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Da economia geral à economia poética: dispêndio e equipartição de energia no Curso de Poética de Paul Valéry

From General Economy to Poetic Economy: Expenditure and Equipartition of Energy in Paul Valéry’s Course in Poetics

Resumo

Recuperando registros estenográficos inéditos e organizando as notas de aula dispersas conservadas pela Biblioteca Nacional da França, William Marx publica em dois volumes o Cours de Poétique, de Paul Valéry, no início de 2023. Finalmente pudemos saber como se desenvolveram nas aulas do poeta as reflexões sobre a economia do ato poético e as relações entre produção e consumo do poema, anunciadas nas pouquíssimas partes do curso até então conhecidas: a proposta de sua candidatura ao cargo de professor (publicada com o título “De l’enseignement de la Poétique au Collège de France”) e a “Primeira aula do curso de poética”, um dos ensaios de Variété mais lidos de Valéry. Abordaremos essas reflexões recentemente publicadas, articulando-as com algumas passagens da “Poiética”, elaborada pelo escritor em seus Cahiers, e em diálogo e contraponto com comunicações e textos recentes de William Marx, Antoine Compagnon e Jonathan Culler, que também buscaram entender como esses dois volumes do Cours de Poétique desdobram a economia da experiência poética, na produção e no consumo.

Palavras-chave:
Paul Valéry; poética; autor-obra-público; arte e economia

Abstract

Recovering unpublished stenographic records and organizing the scattered lecture notes preserved by the National Library of France, William Marx publishes in two volumes Paul Valéry’s Cours de Poétique in early 2023. We were finally able to learn how the poet’s classes developed his reflections on the economy of the poetic act and the links between the production and consumption of the poem, announced in the very few parts of the course known until then: the proposal of his candidacy for the position of professor (published under the title “De l’enseignement de la Poétique au Collège de France”) and “The Course in Poetics: First Lesson”, one of Valéry’s most read Variété essays. We will approach these recently published reflections by articulating them with some passages of the “Poiétique”, elaborated by the writer in his Cahiers, and in dialogue and counterpoint with recent communications and texts by William Marx, Antoine Compagnon and Jonathan Culler, who have also sought to understand how these two volumes of the Cours de Poétique unfold the economy of poetic experience, in production and consumption.

Keywords:
Paul Valéry; poetics; author-work-public; art and economy

Não deixa de ser curioso observar a publicação - em dois grandes volumes de cerca de 750 páginas cada - do Cours de Poétique, de Paul Valéry (2023VALÉRY, Paul. Cours de Poétique II - le langage, la société, l’histoire - 1940-1945. Edição de William Marx. Paris: Gallimard, 2023b.), editados por William Marx. Esperada desde que seu editor se tornara professor do Collège de France em 2019, a reunião das notas e dos (recentemente descobertos) registros estenográficos1 1 Vale dizer que tais registros estenográficos foram feitos apenas no primeiro (1937-1938) e no último ano (1944-1945) do curso. O material dos outros anos é composto pela massa de relatórios datilografados e de notas de aula manuscritas reunidas nos dossiês conservados pela Biblioteca Nacional da França, que foram organizados a partir das informações encontradas em ementas, diários e documentos de secretaria encontrados nos arquivos do Collège de France (Marx apudValéry, 2023a, p. 55-67). das aulas que o poeta deu na mesma instituição entre 1937 e 1945 atraiu todos os olhares durante a rentrée d’hiver de 2023 na França, com direito à cobertura da mídia digital, televisiva, radiofônica e impressa do país. Assim, celebrada ou difamada por sua dificuldade, seu hermetismo, seu distanciamento em relação à “bêtise moyenne”2 2 Nos esboços não publicados de um “prólogo no céu” do Mon Faust de Valéry (produzido entre 1940 e 1945), a “bêtise moyenne” é divindade que encarna o senso comum da sociedade de massas, formado por médias estatísticas de interações linguísticas homogêneas (Lucas, 2018, p. 196). do público massivo, a obra de Valéry então voltava a atrair um bom número de holofotes.

Vale sublinhar essa ideia de volta, pois a relação da obra valeriana com o público e o campo literário perfaz ciclos constantes de idas e de voltas: aquele que todas as manhãs, entre 1894 e 1945, escreveu seus cadernos, desenvolvia seus pensamentos num terreno de experimentações rigoroso e privado, criando uma linguagem e ferramentas conceituais particulares (1974aVALÉRY, Paul. Cahiers I. Edição de Judith Robinson-Valéry. Paris: Gallimard, 1974a., p. 264-266 e 426), é o mesmo que, a partir do fim dos anos 1910, com a publicação de “La Jeune Parque” e dos poemas de Charmes, ganha o centro da fama literária, torna-se um dos intelectuais franceses mais importantes do período entreguerras, o “Bossuet da Terceira República” (1957aVALÉRY, Paul. Œuvres I. Edição de Jean Hytier. Paris: Gallimard, 1957a., p. 1743), e passa a viver da escrita de textos encomendados, prefácios para toda sorte de livro, ensaios de circunstância, conferências para as mais diferentes instituições e textos de ocasião que eram publicados em tiragens limitadas e caras para depois serem republicados na série Variété, reunindo todas as reflexões sobre literatura, filosofia, política e história publicadas por Valéry durante sua vida (Marx, 2013MARX, William. Le poète et le ready-made. Littérature, v. 172, p. 56-61, 2013.).

Essa relação complexa com o público é também um dos motivos para o burburinho em torno do lançamento do Cours. Pois um dos textos mais lidos e conhecidos de Valéry era justamente “A Primeira Aula do Curso de Poética” (1957VALÉRY, Paul. Œuvres II. Edição de Jean Hytier. Paris: Gallimard, 1957b.a, p. 1340-1358), texto da conferência inaugural que se tornou parte da bibliografia básica de disciplinas de teoria literária ao redor do mundo. Durante muitos anos, porém, apenas essa aula inicial e o texto da candidatura de Valéry e da sua proposta de ensino ao Collège de France - também publicado em Variété sob o título de “De l’enseignement de la Poétique au Collège de France” (1957aVALÉRY, Paul. Œuvres I. Edição de Jean Hytier. Paris: Gallimard, 1957a., p. 1438-1443) - eram acessíveis ao público leitor mais amplo.3 3 Do restante do curso, só tínhamos um resumo bastante sintético das aulas, feito por Georges Le Breton para a revista Yggdrasil (Marx apudValéry, 2023, p. 57) e alguns depoimentos de frequentadores como Blanchot (2001, p. 116-122), Barthes (1980), Merleau-Ponty (2013; cf. Zaccarello, 2003, 2011). Cada um desses relatos mereceria uma análise a parte, que detalhasse a contribuição específica do Cours de Poétique de Valéry para a reflexão sobre o absoluto literário em Blanchot, a fenomenologia da experiência artística em Merleau Ponty, a morte do autor, o neutro, o valor da retórica e do significante e muitos outros temas em Barthes (2018) e Peeters (2023). Preocupados em articular as reflexões das aulas valerianas às suas próprias reflexões, nenhum desses relatos se debruçava nelas em detalhe. Assim, não poderia ser mais bem-vinda a publicação do cuidadoso trabalho de edição de William Marx, que, a partir de materiais bastante heterogêneos, alguns inéditos outros conhecidos, mas pouco acessíveis, reconstituiu o trajeto aula-a-aula do curso de poética valeriano.

Por todos esses motivos, era grande a curiosidade para saber como o restante do curso teria desenvolvido a proposta apresentada em sua primeira aula: a de esmiuçar a economia do ato poético, partindo da comparação entre a gênese do valor artístico e a do valor monetário, reflexão que exigiria colocar o mal compreendido formalismo de Valéry em contato direto com inúmeros dilemas políticos e sociais que a Europa viveria naqueles anos.4 4 Para reflexões que repensam aquilo que chamamos de “formalismo” em Valéry (e, de certo modo, na literatura) e o observam em contato com vetores poéticos de outra ordem - o corpo, a sensibilidade, a voz, o eu-múltiplo (mais do que o eu-impessoal) - Marx (2011), Zular (2014) e Lucas (2019). Sobre como as reflexões poéticas de Valéry se entrelaçam com as inquietações políticas dos anos 1930 e da Segunda Grande Guerra (Lucas, 2018). O tema da economia da produção e do consumo poético tem sido bastante debatido entre as primeiras reações de leitura, como mostram as intervenções de Jonathan Culler, Antoine Compagnon, Matilde Manara e Gisèle Sapiro no recente colóquio “Valéry au Collège de France”5 5 Organizado por Willliam Marx e Matilde Manara, todas as conferências estão disponíveis no site da instituição: https://www.college-de-france.fr/fr/agenda/colloque/valery-au-college-de-france. , tanto quanto o próprio curso que William Marx deu no Collège este ano.6 6 “Valéry ou la littérature”. Disponível em: https://www.college-de-france.fr/fr/agenda/cours/valery-ou-la-litterature. O primeiro fator que mais tem chamado a atenção é a amplitude que Valéry dá ao termo poétique, que é recuperado não tanto de Aristóteles, mas também da ideia mais ampla de fazer, do verbo poïein, motivo para que, como nos Cahiers, Valéry escrevesse poïétique.

Por meio desse deslocamento, o “cours de poïétique” (como lemos nas notas dos dossiês Naf19086 a Naf19104)7 7 Tais códigos vão se referir aos dossiês do departamento de arquivos e manuscritos da Biblioteca Nacional da França, digitalizados e disponíveis pela plataforma gallica.fr. define seu escopo, qual seja, aquilo que o poeta chama de obras do espírito, conceito que diz respeito tanto às criações artísticas quanto aos saberes e técnicas científicas, de um lado, e aos discursos e práticas fiduciárias8 8 A “fiducia” - termo que Valéry escreve em seus Cahiers segundo a grafia italiana e latina - diz respeito ao crédito que determinados discursos recebem para que se façam crer e obedecer. Todo discurso que não se dispõe à interpretação, que deseja se impor como um fato revelado por palavras, toda relação de troca de ações concretas por palavras (promessas, papeis) - como a própria moeda - envolvem a mobilização de valores fiduciários: a política, o direito e a religião seriam instituições essencialmente fiduciárias, que no curso recebem análise especial (sob a sigla PDR, Valéry, 2023b, p. 160-164; Rey, 1998, p. 129-189). do direito, da religião, da política, da história e da filosofia, de outro. Em resumo, todas as formas de fazer, noção que, diferentemente do contínuo produzir da natureza naturante, aciona uma interação entre um sistema de atos discretos - conjunto de ações que se determina em contato com sua própria virtualidade, a possibilidade reversível de agir ou não agir - e uma série irreversível de transformações da sensibilidade, das matérias e dos corpos que se articulam e ressoam uns nos outros, satisfazendo e/ou reacendendo desejos tramados ao longo das experiências que mobilizam e que os mobilizam.

Essa terminologia muito específica pode soar difícil e algo “abstrata” à primeira vista. Com efeito, foi justamente essa a impressão de Jonathan Culler, que, à esteira da leitura da “Primeira Aula”, esperava encontrar no curso o desenvolvimento de uma reflexão mais estritamente focada na poesia e na literatura. Para o crítico norte-americano, a leitura dos dois volumes do Cours agora publicado revelariam retrospectivamente que os textos da proposta de ensino e da conferência inaugural eram uma espécie de “bait and switch”, em que o anúncio do estudo sobre a economia da criação artística teria servido apenas para garantir o cargo de professor, que, uma vez conquistado, seria utilizado para Valéry expor as reflexões de seu pensamento “genial”, mas “abstrato” e, no geral, já conhecido para o leitor dos Cahiers (Culler, 2023CULLER, Jonathan. « La poésie entre production et consommation ». Colloque Valéry au Collège de France, 2023. Disponível em: https://www.college-de-france.fr/fr/ agenda/colloque/valery-au-college-de-france/la-poesie-entre-production-et-consommation . Acesso em 12/07/2023.
https://www.college-de-france.fr/fr/ age...
).

Observações similares foram feitas por Antoine Compagnon, que notou no Cours um vaivém constante entre o desejo de questionar ou relativizar alguns teoremas clássicos da poética formalista atribuída a Valéry e a necessidade de, no fim das contas, retomá-los sob o risco de perder a posição simbólica, construída desde os anos 1920, de herdeiro da tradição Poe-Baudelaire-Mallarmé (Marx, 2013MARX, William. Le poète et le ready-made. Littérature, v. 172, p. 56-61, 2013.). Assim, a célebre ideia de inutilidade da poesia, em oposição à transitividade da prosa, se veria ora reafirmada como atestação de seu caráter luxuoso, ápice da soberania do espírito, ora questionada ou relativizada, seja porque suas produções podem ser reaproveitadas pelas instituições fiduciárias, seja pelo fato de que obras prosaicas também seriam construções apreciáveis para além de sua utilidade ou significação convencional, seja porque o excesso do inútil sobre o útil se revelaria um dado da própria vida natural, não sendo exatamente um luxo ou uma exceção que caracteriza o fazer humano (Compagnon, 2023COMPAGNON, Antoine. « Un serpent qui se mord la queue ». Colloque Valéry au Collège de France, 2023. Disponível em: https://www.college-de-france.fr/fr/agenda/ colloque/valery-au-college-de-france/un-serpent-qui-se-mord-la-queue . Acesso em 12/07/2023.
https://www.college-de-france.fr/fr/agen...
; Valéry, 2023aVALÉRY, Paul. Cours de Poétique I - le corps et l’esprit - 1937-1940. Edição de William Marx. Paris: Gallimard, 2023a., p. 122, 217 e 351).

Essa variação, contudo, diz respeito ao núcleo da noção de poïésis do Cours, noção que se faz ao mesmo tempo ampla e singular, visando dar conta de diferentes tipos de produção sensível e intelectual, das matemáticas à música, passando pela filosofia, por meio de comparações e contrastes contínuos entre elas. O recurso reiterado às noções de utilidade e inutilidade visando distinguir as obras de arte (irredutíveis à satisfação de uma função unívoca) e outros tipos de obra do espírito (redutíveis a fins) está constantemente perturbado pela percepção de que a experiência artística - na produção e no consumo, como veremos - mais do que fechada em si mesma, arredia a funções externas dada - é na verdade construída pela hesitação equívoca entre funções heterogêneas, ao mesmo tempo internas e externas, que se chocam, se refinam, se metamorfoseiam mutuamente conforme o próprio ser vivo se transforma, em diferença e excesso contínuo em relação a si próprio.9 9 Vale notar neste ponto a diferença entre o funcionalismo de Valéry e o conhecimento funcionalismo de Jakobson. Enquanto Jakobson partia de uma divisão analítica dos eixos supostamente elementares do ato de comunicação para lhes atribuir diferentes “funções” (emissor = função emotiva; mensagem = função poética; canal = função fática, etc.), em Valéry as funções se diferenciam, se multiplicam, se transformam continuamente, à medida que relações palavras e coisas, interações entre demanda e resposta, desejo e satisfação vão se recortando, se delimitando mutuamente, e o excesso da vida sobre ela mesma faz surgir sistemas de relações singulares - as desinências adverbiais “íveis” e “áveis” da aula de 26 de fevereiro de 1938 (2023a, p. 485). É somente nessa interação em contínua “variation fonctionnelle” que emergem, desde um estado de indiscernibilidade, as noções de útil e de inútil, de puro e de aplicado, de artístico, cotidiano, científico, as diferenças entre os saberes, entre as linguagens, os discursos, etc. (Valéry, 2023a, p. 122). Assim, “a luta do espírito contra o real” se revela como uma modalidade de existência do próprio real;10 10 Como notou o filósofo Jean-Luc Nancy no seu prefácio para a edição integral dos Cahiers 1894-1914, de Valéry, pela Gallimard, v. 12 (Nancy, 2012): “O real como uma ressonância, e essa ressonância como um sentimento [...] Assim a coisa se dá: não como um ser que subsistiria alhures, nem como um simples ‘ser percebido’, representação submetida a uma subjetividade. Mas como esse sentir no qual, segundo o qual, mas sobretudo como o qual o real se realiza”. e os limites entre natureza e cultura, bem como entre o útil e o inútil, obras do espírito e obras de arte, estão em constante movimento, hesitação.

Nesse sentido, vale se debruçar sobre uma nota de aula do ano 1942-1943.11 11 O texto a partir deste parágrafo até o fim desta seção é um resumo extraído do terceiro capítulo de nossa tese de doutorado (Lucas, 2018, p. 198-210). Ela nos apresenta um contraste entre três tipos de poïésis - as técnicas científicas, as instituições fiduciárias e as obras de arte -, elaboradas no contexto dessa luta contra o real. Trata-se de uma visão sinóptica de tal luta, que permite dispor sob um único olhar as diferenças e afinidades entre as poéticas da ciência moderna e da fidúcia discursiva, tendo a poética das obras de arte como uma espécie de ponto de fuga entre as duas, cada uma delas com seus modos de construir a relação entre corpo e linguagem, a matéria e o pensamento:

A luta contra o “Real”
Pois somos um desvio das condições naturais: todas as metafísicas partem daí.
Essa luta procede e só pode proceder pela tentativa de modificar:
ou o Real inicial, bruto; técnica, prática e conhecimento científico;
ou a própria ideia de um Real: metafísicas etc.
ou o outro membro da relação: o próprio homem
A modificação real do Real ou pesquisa científica consiste em agir sobre a própria percepção. A ver, por exemplo, por artifício aquilo que nossos olhos não mostram. Aqui, todos os relais conhecidos.
A modificação da ideia do real consiste em torturar de todos os modos as expressões primeiras, e a criar valores fiduciários: valor da vida, por exemplo. Dispõe-se aqui de todo o arbitrário imaginável [...]
O Éden, a era de ouro dos antigos, o paraíso da Idade Média ou ainda a Cidade Futura, ou a era de justiça, de paz. Os Ultra-Mundos. E na ordem abstrata: a tríade do Belo, do Bem e do Verdadeiro.
Há também os ideais “em ato”, digo, que tentam se realizar materialmente ou quase-materialmente nas artes [...].
(NAF19094, f. 68).12 12 « La lutte contre le “Réel” // Car nous sommes un écart des conditions naturelles : toutes les métaphysiques partent de là. // Cette lutte procède et ne peut procéder que par tentative de modifier ou le Réel initial, brut ; Technique, pratique et Connaisance scientifique // Ou l’idée même d’un Réel Métaphysiques etc // Ou l’autre membre de la Relation : l’Homme même // La modification réelle du Réel ou recherche scientifique consiste à agir sur la perception même, À voir, par exemple, par artifice ce que nos yeux ne montrent pas. Ici, tous les relais connus. // La modification de l’idée du réel consiste à torturer de toutes façons les expressions premières, et à créer des valeurs fiduciaires : valeur de la vie, par exemple. On dispose ici de tout l’arbitraire imaginable (...) // L’Éden, l’âge d’or des anciens, le Paradis du Moyen Âge, ou bien la Cité future, ou l’ère de justice, de paix, les ULTRA-MONDES. Et dans l’ordre abstrait, la triade du Beau, du Bien et du Vrai. // Il y a aussi les idéaux « en acte » - je veux dire qui tentent de se réaliser matériellement ou quasi-matériellement dans les arts (...) ». Exceção feita às obras consultadas em traduções já publicadas, todas as citações de manuscritos e livros consultados em francês serão apresentadas em tradução livre, com o original em nota de rodapé.

A comparação entre a poética da ciência (controle técnico da matéria da realidade), da fidúcia (modificação das ideias sobre a real), mediada pela poética das artes, em sua ontologia “quase-material”, de “ideias em ato”, seria, a meu ver, eixo maior de estruturação do curso. Ela se desdobra nas duas grandes partes que dividem os dois volumes editados por Marx: a primeira delas voltada aos três primeiros anos e à reflexão sobre a experiência íntima da sensibilidade, do corpo e do intelecto (como diz o título do primeiro tomo, “O corpo e o espírito”), e a segunda integrando os cinco últimos anos, dedicada à “linguagem, a sociedade, a história”, título do segundo tomo.

Neste ponto, as reflexões do cours de poïétique passam a tocar mais diretamente os impasses históricos da Europa moderna “expirante in media insanitate” (1957bVALÉRY, Paul. Œuvres II. Edição de Jean Hytier. Paris: Gallimard, 1957b., p. 444). Para Valéry, o progresso científico obtido por meio dos instrumentos técnicos amplia os poderes da ação humana para escalas de grandeza distantes de seus sentidos (como operações químicas em nível molecular, por exemplo, ou apertar um botão e botar fogo num país a milhares de quilômetros de distância). A criação desses instrumentos (que Valéry chama de “relais”) produz novos fatos, os quais exigiram novos relais para serem explicados, o que cria novos campos de saber distanciados de qualquer medida humana de figuração ou de síntese. A perda dessa unidade do saber é compensada pelo aumento do poder fazer. O problema é que se “o poder do saber devora o saber...”, isso tem por consequência a “diminuição de todos os valores fiduciários (ruína do senso comum, das tradições, das crenças” (NAF19094, f. 21). A nova ciência é “uma gigantesca operação ofensiva contra o bom senso e o senso comum”, pois se fia exclusivamente numa política de resultados “e conta apenas com sucessos pela boa razão de ser feita exclusivamente de sucessos” (NAF 19094, f. 29), reduzindo-se à produção de receitas infalíveis que o cientista criou de modo a poderem ser refeitas e reproduzidas por qualquer um, desde que respeitadas as condições iniciais exigidas (NAF 19093, f. 10, 180):13 13 A argumentação a partir desse parágrafo até o fim dessa seção está apresentada em mais detalhe em Lucas (2018, p. 196-199, tese de doutorado). NAF 19093: Cours de poïétique. VII. Année 1941-1942.

A ciência... tem por finalidade (moderna) a formulação de receitas que todo o mundo pode aplicar. E isso é o grande fato novo, que permitiu a transformação industrial do mundo moderno. A IMITABILIDADE. A potência de ação sem discursos inúteis. Tudo o que não é necessário para descrever e prescrever uma ação é eliminado. A perfeição da Ciência moderna se faz a esse preço. A curiosidade em si e para si, os desenvolvimentos ditos “filosóficos” são, no fundo, anticientíficos - eles não são mais CIÊNCIA-OURO. A questão Por que, a questão Como (sic) nos aparecem então, mesmo nos casos mais favoráveis, como demandas de receitas de ação. (NAF 19094, f. 22).14 14 « La science […] n’a-t-elle pas pour fin (moderne) la formulation de recettes que toute le monde peut appliquer. Et ceci est le grand fait nouveau, qui a permis la transformation industrielle du monde moderne. L’IMITABILITÉ. La puissance d’action sans discours inutiles. Tout ce qui n’est pas nécessaire à décrire et prescrire une action est éliminé. La perfection de la Science moderne est à ce prix. // La curiosité en soi et pour soi, les développements dits ‘philosophiques’ sont, au fond, anti Scientifiques - ne sont plus SCIENCE-OR. La question Pourquoi, la question Comment, nous apparaissent désormais, même dans les cas les plus favorables, comme des demandes de recettes d’action ». NAF 19094: Cours de poïétique. VIII. Années 1942-1943 et 1943-1944.

Em outras palavras, ao se pautar pela exigência contínua do pagamento em ouro, ou seja, a reprodução exata dos resultados visados pela receita, a nova ciência deprecia os velhos valores fiduciários que, presentes no senso comum, em crenças ou em tradições, orientavam a ação humana em diferentes instituições - políticas, religiosas ou jurídicas. Contudo, seria precipitado afirmar que, com isso, a fidúcia é superada. Afinal, uma dinâmica igualmente fiduciária - e mesmo talvez mais sutil - é posta em cena pelas novas práticas científicas, dado que nelas

A verdade é cada vez mais reduzida à propriedade das representações ou expressões verbais que são verificadas regularmente por um resultado de ação [...]. Ora, isso é PURAMENTE FIDUCIÁRIO. Aqui se coloca uma questão: relativa aos valores afetivos. Os valores de ação (ou OURO) estão ligados a isso. A ideia A tem, suponho eu, valor de ação virtual. Tenho a receita (SE FAÇO A, SEGUE-SE B). Mas por que eu faria A? E com qual energia? (NAF 19094, F. 76).15 15 « La ‘vérité’ est de plus en plus réduite à la propriété des représentations ou expressions verbales qui sont vérifiées régulièrement par un résultat d’action. [...] Or, c’est là le PUREMENT FIDUCIAIRE. // Ici se place une question : celle des valeurs affectives. Les valeurs d’action (ou OR) sont liées à celles-ci. L’idée A a, je suppose, valeur d’action virtuelle. J’ai la recette (SI JE FAIS A, B S’ENSUIT). Mais pourquoi ferais-je A? Et avec quelle énergie ? »

Deixada em suspenso, a interrogação final sugere que a adoção das condições iniciais prescritas pelas receitas da ciência moderna não se justifica por si, carecendo não de um crédito fiduciário a ser posteriormente quitado, mas de uma homogeneização prévia de nossos anseios e necessidades em conformidade com os cambiantes pressupostos dos diversos dispositivos técnicos presentes nas diferentes esferas da vida, donde se retiram as médias pautadas pela imitabilidade geral (NAF 19101, f. 70; 19094, f. 8, 20) e pela regulagem flutuante dos corpos e seus regimes de desejo. Portanto, se as instituições fiduciárias nos impõem o curso forçado de suas palavras e papeis moeda, exigindo-nos o sacrifício de ações e recursos concretos que só serão quitados no futuro, à jusante, as tecnologias modernas não pagam em ouro, com resultados concretos, mas apenas porque já pagamos à montante com nosso próprio corpo e nem sabíamos: “A organização sempre mais perfeita da vida nos capta numa rede, cada vez mais apertada, de regras e exigências, das quais muitas nos são insensíveis! Não temos consciência de tudo a que obedecemos. O telefone toca e corremos até ele” (1957bVALÉRY, Paul. Œuvres II. Edição de Jean Hytier. Paris: Gallimard, 1957b., p. 1038).

Após a observação da diferença entre a determinação do valor na poïésis da ciência - com sua transformação técnica do real bruto e do material perceptivo inicial - e a determinação do valor na poïésis das convenções fiduciárias à jusante - com seu manuseio de ideias de homem ou de real -, seria possível apreender o que está em jogo na poïésis da obra de arte, pois será nesse momento que a hesitação prolongada entre som e sentido - como já evidenciado na “Primeira Aula”, uma hesitação entre ser e convenção, corpo e linguagem - talvez mostre toda sua força. Afinal, seus ideais quasi-matéricos realizados em ato hesitam entre voz e pensamento, entre presença-ouro e ausência-papel-moeda, entre desejo e satisfação, driblando, assim, toda fidúcia, toda injunção a crer ou obedecer, esteja enunciada à montante ou à jusante, posta seja como coerção a acreditar num ideal unívoco supostamente capaz de orientar a ação presente e compensá-la no futuro, seja como obediência e satisfação atual de uma necessidade biológica unívoca determinada previamente pelos dispositivos técnicos:

A ARTE, o Inútil e o arbitrário como domínios e recursos de ação: ação sobre as coisas, ação sobre os outros, combinadas. É dar poderes de ação às produções “aberrantes”, ou seja, não controladas por condições finitas da vida. Não determinadas por uma necessidade não equívoca do organismo, - sensações localizadas e devendo ser amortizadas, apagadas por uma satisfação finita. Essas produções aberrantes podem se continuar infinitamente, e só se concluírem por interrupção. Contos, sonhos. Desdobramentos ilimitados. Narrativas, etc. (NAF 19094, f. 18, grifos nossos).16 16 « L’ART, l’Inutile et l’arbitraire comme domaines et ressources d’action : action sur les choses, action sur les autres, combinées. C’est donner des pouvoirs d’action aux productions “aberrantes”, c’est-à-dire non contrôlées par des conditions finies de la vie. Non déterminées par un besoin non équivoque de l’organisme, - sensations localisées et devant être amorties, éteintes par une satisfaction finie. Ces productions aberrantes peuvent se continuer infiniment, et ne s’achever que par interruption. Contes, rêves. Développements illimités. Récits etc. »

A arte liberta o corpo de toda funcionalidade biológica não equívoca, pautada por uma norma única. Como isso é possível? O ato poético que produz e interpreta a obra artística é o objeto principal das interrogações empreendidas pelo curso dado por Valéry no Collège de France. Para o poeta francês ele seria a única experiência capaz de driblar, de não se deixar capturar pelas injunções fiduciárias à jusante e à montante, pois cria e prolonga continuamente um estado de hesitação entre estados heterogêneos, entre o ideal e o material, ser/presença e convenção/ausência.

Consequentemente, a presença-ouro e a ausência papel-moeda, o valor de uso e o valor de troca se virtualizam em ato e se redeterminam infinita e reciprocamente - como na hesitação entre som e sentido, corpo e linguagem, ser e convenção. Como lembra “a primeira aula”, uma obra de arte nos transporta para um estado de reexperimentação de seu fazer, revirtualização de seus possíveis, demorando-se na passagem entre o arbitrário e o necessário: quanto mais uma obra que age sobre nós parece necessária em seus elos internos, mais ela aciona a sensação das possibilidades latentes, afinal, para perceber que tal efeito de sentido só poderia ter sido produzido em sua sutileza em contato com de tal rima, ritmo ou tom de voz, é preciso experimentar variações, notar como escutar o som de um modo diferente provocaria uma mudança na compreensão do sentido, e vice-versa, assim como compreender o sentido de modo ligeiramente diferente instiga escutar a sonoridade em outro andamento, altura ou timbre.

Assim, mais que oscilar entre a escuta do som e a escuta do sentido, hesita-se entre diferentes modos de combiná-los, entre uniões singulares dessas potências heterogêneas (1974bVALÉRY, Paul. Cahiers II. Edição de Judith Robinson-Valéry. Paris: Gallimard, 1974b., p. 1053). Vê-se desde já que, visando os detalhes mais sutis, ou seja, as menores variações de som capazes de provocar mutações de sentido, e os menores deslocamentos de significação capazes de implicar mudanças sonoras, o poema equivoca a relação entre produção e consumo dos materiais, meios e fins das ações. Onde a linguagem cotidiana consome som para produzir sentido (ignorando as variações sonoras que não importam para a determinação de um sentido esperado dentro de dada funcionalidade) - e ainda à distância de uma proposta de “poesia pura” que invertesse a hierarquia (mudando apenas de uma religião para outra), consumindo sentido para produzir enleios sonoros - a poesia de Valéry busca uma equipartição de energia entre heterogêneos, uma hesitação variante nas acoplagens entre ato e matéria, ação e sensibilidade, produção e consumo.

Assim, se essa hesitação no ato poético refina o limiar presença-ausência e escapa da fidúcia tanto à jusante quanto à montante, não sendo nem univocamente ser, nem univocamente ficção; nem univocamente papel, nem univocamente ouro, é porque ela retarda, alonga, alenta a passagem continente-conteúdo, meio-fim, produtor-consumido presente em toda acoplagem e desconstrói as hierarquias nela habituadas, desdobrando a hesitação igualmente aos polos do trabalho e do dispêndio, e aos limites entre o fazer do produtor-escritor e o fazer do consumidor-leitor, dois sistemas de atos ao mesmo tempo mutuamente implicados e reciprocamente irredutíveis um ao outro, heterogêneos em suas escalas e grandezas de tempo e espaço, energia e matéria, como, aliás, Valéry afirma já na Première Leçon (1957 a VALÉRY, Paul. Œuvres II. Edição de Jean Hytier. Paris: Gallimard, 1957b., p. 1346-1350).

Considerações sobre a vontade de potência nos afazeres do espírito. É possível distinguir aqui duas espécies dessa paixão do espírito que é vontade de potência. Uma visa à posse de uma clientela: ela é como que virada em direção ao universo social; seu objetivo é, portanto, finito: trata-se, em resumo, de um verdadeiro gosto pelos outros. A outra paixão é uma das mais singulares afecções da alma que seria possível observar. Para passar da primeira para a essa última, basta conceber o leitor eventual como dotado de uma exigência infinita, que não é outra senão o produto da paixão mesma do autor. Nesse último caso, quando obra há, e qualquer que seja o feliz sucesso dessa obra no meio, ela será sempre considerada por seu autor como puramente preparatório e não conta nada aos seus olhos. (NAF 19094, f. 221).17 17 « Considérations sur la volonté de puissance dans les affaires de l’esprit. Ici on peut distinguer deux espèces de cette passion de l’esprit qui est volonté de puissance. L’une vise à la possession d’une clientèle ; elle est comme tournée vers l’univers social ; son but est donc fini : il s’agit, en somme, d’un véritable goût des autres. L’autre est une des plus singulières affections de l’âme qu’il soit possible d’observer. Pour passer de la première à celle-ci, il suffit de concevoir le lecteur éventuel comme doué d’une exigence infinie, laquelle n’est autre que le produit de la passion même de l’auteur. Dans ce dernier cas, lorsqu’œuvre il y a, et quel que soit l’heureux succès de cette œuvre dans le milieu, elle sera toujours considérée par son auteur comme purement préparatoire et elle ne compte rien à ses yeux »

Ou ainda nessa outra nota do curso de 1943-1944:

No produtor, 2 espécies. Uns colocam seu desejo nos efeitos exteriores de sua obra - Os Outros - e se dividem eles próprios em criados pelos Outros - criando-se Outros (sic), mas é preciso outros. Ao passo que para a segunda espécie basta-lhe um Outro que é eles mesmos [sic] (aqui intervém o infinito). (NAF 19104, f. 4).18 18 « Chez le producteur, 2 espèces. / 1) Les uns placent leur désir et leur drame dans les effets extérieurs de leur œuvre - Les Autres - et ils se divisent eux-mêmes en - crées par les Autres - se créant des Autres - mais il faut des autres. / 2) Tandis que pour le 2ª espèce, il leur suffit d’un Autre qui est eux-mêmes (ici intervient l’infini) ». NAF 19104: 7ème année (1943-1944). Cahier de brouillon « Poï ».

O artista da segunda espécie seria o infinito em que produção e consumo, o Si e o Outro. se encontram e se sobredeterminam reciprocamente, acionando um “sistema capaz de modificações, de valores variáveis”, um “eu” múltiplo (vale notar o plural irregular em “eles mesmos”, “qui est eux-mêmes”), proteico, e não definido, pois deve se modificar de acordo com virtualidades desconhecidas de si e das circunstâncias, cada modificação sendo uma variação, “um desvio do eu que nós conhecemos em nós e que era conhecido em nós” (NAF 19104, f. 11). Assim, por um lado...

O universo social e econômico tende a fazer para si um universo métrico, ou seja, no qual a unificação, a identificação, a repetição dominam - ou seja, a independência da produção em relação às condições singulares, o consumidor... (NAF 19101, f. 70).19 19 « L’univers social et économique tend à se faire un univers métrique, c.d.a, dans lequel l’unification, l’identification, la répétition dominent - c.d.a., l’indépendance de la production d’avec les conditions singulières, le consommateur ». NAF 19101: Année 1937-1938, 1941-1942.

O universo social é aquele no qual o sistema de atos do produtor é independente e separado do sistema de atos do consumidor, uma separação realizada pela métrica que permite racionalizá-los segundo a bêtise moyenne da sociedade de massas e produzir um objeto útil. Em outras palavras, a determinação unívoca do que seria tal objeto não apenas pressupõe como deve ser seu consumo, mas também racionaliza sua produção. Assim, no cours de poïétique, um objeto útil será aquele em torno do qual duas finalidades diferentes e separadas (produzir objeto X, consumir objeto X) comandam sistemas de atos diferentes e separados, cada um deles com sua própria racionalidade homogênea hierarquizada a cada momento. Assim, se o poeta não deve “ser criado pelos Outros”, ou seja, responder univocamente às demandas prévias do público - indo ao encontro do seu horizonte de expectativa, como diria a estética da recepção - não é por nenhum heroísmo ou rebeldia, é porque, uma vez estabelecido o objeto que será consumido, as relações do poeta com os materiais composicionais tendem a se racionalizar, a se tornarem instrumentais. Por outro lado, escrever contra o horizonte de expectativa - criando o próprio público (“criando-se Outros”), como teriam feito as vanguardas - também não muda muito essa situação, pois ela não garante esse entrelaçamento ressonante entre mim e outro; bem pelo contrário, se tomada como um fim em si mesmo, a busca pelo ídolo do novo, pelo efeito de choque, pode impor - tanto quanto a injunção estreita de obedecer à tradição - uma racionalização mais ou menos explícita na relação com os materiais e o trabalho compositivo (mesmo que ela preveja espaços de atuação para o aleatório, como veremos).

Contra essa primeira espécie de produtor - ela mesma dividida em “criado pelos outros” e “criador de outros” - na segunda espécie...

Os trabalhos artísticos têm interesse apenas 1º voluptuário (consumo) 2º técnico (produção). Ora, sob os dois aspectos, eles são indivisíveis, e ademais, são também inseparáveis, tanto de tal consumidor quanto de tal produtor. (Valéry, 2022VALÉRY, Paul. Poiética [Cadernos]. São Paulo: Iluminuras, 2022., p. 179 e 1944).

Obra de arte há quando sistemas de atos heterogêneos da técnica e da volúpia, da produção e do consumo se tornam ao mesmo tempo inseparáveis, mutuamente implicados e irredutíveis entre si, reciprocamente sobredeterminados diante de um inacabamento comum, que experimenta variações entre a produção/emissão do som e o consumo/ compreensão do sentido, entre a produção/pulsação do pensamento e a escuta/consumo do som, campo de experimentações no qual o eu que escuta tal rima e o eu que entende suas significações não é exatamente o mesmo (1974bVALÉRY, Paul. Cahiers II. Edição de Judith Robinson-Valéry. Paris: Gallimard, 1974b., p. 327), no qual as virtualidades interpretativas da leitura encontram e prolongam virtualidades produtivas da escrita (1957aVALÉRY, Paul. Œuvres I. Edição de Jean Hytier. Paris: Gallimard, 1957a., p. 1350).

Para entender como Valéry faz da hesitação entre som e sentido (que, vale lembrar, é apenas um modo de agenciar acoplagens entre ser e ficção, corpo e linguagem, voz e pensamento, enunciação, enunciado, etc.) uma hesitação entre produção e consumo, é interessante acompanhar as reflexões de William Marx no artigo “Le poète et le ready-made” (2013MARX, William. Le poète et le ready-made. Littérature, v. 172, p. 56-61, 2013.). Nele, o crítico mostra como a poética de Valéry se equilibra sobre duas teorias econômicas modernas do valor: a neoclássica, baseada na utilidade do valor consumo e mais próxima das questões do tempo do poeta, que desde jovem acompanha de perto essa escola de pensamento, tendo inclusive resenhado em 1896 o livro Elementos de economia política pura, de Léon Walras; e a teoria clássica, fundada na utilidade do valor trabalho, mais próxima do pensamento marxista, cuja célebre obra - O Capital, de Karl Marx - é lida pelo poeta e nele exerce forte impacto, na mesma época da escrita dessa resenha crítica (1957b, p. 1443).

Entre o fazer e o feito: o poeta e o ready made

O texto de William Marx, “Le poéte et le ready-made” (2013MARX, William. Le poète et le ready-made. Littérature, v. 172, p. 56-61, 2013.), tem o mérito também de recuperar o campo histórico dentro do qual Valéry recupera o termo “poética”. Este termo estava esquecido por estar muito associado ao regime retórico das belas artes, que havia sido superado pelo novo império das “estéticas” idealistas desde o fim do século XVIII, estéticas da “produção” que, na esteira da consolidação da sociedade industrial do trabalho (aquela descrita no célebre livro “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, de Max Weber), reconfiguravam o esquema tradicional autor-obra-público herdado da renascença para que esse funcionasse junto a um público burguês, anônimo e homogêneo de uma nação, em vez do público estamental e situado previsto pelas preceptivas retóricas.

Valéry recupera o “termo poética” num momento em que essa sociedade industrial do trabalho está dando lugar a uma sociedade do consumo, como lembram Marx nesse texto e Jean-Joseph Goux no seu livro La frivolité de la valeur (2000GOUX, Jean-Joseph. Frivolité de la valeur: essai sur l’imaginaire du capitalisme. Paris : Blusson, 2000.). Tal transformação toca diretamente o dilema da multiplicidade de escalas e da perda do senso comum diante dos inúmeros relais e acoplagens técnicas produzidas pelo desenvolvimento científico que começam, já a partir do fim do século XIX, a afetar o processo de determinação social do valor. Vale a pena recuperar esse ponto, que Goux desdobra a partir de uma leitura do Monsieur Teste de Valéry - especulador que vive de pequenas operações na bolsa. Com a multiplicação de instrumentos de medi(a)ção e o surgimento de produtos sintetizando uma grande diversidade de elementos químicos e matérias-primas oriundas das mais distantes regiões do globo (por exemplo, o plástico ou o papel-celulose), o mundo passa a ser composto de objetos formados por matérias primas de que não sabemos a origem, torna-se cada vez mais difícil que o valor de um bem consiga ser determinado no encontro entre produtor e consumidor, sem um intermediário. A bolsa de valores se torna cada vez mais importante como agente que media a variação do valor econômico. A oscilação da medida humana comum dificulta mensurar o valor das coisas por uma racionalização objetiva do tempo de trabalho e instiga a aparição do pensamento econômico neoclássico, que vai conceber uma dinâmica de determinação do valor centrada no sujeito consumidor. Para Goux, já estaríamos diante dos passos iniciais da inflexão que levará à primazia do capital financeiro especulativo sobre o capital industrial do trabalho (Goux, 2000GOUX, Jean-Joseph. Frivolité de la valeur: essai sur l’imaginaire du capitalisme. Paris : Blusson, 2000., p. 120-121).

Outro efeito dessas transformações mais recentes, como o rádio e o fonógrafo, notada por Valéry, é a conquista da ubiquidade dos meios técnicos de reprodução não só da obra de arte, mas de qualquer sistema semiótico - em seu texto “A conquista da ubiquidade”, de 1927, Valéry chega mesmo a falar de um serviço de entrega de vídeos a domicílio antes da invenção da TV -, vale sempre lembrar que desse texto saía epígrafe do celebríssimo ensaio de Walter Benjamin sobre “A reprodutibilidade técnica da obra de arte”. É diante dessas transformações que Valéry recupera e redefine modernamente o termo “poética” e afirma que “o poema só existe em ato”, quer dizer, em processo. Como notou William Marx (2013MARX, William. Le poète et le ready-made. Littérature, v. 172, p. 56-61, 2013.), esse gesto questiona o modelo clássico triádico herdado do renascimento (produção ( produto (obra) ( público), reconfigurado pelas estéticas idealistas do século XVIII. Ao analisar esse gesto desse ponto de vista, Marx encontra um aliado totalmente inesperado para Valéry, ninguém menos que Marcel Duchamp.

Ambos têm em comum uma recusa desse esquema clássico em que a obra é o elemento mais importante na mediação entre autor-escritor-produtor e público-leitor-consumidor. Valéry e Duchamp partilhariam um mesmo questionamento a esse esquema clássico: ambos recusariam protagonismo à obra. Porém, a partir dessa recusa comum, cada um deles vai seguir caminhos opostos. O poeta vai valorizar o processo de produção, Duchamp vai valorizar o gesto de oferta para o público, para o consumo. A comparação que William Marx faz entre o gesto de Valéry e Duchamp com as cronofotografias de Étienne Jules-Mary - admirado por ambos os artistas - pode ser instrutiva. Vale a pena dar uma olhada nessas cronofotografias: elas aproveitavam o microtempo mecânico da máquina fotográfica para operar um delongamento e decomposição de um movimento contínuo, muitas vezes flagrando um pequeno gesto, uma pequena torção do músculo ou deslocamento de objetos ao qual era possível reduzir toda a sequência de movimentos.

Assim, no esquema clássico o processo de produção era teleologicamente orientado e concebido na direção da obra acabada (quer dizer, o trabalho do artista era um meio que se reduzia às demandas do acabamento da obra, e nela se apagava). Agora Valéry inverte a relação de forças, é como se o poeta conseguisse reduzir todo o movimento da relação produção ( obra ( público ao processo de produção, ao trabalho, sendo a obra desvelada ao público apenas consequência ou meio para sustentar esse processo em constante inacabamento. Se, no esquema clássico, o desvelamento ao público era genealogicamente concebido e experimentado a partir da obra acabada (quer dizer, o consumo feito pelo leitor seria totalmente delimitado pelas intenções e limites atribuídos ao autor, tal como retrospectivamente imaginado a partir da obra acabada), agora Duchamp inverte a relação de forças: é como se ele reduzisse todo o movimento da relação produção ( obra ( público ao momento de desvelamento público, a produção e a obra sendo reduzidos ao mínimo possível, ao ready-made.

É muito interessante a sugestão de William Marx de pensar como o Pierre Menard de Borges, seria o ponto de convergência final entre as duas posturas totalmente inversas de Valéry e de Duchamp. Quer dizer, como se o “autor do Quixote”, buscando reencenar e reconstituir em pleno século XX, do modo mais laborioso possível, o processo de produção do célebre romance de Cervantes escrito no século XVI, encontrasse uma escrita já feita, um ready-made. É verdade que isso não deixa de ser familiar à forma como Valéry pensa o estado poético: o bom leitor é aquele que conseguirá reencenar o processo de criação da obra, como se ele conseguisse refazer (daí a relevância da “poética”, do processo de fazer mais do que da obra feita, o poiema) cada etapa que levou o poeta a escrever o que escreveu (Valéry, 2023bVALÉRY, Paul. Cours de Poétique II - le langage, la société, l’histoire - 1940-1945. Edição de William Marx. Paris: Gallimard, 2023b., p. 677).

Por outro lado, essa forma de conceber o Pierre Menard de Borges como ponto de fuga de um mesmo quadro, a partir do qual as linhas opostas e paralelas Valéry Duchamp derivariam, ainda que seja muito interessante, termina por pagar o preço de ver um Valéry ainda muito formalista, um no qual o refazer poético do leitor deve sempre idealmente convergir com o do autor, o que - como temos visto - não é exato ou preciso quando se leva em conta o curso de poética: nela, obra inacabada não é a inscrição de uma “cosa mentale” totalmente suprassensível, deslocada do corpo, por meio da qual o leitor reencontraria o mesmo caminho seguido pelo autor; a obra é inacabada justamente pela contingência exterior que vem interromper seu processo de ajuste fino, de modulação sutil, entre sua dimensão material e sua dimensão conceitual, entre a voz e o pensamento, entre seu caráter de “coisa”, de “ser”, e seu caráter mental, de significação. O que o leitor encontra na ponta solta desse ajuste fino inacabado não é a justificação do caminho que levou o poeta a escrever o que escreveu durante o processo de produção, pois o que o processo de produção eventualmente decidiu escrever tem valor apenas à medida que revela tudo aquilo que poderia ter sido escrito e não foi, ou seja, à medida que reabre o processo de produção em seu caráter in fieri, em fazer.

Ora, justamente por isso, também não seria possível pagar esse outro peço da comparação borgeana feita por William Marx, que precisa subestimar demais a importância da noção de obra de arte, como se ela se apagasse totalmente diante da soberania inquestionável do processo de produção tal como o produtor o encaminhou. Valéry não pode prescindir totalmente de uma noção de obra de arte: ainda que ela não tenha mais o estatuto soberano e mítico que tinha no esquema tradicional produção ( obra ( público, nem, como veremos, a autonomia imanente proposta por Adorno, a ideia de obra de arte não deixa de desempenhar um papel fundamental na poética de Valéry, para quem ela não é nem autônoma, nem ausente, mas inacabada, e é justamente nesse inacabamento que ela viabiliza partilhar com o leitor o prolongamento desse processo de ajuste fino e de seu campo de virtualidades sempre em aberto.

Ademais, se é para encontrar um elo implícito entre Valéry e Duchamp vendo na reflexão do primeiro algo similar ao conceito de ready-made duchampiano, a via aberta pelo Ménard de Borges talvez não seja a única, nem talvez a mais interessante forma de fazê-lo. Em suas críticas ao esquema clássico produção ( obra ( público, Valéry, sobretudo quando crítica os excessos e ingenuidades por detrás da ideia de “gênio” ou de “inspiração”, comumente argumenta que a “genialidade” é uma atribuição que o leitor faz ao autor quando parte da “obra feita”, é a partir de uma intencionalidade expressiva atribuída à obra feita que ele construiria, de modo retrospectivo, a fantasia de uma causa originária genial e quase divina, a do autor inspirado (Valéry, 1974bVALÉRY, Paul. Cahiers II. Edição de Judith Robinson-Valéry. Paris: Gallimard, 1974b., p. 1007).

É como se a ideia de obra acabada dentro do próprio esquema clássico surgisse para o público como um ready-made descido dos céus, produto de uma causa eficiente transcendente. Desse ponto de vista, Duchamp encenaria ironicamente essa crítica que Valéry faz à obra feita assumindo ostensivamente sua condição de ready-made para dar destaque tanto ao verdadeiro criador supostamente transcendente das coisas na sociedade moderna, a forma mercadoria, quanto ao teor performativo, ficcional, se não ideológico, da atribuição de valor feita pelo consumidor. Como puro ato performativo que transfigura quase-imediatamente coisas cotidianas em arte, o ready-made hesitaria assim entre uma afirmação do valor-consumo que crítica o valor trabalho - ao mostrar o caráter ideológico da sociedade do trabalho, que sustenta o discurso de que os produtos têm o valor justo do trabalho necessário à sua produção, quando na verdade, o que definiria o valor das coisas é sua importância de consumo - e uma afirmação do valor trabalho que crítica o valor-consumo - ao expor ironicamente a dimensão arbitrária desse valor, manipulando um discurso ideológico e institucional como o das artes para mostrar como isso basta para transformá-lo completamente, sem levar em conta o quantum de trabalho.

De um modo ou de outro, se, como quer William Marx, é preciso reencontrar a crítica marxista ao fetichismo da mercadoria no ponto de fuga comum das diferentes paralelas estratégicas de Valéry e de Duchamp, parece-me que esse seria o caminho mais produtivo, por mais sedutora, elucidativa e agradável que seja a companhia de Borges nessa conversa. É como se, em Duchamp, o próprio artista assumisse aquele papel que, na argumentação de Valéry, é desempenhado pelo editor que rouba a obra do ateliê do artista para expô-la ao público ou por algum outro evento contingente que vem interromper o processo de criação, necessariamente inacabado e infinito (1957bVALÉRY, Paul. Œuvres II. Edição de Jean Hytier. Paris: Gallimard, 1957b., p. 553; Marx, 2013MARX, William. Le poète et le ready-made. Littérature, v. 172, p. 56-61, 2013.).

Ora, como notou William Marx, em Duchamp, esse gesto que reenquadra as coisas cotidianas como obra de arte e as expõe ao público, por mais reduzido ao mínimo que seja, é tanto mais decisivo, pois é nesse “mínimo” que a experiência se transfigura em arte. Em Valéry, também, esse mesmo gesto mínimo de exposição ao público, ao mesmo tempo dentro e fora de seu processo de produção, torna o inacabamento da obra de arte igualmente decisivo para o diferimento do campo de possibilidades, ajustes e sutilezas que se abre entre leitor e escritor na hesitação entre produção e consumo.

Pois é justamente esse gesto - para Valéry sempre contingente - que, ao expor a obra ao público, torna-a irredutível ao processo, marca a distância entre o sistema de atos do produtor e o sistema de atos do consumidor. Explica-se assim o ponto que incomodou Jonathan Culler, qual seja, o vaivém de Valéry, que ora afirma ser necessário não misturar a compreensão do processo de produção com a do processo de consumo da obra de arte, ora afirma que tais processos são inseparáveis. De fato, por um lado eles são irredutíveis - já na primeira aula, o poeta lembra que um poema lido em segundos pode ter tomado vários anos de esforço para sua produção, e o momento da publicação opera justamente a passagem para esse outro regime de tempo, a partir do qual as virtualidades do trabalho de escrita passarão a reverberar com as virtualidades da experiência de leitura (Valéry, 2023aVALÉRY, Paul. Cours de Poétique I - le corps et l’esprit - 1937-1940. Edição de William Marx. Paris: Gallimard, 2023a., p. 100, 108) - por outro lado, eles estão implicados, pois as transformações que uma experiência estética aciona envolvem refazer e reexperimentar as transições entre som e sentido, acionando variações a partir de novas circunstâncias e possibilidades (Valéry, 2023bVALÉRY, Paul. Cours de Poétique II - le langage, la société, l’histoire - 1940-1945. Edição de William Marx. Paris: Gallimard, 2023b., p. 405, 407). Mas, sendo assim, valeria a pena perguntar - como questão que se mantém em aberto ao fim desta reflexão - que noção de obra seria essa, que permite afirmar ao mesmo tempo a implicação mútua e a irredutibilidade recíproca entre produção e consumo.

Nem útil, nem edificante, nem obra autônoma, nem ausência de obra20 20 As reflexões dessa seção também se encontram mais detalhadas em Lucas (2018, p. 150-160).

Como percebe Vladimir Safatle (2016, p. 160-188) na esteira de Max Weber, a ética protestante do trabalho e sua promessa de salvação organizam a utilidade do valor trabalho no quadro da dicotomia proibido/permitido e instigam a busca por uma autonomia visando a convergência da minha vontade com o permitido, a lei, sua não realização dando-se como culpa. A utilidade do valor consumo, por sua vez, submetida às estatísticas e à mensuração das performances orientada pelo binômio possível/ impossível, instiga o infinito ruim da busca pelo sempre cada vez mais rápido, eficiente, intenso, etc., sua não realização dando-se como fracasso.

Ora, se o valor trabalho visa uma utilidade fiduciária à jusante do ato - medida pela representação de uma promessa de redenção, tal como aquela a instigar a sensação de dever cumprido e a realização das vocações intramundanas sob o paradigma da ética protestante do trabalho -, o valor consumo visa uma utilidade fiduciária à montante do ato, medida por um gozo que já foi submetido às injunções biopolíticas, ao controle do imaginário e dos afetos. A utilidade do valor trabalho conhece apenas a representação do desejo, a utilidade do valor consumo goza apenas o desejo representável (Gomes, 2017GOMES, Lívia Cristina. O corpo por fazer: Sade e a equivocidade enunciativa nas três versões de Justine. 2017. Tese (Doutorado em Teoria Literária) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2017., p. 75). Assim, para confrontar as especulações da bolsa de valores da utilidade consumista sem recair nas injunções fiduciárias que creditam o valor trabalho, indefinidamente hipotecando sua redenção (rachat), a experiência estética não produz a obra edificante exigida pelas instituições fiduciárias, nem a obra consumível exigida pelo mercado, e - ainda acrescentaríamos - nem a obra autônoma pensada por um marxista como Adorno,21 21 Sobre as diferenças entre Adorno e Valéry em relação à autonomia da forma literária, ver Holzkamp (1992, p. 75-117) e Lucas (2018, p. 155). nem a (ausência de) obra em dispêndio infinito concebida na mesma época por Bataille (e depois por Foucault). Para tentar recortar a especificidade da noção de obra em Valéry, valeria retomar um célebre trecho da seção “Poiética” dos Cadernos:

O segredo ou a exigência da composição é cada elemento invariante estar unido aos outros por mais de um elo, pelo maior número possível de ligações de espécie diferente - e, entre outras, - a forma e o conteúdo, que são tão elementos quanto personagens ou temas - (nessa fase) [...]

Em outras palavras, nesse âmbito de tempo vivo, há... equipartição da energia! - - detalhe, conjunto, meios e fins, um eu e as ideias, palavras, raciocínios, matéria e atos - tudo está em presença, em trocas mútuas e modificações recíprocas [...].

Mas o fato mais notável observado nesse estado é essa identidade ou igualdade de geração e de tratamento ou manuseio que afeta imagens ou ideias - de escalas e de espécies as mais diferentes em sua ordem exterior de existência (e foi por isso que disse antes desordenada). Aqui, a parte é tão grande quanto o todo, o fim precede o começo, a conclusão se adianta sobre as premissas, a forma engendra a matéria, o silêncio e a ausência engendram seus contrários - [...]

É tal fase que é o princípio supremo das combinações mais gerais - a fusão dos heterogêneos - N + S. (Valéry, 2022VALÉRY, Paul. Poiética [Cadernos]. São Paulo: Iluminuras, 2022., p. 25).

Na equipartição de energia entre fatores heterogêneos, a composição exige que cada um de seus elementos esteja ligado a outros por mais de um elo, “pelo maior número possível de ligações de espécie diferente”, e apenas pela sobredeterminação desses elos que a obra se abre à hesitação prolongada e suscita infinitamente os detalhes mais sutis da experiência. Não haveria aqui uma forma de superar a dicotomia entre “obra orgânica” (ligação rigorosa de suas partes ao todo, mesmo para denunciar o todo como falso, adornianamente) e “obra inorgânica” (como ausência de obra, de elo entre as partes, afirmação do fragmento, do acaso, do aleatório, seja para celebrar ou acusar o caráter lacunar da experiência moderna)?

Em suma, nem obra autônoma - construída na tensão de um elo imanente e rigoroso de suas partes -, nem pura ausência de obra - despendida na quebra de todo elo interno que não seja álea -, mas hesitação entre presença e ausência, a produção e o consumo, poïésis e dispêndio, obra e desoeuvrement... uma contradicção que articula mais de um elo, mais de uma ligação heterogênea entre suas partes equívocas e sobredeterminadas:

A introdução de simetrias no discurso, seja pelo som (pés, cesuras, rimas), seja nas ideias (metáforas) lhe dá o aspecto de não ser mais meio, ato de circunstância; mas de existir em si, valer por qualidades intrínsecas - por várias ligações de seus momentos - dos quais cada um tem mais de uma relação com cada outro. (1974bVALÉRY, Paul. Cahiers II. Edição de Judith Robinson-Valéry. Paris: Gallimard, 1974b., p. 313).22 22 « L’introduction de symétries dans le discours, soit par le son (pieds, césures, rimes) soit dans les idées (métaphores) donne au discours l'aspect de n’être plus moyen, acte de circonstance ; mais d’exister en soi, de valoir par des qualités intrinsèques - par plusieurs liaisons de ses moments - dont chacun a plus d’une relation avec chaque autre. »

Relacionando suas partes sempre por mais de um elo heterogêneo, a obra valeriana expõe a equivocidade que atravessa as diferentes ordens de grandeza do ato poético: ali onde o som e sentido não se hierarquizam, mas se sobredeterminam reciprocamente, a variação no tom de um verso pode transformar todo o sentido do poema (assim como os pequenos detalhes inexplicados contêm a força para reverter as grandes explicações) (1957b, p. 498), “a parte se torna tão grande quanto o todo”, ambas em variações a um só tempo internas e externas. Em resumo: partes múltiplas, todos múltiplos, uma obra que é mais de uma, experiência na qual mais de um regime de relações estão irredutivelmente implicados uns nos outros, ao mesmo tempo em que se sustentam implicadamente irredutíveis uns aos outros; mais de um incontável, múltiplo, em derivação decimal incalculável e variação acontecimental contínua, pois nesse estado os próprios limites entre o si e o outro, entre o dentro e o fora, estão em hesitação, entre os deslizes tonais e os deslizes semânticos, as nuances e matizes de um, de outro.

Escapando da carência da obra orgânica por um fundamento, um solo firme, mesmo que construído, e do fascínio da obra inorgânica pela ausência de solo, a obra valeriana seria constituída pela articulação de mais de um elo, elos heterogêneos, que por sua vez vinculariam mais de um solo,23 23 Afinal, como diz Jacques Derrida na conclusão de uma aula do Seminário La Bête et le Souverain sobre o ato de criação, tomado entre seu caráter fundador e liminar, soberano e fugidio: “O abismo não é o fundo, o fundamento originário (Urgrund), por certo, nem a profundidade sem fundo (Ungrund) de algum fundo furtivo. / O abismo, se há um, é que exista mais de um solo, mais de um sólido e mais de uma só soleira, de um só limiar /Mais de um só só” [« L’abîme, ce n’est pas le fond, le fondement originaire (Urgrund), bien sûr, ni la profondeur sans fond (Ungrund) de quelque fond dérobé. / L’abîme, s’il y en a, c’est qu’il y ait plus d’un sol, plus d’un solide, et plus d’un seul seuil. / Plus d’un seul seul »]. (Derrida, 2008, p. 443). cada um com diferentes fatores e escalas de percepção, numa relação de implicação mútua e irredutibilidade recíproca. Nesse sentido, ela ainda seria capaz de abrir uma nova mirada sobre os muitos debates que atravessaram a arte moderna, a era das vanguardas e suas crises, bem como sobre seus desdobramentos para a arte produzida hoje, instigando consequentemente o pensamento contemporâneo sobre o fazer artístico.

Referências

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  • ZACCARELLO, Benedetta. Valéry théoricien de la littérature selon Maurice Merleau-Ponty Fabula / Les colloques, 2011. Disponível em: http://www.fabula.org/colloques/document1422.php Acesso em 13/07/2023.
    » http://www.fabula.org/colloques/document1422.php
  • 1
    Vale dizer que tais registros estenográficos foram feitos apenas no primeiro (1937-1938) e no último ano (1944-1945) do curso. O material dos outros anos é composto pela massa de relatórios datilografados e de notas de aula manuscritas reunidas nos dossiês conservados pela Biblioteca Nacional da França, que foram organizados a partir das informações encontradas em ementas, diários e documentos de secretaria encontrados nos arquivos do Collège de France (Marx apudValéry, 2023aVALÉRY, Paul. Cours de Poétique I - le corps et l’esprit - 1937-1940. Edição de William Marx. Paris: Gallimard, 2023a., p. 55-67).
  • 2
    Nos esboços não publicados de um “prólogo no céu” do Mon Faust de Valéry (produzido entre 1940 e 1945), a “bêtise moyenne” é divindade que encarna o senso comum da sociedade de massas, formado por médias estatísticas de interações linguísticas homogêneas (Lucas, 2018LUCAS, Fabio Roberto. O poético e o político: últimas palavras de Paul Valéry. 2018. Tese (Doutorado em Teoria Literária) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2018., p. 196).
  • 3
    Do restante do curso, só tínhamos um resumo bastante sintético das aulas, feito por Georges Le Breton para a revista Yggdrasil (Marx apudValéry, 2023VALÉRY, Paul. Cours de Poétique II - le langage, la société, l’histoire - 1940-1945. Edição de William Marx. Paris: Gallimard, 2023b., p. 57) e alguns depoimentos de frequentadores como Blanchot (2001BLANCHOT, Maurice. Faux pas. Tradução de Charlotte Mandell. Stanford: Stanford University Press, 2001., p. 116-122), Barthes (1980BARTHES, Roland. Aula. Tradução de Leyla Perrone-Moysés. São Paulo: Cultrix, 1980.), Merleau-Ponty (2013MERLEAU-PONTY, Maurice. Recherches sur l’usage littéraire du langage. Genebra: MêtisPresses, 2013.; cf. Zaccarello, 2003ZACCARELLO, Benedetta. Drame, Lutte, Tragédie: une symbolique théâtrale à l’œuvre dans le Cours de Poétique. Revue des Lettres modernes. Cahiers Paul Valéry, v. 10, p. 95-133, 2003., 2011ZACCARELLO, Benedetta. Valéry théoricien de la littérature selon Maurice Merleau-Ponty. Fabula / Les colloques, 2011. Disponível em: http://www.fabula.org/colloques/document1422.php . Acesso em 13/07/2023.
    http://www.fabula.org/colloques/document...
    ). Cada um desses relatos mereceria uma análise a parte, que detalhasse a contribuição específica do Cours de Poétique de Valéry para a reflexão sobre o absoluto literário em Blanchot, a fenomenologia da experiência artística em Merleau Ponty, a morte do autor, o neutro, o valor da retórica e do significante e muitos outros temas em Barthes (2018BARTHES, Roland. Valéry and rhetoric. In: BARTHES, Roland. Album. Unpublished correspondence and texts. Edição de Éric Marty. Tradução de Jody Gladding. Columbia University Press, 2018. p.180-188.) e Peeters (2023PEETERS, Benoît. Barthes et Valéry: chassés-croisés. Colloque Valéry au Collège de France, 2023. Disponível em: https://www.college-de-france.fr/fr/agenda/colloque/valery-au-college-de-france/barthes-et-valery-chasses-croises . Acesso : 12/07/2023.
    https://www.college-de-france.fr/fr/agen...
    ). Preocupados em articular as reflexões das aulas valerianas às suas próprias reflexões, nenhum desses relatos se debruçava nelas em detalhe.
  • 4
    Para reflexões que repensam aquilo que chamamos de “formalismo” em Valéry (e, de certo modo, na literatura) e o observam em contato com vetores poéticos de outra ordem - o corpo, a sensibilidade, a voz, o eu-múltiplo (mais do que o eu-impessoal) - Marx (2011MARX, William. Les deux poétiques de Valéry. Fabula / Les colloques, 2011. Disponível em: http://www.fabula.org/colloques/document1426.php . Acesso em 13/07/2023.
    http://www.fabula.org/colloques/document...
    ), Zular (2014) e Lucas (2019LUCAS, Fabio Roberto. Modulações hesitantes do olhar: algumas variações pictóricas de Valéry. Criação & Crítica, v. 25, p .4-17, 2019. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.1984-1124.v1i25p4-17.
    https://doi.org/10.11606/issn.1984-1124....
    ). Sobre como as reflexões poéticas de Valéry se entrelaçam com as inquietações políticas dos anos 1930 e da Segunda Grande Guerra (Lucas, 2018LUCAS, Fabio Roberto. O poético e o político: últimas palavras de Paul Valéry. 2018. Tese (Doutorado em Teoria Literária) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2018.).
  • 5
    Organizado por Willliam Marx e Matilde Manara, todas as conferências estão disponíveis no site da instituição: https://www.college-de-france.fr/fr/agenda/colloque/valery-au-college-de-france.
  • 6
    “Valéry ou la littérature”. Disponível em: https://www.college-de-france.fr/fr/agenda/cours/valery-ou-la-litterature.
  • 7
    Tais códigos vão se referir aos dossiês do departamento de arquivos e manuscritos da Biblioteca Nacional da França, digitalizados e disponíveis pela plataforma gallica.fr.
  • 8
    A “fiducia” - termo que Valéry escreve em seus Cahiers segundo a grafia italiana e latina - diz respeito ao crédito que determinados discursos recebem para que se façam crer e obedecer. Todo discurso que não se dispõe à interpretação, que deseja se impor como um fato revelado por palavras, toda relação de troca de ações concretas por palavras (promessas, papeis) - como a própria moeda - envolvem a mobilização de valores fiduciários: a política, o direito e a religião seriam instituições essencialmente fiduciárias, que no curso recebem análise especial (sob a sigla PDR, Valéry, 2023bVALÉRY, Paul. Cours de Poétique II - le langage, la société, l’histoire - 1940-1945. Edição de William Marx. Paris: Gallimard, 2023b., p. 160-164; Rey, 1998REY, Jean-Michel. La part de l’autre. Paris: PUF, 1998., p. 129-189).
  • 9
    Vale notar neste ponto a diferença entre o funcionalismo de Valéry e o conhecimento funcionalismo de Jakobson. Enquanto Jakobson partia de uma divisão analítica dos eixos supostamente elementares do ato de comunicação para lhes atribuir diferentes “funções” (emissor = função emotiva; mensagem = função poética; canal = função fática, etc.), em Valéry as funções se diferenciam, se multiplicam, se transformam continuamente, à medida que relações palavras e coisas, interações entre demanda e resposta, desejo e satisfação vão se recortando, se delimitando mutuamente, e o excesso da vida sobre ela mesma faz surgir sistemas de relações singulares - as desinências adverbiais “íveis” e “áveis” da aula de 26 de fevereiro de 1938 (2023aVALÉRY, Paul. Cours de Poétique I - le corps et l’esprit - 1937-1940. Edição de William Marx. Paris: Gallimard, 2023a., p. 485). É somente nessa interação em contínua “variation fonctionnelle” que emergem, desde um estado de indiscernibilidade, as noções de útil e de inútil, de puro e de aplicado, de artístico, cotidiano, científico, as diferenças entre os saberes, entre as linguagens, os discursos, etc. (Valéry, 2023a,VALÉRY, Paul. Cours de Poétique I - le corps et l’esprit - 1937-1940. Edição de William Marx. Paris: Gallimard, 2023a. p. 122).
  • 10
    Como notou o filósofo Jean-Luc Nancy no seu prefácio para a edição integral dos Cahiers 1894-1914, de Valéry, pela Gallimard, v. 12 (Nancy, 2012NANCY, Jean-Luc. Préface. In: VALÉRY, Paul. Cahiers 1894-1914, XII. Edição Nicole Celeyrette-Pietri e Robert Pickering. Paris: Gallimard, 2012. p. 11-17.): “O real como uma ressonância, e essa ressonância como um sentimento [...] Assim a coisa se dá: não como um ser que subsistiria alhures, nem como um simples ‘ser percebido’, representação submetida a uma subjetividade. Mas como esse sentir no qual, segundo o qual, mas sobretudo como o qual o real se realiza”.
  • 11
    O texto a partir deste parágrafo até o fim desta seção é um resumo extraído do terceiro capítulo de nossa tese de doutorado (Lucas, 2018LUCAS, Fabio Roberto. O poético e o político: últimas palavras de Paul Valéry. 2018. Tese (Doutorado em Teoria Literária) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2018., p. 198-210).
  • 12
    « La lutte contre le “Réel” // Car nous sommes un écart des conditions naturelles : toutes les métaphysiques partent de là. // Cette lutte procède et ne peut procéder que par tentative de modifier ou le Réel initial, brut ; Technique, pratique et Connaisance scientifique // Ou l’idée même d’un Réel Métaphysiques etc // Ou l’autre membre de la Relation : l’Homme même // La modification réelle du Réel ou recherche scientifique consiste à agir sur la perception même, À voir, par exemple, par artifice ce que nos yeux ne montrent pas. Ici, tous les relais connus. // La modification de l’idée du réel consiste à torturer de toutes façons les expressions premières, et à créer des valeurs fiduciaires : valeur de la vie, par exemple. On dispose ici de tout l’arbitraire imaginable (...) // L’Éden, l’âge d’or des anciens, le Paradis du Moyen Âge, ou bien la Cité future, ou l’ère de justice, de paix, les ULTRA-MONDES. Et dans l’ordre abstrait, la triade du Beau, du Bien et du Vrai. // Il y a aussi les idéaux « en acte » - je veux dire qui tentent de se réaliser matériellement ou quasi-matériellement dans les arts (...) ». Exceção feita às obras consultadas em traduções já publicadas, todas as citações de manuscritos e livros consultados em francês serão apresentadas em tradução livre, com o original em nota de rodapé.
  • 13
    A argumentação a partir desse parágrafo até o fim dessa seção está apresentada em mais detalhe em Lucas (2018LUCAS, Fabio Roberto. O poético e o político: últimas palavras de Paul Valéry. 2018. Tese (Doutorado em Teoria Literária) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2018., p. 196-199, tese de doutorado). NAF 19093: Cours de poïétique. VII. Année 1941-1942.
  • 14
    « La science […] n’a-t-elle pas pour fin (moderne) la formulation de recettes que toute le monde peut appliquer. Et ceci est le grand fait nouveau, qui a permis la transformation industrielle du monde moderne. L’IMITABILITÉ. La puissance d’action sans discours inutiles. Tout ce qui n’est pas nécessaire à décrire et prescrire une action est éliminé. La perfection de la Science moderne est à ce prix. // La curiosité en soi et pour soi, les développements dits ‘philosophiques’ sont, au fond, anti Scientifiques - ne sont plus SCIENCE-OR. La question Pourquoi, la question Comment, nous apparaissent désormais, même dans les cas les plus favorables, comme des demandes de recettes d’action ». NAF 19094: Cours de poïétique. VIII. Années 1942-1943 et 1943-1944.
  • 15
    « La ‘vérité’ est de plus en plus réduite à la propriété des représentations ou expressions verbales qui sont vérifiées régulièrement par un résultat d’action. [...] Or, c’est là le PUREMENT FIDUCIAIRE. // Ici se place une question : celle des valeurs affectives. Les valeurs d’action (ou OR) sont liées à celles-ci. L’idée A a, je suppose, valeur d’action virtuelle. J’ai la recette (SI JE FAIS A, B S’ENSUIT). Mais pourquoi ferais-je A? Et avec quelle énergie ? »
  • 16
    « L’ART, l’Inutile et l’arbitraire comme domaines et ressources d’action : action sur les choses, action sur les autres, combinées. C’est donner des pouvoirs d’action aux productions “aberrantes”, c’est-à-dire non contrôlées par des conditions finies de la vie. Non déterminées par un besoin non équivoque de l’organisme, - sensations localisées et devant être amorties, éteintes par une satisfaction finie. Ces productions aberrantes peuvent se continuer infiniment, et ne s’achever que par interruption. Contes, rêves. Développements illimités. Récits etc. »
  • 17
    « Considérations sur la volonté de puissance dans les affaires de l’esprit. Ici on peut distinguer deux espèces de cette passion de l’esprit qui est volonté de puissance. L’une vise à la possession d’une clientèle ; elle est comme tournée vers l’univers social ; son but est donc fini : il s’agit, en somme, d’un véritable goût des autres. L’autre est une des plus singulières affections de l’âme qu’il soit possible d’observer. Pour passer de la première à celle-ci, il suffit de concevoir le lecteur éventuel comme doué d’une exigence infinie, laquelle n’est autre que le produit de la passion même de l’auteur. Dans ce dernier cas, lorsqu’œuvre il y a, et quel que soit l’heureux succès de cette œuvre dans le milieu, elle sera toujours considérée par son auteur comme purement préparatoire et elle ne compte rien à ses yeux »
  • 18
    « Chez le producteur, 2 espèces. / 1) Les uns placent leur désir et leur drame dans les effets extérieurs de leur œuvre - Les Autres - et ils se divisent eux-mêmes en - crées par les Autres - se créant des Autres - mais il faut des autres. / 2) Tandis que pour le 2ª espèce, il leur suffit d’un Autre qui est eux-mêmes (ici intervient l’infini) ». NAF 19104: 7ème année (1943-1944). Cahier de brouillon « Poï ».
  • 19
    « L’univers social et économique tend à se faire un univers métrique, c.d.a, dans lequel l’unification, l’identification, la répétition dominent - c.d.a., l’indépendance de la production d’avec les conditions singulières, le consommateur ». NAF 19101: Année 1937-1938, 1941-1942.
  • 20
    As reflexões dessa seção também se encontram mais detalhadas em Lucas (2018LUCAS, Fabio Roberto. O poético e o político: últimas palavras de Paul Valéry. 2018. Tese (Doutorado em Teoria Literária) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2018., p. 150-160).
  • 21
    Sobre as diferenças entre Adorno e Valéry em relação à autonomia da forma literária, ver Holzkamp (1992HOLZKAMP, Hans. « Classicisme et crise - Benjamin, Raphael et Adorno lecteurs de Valéry », Bulletin d’Études Valéryennes, v. 61, p. 75-117, 1992., p. 75-117) e Lucas (2018LUCAS, Fabio Roberto. O poético e o político: últimas palavras de Paul Valéry. 2018. Tese (Doutorado em Teoria Literária) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2018., p. 155).
  • 22
    « L’introduction de symétries dans le discours, soit par le son (pieds, césures, rimes) soit dans les idées (métaphores) donne au discours l'aspect de n’être plus moyen, acte de circonstance ; mais d’exister en soi, de valoir par des qualités intrinsèques - par plusieurs liaisons de ses moments - dont chacun a plus d’une relation avec chaque autre. »
  • 23
    Afinal, como diz Jacques Derrida na conclusão de uma aula do Seminário La Bête et le Souverain sobre o ato de criação, tomado entre seu caráter fundador e liminar, soberano e fugidio: “O abismo não é o fundo, o fundamento originário (Urgrund), por certo, nem a profundidade sem fundo (Ungrund) de algum fundo furtivo. / O abismo, se há um, é que exista mais de um solo, mais de um sólido e mais de uma só soleira, de um só limiar /Mais de um só só” [« L’abîme, ce n’est pas le fond, le fondement originaire (Urgrund), bien sûr, ni la profondeur sans fond (Ungrund) de quelque fond dérobé. / L’abîme, s’il y en a, c’est qu’il y ait plus d’un sol, plus d’un solide, et plus d’un seul seuil. / Plus d’un seul seul »]. (Derrida, 2008DERRIDA, Jacques. Séminaire la Bête et le Souverain - Volume I (2001-2002). Edição de Michel Lisse, Marie-Louise Mallet e Ginette Michaud. Paris: Galilée, 2008., p. 443).

Editado por

EDITOR-CHEFE:

Rachel Esteves Lima

EDITORES EXECUTIVOS:

Anderson Bastos Martins
Cássia Lopes
Jorge Hernán Yerro

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    21 Set 2023
  • Aceito
    07 Mar 2024
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