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El lunes nos querrán: o amor como liberdade na narrativa de Najat El Hachmi

El lunes nos querrán: el amor como libertad en la narrativa de Najat El Hachmi

Resenha de: EL HACHMI, Najat. . El lunes nos querrán . Madrid: Ediciones Destino, 2021. [E-BOOK Kindle]

El lunes nos querránEL HACHMI, Najat. El lunes nos querrán. Madrid: Ediciones Destino, 2021. [E-BOOK Kindle]., obra vencedora do Prêmio Nadal de 2021 é o quinto romance publicado pela escritora espanhola de origem marroquina Najat El Hachmi. Somam-se à lista de produções da autora dois ensaios e diversos artigos publicados em importantes periódicos, como El País. Esse último romance é o primeiro escrito por El Hachmi diretamente em língua espanhola, diferentemente de sua produção anterior, composta majoritariamente em língua catalã em interação com diversos termos do amazigh, dialeto marroquino falado em sua casa. O processo translingual e as discussões tradutórias vivenciados cotidianamente por quem habita duas ou mais línguas - destaque de La filla estrangera, seu romance de 2015EL HACHMI, Najat. La hija extranjera. Tradução de Rosa María Prats. Barcelona: Planeta, 2015. 240 p. - não ganham atenção em El lunes nos querrán, que trata a experiência entre-mundos por outra perspectiva. As obras de El Hachmi já foram traduzidas para diversos idiomas, inclusive português, por meio das editoras Bertrand e Planeta de Portugal. A autora, no entanto, segue praticamente desconhecida no Brasil, não havendo previsão de que sejam lançadas versões de suas obras por aqui.

Najat El Hachmi nasceu em Beni Sidel, no Marrocos, e migrou para a Catalunha, Espanha, aos 8 anos com sua família. Transitando por um contexto multicultural e plurilinguístico, a autora transporta para suas narrativas experiências que dialogam com suas vivências biográficas, muitas vezes tornando tênues as fronteiras entre realidade e ficção. Suas histórias, marcadas pela narração em primeira pessoa, aprofundam em descrições bem trabalhadas que compõem a subjetividade das personagens, expressando com maestria os elementos do sabersobreviver (ETTE, 2015ETTE, Ottmar. Saber sobreviver: a (o)missão da filologia. Tradução de Rosani Umbach, Paulo Soethe e equipe. Curitiba: UFPR, 2015. 320 p.) necessários às grandes obras. Suas protagonistas, mulheres de origem marroquina que migram para a Catalunha, mostram em suas jornadas os caminhos e as dificuldades enfrentados por sujeitos relegados às margens do pertencimento. As personagens advindas de um contexto cultural múltiplo, têm suas vivências permeadas tanto por discursos opressivos, reforçados pela tradição religiosa de suas famílias, como pela falta de integração e acolhimento no espaço cultural dominante do local de residência, supostamente mais aberto e moderno, mas que as discrimina e estigmatiza como eternas estrangeiras.

A narrativa de El lunes nos querrán, ou “Segunda-feira nos amarão”, em tradução livre, ocorre no contexto mencionado. O romance conta a história de duas adolescentes migrantes de origem marroquina que vivem em um bairro periférico de uma cidade próxima à Barcelona. A história narrada contempla especialmente o período entre os 17 e 20 anos nas vidas das personagens, etapa na qual tradicionalmente as famílias marroquinas decidem casar suas filhas. O cenário recorrente nas obras da autora remete à pequena Vic, região onde El Hachmi viveu ao migrar para a Espanha com sua família, ainda criança, experiência descrita em sua primeira publicação, o ensaio Jo també soc catalanaEL HACHMI, Najat. Jo també soc catalana. Barcelona: Labutxaca, 2004. 208 p., “Eu também sou catalã” em tradução livre, de 2004.

O romance de 2021, narrado em primeira pessoa, apresenta a estrutura de uma longa e detalhada carta direcionada à melhor amiga da protagonista, e na qual a narradora revela situações e pensamentos que não pôde expressar na época dos acontecimentos. A narradora quase anônima - saberemos seu nome, Naíma, quase ao final da narrativa através da fala de outro personagem - se assemelha em suas características às protagonistas das ficções anteriores da autora, que por meio do anonimato e do estilo confessional procuram desvelar uma realidade recorrente de silenciamento e despersonalização imposta às mulheres que vivem em um limbo cultural opressivo e de possibilidades escassas. Mulheres referidas como “a filha de” seguido do nome do pai ou apenas “uma marroquina mais” em um país hostil que não as reconhece como parte da sociedade.

A narradora e sua amiga, possuem personalidades diferentes. Enquanto a primeira se descreve como mais retraída e temente das punições pelo desrespeito às regras, a amiga aparenta ter mais coragem de lançar-se à busca de algum tipo de liberdade, trabalhando fora e se vestindo como deseja, relacionando-se com quem escolhe. São essas diferenças que formarão a complementaridade e a força da amizade e do amor existentes entre elas e que, ao longo da narrativa, revelarão facetas mais complexas da relação. Entre as complexidades da trama descobrimos que os aparentes caminhos de liberdade podem encobrir sequelas profundas de violências, advindas de costumes e pensamentos opressivos.

As questões de enfermidade mental derivadas da opressão e da alienação social já haviam sido abordadas pela autora em suas obras anteriores, mas em El lunes nos querrán são trabalhadas de forma muito mais profunda e complexa, denunciando os traumas da violência que se instala dolorosamente e atinge a estruturação subjetiva das mulheres diante de um contexto social nada acolhedor. A anorexia e a bulimia abordadas na obra, materializam uma dor profunda e mal elaborada pelas personagens do enredo: a culpa. Como se fossem elas as responsáveis pelos abusos psicológicos e físicos sofridos, ou pela violência exercida pelos pais e a sociedade contra suas mães - castigadas pelo comportamento “pecaminoso” das filhas -, ou como se a violência ao próprio corpo pudesse trazer algum tipo de controle e alívio.

As relações sexuais, vividas tanto pela protagonista como por sua amiga, incialmente parecem oportunizar a liberação da imposição religiosa da virgindade, um encontro com a satisfação do desejo. No entanto, a narrativa aponta a configuração masoquista desses encontros como uma repetição do padrão de punição e culpa que seguirá acompanhando as personagens. O mesmo padrão se apresenta na obsessão estética das duas amigas, entre dietas, exercícios e outras intervenções dolorosas, que miram o distanciamento do modelo materno e a aproximação a um ideal estético europeu.

Os diversos elementos que compõem a trajetória das personagens, revelam o anseio de aceitação, de ver-se diante de um mundo mais acolhedor. Essa busca mostra também a profundidade das fraturas que atingem esses sujeitos, marcados pela exclusão e pelo silenciamento. Não por acaso, descobre-se ao final que a carta narrada que constitui o romance que estamos lendo, consiste em um exercício terapêutico indicado pelo psiquiatra da narradora. Uma bonita metáfora, recorrente na escrita de El Hachmi, da libertação e da elaboração do trauma através da palavra e o reconhecimento da literatura como possibilidade.

A realidade descrita por El Hachmi através de suas personagens também corrobora com as críticas feitas pela autora ao feminismo teórico, que ajuda a reconhecer a existência da opressão, mas não oferece alternativas e saídas para mulheres que não usufruem dos direitos sociais mais básicos. Do mesmo modo, El Hachmi aponta os problemas acarretados por algumas políticas sociais supostamente inclusivas, mas que segundo ela contribuem com a manutenção do sistema opressivo aplicado às mulheres migrantes de origem marroquina na Espanha, como a aceitação do uso do véu. Esses e outros temas tratados pela escritora em diversos de seus artigos jornalísticos e aprofundados no ensaio Siempre han hablado por nosotras (2019EL HACHMI, Najat. Siempre han hablado por nosotras: Feminismo e identidad. Un manifiesto valiente y necesario. Tradução de Ana Ciurans. Barcelona: Planeta, 2019. 84 p. Epub. ), se entrecruzam com as jornadas das personagens de El lunes nos querrán.

As personagens do romance mostram que as escolhas possíveis ou os caminhos impostos às mulheres do contexto da obra, possuem ambivalências e complexidades que não são abarcadas pelo feminismo acadêmico ou por políticas que visam teorias e contextos muito distantes daquele vivido por mulheres que não pertencem completamente nem são acolhidas por nenhuma cultura, e são parte de uma classe social extremamente prejudicada. O aclamado trabalho fora de casa e a terceirização dos cuidados com os filhos se revelam na narrativa como outros tipos de violência exercidas contra as mulheres daquele contexto, estando muito longe de serem símbolos de independência e libertação diante do patriarcado. O excesso de trabalho e a liberdade sexual são mostrados como tentativas de fuga mental diante da violência, mas não propiciam satisfação e acabam contribuindo ao caminho contrário, aprofundando a sensação de esvaziamento e abandono.

A trajetória da narradora, em consonância com as situações vivenciadas por sua amiga, mostra que os sujeitos que vivem às margens necessitam passar por processos desfronteirizantes (ALVES, 2021ALVES, Luciane da Silva. A escrita desfronteirizante em Chimamanda Ngozi Adichie e Najat El Hachmi. 2021. Tese (Doutorado em Letras) - Programa de Pós-Graduação em Letras, Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: UFRGS, 2021. ) extremamente profundos e dificultosos para conquistar direitos básicos. Compreende-se ao final do longo desabafo da narradora que a tão sonhada liberdade, para ela consistia em algo para muitos corriqueiro, mas que em sua realidade estava negado, envolto por preconceitos, culpas e arrependimentos: o que buscava era amar e ser amada.

REFERÊNCIAS

  • ALVES, Luciane da Silva. A escrita desfronteirizante em Chimamanda Ngozi Adichie e Najat El Hachmi 2021. Tese (Doutorado em Letras) - Programa de Pós-Graduação em Letras, Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: UFRGS, 2021.
  • EL HACHMI, Najat. Siempre han hablado por nosotras: Feminismo e identidad. Un manifiesto valiente y necesario. Tradução de Ana Ciurans. Barcelona: Planeta, 2019. 84 p. Epub
  • EL HACHMI, Najat. La hija extranjera Tradução de Rosa María Prats. Barcelona: Planeta, 2015. 240 p.
  • EL HACHMI, Najat. El lunes nos querrán Madrid: Ediciones Destino, 2021. [E-BOOK Kindle].
  • EL HACHMI, Najat. Jo també soc catalana Barcelona: Labutxaca, 2004. 208 p.
  • ETTE, Ottmar. Saber sobreviver: a (o)missão da filologia. Tradução de Rosani Umbach, Paulo Soethe e equipe. Curitiba: UFPR, 2015. 320 p.

Editado por

Editor-chefe:

Rachel Esteves Lima

Editor executivo:

Regina Zilberman

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    29 Maio 2022
  • Aceito
    10 Jun 2022
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