariamente escrito, mas de acordo com as próprias experiências e exigências dos demais colegas, podendo agir além do que se espera de um grupo, fato que leva ao alargamento das ações do próprio coletivo. Com o pontapé inicial de Busa, mais iniciativas foram tomadas, novos grupos de trabalhos foram formalizados e reunião de classicistas e cientistas da computação surgiram em projetos maiores, PDL e TLG, por exemplo.

d) Ambiente interacional diverso, conflituoso e enriquecedor

L74-86 E2 F2: [...] porque estar no instituto de informática significa que então eu posso, todos os dias posso enfrentar problemas computacionais e, assim, posso conversar com pessoas que trabalham concretamente em Ciências da Computação. Isso é, claro, também desafiador, porque eu tenho que pensar, tentar pensar de maneiras diferentes minhas questões de pesquisa e tenho que conversar com pessoas que não têm formação em Clássicas, por exemplo. Então, no começo pode ser desafiador, mas ao mesmo tempo é bom, porque posso aprender a estudar meus documentos históricos sob diferentes perspectivas. Então é bom, porque realmente tenho experiências diretas com Ciência da Computação. Claro, estar no instituto de Clássicas seria mais fácil, para outras coisas. Eu poderia ter mais alunos ((rindo)) estudando Clássicas, mas o que posso dizer, então o melhor é combinar os dois.9 9 Texto original: [...] because being in the institute of computer sciences means then I can, every day I can face with computational problems and then I can talk to people concretely working in Computer Sciences. This is, of course, also challenging, because I have to think, to try to think in different way my research questions and I have to talk with people who don’t have background in Classics for example. So in the beginning it can be challenging, but at the same time it’s good, because I can learn how to study my historical documents from different perspectives. So it’s good, because I really have direct experiences with computer science. Of course, being in the institute of Classics would be easier, for other things. I could have more students ((rindo)) studying Classics, but what I can say, so the best thing is to combine both.

A diversidade de trabalhadores desencadeia um ambiente conflituoso para a professora e pesquisadora. Ao que concerne à dinâmica institucional, uma vez que o curso está em um instituto de Ciências da Computação e Informática e seus colegas de trabalho com uma formação inicial que difere das Humanidades, ela encontra, em algumas situações, um meio interacional dificultoso, proporcionado pela diferença da linguagem técnica e dos objetivos dos pesquisadores. É necessário traçar uma negociação entre aquilo que ela conhece e aquilo que o outro diz para se fazer entender.

Fato semelhante ocorre no ensino. A maioria dos alunos que demonstram interesse pelas disciplinas ministradas pela professora é formada por cientistas da computação, os quais querem aprender programação computacional. No entanto, as disciplinas, de base filológica, tendem a apresentar conceitos-chave sobre os textos históricos, suas características e um panorama da sua produção e reprodução. São tópicos usuais nos cursos que envolvem a leitura e o estudo de línguas clássicas, mas menos típico ao estudante da computação. Por isso, às vezes, a professora tem de explicar, por exemplo, que se trata de uma disciplina de filologia e não filosofia para o aluno que confundiu as disciplinas. Conforme afirma, precisa apresentar conceitos básicos da filologia tradicional até a digital, dando um senso histórico-crítico dos fatos. Assim, isso a leva a reelaborar sua prática didática, embora não evidencie de que modo, pois seu público-alvo não vem majoritariamente das Humanidades.

Outro ponto problemático diz respeito aos métodos de pesquisa. Na área de computação, ferramentas e procedimentos surgem, são testados e reaplicados com certa rapidez, o que demanda mudanças mais imediatas, de forma que exige um constante acompanhamento e capacidade de inovação para seu agir profissional, tanto no domínio da pesquisa quanto do ensino. Esses aspectos revelam o caráter conflitoso do trabalho, uma qualidade inerente da própria atividade (Clot, 2006CLOT, Y. A função psicológica do trabalho. Tradução de Adail Sobral. São Paulo: Vozes, 2006.), porque lida com a domínio do prescrito e o feito, porém na voz da professora se demonstra mediante a diversidade dos sujeitos, as expectativas do docente e dos discentes, e as mudanças metodológicas do próprio campo de conhecimento. Importante também é a denominação “problemático”, visto que não é considerada uma noção ruim, algo incapacitante ou impediente para o agir da nossa professora, pelo contrário, se torna motivo para a inovação e a renovação de sua própria ação, um fonte de energia.

e) Artefatos computacionais e dados digitais

Parece-nos que os artefatos apropriados pelos humanistas e classicistas são orientados dos e para os dados digitais, pois visam estruturar dados anotados por meio da criação de sistemas, bases de dados e bibliotecas digitais, permitindo não só a sua anotação, mas também a análise, a consulta e a extração de informação a partir dos textos enriquecidos.

Nas interações, a professora mobiliza uma série de instrumentos que permitem seu agir:

  1. Artefatos culturais impressos: os livros, imagens, papéis, dados concretos (fontes de dados impressos), trabalho manual a partir de uma leitura próxima com o material impresso, dados tradicionais10 10 Assim são chamados, pela professora e pesquisadora, os dados de pesquisa obtidos de artefatos não digitais como livros, inscrições e outros que envolvem uma materialidade física. . Enfaticamente, a professora reitera a importância dos materiais tradicionais para as Humanidades e Clássicas Digitais, pois é por meio deles que as pesquisas, os projetos e o ensino têm se apoiado. Na verdade, são fontes primárias para a busca de informação, então é necessário voltar-se a estes para que se faça uma abordagem de estudo digital;

  2. Artefatos digitais: dados, arquivos, coleções de dados digitais, repositórios, ferramentas digitais, softwares, e ambientes digitais colaborativos. Encontramos nos artefatos digitais aqueles que resultam na digitalização dos artefatos impressos; aqueles que resultam dos dados digitalizados como os dados anotados, analisados e disponibilizados on-line, e aqueles que são produzidos com a finalidade de manuseio dos dados digitais, como os programas de computador.

  3. Procedimentos computacionais: algoritmos, métodos estatísticos, OCR (reconhecimento ótico de caracteres), alinhamento textual e alinhamento de tradução. São processos que se realizam por meio de programas criados pelos cientistas da computação. O algoritmo é uma sequência de ações para uma determinada solução. Serve de instrução em nível de programação para a execução de uma tarefa computacional. O OCR é um processo essencial na digitalização dos textos impressos, pois permite o reconhecimento dos caracteres para a sua passagem ao digital. Já o alinhamento textual é a associação de um texto-fonte com seu texto-alvo no qual é associado elemento a elemento ou elemento com conjunto de elementos, demonstrando a equivalência entre eles, em línguas diferentes.

  4. Recursos multimídia: slides, imagens, fotos, projetor. Recursos de apoio para as aulas da professora.

  5. Capacidades: questionar, apresentar, produzir os próprios slides. Ações da professora para verificar a aprendizagem;

  6. Línguas: grego, inglês e alemão históricos, latim, persa e qualquer língua.

  7. Dispositivos de avaliação: participação, apresentação, exame escrito final.

  8. Outros recursos: edições, traduções, conceito, textos.

A partir dos recursos multimídia, temos uma variedade de instrumentos esperados no processo de ensino e aprendizagem. No entanto, os instrumentos que chamam a atenção são os artefatos e os procedimentos digitais, uma vez que desempenham um papel mais importante do que a língua do texto analisado. A professora tem de ensinar métodos computacionais por meio da adoção de técnicas aplicadas a línguas históricas para cientistas da computação que, em certa medida, estão familiarizados com algumas ferramentas e procedimentos. Entretanto, é preciso propiciar-lhes um senso histórico dos textos e discutir sobre os problemas com os quais se depararão ao estudar textos da antiguidade com o auxílio do computador e de suas técnicas.

f) Senso de compartilhamento e de colaboração

L238-243 E1 F2: Trabalhamos com dados digitais on-line, com col...ambientes colaborativos. Então, definitivamente hoje podemos definir uma comunidade de classicistas digitais, comunidade de classicistas digitais. É verdade. Ela existe. Faz parte de outras comunidades, comunidades maiores. Sim. E eles compartilham. Comunidade... eles compartilham problemas e questões. O objetivo é conversar com outras comunidades, não ficar isolado.11 11 Texto original: We work with digital data online, with colla...collaborative environments. So definitely today we can define a community of digital classicists, digital classicists’ community. It’s true. It exists. It, it’s part of other communities, bigger communities. Yeah. And they share. Community... they share problems and issues. The goal is to talk to other communities, not to be isolated.

Colaboração e compartilhamento são duas formas de agir que na visão da professora são comuns na comunidade de classicista digital. De acordo com suas palavras, tendem a ser mais abertos para o compartilhamento de suas pesquisas, por meio de workshops, e das problemáticas surgidas no percurso investigativo. Ao compartilhar, seu problema pode ser discutido por profissionais diferentes o que permitiria até mesmo a solução de seus próprios problemas. Ademais, ambientes on-line, como as plataformas de edição e de anotação de textos, facilitam o trabalho conjunto e colaborativo.

g) A necessidade de estabelecimento do agir e de procedimentos científicos

L223-230 E1 F2: E nesse caso, mesmo que eu não goste... ehh... de pensar em comunidades diferentes, comunidades isoladas ainda assim podemos falar de uma comunidade digital de classicistas digitais, porque estamos produzindo um novo modelo de ensino e pesquisando com novos métodos, mesmo que ainda trabalhemos com grego antigo e latim, com textos, com... eternas questões tradicionais.12 12 Texto original: And in this case, even if I don’t like... ehh... to think of different communities, isolated communities still we can talk of a digital community of digital classicists, because we are producing new model of teaching and researching with new methods, even if we still work with ancient Greek and Latin, with texts, with... eternal traditional questions.

L151-155 E1 F2: Na pesquisa bem... ah, sim! claro. A pesquisa é cada dia excitante e frustrante no sentido de que...ehh...principalmente em Humanidades Digitais, porque ainda temos que definir métodos de alguma forma. Então eu... cada dia é um desafio, porque na Filologia tradicional, claro, a disciplina é muito complexa, mas, pelo menos, temos métodos definidos.13 13 Texto original: In research well... oh, yes! of course. Research is every day exciting and frustrating in the sense that ...ehh... specially in Digital Humanities, because we still have to define methods in some way. So I... every day is a challenge, because in traditional Philology, of course, the discipline is very complex, but at least we have defined methods.

Com o uso de uma metáfora, Driscoll e Pierazzo (2016DRISCOLL, M. J.; PIERAZZO, E. Introduction: Old wine in new bottles? In: DRISCOLL, M. J.; PIERAZZO, E. (ed.). Digital Scholarly Editing: theories and practices. Cambridge: Open Book Publishers, 2016. p. 1-18.) questionam se o trabalho realizado pelos classicistas digitais são “vinhos velhos em novas garrafas”. Independentemente da provocação, quando metodologias adentram cantos ainda não tão explorados, é preciso fazer emergi-los, aplicá-los, reaplicá-los e ponderar os modos e os usos em áreas que já tinham seus métodos, permitindo novas práticas nas atividades de trabalho.

A automatização de ferramentas digitais para o processamento, a análise e a anotação de dados linguísticos é uma expectativa dentro do área. Classicistas e outros humanistas esperam que a criação de corpora grandes, manualmente anotados, permitirão a realização de um levantamento automático de dados linguísticos para investigações nas diversas áreas de conhecimentos. No entanto, esse processo se depara com algumas características típicas das línguas históricas que tendem a implicar em alguns pontos dificultosos, como a alta estilização dos textos, já apontada por Bamman e Crane (2011BAMMAN, D.; CRANE, G. The Ancient Greek and Latin Dependency Treebanks. In: SPORLEDER, C.; VAN DEN BOSCH, A.; ZERVANOU, K. (Ed.). Language Technology for Cultural Heritage: Selected Papers from the LaTeCH Workshop Series. Berlin Heidelberg: Springer-Verlag, 2011. p. 79-98.) como um ponto dificultoso para a leitura e a tradução dos textos gregos, além do complexo sistema morfossintático. Isso leva à busca e à redefinição de métodos e ferramentas que forneçam melhor performance com os textos antigos e análise coerente deles.

O analisador morfológico Morpheus, desenvolvido pelo Prof. Dr. Gregory Crane, da Universidade Tufts, é um exemplo de ferramenta que dispõe de reconhecimento de formas de palavras em língua grega e latina. Disponível no site da Biblioteca Digital Perseu, realiza uma análise automática das formas lexicais e seu lema correspondente. No entanto, os resultados trazem, em muitos casos, mais de uma possibilidade. Como a língua grega é altamente flexionada, apresenta forma contratas ou elididas, além de variações dialetais, o analisador pode apontar mais de uma forma lexical para um mesmo lema ou ainda para lemas distintos. Esse é um dos problemas, por exemplo, com os quais os classicistas digitais e os cientistas da computação podem se deparar e precisam, de algum modo, verificar modos de resolverem. É necessário repensar métodos e práticas que possam agregar na resolução ou facilitem o contato e o uso de tais ferramentas.

Um último ponto a ser discutido é que as tecnologias digitais passam por inovações constantemente devido a novas invenções ocasionados pelas descobertas científicas e pelas necessidades sociais. Assim, o agir científico vê-se incumbido a reconhecer que a apropriação de métodos e de ferramentas digitais que mudam rapidamente e que não comuns à tradição de suas áreas exige repensar seu agir e o seu fazer científico, não só para se inovar, mas para estabelecer relações entre o que se faz nas Clássicas e as Humanidades Digitais e os demais campos, demonstrando tanto suas particulares quanto similitudes.

Considerações finais

Embora as tecnologias e métodos digitais não sejam novidade no mundo contemporâneo, apresentam-se de formas diversas nas diferentes áreas e campos do conhecimento. A sua incorporação nos Estudos Clássicos, iniciada no final dos anos 40, manifesta um fator essencial para uma renovação na dinâmica das atividades de pesquisa e de ensino de uma classe de trabalhadores, que é particularmente interdisciplinar nas Humanidades, mas que vem dialogando com a Computação e contribuindo-se mutuamente. Desse modo, torna-se necessário e oportuno investigar as implicações e as consequências que tudo isso fornece. Reconhecer e adotar a perspectiva de gênero profissional (Clot, 2000CLOT, Y.; FAÏTA, D. Genres et styles en analyse du travail: concepts et méthodes. Travailler, v. 4, p. 7-42, 2000.) permitem assumir que o agir dos classicistas digitais, e consequentemente, indiretamente, o agir dos classicistas não digitais, reflete regras coletivas que direcionam o trabalho, mesmo não escritas em manuais.

Assim, por meio de interações verbais orais que consistiram em duas entrevistas e na instrução ao sósia, a pesquisa se baseou nos pressupostos teóricos e metodológicos do Interacionismo Sociodiscursivo e da Clínica da Atividade e pôde depreender a emergência de elementos do trabalho do classicista digital. Em primeiro lugar, constitui emergência, pois é dos textos produzidos pela própria participante, em que se mesclam vozes do sujeito empírico e das esferas sociais, que se externalizam na superfície textual o agir, os instrumentos e as impressões sobre tais conteúdos temáticos. Em segundo lugar, a emergência se relaciona com o aspecto de inovação e de mudança que tem se desenhando e se formalizando nas características das atividades dos classicistas digitais. Em terceiro, a emergência surge ligada intrinsicamente com as questões emergentes anteriores, contudo agora se define pela necessidade reiterada, não só nessa pesquisa, mas em outras publicações e eventos, de estudo e de sistematização dos conhecimentos das Clássicas Digitais e de seu campo maior, as Humanidades Digitais, a fim de que sejam definidas pelos seus contextos e por suas atividades essencialmente regidas pela interdisciplinaridade, e com o fito de adentrar cada vez mais os espaços acadêmicos, tanto no exterior, quanto nas universidades brasileiras.

Os resultados demostraram que alguns elementos surgem do agir dos classicistas digitais. O deslocamento institucional ocasionado à nossa professora participante, que não é uma regra universal, mas que se verifica em muitos casos, é um exemplo que influirá na ação profissional de suas atividades, não só no plano didático, uma vez que o alunado é composto pela maioria de cientistas da computação e com experiência reduzida com textos de línguas históricas, principalmente o grego e o latim, mas também no plano institucional e interacional em relação aos demais professores e pesquisadores do mesmo colegiado, considerando suas particularidades de formação acadêmica. Isso traz à tona a questão da diversidade de trabalhadores e colaboradores, que proporcionam conflitos e dificuldades, entretanto como um aspecto positivo, pois permite o enriquecimento de conhecimento e de tomada de decisões. Além disso, a língua inglesa se torna internacional e de comunicação, uma vez que o objetivo de ensino não é a língua antiga em si, mas apresentar um panorama histórico desses textos, a aplicação de métodos computacionais e as implicações metodológicas resultantes desses processos. A colaboração e o compartilhamento de estudos, dados e problemas também guiam as atividades coletivas, seja em eventos presenciais, on-line ou por meio de projetos disponíveis no ambiente virtual.

O uso de artefatos computacionais e digitais permite uma nova relação com os textos clássicos. Decodificação de textos, anotação morfossintática em árvore (treebanking), alinhamento de tradução e extração automatizada de dados linguísticos foram os procedimentos ou métodos que mais se revelaram nas interações e podem ser um indicativo da criação de bibliotecas digitais, versões digitalizadas de obras ou ainda edições digitais. Por fim, tudo isso leva a um aspecto relevante para a área que é a necessidade de agir e de definição de procedimentos. Mesmo que as Humanidades Digitais já tenham métodos relativamente definidos, eles podem se transformar ou serem redefinidos com uma certa agilidade, conforme a mudança tecnológica, os objetivos de pesquisa ou ainda devido a própria natureza dos textos clássicos. Em vias de conclusão, os elementos da atividade dos classicistas digitais instigam também a reflexão sobre a implantação dessas práticas nos contextos acadêmicos brasileiros e, por isso, necessita de mais investigações em contextos diversos. Desse modo, esse artigo contribui como acionador para repensar as Clássicas em uma perspectiva de Clássicas Digitais.

Agradecimentos

Este estudo foi subsidiado pelo CNPQ (Processo nº 141660/2017-1) e Capes (Processo nº 88881.190522/2018-01).

Referências

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  • BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016.
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    » https://theses.hal.science/tel-00464801v2
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    » https://doi.org/10.1590/S0103-65132004000300004» https://www.scielo.br/j/prod/a/V76xtc8NmkqdWHd6sh7Jsmq/?lang=pt
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  • VYGOTSKY, L. S. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
  • 1
    Original: “[...] a decentralised and international community of scholars and students interested in the application of innovative digital methods and technologies to research on the ancient world. The Digital Classicist is not hard-funded, nor owned by any institution”.
  • 2
    Este artigo é resultado da tese de doutoramento A emergência de um classicista digital: uma perspectiva linguística sobre a atividade de trabalho (2021), sob a orientação da Profa. Dra. Anise de Abreu Goncalves D’Orange Ferreira.
  • 3
    As transcrições são identificadas por L - as linhas em que aparecem os excertos; por E - primeira ou segunda entrevista; por IS - instrução ao sósia, e por F - identificando o falante 1, o pesquisador que está coletando os dados e o falante 2, a professora participante da pesquisa. Texto original: You don’t know the language, but you have to OCR ancient Greek, and you have to use if it works. With translation alignment maybe I have students they want to experiment with a translation alignment, and they can that with any languages they know and to see if they have difficulties in aligning or I can ask them to read alignment of text with another language they don’t know. Yes, definitely, there are many different possible problems.
  • 4
    Texto original: In digital environment we have to debate (the both)... and the difficulty is to rethink the way we work as scholar.
  • 5
    Texto original: So this is...now I am in the third year of teaching, so it (couldn’t) be better, of course, at the beginning was a bit time-consuming, but more for the responsibilities. This is the thing. and... no... for the rest I have to say that I am happy for the teaching. For the research... For the research I would like to have more computer scientists, because I need them, but it’s not easy... but...
  • 6
    Texto original: I have been always trying to combine both. [pesquisa e ensino] Now more than before, because Digital Humanities and Digital Philology... ahn... have a strong connection between teaching and researching, because we need to produce a lot of digital data and so we have the idea is to help students to work on the data and to produce them.
  • 7
    Cf.: ODDONE, Ivar; RE, Alessandra; BRIANTE, Gianni. Redécouvrir l’expérience ouvrière: vers une autre psychologie du travail? Paris: Messidor, 1981.
  • 8
    Texto original: Well, first I have to say this that these courses are based in the fac... in the... in the, in the Institute of Computer Science... ((0,7s)) in curriculum of Digital Humanities which means that most of my students are computer scientists. Some of them are humanists with interest in... ahh... Digital Humanities. So I don’t have students with knowledge of Greek and Latin. This is the first thing important and this was a challenge for me, because coming from the field of Philology and Digital Philology applied to the ancient Greek and Latin, I have to change my teaching.
  • 9
    Texto original: [...] because being in the institute of computer sciences means then I can, every day I can face with computational problems and then I can talk to people concretely working in Computer Sciences. This is, of course, also challenging, because I have to think, to try to think in different way my research questions and I have to talk with people who don’t have background in Classics for example. So in the beginning it can be challenging, but at the same time it’s good, because I can learn how to study my historical documents from different perspectives. So it’s good, because I really have direct experiences with computer science. Of course, being in the institute of Classics would be easier, for other things. I could have more students ((rindo)) studying Classics, but what I can say, so the best thing is to combine both.
  • 10
    Assim são chamados, pela professora e pesquisadora, os dados de pesquisa obtidos de artefatos não digitais como livros, inscrições e outros que envolvem uma materialidade física.
  • 11
    Texto original: We work with digital data online, with colla...collaborative environments. So definitely today we can define a community of digital classicists, digital classicists’ community. It’s true. It exists. It, it’s part of other communities, bigger communities. Yeah. And they share. Community... they share problems and issues. The goal is to talk to other communities, not to be isolated.
  • 12
    Texto original: And in this case, even if I don’t like... ehh... to think of different communities, isolated communities still we can talk of a digital community of digital classicists, because we are producing new model of teaching and researching with new methods, even if we still work with ancient Greek and Latin, with texts, with... eternal traditional questions.
  • 13
    Texto original: In research well... oh, yes! of course. Research is every day exciting and frustrating in the sense that ...ehh... specially in Digital Humanities, because we still have to define methods in some way. So I... every day is a challenge, because in traditional Philology, of course, the discipline is very complex, but at least we have defined methods.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    28 Set 2022
  • Aceito
    13 Mar 2023
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