RESUMO
Este artigo defende que a ideia de culpa como herança é o tema central em O evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago, haja vista a sua presença marcante nos perfis das principais personagens do romance. Associando essa ideia à concepção de pecado original formulada pela tradição cristã, objetiva evidenciar que, se no discurso literário entendido como canônico pelos cristãos, pode-se falar em pecado original do homem, é plausível admitir-se a existência de uma “culpa original de Deus” no discurso literário do evangelho saramaguiano, o que abre espaço para discussões relevantes acerca das relações que se estabelecem entre religião, realidade e literatura.
PALAVRAS-CHAVE:
Saramago; O evangelho segundo Jesus Cristo; culpa; Deus; religião
ABSTRACT
This article defends that the idea of guilt as inheritance is the central theme in The Gospel According to Jesus Christ, by José Saramago, given its strong presence in the profiles of the main characters in the novel. Associating this idea with the conception of original sin formulated by the Christian tradition, it aims to show that, if in the literary discourse understood as canonical by Christians, there is a man's original sin, it is plausible to admit the existence of an "original guilt of God " in the literary discourse of the Saramaguian gospel, which opens space for relevant discussions about the relationships that are established between religion, reality and literature.
KEYWORDS:
Saramago; The gospel according to Jesus Christ; guilt; God; religion
Ou será que o Deus que inventou nosso desejo é tão cruel […]? Chico Buarque
Passados 25 anos desde que José Saramago ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, em 1998, somos convidados a reler O evangelho segundo Jesus Cristo (1991SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.), livro que se pode considerar como a obra-prima do escritor português, embora O ensaio sobre a cegueira (1995), por sua exitosa adaptação para o cinema em 2008, quiçá ainda seja o seu romance mais conhecido.
Ao voltar os olhos para as personagens-chave da trama, notamos que todas elas carregam consigo a ideia da culpa, tema central no romance saramaguiano, sempre presente nas questões exploradas pelo narrador no decorrer da narrativa. Maria de Nazaré carrega consigo, ainda que implicitamente, a culpa de ser mulher em meio a uma religião aos olhos da qual a mulher, que teria induzido o homem a provar do fruto proibido (Gênesis 3A BÍBLIA. Traduzida pro português por João Ferreira de Almeida, revista e atualizada no Brasil. 2. ed. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.), é corresponsável pelas mazelas do mundo. Maria de Magdala, também mulher, por sua vez é ainda considerada culpada por, não vendo alternativas para garantir a própria subsistência, ter vivido como prostituta até encontrar-se com Jesus Cristo. José é culpado por ser humano, por não ter sido capaz de evitar aquilo que, pelo que se depreende da leitura do romance, era impossível de ser evitado por ele. Jesus, narrador e protagonista, juntamente com as sandálias de José, herda os pesadelos do pai, cuja força motriz é, precisamente, a culpa. Pastor, que em dado momento da narrativa revela-se como o Diabo, é, por fim, naturalmente culpado por supostamente ter sido o grande causador da queda do gênero humano.
Neste artigo almejamos tornar evidente que, no livro de Saramago, tais personagens não são as únicas e muito menos as principais vítimas do “lobo da culpa”, como diria o próprio narrador, que, por vezes criado e adestrado pela religião, está sempre faminto, disposto a devorar quem estiver à sua frente.
“Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez.” (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 442). Essas palavras, que foram as últimas a serem ditas por Jesus antes da sua morte no romance de Saramago, reescrevem o que teria sido dito por ele de acordo com os evangelhos bíblicos - “Mas Jesus orou: ‘Pai, perdoa-lhes, pois eles não sabem o que estão fazendo’” (Lucas, 23: 34aA BÍBLIA. Traduzida pro português por João Ferreira de Almeida, revista e atualizada no Brasil. 2. ed. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.) - e evidenciam o ineditismo de O evangelho segundo Jesus Cristo: ao contrário dos textos que são considerados canônicos pela tradição cristã, os quais exploram apenas a culpa do ser humano - mais conhecida como pecado original pelos adeptos do Cristianismo - e, no máximo, do Diabo - a antiga serpente do Éden -, o romance saramaguiano parece sugerir que há uma parcela de culpa possível de ser atribuída a Deus. Mas quem é esse Deus de Saramago?
Primeiramente, é importante sinalizar que, a despeito de algumas semelhanças, o “Deus de Saramago” não é uma fiel cópia da personagem bíblica. Basta que se verifique, por exemplo, que, enquanto para o discurso tradicional cristão, Deus não faz acepção de pessoas (Atos 10: 34), a personagem saramaguiana tem preferências e desprezos aterradores. Aliás, nesse contexto, ninguém mais do que a mulher é capaz de compreender com profundidade o que é, verdadeiramente, o desprezo de Deus. É o que se pode perceber no trecho a seguir, quando Maria de Magdala fala sobre ele com Jesus, inclusive mencionando um sonho que teve, 1 1 Como Gustavo Bernardo Krause explica, esse Deus saramaguiano, paradoxalmente, somente é capaz de ser plenamente compreendido pelas mulheres: “Só uma mulher, que pode ser violada sem que seus violados sejam punidos, como tantas mulheres o foram na narrativa da própria Bíblia Hebraica; só uma mulher, que pode ser torturada e queimada viva, como tantas mulheres o foram, em número muito maior do que o de homens, no decorrer da Santa Inquisição; só uma mulher, que pode se tornar prostituta apenas para preservar a virgindade das filhas das classes dominantes; só uma tem como sentir na carne e no sonho que Deus é medonho, como diz Maria [de Magdala] com todas as letras” (Krause, 2014, p. 254-255). após o qual passou a se prostituir:
[…] Não sei nada de Deus, a não ser que tão assustadoras devem ser as suas preferências como os seus desprezos, Onde foste buscar tão estranha ideia, Terias de ser mulher para saberes o que significa viver com o desprezo de Deus, e agora vais ter de ser muito mais que um homem para viveres e morreres como seu eleito, Queres assustar-me, Vou-te contar um sonho que tive, uma noite apareceu-me em sonho um menino, de repente apareceu vindo de parte nenhuma, apareceu e disse Deus é medonho, disse-o e desapareceu, não sei quem fosse aquela criança, donde veio e a quem pertencia, Sonhos, Ninguém menos do que tu pode dizer a palavra nesse tom, E depois, que aconteceu, Depois comecei a ser prostituta, Já deixaste tal vida, Mas o sonho não foi desmentido, nem mesmo depois que te conheci, Diz-me outra vez, como foram as palavras, Deus é medonho. Jesus viu o deserto, a ovelha morta, o sangue na areia, ouviu a coluna de fumo suspirando de satisfação, e disse, Talvez, talvez […]. (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 307, grifos nossos).
Ao longo da narrativa, o Deus de Saramago, que o sonho da madalena e as lembranças de Jesus revelam ser medonho e contemptor - com um desdém peculiar para com as mulheres -, vai se revelando como alguém bem capaz de ser alheio e indiferente aos sofrimentos por que passam as suas criaturas:
Mas o que deve também entrar na conta, para acerto dos juízos que sempre haveremos de produzir sobre as acções humanas e divinas, é que Deus, que com prontidão expedita e mão pesada se pagara do erro de David, parece agora que assiste alheado à vexação exercida por Roma sobre os seus filhos mais dilectos e, suprema perplexidade, mostra-se indiferente ao desacato cometido contra o seu nome e poder. Ora, quando tal sucede, isto é, quando se tornou patente que Deus não vem nem dá sinal de chegar tão cedo, o homem não tem mais remédio que fazer-lhe as vezes e sair de sua casa para ir pôr ordem no mundo ofendido, a casa que é dele e o mundo que a Deus pertence. (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 137, grifos nossos).
Em O evangelho segundo Jesus Cristo, o homem também é falho, mas o erro não é privilégio do ser humano. Deus, na verdade, é o primeiro culpado e, pelo tanto que pode fazer para acabar com o sofrimento e reparar as mazelas do mundo, é o maior culpado de todos. Pelo fato de Deus ser eterno, a culpa que o homem carrega é de igual modo infinita, pois, como Jesus, todo e qualquer filho de Adão e Eva sofre “o remorso daquilo que não fez, mas que há-de ser, enquanto viva, ó insanável contradição, o primeiro culpado” (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 221). Nesse cenário, Jesus - mais do que todo e qualquer ser humano - parece estar condenado a aguentar os remorsos que não são seus (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 38).
Deus teria sido o primeiro culpado por ação e por omissão. Foi o primeiro a ser omisso quando não fez nada para impedir que a antiga serpente, “o mais astuto de todos os animais selvagens” (Gênesis 3: 1A BÍBLIA. Traduzida pro português por João Ferreira de Almeida, revista e atualizada no Brasil. 2. ed. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.), tentasse dois dos seres mais inocentes do paraíso.
Foi culpado por ação quando, antes disso, sabendo que Adão e Eva fatalmente cederiam à tentação da serpente, fixou o interdito. Essa compreensão vai ao encontro do que o narrador saramaguiano deixa claro no fragmento a seguir:
[…] Um dia, quando era ainda menino pequeno, Jesus ouvira contar a uns velhos viajantes que passaram por Nazaré que no interior do mundo existiam enormíssimas cavernas onde se encontravam, como à superfície, cidades, campos, rios, bosques e desertos, e que esse mundo inferior, em tudo cópia e reflexo deste em que vivemos, tinha sido criado pelo Diabo depois de o ter precipitado Deus das alturas do céu, em castigo da sua revolta. E como o Diabo, de quem Deus ao princípio fora amigo, e ele favorito de Deus, comentando-se mesmo no universo que desde os tempos infinitos nunca se vira uma amizade igual àquela, como o Diabo, diziam os velhos, estivera presente no acto do nascimento de Adão e Eva, e tinha podido aprender como se fazia, então repetiu no seu mundo subterrâneo a criação de um homem e de uma mulher, com a diferença, ao contrário de Deus, de não lhes ter proibido nada, razão por que não teria havido, no mundo do Diabo, pecado original. Um dos velhos atreveu-se mesmo a dizer, E como não houve pecado original, também não houve nenhum outro. […]. (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 233-234, grifo nosso).
Semelhantemente a Deus, o Diabo também teria construído o seu próprio mundo. Neste, parece não haver a ideia de culpa por não haver pecado original. Se o pecado original no mundo criado por Deus surgiu pelo fato de ele, sabendo que a humanidade falharia, ter proibido algo que não poderia ser evitado, não é a mulher - como querem os religiosos (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 80-81) - quem inventou o primeiro pecado (e todos os outros), mas o Deus saramaguiano. Esse pensamento vai ao encontro do que se pode observar a seguir, em que fica implícito que sequer o Diabo é tão responsável pela existência do pecado, do medo e do castigo quanto Deus:
[…] limitei-me a tomar para mim aquilo que Deus não quis, a carne, com a sua alegria e a sua tristeza, a juventude e a velhice, a frescura e a podridão, mas não é verdade que o medo seja uma arma minha, não me lembro de ter sido eu quem inventou o pecado e o seu castigo, e o medo que neles há sempre, Cala-te, interrompeu Deus, impaciente, o pecado e o Diabo são os dois nomes duma mesma coisa, Que coisa, perguntou Jesus, A ausência de mim, E a ausência de ti, a que se deve, a teres-te retirado tu ou a terem-se retirado de ti, Eu não me retiro nunca, Mas consentes que te deixem, Quem me deixa, procura-me, E se não te encontra, a culpa, já se sabe, é do Diabo, Não, disso não é ele culpado, a culpa tenho-a eu, que não alcanço a chegar onde me buscam, estas palavras proferiu-as Deus com uma pungente e inesperada tristeza, como se de repente tivesse descoberto limites ao seu poder. […]. (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 384, grifos nossos).
Outro ponto importante que se destaca nesse trecho é a percepção de que, como se verifica ao longo do romance, há uma incongruência entre a onipotência, a onisciência e a onibenevolência de Deus. A narrativa coloca o leitor diante desse dilema, que aos poucos vai se construindo e que pode dialogar diretamente com o famoso paradoxo de Epicuro:
Deus, ou quer impedir os males e não pode, ou pode e não quer, ou não quer nem pode, ou quer e pode. Se quer e não pode, é impotente: o que é impossível em Deus. Se pode e não quer, é invejoso: o que, do mesmo modo, é contrário a Deus. Se nem quer e nem pode, é invejoso e impotente: portanto, nem sequer é Deus. Se pode e quer, o que é a única coisa compatível com Deus, donde provém então a existência dos males? Por que razão é que não os impede? (Epicuro, 1985EPICURO, - . Da natureza: antologia de textos. São Paulo: Abril Cultural , 1985., p. 28).
Se Deus pode tudo e, sabendo onde o mal está, não o detém, como pode ser ele onibenevolente? A Igreja Católica vai encontrar uma resolução confortável para esse paradoxo em Agostinho de Hipona, que defende a ideia de que o mal na verdade é a ausência do bem (Agostinho, 1984AGOSTINHO, Santo. Confissões; De magistro. São Paulo: Abril Cultural, 1984.). Contudo, no Evangelho de Saramago, a ideia do mal se estabelece como um problema para o qual não se pode encontrar solução.
Para Søren Kierkegaard, a fé no Deus cristão é o verdadeiro antídoto para o desespero. O filósofo e teólogo dinamarquês oferece reflexões muito profundas sobre a natureza desse sentimento genuinamente humano, mas a solução que ele propõe como cura dessa “doença mortal”, no contexto do romance aqui analisado, também não parece ser suficiente; ao contrário, só faz com que o desespero ganhe forças e aumente. Isso porque, para o autor de O desespero Humano, a salvação do homem está no possível que somente o Criador oferece (Kierkegaard, 2010KIERKEGAARD, Søren. O desespero humano (doença até a morte). Tradução de Adolfo Casais Monteiro. São Paulo: Editora Unesp, 2010., p. 56), e aquele que crê nele tem “o eterno e seguro antídoto do desespero”, pois sabe que “Deus pode a todo o instante”2 2 Essa percepção de Kierkegaard encontra abrigo no texto bíblico, por exemplo, no Evangelho Segundo Mateus: “Fixando neles o olhar, Jesus lhes respondeu: ‘Para o homem isso é impossível, mas para Deus tudo é possível’.” (Mateus, 19:26, grifo nosso). (Kierkegaard, 2010KIERKEGAARD, Søren. O desespero humano (doença até a morte). Tradução de Adolfo Casais Monteiro. São Paulo: Editora Unesp, 2010., p. 57); porém, crer em um Deus que pode tudo e, mesmo assim, nada faz praticamente para ao menos minimizar os sofrimentos do homem, não faz cessar o desespero, somente torna a experiência humana algo mais aterrador.
A percepção, por exemplo, de que, embora pudesse muito mais que José - e todos os homens juntos -, o Deus saramaguiano não fez nada para salvar as crianças de Belém, bem como não faz nada para pôr fim às incontáveis guerras e mortes da História, causa menos alívio do que desespero e faz com que o leitor saramaguiano reflita sobre tudo o que aprendeu ou ouviu dizer sobre a natureza de Deus na perspectiva da religião ocidental.
Deus, muito mais que José - repito, muito mais do que todos os homens juntos -,3 3 Mais até que Pio XII, que, de acordo com carta recém-descoberta por Giovanni Coco, arquivista do Vaticano, e noticiada primeiramente no jornal italiano Corriere della Sera, tinha conhecimento das atrocidades cometidas pelos nazistas em Belżec - campo de extermínio no qual, segundo a referida carta, até 6 mil pessoas, em sua maioria judias e polacas, eram exterminadas todos os dias - e se manteve em silêncio eterno sobre o Holocausto (Carioti, 2023). é culpado de omissão, mas não reconhece os próprios erros. Além disso, em relação aos inocentes de Belém, ambos compartilham do mesmo remorso, mas somente José tenta reparar os danos ao restituir alguns filhos para o mundo:
[…] Porém, se os bons começos de Jesus não se perderem na mudança da idade, talvez que ele venha a querer saber por que salvou Deus a Isaac e nada fez para salvar os tristes infantes que, inocentes de pecado como o filho de Abraão, não encontraram piedade perante o trono do Senhor. E, assim sendo, Jesus poderá dizer ao seu progenitor, Pai, não tens de levar contigo toda a culpa, e, no segredo do seu coração, quiçá ouse perguntar, Quando chegará, Senhor, o dia em que virás a nós para reconheceres os teus erros perante os homens. (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 142, grifos nossos).
Mas o mais curioso, e que mostra quanto os desígnios do Senhor, além de obviamente inescrutáveis, são também desconcertantes, é que José, ainda que de um modo difuso, que mal lhe passava ao nível da consciência, supunha agir por conta própria e, acredite quem puder, com a mesma tenção de Deus, isto é, restituir ao mundo, por um afincado esforço de procriação, se não, em sentido literal, as crianças mortas, tal qual tinham sido, ao menos a contagem certa, de maneira a não se encontrar diferença no próximo recenseamento. O remorso de Deus e o remorso de José eram um só remorso, e se naqueles antigos tempos já se dizia, Deus não dorme, hoje estamos em boas condições de saber porquê, Não dorme porque cometeu uma falta que nem a homem é perdoável. (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 129, grifos nossos).
De acordo com Paulo de Tarso, a vontade de Deus é “boa, perfeita e agradável” (Romanos, 12: 2A BÍBLIA. Traduzida pro português por João Ferreira de Almeida, revista e atualizada no Brasil. 2. ed. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.). Além disso, segundo o profeta Ezequiel, o Criador também não sente prazer na morte dos ímpios (Ezequiel, 33: 11A BÍBLIA. Traduzida pro português por João Ferreira de Almeida, revista e atualizada no Brasil. 2. ed. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.). Todavia, no romance de Saramago, a onibenevolência de Deus parece não resistir à percepção de que, se ele é Todo-Poderoso e conhecedor de todas as coisas como a religião diz que ele é, tudo o que existe no mundo - inclusive o Mal -, somente existe porque é da sua permissão ou da sua vontade. Nesse contexto, é válido observar as reflexões que Jesus faz acerca do poder e da vontade de Deus no romance de Saramago:
[…] Vim para conhecer este lugar onde nasci, e também para saber dos meninos que foram mortos, Só Deus saberá por que morreram, o anjo da morte, tomando a figura de uns soldados de Herodes, desceu em Belém e condenou-os, Crês então que foi vontade de Deus, Não sou mais do que uma escrava velha, mas, desde que nasci, ouço dizer que tudo quanto tem acontecido no mundo, mesmo o sofrimento e a morte, só pôde acontecer porque Deus, antes, o quis, Assim é que está escrito, Compreendo que Deus queira, um destes dias, a minha morte, mas não a de crianças inocentes, A tua morte decidi-la-á Deus, a seu tempo, a morte dos meninos decidiu-a a vontade de um homem, Pode bem pouco, afinal, a mão de Deus, se não chega para interpor-se entre o cutelo e o sentenciado […]. (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 217, grifos nossos).
Um dos pontos fundamentais da cristandade é a ideia do livre-arbítrio, embora não seja uma tese unânime entre todos os cristãos.4 4 Não são todos os cristãos que defendem a tese do livre-arbítrio. Como exemplo desse fato, citamos os adeptos do Calvinismo, que, tendo como referencial os ensinamentos do reformador João Calvino, defendem a ideia da predestinação. Em O evangelho segundo Jesus Cristo, o poder soberano de Deus entra em confronto direto com a mínima possibilidade de livre-arbítrio do homem, haja vista que tudo o que existe no mundo há única e exclusivamente para se render à esmagadora vontade de Deus. Jesus, ao longo da narrativa, vai ganhando plena consciência disso, ao ponto de compreender que o homem, no universo ficcional saramaguiano, nada mais é que um joguete nas mãos do Criador. Isso é dizer que esse Deus, além de medonho, alheio, indiferente, omisso e vingativo, é egoísta e manipulador. Os seres humanos são como peças de um jogo de tabuleiro que Deus está jogando (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 308). Observe-se o trecho a seguir, em que se evidencia o contraste entre a liberdade humana - em especial a de Zelomi, mulher e escrava - e a vontade do Deus no romance de Saramago:
Hoje, no Templo, ouvi dizer que todo o acto humano, por mais insignificante que seja, interfere com a vontade de Deus, e que o homem só é livre para poder ser castigado, Não é de ser livre que o meu castigo vem, mas de ser escrava, disse a mulher. Jesus calou-se. Mal tinha ouvido as palavras de Zelomi porque o pensamento, como uma súbita fresta, abriu-se para a ofuscante evidência de ser o homem um simples joguete nas mãos de Deus, eternamente sujeito a só fazer o que a Deus aprouver, quer quando julga obedecer-lhe em tudo, quer quando em tudo supõe contrariá-lo. (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 218, grifos nossos).
Jesus se dá conta de que tudo o que o ser humano faz ou deixa de fazer, inevitavelmente, cumprirá os desígnios de Deus. Como ele já ouvira no templo, diante da implacável vontade de Deus, o homem somente é livre para ser castigado, e Deus costuma castigar. Aliás, esse é outro ponto que o Deus do Antigo Testamento e o Deus saramaguiano têm em comum: do mesmo modo em que aquele, por exemplo, fez descer fogo e enxofre do céu para reduzir a cinzas as cidades de Sodoma e Gomorra (Gênesis, 19: 24A BÍBLIA. Traduzida pro português por João Ferreira de Almeida, revista e atualizada no Brasil. 2. ed. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.; e 2 Pedro 2: 6A BÍBLIA. Traduzida pro português por João Ferreira de Almeida, revista e atualizada no Brasil. 2. ed. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.) e inundou toda a Terra para fazer matar todos os seres vivos que não estivessem dentro da arca construída por Noé (Gênesis 7: 21-23A BÍBLIA. Traduzida pro português por João Ferreira de Almeida, revista e atualizada no Brasil. 2. ed. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.), o Deus de Saramago costuma castigar sem pau nem pedra, como dizem popularmente os portugueses. É o que se pode depreender pelas palavras do narrador no fragmento a seguir:
[…] E se Maria, como boa e digna esposa, não deixara de preocupar-se com o seu marido, o mais importante de tudo para ela era ver o filho vivo e são, sinal de que a culpa não fora assim tão grande, ou o Senhor já teria mandado castigo, sem pau nem pedra, como é seu costume, haja vista o caso de Job, arruinado, leproso, e mais sempre havia sido varão íntegro e recto, temente a Deus, a sua pouca sorte foi ter-se tornado em involuntário objecto de uma disputa entre Satanás e o mesmo Deus, cada qual agarrado às suas ideias e prerrogativas. E depois admiram-se que um homem desespere e grite, Pereçam o dia em que nasci e a noite em que fui concebido, converta-se ele em trevas, não seja mencionado entre os dias do ano nem se conte entre os meses, e que a noite seja estéril e não se ouça nela nenhum grito de alegria, é verdade que a Job o compensou Deus restituindo-lhe em dobro o que em singelo5 5 Aqui se verifica a sutileza da ironia do narrador, pois quem já leu o livro de Jó sabe que não há nada de singelo nas duras perdas que ele sofreu. lhe tirara, mas aos outros homens, aqueles em nome de quem nunca se escreveu nenhum livro, tudo é tirar e não dar, prometer e não cumprir […]. (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 131, grifos nossos).
O narrador, ao fazer menção a Jó, denuncia que ele é uma exceção entre os demais homens, revelando mais sobre os limites da justiça e da bondade de Deus, que agiu com Jó de uma forma diferente da qual costuma a agir com o gênero humano. Isso vai ao encontro de uma verdade que se depreende do diálogo entre José e outra personagem: embora Deus esteja em toda parte, nem sempre ele olha para os homens (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 152).
A respeito da chacina em Belém, a omissão do Deus saramaguiano é marcada por um sinal bastante expressivo. No momento em que as mães e os pais das crianças assassinadas gritam desesperadamente pela aldeia, nenhum anjo chorou, nenhum Deus apareceu; enquanto a dor e a maldade dos homens os enlouqueceram, o céu ficou vazio:
[…] José apurou o ouvido, deu alguns passos, e de repente eriçaram-se-lhe de pavor os cabelos, alguém gritara na aldeia, um grito agudíssimo que nem parecera de uma voz humana, e logo depois, ainda os ecos pareciam ressoar de colina a colina, um clamor de novos gritos e prantos encheu a atmosfera, não eram os anjos chorando sobre a desgraça dos homens, eram os homens enlouquecendo debaixo de um céu vazio. […]. (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 109-110, grifos nossos).
Aos poucos, a narrativa de Saramago subverte a percepção que o Ocidente construiu da natureza de Deus, pois evidencia que, se tudo o que o homem faz ou deixa de fazer atende aos desígnios divinos, até mesmo as atrocidades que eles cometem seriam da vontade do Criador. Nesse sentido, como Jesus esclarece, Deus manda cometer os pecados que depois decide não perdoar. Sob essa perspectiva, Deus costuma castigar por pecados que são seus. Observe-se o fragmento seguinte, em que José perde o burro que lhe serviria como meio de locomoção para retornar para casa com Ananias, amigo que José em vão tentou salvar da investida dos romanos contra os rebeldes de Judas da Galileia:
As forças de José cederam de golpe diante do desastre. Como um vitelo fulminado, daqueles que vira sacrificar no Templo, caiu de joelhos e, com as mãos contra o rosto, soltaram-se-lhe de uma vez as lágrimas, todas aquelas lágrimas que há treze anos vinha acumulando, à espera do dia em que pudesse perdoar-se a si mesmo ou tivesse de enfrentar a sua definitiva condenação. Deus não perdoa os pecados que manda cometer. […]. (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 159).
Algumas páginas depois, José, muito menos culpado do que Deus, vai morrer entre os rebeldes da Galileia. O pai de Jesus morre inocente, talvez só um pouco menos inocente os meninos de Belém. Apesar disso, religioso que era, morreu bendizendo ao seu Deus:
José gritou e continuou a gritar, depois levantaram-no em peso, suspenso dos pulsos atravessados pelos ferros, e depois mais gritos, o prego comprido que lhe furava os calcanhares, oh meu Deus, este é o homem que criaste, louvado sejas, já que não é lícito maldizer-te. (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 163).
O esposo de Maria morreu em nome de uma guerra que não era sua. Além disso, o Deus em que ele acreditava poderia ter evitado todas as guerras passadas, presentes e futuras, mas nada fez não só para evitar tais conflitos quanto para impedir que José perecesse. Por fim, o sacrifício de Jesus, de acordo com o plano do Deus saramaguiano, muito longe de fazer chegar aos homens um reino de paz, alegria e justiça, como se proclama nos textos bíblicos (Romanos, 14: 17A BÍBLIA. Traduzida pro português por João Ferreira de Almeida, revista e atualizada no Brasil. 2. ed. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.), não fez nada além de renovar as promessas de uma nova guerra sem fim; o choro e o lamento daqueles que sofrem as mazelas das guerras também são eternos, e o Jesus saramaguiano bem sabe disso:
Entre o rio Jordão e o mar, choram as viúvas e os órfãos, é um antigo costume seu, para isso mesmo é que são viúvas e órfãos, para chorarem, depois é só esperarmos o tempo de os meninos crescerem e irem à guerra nova, outras viúvas e outros órfãos virão tomar-lhes a vez, e se entretanto mudaram as modas, se o luto, de branco, passou a ser negro, ou vice-versa, se sobre os cabelos, que antes eram arrancados, se põe agora uma mantilha bordada, as lágrimas, quando sentidas, são as mesmas. (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 163-164).
Se, à luz da Bíblia, Deus é justo e se aproxima de todos os que o invocam com sinceridade (Salmos, 145: 17-18A BÍBLIA. Traduzida pro português por João Ferreira de Almeida, revista e atualizada no Brasil. 2. ed. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.), o Deus saramaguiano, muito mais alheio aos problemas e às necessidades humanas, tem como uma das suas características principais o distanciamento, que se manifesta já a partir do fato de que, em um mundo no qual existem muitos Josés e muitas Marias, Deus não admite a existência de homônimos:
[…] e são muitas as Marias na terra, e mais hão-de vir a ser se a moda pega, mas nós aventurar-nos-íamos a supor que exista um sentimento de mais próxima fraternidade entre os que levam nomes iguais, é como imaginamos que se sentirá José quando se lembra do outro José que foi seu pai, não filho, mas irmão, o problema de Deus é esse, ninguém tem o nome que ele tem […]. (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 328, grifos nossos).
Assim como ocorre com as principais personagens do evangelho saramaguiano, que se permitem conhecer não apenas por aquilo que elas dizem ou pelo que o narrador diz a respeito delas, mas pela relação direta que estabelecem com o protagonista, é quando se encontra com Jesus que o Criador se revela ao leitor com maior complexidade. Jesus vai ao deserto para buscar uma ovelha perdida, tal como o seu pai José saiu à procura de Ananias. Como Adão, o primeiro homem, Jesus caminha nu e descalço até encontrar-se com Deus em um lugar inóspito e assustador (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 258). Esse é o acontecimento decisivo que, como de antemão esclareceu o narrador (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 238), faria com que Jesus mudasse as ideias que tinha a respeito de Deus e do seu próprio destino.
Como percebemos pelo fragmento a seguir, o caminho que Jesus segue para encontrar-se com Deus é um caminho de dores; a sua jornada é, ela mesma, como um cilício imposto por Deus, do qual, como se verá, Jesus não conseguirá se desvencilhar.
[…] Ao deserto só é possível ir nu. Nu, dizemos nós, apesar dos espinhos que rasgam a pele e arrepelam os pêlos do púbis, nu apesar das arestas que cortam e das areias que esfolam, nu apesar do sol que queima, reverbera e deslumbra, nu, enfim, para procurar a ovelha perdida, aquela que nos pertence porque com a nossa marca a marcámos. O deserto abre-se aos passos de Jesus, para logo se fechar, como se lhe cortasse o caminho de retirada. O silêncio ressoa nos ouvidos com o som de um búzio, daqueles que vêm mortos e vazios à praia e ali se deixam ficar, a encherem-se do vasto rumor das ondas, até que alguém passa e os encontra e, levando-os devagar ao ouvido, põe-se à escuta e diz, O deserto. Os pés de Jesus sangram, o sol afasta as nuvens para feri-lo de espada nos ombros, os espinhos cortam-lhe a pele das pernas como unhas sôfregas, as cerdas chicoteiam-no, Ovelha, onde estás, grita ele, e as colinas passam palavra, Onde estás, onde estás, dissessem elas isto apenas e saberíamos, enfim, o que é o eco perfeito, mas o longo e remoto som do búzio sobrepõe-se, murmurando, Deeeeeeuuus, Deeeeeeuuus, Deeeeeeuuus. Então, como se de súbito as colinas se tivessem arredado do seu caminho, Jesus saiu do labirinto dos vales para um espaço circular liso e arenoso onde, no centro exacto, viu a ovelha. Correu para ela, tanto quanto lho permitiam os pés feridos, mas uma voz deteve-o, Espera. […]. (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 260).
Esse deserto de dores parece ser uma metáfora da religião, que, muitas vezes, impõe ao homem as mais duras privações e os mais terríveis sacrifícios. Basta observar a associação que pode ser feita entre Jesus e a ovelha perdida, que talvez possa representá-lo enquanto homem livre, ou ao menos desejoso de uma liberdade visivelmente inalcançável. Depois de finalmente encontrá-la, Jesus é obrigado a sacrificá-la como sinal da aliança que Deus lhe propõe, com o perdão do paradoxo, de maneira irrecusável:
[…] Sacrifica então, ou não haverá aliança, Mas vê, Senhor, que estou nu, não tenho cutelo nem faca, estas palavras disse-as Jesus cheio de esperança de poder ainda salvar a vida da ovelha, e Deus respondeu-lhe, Não seria eu o Senhor se não pudesse resolver-te essa dificuldade, aí tens. Palavras não eram ditas, apareceu aos pés de Jesus um cutelo novo, Vá, despacha-te, tenho mais que fazer, disse Deus, não posso ficar aqui eternamente. Jesus empunhou o cutelo, avançou para a ovelha que levantava a cabeça, hesitante em reconhecê-lo, pois nunca o tinha visto nu, e, como é por de mais sabido, o olfacto destes animais não vale grande coisa. Estás a chorar, perguntou Deus, Tenho os olhos sempre assim, disse Jesus. O cutelo subiu, tomou o ângulo do golpe, e caiu velozmente como o machado das execuções ou a guilhotina que ainda falta inventar. A ovelha não soltou um som, apenas se ouviu, Aaaah, era Deus suspirando de satisfação. Jesus perguntou, E agora, posso-me ir embora, Podes, e não te esqueças, a partir de hoje pertences-me, pelo sangue […]. (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 262, grifos nossos).
Sem escolha, Jesus mata a ovelha que tanto amava para oferecê-la em um sacrifício que, apesar de improvisado, faz o Criador suspirar de satisfação. Esse Deus se revela muito mais a Jesus e ao leitor no segundo encontro, quando reaparece em um nevoeiro e é descrito pelo narrador com vívidos detalhes:
[…] O nevoeiro abre-se para Jesus passar, mas o mais longe a que os olhos chegam é a ponta dos remos, e a popa, com a sua travessa simples a servir de banco. O resto é um muro, primeiro baço e cinzento, depois, à medida que a barca se aproxima do destino, uma claridade difusa começa a tornar branco e brilhante o nevoeiro, que vibra como se procurasse, sem o conseguir, no silêncio, um som. Numa roda maior de luz, a barca pára, é o centro do mar. Sentado no banco da popa, está Deus.
Não é, como da primeira vez, uma nuvem, uma coluna de fumo, que hoje, estando assim o tempo, poderiam ter-se perdido e confundido no nevoeiro. É um homem grande e velho, de barbas fluviais espalhadas sobre o peito, a cabeça descoberta, cabelo solto, a cara larga e forte, a boca espessa, que falará sem que os lábios pareçam mover-se. Está vestido como um judeu rico, de túnica comprida, cor de magenta, um manto com mangas, azul, debruado de tecido de ouro, mas nos pés tem umas sandálias grossas, rústicas, dessas de que se diz que são para andar, o que mostra que não deve ser pessoa de hábitos sedentários […]. (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 362, grifos nossos).
Esse segundo encontro revela detalhes importantes sobre a natureza do Deus saramaguiano. O primeiro aspecto interessante é que Deus afirma que José morreu inocente e sem culpa por “um trágico engano dos romanos” (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 363). Aqui percebemos que Deus se exime da culpa, haja vista que ele poderia ter poupado a vida de José, como poupou a vida de Jesus quando recém-nascido, se isso atendesse aos seus planos.
A propósito, no romance de Saramago, o fato de Deus ter livrado Jesus da sua “primeira morte” (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 118), como se percebe, deve-se muito menos à ideia de uma misericórdia infinita do que à plena satisfação dos seus próprios interesses, haja vista que Jesus não seria útil para os desígnios de Deus se, na época do infanticídio em Belém, ele tivesse sido morto, e o próprio Criador deixa clara tal utilidade (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 365).
Outro aspecto muito marcante do Deus saramaguiano é o seu constante estado de insatisfação. Ele nunca está plenamente satisfeito, assim como o ser humano, que tanto no universo ficcional de Saramago quanto no contexto apresentado pelos textos bíblicos (Gênesis 1: 26-27) foi feito à imagem e à semelhança do Criador. O diálogo a seguir mostra, de forma mais clara, o porquê da insatisfação de Deus, a qual tem, como se constata, relação direta com o papel que ele reservou no seu plano para o herói-evangelista saramaguiano:
A insatisfação, meu filho, foi posta no coração dos homens pelo Deus que os criou, falo de mim, claro está, mas essa insatisfação, como todo o mais que os fez à minha imagem e semelhança, fui eu buscá-la aonde ela estava, ao meu próprio coração, e o tempo que desde então passou não a fez desvanecer, pelo contrário, posso dizer-te, até, que o mesmo tempo a tornou mais forte, mais urgente, mais exigente. […] Desde há quatro mil e quatro anos que venho sendo deus dos judeus, gente de seu natural conflituosa e complicada, mas com quem, feito um balanço das nossas relações, não me tenho dado mal, uma vez que me tomam a sério e assim se irão manter até tão longe quanto a minha visão do futuro pode alcançar, Estás, portanto, satisfeito, disse Jesus, Estou e não estou, ou melhor, estaria se não fosse este inquieto coração meu que todos os dias me diz Sim senhor, bonito destino arranjaste, depois de quatro mil anos de trabalho e preocupações, que os sacrifícios nos altares, por muito abundantes e variados que sejam, jamais pagarão, continuas a ser o deus de um povo pequeníssimo que vive numa parte diminuta do mundo que criaste com tudo o que tem em cima, diz-me tu, meu filho, se eu posso viver satisfeito tendo esta, por assim dizer, vexatória evidência todos os dias diante dos olhos, Não criei nenhum mundo, não posso avaliar, disse Jesus, Pois é, não podes avaliar, mas ajudar, podes, Ajudar a quê, A alargar a minha influência, a ser deus de muito mais gente, Não percebo, Se cumprires bem o teu papel, isto é, o papel que te reservei no meu plano, estou certíssimo de que em pouco mais de meia dúzia de séculos, embora tendo de lutar, eu e tu, com muitas contrariedades, passarei de deus dos hebreus a deus dos que chamaremos católicos, à grega, E qual foi o papel que me destinaste no teu plano, O de mártir, meu filho, o de vítima, que é o que de melhor há para fazer espalhar uma crença e afervorar uma fé. As duas palavras, mártir, vítima, saíram da boca de Deus como se a língua que dentro tinha fosse de leite e mel, mas um súbito gelo arrepiou os membros de Jesus, tal qual se o nevoeiro se tivesse fechado sobre ele, ao mesmo tempo que o Diabo o olhava com uma expressão enigmática, misto de interesse científico e involuntária piedade. […]. (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., 367-368, grifos nossos).
Deus, em O evangelho segundo Jesus Cristo, por não se contentar com o fato de ser adorado por um único povo e ter o seu poder restrito a uma parte muito pequena do mundo que ele mesmo criou, deseja tão somente ampliar os seus domínios; em outras palavras, o sacrifício de Jesus na cruz nada tem a ver com o fato de Deus amar o mundo e desejar salvá-lo de uma condenação eterna, como está descrito na Bíblia (João 3: 16A BÍBLIA. Traduzida pro português por João Ferreira de Almeida, revista e atualizada no Brasil. 2. ed. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.).
O Deus saramaguiano tem tamanha sede de poder que está disposto a sacrificar aquele a quem chama de filho, única e exclusivamente para atender aos seus interesses aparentemente nada altruístas, ciente de que um mártir pode produzir uma ideia forte o suficiente para propagar a sua mensagem e mobilizar multidões. Além disso, parece estar perfeitamente ciente dos perigos que a força dessa ideia é capaz de produzir, algo que vai ao encontro do que diz Nietzsche em um trecho da sua Segunda consideração intempestiva:
[…] imagine-se um homem mobilizado e impelido por uma paixão violenta […] por um grande pensamento - como o seu mundo se transforma para ele! Olhando para trás, ele se sente cego; escutando o que se passa ao seu redor, percebe o estranho como um som surdo e desprovido de significação; o que em geral percebe, ele jamais tinha percebido antes; tão sensivelmente próximo, colorido, ressoante, iluminado, como se ele o aprendesse ao mesmo tempo com todos os sentidos. Todas as suas avaliações se transformaram e se desvalorizaram; tantas coisas ele não está mais em condições de avaliar, porque quase não pode mais senti-las: ele se pergunta se não fora por tanto tempo senão o bobo de palavras e opiniões alheias; ele se espanta que sua memória gire incansavelmente em círculos e esteja fraca e cansada para dar quiçá um único salto para fora deste círculo. (Nietzsche, 2003NIETZSCHE, Friedrich. Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagem da história para a vida. Tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003., p. 12-13, grifos nossos).
O que o Deus saramaguiano quer é, por meio do martírio de Cristo, provocar justamente o despertar da força dessa ideia, em nome da qual os seus adeptos estariam dispostos a enfrentar a tudo e a todos para fazer cumprir o seu plano. O próprio narrador deixa claro que é em nome das ideias - ou daquilo que as representam - “que as pessoas se andam a matar umas às outras” (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 149). No caso do plano de Deus, é precisamente isso o que acontecerá, pois, para alcançar os seus objetivos, ele não abrirá mão de Jesus, o primeiro e mais importantes dos seus mártires.
Jesus sabe que somente alcançará poder e glória depois de morrer (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 261) e, naturalmente, vê-se aflito quando se dá conta de que isso não terá serventia alguma para um morto. O terror maior, porém, é gerado pela percepção de que a sua morte, ao invés de pôr fim à promessa de culpa como herança, na verdade servirá como bandeira erguida em altares por instituições religiosas cujas ações somente alargarão a ideia de culpa, causando mais dores, sofrimentos e mortes para a humanidade. Jesus tem consciência desse fato e lamenta amargamente por isso em conversa com Maria de Magdala:
[…] Eu sou o pastor que, com o mesmo cajado, leva ao sacrifício os inocentes e os culpados, os salvos e os perdidos, os nascidos e os por nascer, quem me libertará deste remorso, a mim que me vejo, hoje, como meu pai naquele tempo, mas ele é por vinte vidas que responde, e eu por vinte milhões. Maria de Magdala chorou com Jesus e disse-lhe, Tu não o quiseste, Pior é isso, respondeu ele, e ela, como se desde o princípio conhecesse, por inteiro, o que, aos poucos, temos vindo nós a ver e a ouvir, Deus é quem traça os caminhos e manda os que por eles hão-de seguir […]. (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 402-403).
Apesar de ser explorado de forma diferente no romance de Saramago,6
6
O tema da escravidão aparece no evangelho saramaguiano quando Jesus conversa com Zelomi, que fala sobre a dureza da sua condição de escrava (Saramago, 2017, p. 217). Porém, o narrador está mais interessado em desenvolver a ideia da escravidão como metáfora para se referir à relação que Deus, unilateralmente, estabelece com o ser humano, cuja existência parece se resumir a servir ao Criador. Todos os homens, como deixa claro o anjo que foi enviado para fazer o que podemos chamar de anunciação tardia, não passam “de míseros escravos da vontade absoluta de Deus” (Saramago, 2017, p. 312). Maria de Nazaré tem plena consciência disso e, tanto na Bíblia (Lucas 1: 38) quanto no romance de Saramago (Saramago, 2017, p. 312), reconhece ser escrava - ou serva, δούλη - do Senhor.
um claro exemplo das atrocidades cometidas com uma suposta autorização de Deus é o processo de escravização de outros seres humanos. E aqui relembramos os milhões de negros que foram escravizados no Brasil, inclusive com apoio da Igreja. Esta, além de ter também os seus próprios escravizados (Veiga, 2021VEIGA, Edison. Como viviam as pessoas escravizadas pela Igreja no Brasil. BBC News Brasil, 14 maio 2021. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-57099524 . Acesso em: 18 mai. 2021.
https://www.bbc.com/portuguese/geral-570...
), utilizava a Bíblia, à qual muitos se referem como “a Palavra de Deus”,7
7
Aqui lembramos da diferença que Umberto Eco vai estabelecer entre uso e interpretação (Eco, 2015, p. 50). A respeito dessa diferença, Haroldo Reimer esclarece o seguinte: “[…] ‘Interpretação’, segundo Eco, ocorre sempre que se respeita a coerência de um texto, quando se tem em vista o mundo possível de um texto e o léxico de uma época. O ‘uso’ de um texto se dá quando o texto é tomado de uma forma mais livre, ampliando o universo do discurso. Uso e interpretação são formas válidas de acesso a um texto, mas é preciso distinguir entre ambas. Se o uso de um texto é ilimitado, a sua interpretação não é. A interpretação se constitui em um processo aberto e cooperativo entre autor, texto e leitor” (Reimer, 2009, p. 72).
para justificar a manutenção do regime escravocrata naquele que foi o último país do mundo a abolir a escravidão (Roedel, 2017ROEDEL, Hiran. Do mito de Cam ao racismo estrutural: uma pequena contribuição ao debate. AFRO-PORT, 2017. Disponível em: https://cesa.rc.iseg.ulisboa.pt/afroport/wp-content/uploads/2020/07/ROEDEL-H-Do-Mito-de-Cam-ao-Racismo.pdf . Acesso em: 20 nov. 2021.
https://cesa.rc.iseg.ulisboa.pt/afroport...
; Ramos, 2021RAMOS, Lediane Pereira Ramos. Justificativas da Igreja Católica para o escravagismo: no Brasil Colônia. Revista Ibero-Americana de Humanidades, Ciências e Educação, São Paulo, v. 7, n. 9, 2021. Disponível em: https://periodicorease.pro.br/rease/article/view/2257/902. Acesso em: 12 out. 2021.
https://periodicorease.pro.br/rease/arti...
; Machado, 2022MACHADO, Leandro. A origem do mito bíblico que foi utilizado para 'justificar' racismo. BBC News Brasil, 18 out. 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63209322 . Acesso em: 22 out. 2022.
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63...
). Embora tal fato não figure na narrativa de Saramago, merece ser relembrado aqui porque parece dialogar diretamente com aquilo que o Deus saramaguiano quer e exige dos homens - muito mais do que fé e amor, a servidão; o homem é como um animal de estimação adestrado ao serviço do Deus saramaguiano:
Então, servis-vos dos homens, Sim, meu filho, o homem é pau para toda a colher, desde que nasce até que morre está sempre disposto a obedecer, mandam-no para ali, e ele vai, dizem-lhe que pare, e ele pára, ordenam-lhe que volte para trás, e ele recua, o homem, tanto na paz como na guerra, falando em termos gerais, é a melhor coisa que podia ter sucedido aos deuses, E o pau de que eu fui feito, sendo homem, para que colher vai servir, sendo teu filho, Serás a colher que eu mergulharei na humanidade para a retirar cheia dos homens que acreditarão no deus novo em que me vou tornar, Cheia de homens, para os devorares, Não precisa que eu o devore, quem a si mesmo se devorará. (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 370).
O “deus novo” é uma referência à ideia de Deus que se manifesta no Novo Testamento, de uma forma mais branda, mais amorosa e acolhedora. No evangelho saramaguiano, o martírio de Jesus serve para fazer com que os homens acreditem nessa ideia, em um número grande o suficiente para que eles devorem uns aos outros em nome de um Deus que, na verdade, não lhes garante nada além da esperança de felicidade (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 377). É por essa razão que Jesus deseja saber qual será o preço da vitória de Deus para a humanidade, quanto de sofrimento e de morte terão de experimentar ainda os homens para que o projeto de dominação de Deus se concretize:
[…] Disse Jesus, Estou à espera, De quê, perguntou Deus, como se estivesse distraído, De que me digas quanto de morte e de sofrimento vai custar a tua vitória sobre os outros deuses, com quanto de sofrimento e de morte se pagarão as lutas que, em teu nome e no meu, os homens que em nós vão crer travarão uns contra os outros, Insistes em querer sabê-lo, Insisto, Pois bem, edificar-se-á a assembleia de que te falei, mas os caboucos dela, para ficarem bem firmes, haverão de ser cavados na carne, e os seus alicerces compostos de um cimento de renúncias, lágrimas, dores, torturas, de todas as mortes imagináveis hoje e outras que só no futuro serão conhecidas […]. (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 378-379).
A assembleia de que Deus fala é a Igreja Católica - que o próprio Deus não deixa claro se foi fundada por Jesus, como defendem os católicos (Aquino, 2023AQUINO, Felipe. A Igreja Católica foi fundada por Constantino? Cléofas, 2023. Disponível em: https://cleofas.com.br/a-igreja-catolica-foi-fundada-por-constantino/ . Acesso em: 30 set. 2023.
https://cleofas.com.br/a-igreja-catolica...
), ou se foi apenas fundada utilizando-se o nome dele (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 377) -, cuja edificação requererá incalculáveis sacrifícios, imagináveis e inimagináveis, não apenas de Jesus, mas de incontáveis pessoas, a começar por aquelas que ele conheceu e amou, estendendo-se a um sem-número de mártires, alguns dos quais o Deus Saramaguiano, por puro capricho, começa a citar por ordem alfabética, participando a Jesus as causas dessas inumeráveis mortes - tantas que até mesmo Deus se cansa de citá-las, somente prosseguindo com a terrível lista de horrores a pedido do próprio Cristo.
São mencionados por Deus, apenas como exemplos, quase 250 mártires ao longo de praticamente cinco páginas inteiras.8 8 Isso tudo sem contar também as milhares de pessoas que se autoflagelam para pôr freio às tentações e ou se exilam em um mundo solitário para, dessa forma, adorarem ao Criador até o fim das suas vidas (Saramago, 2017, p. 384-385). Isso revela que - apesar de também ser capaz de dissimular e produzir inverdades (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 376) - o Deus saramaguiano não mentiu quando disse a Jesus que tudo se resumiria a “uma história interminável de ferro e de sangue, de fogo e de cinzas, um mar infinito de sofrimento e de lágrimas” (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 379).
O sem-número de vítimas da ganância do Deus de Saramago está intimamente ligado à insatisfação divina de que já falamos. Como o Diabo há de deixar claro na narrativa, sequer a morte física - sentença que o homem começa a cumprir desde o seu nascimento (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 376) - é o bastante; para o Deus de O evangelho segundo Jesus Cristo, os homens devem chegar à morte das formas mais terríveis:
[…] Disse o Diabo, nesta altura, a Jesus, Observa como há, no que ele tem vindo a contar, duas maneiras de perder-se a vida, uma pelo martírio, outra pela renúncia, não bastava terem de morrer quando lhes chegasse a hora, ainda é preciso que, de uma maneira ou outra, corram ao encontro dela, crucificados, estripados, degolados, queimados, lapidados, afogados, esquartejados, estrangulados, esfolados, alanceados, escorneados, enterrados, serrados, flechados, amputados, escardeados, ou então, dentro e fora de celas, capítulos e claustros, castigando-se por terem nascido com o corpo que Deus lhes deu e sem o qual não teriam onde pôr a alma, tais tormentos não os inventou este Diabo que te fala. É tudo, perguntou Jesus a Deus, Não, ainda faltam as guerras, Também haverá guerras, E matanças, […] Os fins justificam os meios, meu filho, Pelo que tenho ouvido da tua boca desde que aqui estamos, acredito que sim, renúncia, clausura, sofrimentos, morte, e agora as guerras e matanças […]. (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 385).
Somam-se às vítimas da ganância do Deus saramaguiano os mortos nas Cruzadas e na Inquisição. Isso tudo sem contar os 25 inocentes de Belém, José e o próprio Cristo, além dos cerca de 4 milhões de homens, mulheres e crianças que foram trazidos da África para o Brasil como escravos entre os séculos XVI e XIX (IBGE, 2000INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Brasil: 500 anos de povoamento. Rio de Janeiro, 2000. Disponível em: https://brasil500anos.ibge.gov.br/territorio-brasileiro-e-povoamento/negros#:~:text=No%20continente%20americano%2C%20o%20Brasil,%C3%A9%20exatamente%20para%20ser%20comemorada . Acesso em: 20 nov. 2022.
https://brasil500anos.ibge.gov.br/territ...
), que certamente também poderiam entrar nessa conta, se o Deus de Saramago, quiçá pelo artifício da verossimilhança, decidisse utilizar mais dados do mundo da experiência do leitor. O Criador não promete nada além de morte, dor e sofrimento:
[…] Morrerão milhares, Centenas de milhares, Morrerão centenas de milhares de homens e mulheres, a terra encher-se-á de gritos de dor, de uivos e roncos de agonia, o fumo dos queimados cobrirá o sol, a gordura deles rechinará sobre as brasas, o cheiro agoniará, e tudo isto será por minha culpa, Não por tua culpa, por tua causa, Pai, afasta de mim este cálice, Que tu o bebas é a condição do meu poder e da tua glória, Não quero esta glória, Mas eu quero esse poder. O nevoeiro afastou-se para onde estivera antes, via-se uma pouca de água ao redor do barco, lisa e baça, sem uma ruga de vento ou uma agitação de barbatana passando. Então o Diabo disse, É preciso ser-se Deus para gostar tanto de sangue. (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 389).
A promessa é de que morrerão e continuarão morrendo homens e mulheres aos milhares, alguns por crerem, outros por duvidarem. Ele nunca estará plenamente satisfeito; os homens continuarão sendo punidos por uma culpa que é, como o romance de Saramago parece querer evidenciar, originalmente de um Deus que ama o poder e a glória e que se revela eternamente insaciável.
O romance de Saramago parece querer desconstruir ou ao menos problematizar a ideia do pecado original, que, desde há muito tempo, vem sendo utilizada como justificativa para as desgraças do mundo e os sofrimentos da humanidade. Ao mostrar que “a história de Deus não é toda divina” (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 410), para usar as palavras do próprio narrador, coloca-se Deus no banco dos réus, aparentemente sugerindo que, se Deus existe e se ele é como se revela na Bíblia, sobretudo no Antigo Testamento, o homem não é o primeiro e muito menos o único culpado.
Jesus saramaguiano, ao recontar a própria história assume o papel daquilo que, à luz do pensamento benjaminiano, pode-se chamar de um materialista histórico. Se, como Benjamin esclarece na Tese VII sobre o conceito de história (Benjamin, 1985BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I - Magia e técnica, arte e política - ensaios sobre literatura e história da cultura . 1. ed. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. 3 v. V., p. 225), os historicistas se identificam afetivamente com a narrativa dos vencedores - não das “batalhas comuns”, como Michel Löwy esclarece, mas da “‘guerra de classes’, em que um dos campos, a classe dirigente, não cessou de vencer os oprimidos” (Löwy, 2005LÖWY, Michel. Walter Benjamin: aviso de incêndio - uma leitura das teses "Sobre o conceito de história" . Tradução de Wanda Nogueira Caldeira Brant, [tradução das teses] Jeanne Marie Gagnebin, Marcos Lutz Müller. São Paulo: Boitempo, 2005., p. 71) -, os materialistas históricos desejam recontar a história na perspectiva daqueles que foram derrotados. É precisamente isso o que Benjamin chama de “escovar a história a contrapelo” - em alemão, “die Geschichte gegen den Strich zu bürsten” (Benjamin apud Reyes Mate, 2011BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I - Magia e técnica, arte e política - ensaios sobre literatura e história da cultura . 1. ed. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. 3 v. V., p. 171) -, expressão que Löwy esclarece nos trechos a seguir:
Escovar a história a contrapelo - expressão de um formidável alcance historiográfico e político - significa, então, em primeiro lugar, a recusa em se juntar, de uma maneira ou de outra, ao cortejo triunfal que continua, ainda hoje, a marchar sobre daqueles que jazem por terra. […]. (Löwy, 2005LÖWY, Michel. Walter Benjamin: aviso de incêndio - uma leitura das teses "Sobre o conceito de história" . Tradução de Wanda Nogueira Caldeira Brant, [tradução das teses] Jeanne Marie Gagnebin, Marcos Lutz Müller. São Paulo: Boitempo, 2005., p. 73).
Escovar a história cultural gegen den Strich significa, então, considerá-la do ponto de vista dos vencidos, dos excluídos, dos párias. (Löwy, 2005LÖWY, Michel. Walter Benjamin: aviso de incêndio - uma leitura das teses "Sobre o conceito de história" . Tradução de Wanda Nogueira Caldeira Brant, [tradução das teses] Jeanne Marie Gagnebin, Marcos Lutz Müller. São Paulo: Boitempo, 2005., p. 79).
Escrever a história no “sentido contrário” - expressão de Benjamin em sua própria tradução - é recusar qualquer “identificação afetiva” com os heróis oficiais do V centenário, dos colonizadores ibéricos, os poderosos europeus que levaram a religião, a cultura e a civilização para os índios “selvagens” […]. (Löwy, 2005LÖWY, Michel. Walter Benjamin: aviso de incêndio - uma leitura das teses "Sobre o conceito de história" . Tradução de Wanda Nogueira Caldeira Brant, [tradução das teses] Jeanne Marie Gagnebin, Marcos Lutz Müller. São Paulo: Boitempo, 2005., p. 80).
Como Löwy (2005LÖWY, Michel. Walter Benjamin: aviso de incêndio - uma leitura das teses "Sobre o conceito de história" . Tradução de Wanda Nogueira Caldeira Brant, [tradução das teses] Jeanne Marie Gagnebin, Marcos Lutz Müller. São Paulo: Boitempo, 2005., p. 74) explica, essa expressão utilizada por Benjamin é um imperativo que possui dois significados: um histórico, que consiste em “ir contra a corrente da versão oficial da história, opondo-lhe a tradição dos oprimidos”; e outro político, atual, de acordo com o qual é necessário “lutar contra a corrente” para que a história não produza “novas guerras, novas catástrofes, novas formas de barbárie e de opressão”.
Como o materialista histórico de Benjamin, Jesus, a principal personagem e o narrador de O Evangelho Segundo Jesus Cristo, deseja escovar a própria história a contrapelo e, ao fazer isso, arrancar dos lábios de Deus - que aqui está representando, em um primeiro plano, a figura da Igreja e, em um segundo plano, a imagem das religiões em geral -, como em uma confissão coercitiva, a sua própria culpa, para que pelo menos algumas das suas inumeráveis vítimas sejam lembradas e não permaneçam sem nome.
Referências
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» https://cleofas.com.br/a-igreja-catolica-foi-fundada-por-constantino/ - BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I - Magia e técnica, arte e política - ensaios sobre literatura e história da cultura . 1. ed. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. 3 v. V.
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- KRAUSE, Gustavo Bernardo. A ficção de Deus 1. ed. São Paulo: Annablume Editora, 2014.
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- RAMOS, Lediane Pereira Ramos. Justificativas da Igreja Católica para o escravagismo: no Brasil Colônia. Revista Ibero-Americana de Humanidades, Ciências e Educação, São Paulo, v. 7, n. 9, 2021. Disponível em: https://periodicorease.pro.br/rease/article/view/2257/902 Acesso em: 12 out. 2021.
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- ROEDEL, Hiran. Do mito de Cam ao racismo estrutural: uma pequena contribuição ao debate. AFRO-PORT, 2017. Disponível em: https://cesa.rc.iseg.ulisboa.pt/afroport/wp-content/uploads/2020/07/ROEDEL-H-Do-Mito-de-Cam-ao-Racismo.pdf Acesso em: 20 nov. 2021.
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» https://www.bbc.com/portuguese/geral-57099524
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Como Gustavo Bernardo Krause explica, esse Deus saramaguiano, paradoxalmente, somente é capaz de ser plenamente compreendido pelas mulheres: “Só uma mulher, que pode ser violada sem que seus violados sejam punidos, como tantas mulheres o foram na narrativa da própria Bíblia Hebraica; só uma mulher, que pode ser torturada e queimada viva, como tantas mulheres o foram, em número muito maior do que o de homens, no decorrer da Santa Inquisição; só uma mulher, que pode se tornar prostituta apenas para preservar a virgindade das filhas das classes dominantes; só uma tem como sentir na carne e no sonho que Deus é medonho, como diz Maria [de Magdala] com todas as letras” (Krause, 2014KRAUSE, Gustavo Bernardo. A ficção de Deus. 1. ed. São Paulo: Annablume Editora, 2014. , p. 254-255).
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Essa percepção de Kierkegaard encontra abrigo no texto bíblico, por exemplo, no Evangelho Segundo Mateus: “Fixando neles o olhar, Jesus lhes respondeu: ‘Para o homem isso é impossível, mas para Deus tudo é possível’.” (Mateus, 19:26A BÍBLIA. Traduzida pro português por João Ferreira de Almeida, revista e atualizada no Brasil. 2. ed. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993., grifo nosso).
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Mais até que Pio XII, que, de acordo com carta recém-descoberta por Giovanni Coco, arquivista do Vaticano, e noticiada primeiramente no jornal italiano Corriere della Sera, tinha conhecimento das atrocidades cometidas pelos nazistas em Belżec - campo de extermínio no qual, segundo a referida carta, até 6 mil pessoas, em sua maioria judias e polacas, eram exterminadas todos os dias - e se manteve em silêncio eterno sobre o Holocausto (Carioti, 2023CARIOTI, Antionio. Pio XII sapeva della Shoah: la prova in una lettera scritta nel 1942 da un gesuita tedesco. Corriere della Sera, 18 set. 2023. Disponível em: https://www.corriere.it/cultura/23_settembre_16/pio-xii-sapeva-shoah-prova-una-lettera-scritta-1942-un-gesuita-tedesco-380489dc-53fb-11ee-8884-717525326594.shtml. Acesso em: 19 set. 2023.
https://www.corriere.it/cultura/23_sette... ). -
4
Não são todos os cristãos que defendem a tese do livre-arbítrio. Como exemplo desse fato, citamos os adeptos do Calvinismo, que, tendo como referencial os ensinamentos do reformador João Calvino, defendem a ideia da predestinação.
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5
Aqui se verifica a sutileza da ironia do narrador, pois quem já leu o livro de Jó sabe que não há nada de singelo nas duras perdas que ele sofreu.
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O tema da escravidão aparece no evangelho saramaguiano quando Jesus conversa com Zelomi, que fala sobre a dureza da sua condição de escrava (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 217). Porém, o narrador está mais interessado em desenvolver a ideia da escravidão como metáfora para se referir à relação que Deus, unilateralmente, estabelece com o ser humano, cuja existência parece se resumir a servir ao Criador. Todos os homens, como deixa claro o anjo que foi enviado para fazer o que podemos chamar de anunciação tardia, não passam “de míseros escravos da vontade absoluta de Deus” (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 312). Maria de Nazaré tem plena consciência disso e, tanto na Bíblia (Lucas 1: 38A BÍBLIA. Traduzida pro português por João Ferreira de Almeida, revista e atualizada no Brasil. 2. ed. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.) quanto no romance de Saramago (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 312), reconhece ser escrava - ou serva, δούλη - do Senhor.
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Aqui lembramos da diferença que Umberto Eco vai estabelecer entre uso e interpretação (Eco, 2015ECO, Umberto. Intentio Lectoris: apontamentos sobre a semiótica da recepção. In: ECO, Umberto. Os limites da interpretação. Tradução de Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2015. p. 1-20., p. 50). A respeito dessa diferença, Haroldo Reimer esclarece o seguinte: “[…] ‘Interpretação’, segundo Eco, ocorre sempre que se respeita a coerência de um texto, quando se tem em vista o mundo possível de um texto e o léxico de uma época. O ‘uso’ de um texto se dá quando o texto é tomado de uma forma mais livre, ampliando o universo do discurso. Uso e interpretação são formas válidas de acesso a um texto, mas é preciso distinguir entre ambas. Se o uso de um texto é ilimitado, a sua interpretação não é. A interpretação se constitui em um processo aberto e cooperativo entre autor, texto e leitor” (Reimer, 2009REIMER, Haroldo. Inefável e sem forma: estudos sobre o monoteísmo hebraico. São Leopoldo: Oikos; Goiânia: Ed. da UCG, 2009., p. 72).
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Isso tudo sem contar também as milhares de pessoas que se autoflagelam para pôr freio às tentações e ou se exilam em um mundo solitário para, dessa forma, adorarem ao Criador até o fim das suas vidas (Saramago, 2017SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. 2. ed., 5. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 384-385).
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
04 Out 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
19 Jan 2024 -
Aceito
22 Abr 2024